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O maior inimigo da democracia brasileira é a própria democracia

“A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes”


Bernard Shaw

“O grande problema do nosso sistema democrático é que permite fazer


coisas nada democráticas democraticamente”
José Saramago

O Brasil vive, atualmente, o seu mais longo e profundo período democrático, dos mais de 500
anos de história. O processo de redemocratização teve início com a eleição indireta de Tancredo
Neves (PMDB), vencendo Paulo Maluf na reunião do colégio eleitoral, em 15 de janeiro de 1985.
No discurso da vitória, Tancredo lembrou os sonhos da Inconfidência Mineira: “Se todos
quisermos dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de
esperança, podemos fazer deste país uma grande Nação”.

Mas na posse do novo Presidente da República, marcada para 15 de março de 1985, quem
assumiu o cargo foi o vice José Sarney (ex-ARENA), político que fez carreira e fortuna no período
da ditadura militar. O golpe do destino fez o vice impopular (e que não defendeu as “Diretas Já”)
assumir o comando da democracia brasileira, na fase conhecida como Nova República.

A redemocratização brasileira começou mal. Em 1986, o presidente Sarney lançou o Plano


Cruzado, controlou a inflação por meio do congelamento dos preços e fez o PMDB sair como o
maior partido da Nova República, quando ganhou todos os governos estaduais (menos Sergipe)
e fez a maior bancada do Congresso. Mas o sonho de uma “grande Nação” do Plano Cruzado
não passou de uma política macroeconômica fracassada e representou um enorme estelionato
eleitoral. Sarney chegou a ter quase 90% de popularidade (quando manipulou os preços) e saiu
do governo com popularidade baixíssima e sem qualquer capacidade de governança. Os anos
seguintes foram de baixo crescimento e crise econômica, fazendo com que os anos de 1980
passassem para a história como a “década perdida”.

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O governo Collor foi um desastre completo e terminou em impeachment. O fato é que a Nova
República jamais logrou atingir taxas de crescimento econômico da ordem de 7% ao ano, como
aconteceu no longo período compreendido entre 1950 e 1980. Os saudosistas do regime militar
tecem loas ao período do “milagre econômico” (1968-1973), quando o Produto Interno Bruto
(PIB) cresceu 11% ao ano. Lembram também o período do II Plano Nacional de Desenvolvimento
(1974-1980), quando o PIB cresceu 7% ao ano.

Indubitavelmente, o PIB brasileiro crescia acima da média do PIB mundial durante a maior parte
do século XX (1901-1980) – éramos uma nação emergente e a renda per capita brasileira
superou a renda per capita global. Mas depois de 1980, passamos a crescer menos do que a
média mundial e nos tornamos uma nação submergente (em termos relativos) e a renda per
capita brasileira atual é menor do que a renda per capita global.

Evidentemente, as condições de vida da população brasileira de 2018 são melhores do que


aquelas existentes em 1980. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) avançou neste período
nas três dimensões que compõem o Índice: renda, educação e saúde. Mas os avanços brasileiros
foram menores do que os avanços das demais nações da comunidade internacional,
especialmente na área de poder de compra. No efeito comparação, isto significa
empobrecimento (não absoluto, mas relativo).

O Brasil avançou mas deixou muitas lacunas no meio do caminho. Na educação houve aumento
das matrículas em todos os níveis, mas a qualidade do ensino está longe do mínimo aceitável e
o país ocupa as últimas colocações no ranking do Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes (Pisa), além de contar com altas taxas de analfabetismo (uma das mais altas do
mundo entre países de renda média). No mercado de trabalho, o país tem mais de 27 milhões
de pessoas subutilizadas (desocupadas ou desalentadas) e mais de 50% da força de trabalho na
informalidade.

O Brasil continua um dos países mais desiguais do mundo em termos de renda e de patrimônio.
Na saúde convive com o surto das epidemias de febre amarela, dengue, zika, chicungunha e até
sarampo e aumentaram a mortalidade infantil e a mortalidade materna. O número de
homicídios atingiu a absurda cifra de 63.880 mortes violentas em 2017.Cerca de 50% dos
domicílios brasileiros não tem acesso ao saneamento básico e a carência de moradia é um
problema crônico, pois os trabalhadores são empurrados para as periferias das grandes
metrópoles e sofrem com a falta de serviços públicos e a precariedade do transporte público,
além de ter que enfrentar os enormes engarrafamentos e a poluição do ar e a degradação
ambiental.

O pacto econômico da Nova República, consolidado na Constituição de 1988, não apresentou


bons resultados nos últimos 30 anos e, além de todas as promessas não cumpridas, chegou a
um impasse que pode significar o fim da linha de um modelo fracassado. Como mostra o gráfico
acima, a democracia brasileira, da Nova República, coincidiu com a maior queda relativa da
participação do PIB brasileiro na economia internacional. A Nova República tem sido marcada
pelo empobrecimento relativo da nação. Mas o que estava ruim piorou, pois desde 2013 o Brasil
está mais pobre em termos absolutos e só vai recuperar a renda de 2013 em 2023.

As pesquisas de opinião indicam que a população não confia nem no Executivo, nem no
Legislativo e fica cada vez mais desconfiada do Judiciário. Tudo indica que as eleições de 2018
não vão cumprir o papel de esclarecer a população dos problemas nacionais e nem serão
apresentadas soluções para os graves problemas do país. Assim, como as eleições de 2014 foram
marcadas pelo estelionato eleitoral e as mentiras propagadas pelas candidaturas governistas e

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oposicionistas, os verdadeiros problemas não serão abordados de forma convincente nas
eleições gerais de 2018, que tem um elevado índice de pessoas indecisas e insatisfeitas. O Brasil
vai ter mais uma chance de mostrar que a democracia é o melhor caminho para o progresso
social e ambiental.

Mas se repetir os escândalos e as ineficiências que prevaleceram em mais de 3 décadas da Nova


República até a bela ideia de uma sociedade verdadeiramente democrática pode sucumbir
diante da descrença geral da população com os poderes instituídos. Nas eleições municipais de
2016, na cidade do Rio de Janeiro, o primeiro colocado foi o “ninguém” (soma dos votos nulos,
brancos e abstenção), o que se repetiu em diversas outras cidades.

A crise da democracia não é só do Brasil. O mundo está passando por uma situação definida
como “recessão democrática” e o “Consenso de Beijing” está ganhando espaço em relação ao
“Consenso de Washington”, isto é, a democracia ocidental está em crise.

David Runciman no recente livro "How Democracy Ends" (2018), vê traços da década de 1930
nos dias de hoje, com o surgimento no cenário político de demagogos e “homens fortes”, o
ressurgimento do autoritarismo, nacionalismos e dos fundamentalismos, a difamação da
expertise e a celebração da ignorância, o desprezo por construtores de consenso e compromisso
pragmático e a polarização da política em direção aos extremos. Mas há que diga que apesar de
todas as suas manifestas e múltiplas imperfeições, a democracia tem um desempenho melhor
do que qualquer forma de governo rival e na capacidade de sustentar sociedades livres,
inovadoras, pacíficas e prósperas. A democracia é muitas vezes confusa, desajeitada e ineficaz
e os eleitores às vezes dão poder a governantes medonhos. De fato, a democracia parece
cansada neste momento de sua história e Runciman questiona se a democracia continua com
capacidade de autoquestionamento e autocorreção, que falta em outros sistemas de governo?

No caso brasileiro, a população está descrente do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. A


impressão é que os poderes constituídos falam uma língua diferente e se locupletam à custa do
sofrimento da maioria da população. Evidentemente, continua válida a frase de Winston
Churchill: “A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras
que foram experimentadas”. Mas a democracia precisa ter desempenho melhor do que as
outras formas de governo, senão ela deixa de ser uma alternativa viável. Ou então, talvez Platão
esteja certo quando disse que a democracia estava fadada a degenerar em tirania. Muitas
ditaduras prosperaram a partir de um regime democrático e de sua degenerescência. As redes
sociais e as “fake news” contribuem mais para disseminar o ódio e a confusão do que o
esclarecimento.

Pesquisa Ibope/CNI, divulgada no início de agosto, mostra que quase a metade do eleitorado se
diz “pessimista” ou “muito pessimista” em relação à escolha do próximo presidente da
República. O pessimismo é justificado pela corrupção e o descrédito na classe política. O nível
pessimismo é exatamente o mesmo que foi registrado pela pesquisa no mês de dezembro do
ano passado. Para 30% do eleitorado, a corrupção é a principal explicação para o movimento.
Logo atrás, com 19%, vem a desconfiança em relação ao governo e aos políticos. O primeiro
debate eleitoral entre os presidenciáveis em 2018 (na Band) só confirmou a descrença do
eleitorado. Quem fez sucesso nas redes sociais foi a tal notícia esdrúxula “Ursal”, apresentada
pelo cabo e deputado (que foi eleito pelo PSOL) e hoje é candidato a presidente pelo partido
Patriota. Como disse ironicamente Ciro Gomes, a democracia tem seus custos!

Em meio à desconfiança geral, os três poderes vivem em desarmonia. O ativismo do Judiciário


avança sobre o Executivo e o Legislativo e os três juntos avançam sobre os parcos recursos da

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população para financiar uma democracia que não é reconhecida por aqueles que são a fonte
do “poder que emana do povo”. No momento em que o Brasil tem mais de 27 milhões de
pessoas desempregadas ou subempregadas, no dia 8 de agosto, o STF aprovou uma proposta
de auto reajuste salarial de 16,38%, o que vai ter um impacto enorme nas demais categorias e
nas contas do governo sustentada pelo conjunto da população. A maior parte da população
brasileira vive com uma renda menor do que o auxílio moradia dos juízes.

Desta forma, a democracia brasileira tem dificuldade de conquistar o apoio popular. A


percepção é que as instituições são ilegítimas, elitistas, corruptas, ineficientes e excludentes.
Ninguém aguenta um regime assim. Para ter apoio da maioria da população, a democracia
precisa mostrar à que veio e o que tem a oferecer, pois, ao contrário, pode se desfazer e
desmilinguir pelas suas próprias contradições internas.

José Eustáquio Diniz Alves


Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População,
Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

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