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“Eu não sei o que significa uma verdade objetiva, todas as verdades são, para
mim, verdades sangrentas" (Nietzsche).
“Porque eles aprenderam mal, e não o melhor, e tudo cedo demais e tudo
depressa demais: porque eles comeram mal, por isso veio-lhes esse estômago
estragado – um estômago estragado, sim, é seu espírito” (Z., III, “Das velhas e
novas tábuas”, § 16).
“De todo escrito amo apenas aquele escrito com seu sangue. Escreva com
sangue: e tu aprenderás que sangue é espírito” (Z., I, “Do ler e escrever”)[8].
Pois como ensina Zaratustra, “o corpo” é nossa “grande Razão“:
Por outro, expõe os poderes que agem com e contra o corpo, fazendo-o
sangrar:
Ocorre que sua recusa da sociedade burguesa vem entrelaçada com a crítica
da moral judaico-cristã, como se o passado insuperado reverberasse e
dominasse, compulsivamente, as várias questões do presente. Em O Anticristo
(abrev.= AC), pode-se ler:
“E para não deixar qualquer dúvida sobre o que desprezo, e quem desprezo: é
o homem da atualidade, o homem de quem, por fatalidade, sou contemporâneo
(...) atravesso esse mundo-manicômio de tantos milênios com triste prudência
(...). Porém meu sentimento transforma-se, rompe-se, mal eu ponho o pé no
tempo moderno, no nosso tempo. Nosso tempo é sábio... o que outrora era
apenas patológico, hoje tornou-se indecente; nos dias de hoje é indecente ser
cristão. E aqui começa o meu asco. Olho ao redor: não restou uma palavra
sequer do que antes se chamava ‘verdade’; nem suportamos mais quando um
sacerdote apenas pronuncia a palavra ‘verdade’ ” (AC, § 38).
“Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, é meu ofício” (EH,
“Prólogo”, § 2).
“Os conceitos ‘além’, ‘juízo final’, ‘imortalidade da alma’, mesmo o de ‘alma’ são
instrumentos de tortura, são sistemas de crueldade que permitiram que o
sacerdote se tornasse e permanecesse senhor... Todos sabem disso: e no
entanto, tudo continua como antes. Para onde vai o último sentimento de
decência, de respeito por si mesmo, se atualmente, até nossos governantes,
uma espécie até então despreocupada e completamente anticristã de homens,
se dizem cristãos e até comungam ?” (AC, § 38).
... mais ou menos, digamos, como os chefes de Estado “sabem” que o dinheiro
não pode ter vida própria (sem a exploração do trabalho social abstrato no
âmbito da economia real) ou “sentem” que seus projetos de administração da
crise do capital estão fadados ao insucesso político – mas continuam
cumprindo o programa liberal como um ritual de exorcismo dessa verdade
fictícia [11].
A “verdade”, seu “valor” fictício, seu poder real mistificador e ao mesmo tempo
cínico de conservação e coação sanguinária do existente – a “verdade” como
imposição de “instrumentos de tortura e sistemas de crueldade” (ibid.) – eis o
tema de diversos textos de Nietzsche. A questão da moral e seu poder de
verdade parece ser, pois, o acesso a sua crítica da modernidade.
Note-se como o ponto de vista da crítica da economia política não está tão
longe: Marx mostrou como todas as qualidades sensíveis da atividade humana
precisam passar pela mediação cega da forma-valor, a fim de serem abstraídas
e comparadas no mercado, para se transformarem em “trabalho humano igual”
ou “trabalho social abstrato”. Também ele mostra a força de “segunda natureza”
das relações sociais pautadas pelo valor econômico, tal como assinalou a
relação entre a economia burguesa e o “cristianismo”, que, “com seu culto do
homem abstrato”, diz Marx, “é a forma de religião adequada, notadamente em
seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc.”[13] Assim, há
uma relação oculta entre economia burguesa do valor e os valores da moral
cristã e moderna. Nietzsche certamente percebeu algo disso:
“ali onde o senhor se realizou plenamente, tornou-se para ele algo totalmente
diverso de uma consciência independente; para ele, não é uma tal consciência,
mas uma consciência dependente. Assim o senhor não está certo do ser-para-
si como verdade; mas sua verdade é de fato a consciência inessencial e o agir
inessencial dessa consciência” (Fenomenologia do espírito, § 192).
“Por outro lado, considere-se que o afeto do desprezo, do olhar de cima para
baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a imagem do desprezado,
em todo caso estará muito longe do falseamento com que o ódio entranhado, a
vingança do impotente, atacará – in effigie, naturalmente – o seu
adversário”(GM, I, §10).
“Os judeus realizaram esse milagre da inversão dos valores, graças ao qual a
vida na terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios – os
seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ateu’, ‘mau’, ‘violento’ e ‘sensual’ numa só
definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra ‘mundo’”
(ABM, § 195).
Ocorre então que a “vontade de potência” (Wille zur Macht) dos “fracos”
aparece na história sobretudo como “vontade de verdade” (Wille zur Wahreit):
“ ‘Vontade de verdade’ é como se chama para vós, ó mais sábios dos sábios, o
que vos impele e vos torna fervorosos ? // Vontade de que seja pensável tudo o
que é: assim chamo eu a vossa vontade! // Quereis antes tornar pensável tudo
o que é: pois duvidais, com justa desconfiança, de que seja pensável. // Mas
deve adaptar-se e curvar-se a vós! Liso deve ele tornar-se, e submisso ao
espírito, como seu espelho e reflexo. // Essa é toda a vossa vontade, ó mais
sábios dos sábios, como uma vontade de potência; e mesmo quando falais de
bem e mal e das estimativas de valores” (ibid.).
Num primeiro momento, então, o filósofo sustenta que tanto o que se toma por
saber verdadeiro (filosofia, ciência), como aquele voluntariamente ilusório (a
arte), tanto o que se chama de “bem” como o que se chama de “mau” (GC, §1),
são condições pragmáticas da vida e da luta pela sua afirmação:
Nossos “erros” originários têm força e eficácia, portanto poder, e isso basta
para a dominação técnica da natureza e a preservação da espécie. Mas não
para o filósofo que quer pensar a contradição até o fim, revelando-a como um
paradoxo. Um ceticismo fundamental em relação à Verdade e à Totalidade
alimenta toda a filosofia de Nietzsche:
“Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que
nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de
folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um
esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na
natureza além das folhas houvesse algo que fosse ‘folha’, uma espécie de
folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas,
recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo
que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da
forma primordial” (LF, “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, § 1).
Há portanto aqui um radical nominalismo: os conceitos são meros nomes
arbitrários que apontam para estados de coisas, ações, sentimentos etc.
totalmente variáveis e instáveis (cf. GC, § 58). O devir, a aparência, o caos não
podem ser reduzidos à identidade do ser, da coisa, do objeto ou do sujeito, a
não ser cometendo “injustiça”, “simplificações”, “abstrações” das diferenças.
Mas, segundo Nietzsche, fazemos isso necessariamente:
“Por mais longe que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais
incompleto do que sua imagem da totalidade dos impulsos que constituem seu
ser. (...) tudo isso que chamamos de consciência é um comentário, mais ou
menos fantástico, sobre um texto não sabido, talvez não ‘sabível’, porém
sentido? (...) o que são, então, nossas vivências ? São muito mais aquilo que
nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas
não se acha nada? Que viver é inventar ?” (A., § 119, “Viver e inventar”).
Voltando ao ponto, o fato de um juízo ser falso e injusto, porém, não o torna
pior:
“A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra
ele (..) A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva
ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os
juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais
indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a
realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo,
o homem não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos equivale a
renunciar à vida, negar a vida” (ABM, § 4).
“(...) do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha firmemente alojado nas
paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à
vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas
coisas” (HHI, § 31).
É disso tudo que Nietzsche tirava a máxima: “(...) o filosofar histórico é
doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia” (HHI, §2, “Defeito
hereditário dos filósofos”). A verdade, então, não é teórica: é prática, é moral, e
portanto, combate social de vontades. As ficções científicas e filosóficas que se
cristalizam como “Verdade”, aliás, são inteiramente pragmáticas: estão sempre
ligadas a uma “moral do temor” e da “utilidade”, à “moral do rebanho”, àquilo
que pacifica, dá segurança, nos afasta da violência e da morte, criando laços
comunitários pacíficos entre os indivíduos. Ou ainda:
Por isso, talvez, Zaratustra diz que a “vontade de potência” é mais ampla que a
“vontade de vida”:
“Não atingiu a verdade, por certo, quem atirou em sua direção a palavra
‘vontade de existência’: essa vontade – não há !// Pois: o que não é, não pode
querer; mas o que está na existência, como poderia ainda querer vir à
existência ! // ’Somente onde há vida há também vontade: mas não vontade de
vida, e sim – assim vos ensino – vontade de potência ! // ‘Muito, para o vivente,
é estimado mais alto do que o próprio viver; mas na própria estimativa fala – a
vontade de potência !” (Z., II, “Da superação de si”).
“Apenas não se pode negar, a esses pobres animais de tiro, as suas ‘férias’ –
como é chamado o ideal de ócio de um século sobrecarregado: quando se
pode folgar e ser estúpido e infantil à vontade” (A., §178, “Os cotidianamente
usados”).
É por isso que Nietzsche não se contenta sem mais com o prazer estético de
obras de arte como tais, frutos de um mundo que funcionalizou a arte e a festa
como esferas separadas da vida, como “l’art pour l’art”:
“Que importa toda a arte de nossas obras de arte, se chegamos a perder a arte
superior que é a arte das festas ? Antigamente as obras de arte eram expostas
na grande avenida de festas da humanidade, para lembrança e comemoração
de momentos felizes e elevados. Agora se pretende, com as obras de arte,
atrair os miseramente exaustos e enfermos para fora da longa via dolorosa da
humanidade, para um instantezinho de prazer; um pouco de embriaguez e de
loucura lhes é oferecido. “ (GC, § 89, “Agora e outrora”).
“Está fora de dúvida que através dela [da atividade maquinal] uma existência
sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente,
de modo algo desonesto, “a benção do trabalho” (GM, III, § 18).
O ascetismo então gera uma espécie de prazer masoquista. Indo além, nas
melhores páginas de Nietzsche, apreende-se a relação entre trabalho, corpo,
experiência e moderna racionalidade mercantil:
“Buscar trabalho pelo salário – nisso quase todos os homens dos países
civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por
isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma
boa renda (...). Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar
trabalhar sem prazer” (GC, § 42, “Trabalho e tédio).
Com efeito, para Nietzsche, o moderno trabalho assalariado seria até mesmo
pior que a escravidão antiga, onde o homem ainda não era literalmente uma
“coisa”, comprada impessoalmente no mercado:
Pensa-se que
E gritam eles:
“’Vingança queremos exercer, e ignomínia, sobre todos os que não são iguais a
nós” – assim se juramentam os corações de tarântula (...) E vontade de
igualdade – este mesmo deve ser, doravante, o nome da virtude; e contra tudo
o que tem potência, queremos levantar nossa gritaria!’ ” (Z., 2ª parte “Das
tarântulas”).
Talvez isso não esteja tão distante assim de Marx, como já vimos antes. Na
sociedade burguesa, a produção e o intercâmbio de mercadorias igualam o
diferente. É nela que rege a igualdade, que é sempre equivalência econômica
dos trabalhos e, ao mesmo tempo, a igualdade social formal de todos como
sujeitos concorrentes no mercado. No fundo, por uma contradição, a igualdade
real dos trabalhos produz a desigualdade das condições sociais de vida, pois a
igualdade torna-se apenas formal, mera ilusão jurídica – a dura realidade da
concorrência e, além disso, da exploração dos não-proprietários pelos
proprietários dos meios de produção. Mas mesmo no socialismo, quando seria
superada essa contradição do direito burguês (o conflito entre seu princípio
formal e sua prática), Marx observa que ele ainda continuaria reduzindo
injustamente os homens à condição vil de operários, igualando as diferenças
individuais, sociais e naturais. É por isso que na Crítica ao Programa de Gotha
ele irá pensar a fase superior do comunismo como a afirmação de um direito
que “não teria de ser igual, mas desigual”[26] – pautado pelas diferentes
necessidades de cada um e não mais exclusivamente na quota-parte de
trabalho individual de cada um.
“O nobre sempre deseja criar algo nobre e uma nova virtude. O bom deseja o
velho e que o velho continue vivendo” (Z., I, “Da árvore da montanha”).
(a continuar...)
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Notas
[5] “A força dos paradoxos reside em que eles não são contraditórios, mas nos
fazem assistir à gênese da contradição. (...) O paradoxo como paixão descobre
que não podemos separar duas direções, que não podemos instaurar um
sentido único, nem um senso único para o sério do pensamento (...). O
paradoxo é a subversão simultânea do bom senso e do senso comum [isto é, a
doxa, CRD]: ele aparece de um lado como os dois sentidos ao mesmo tempo
do devir-louco, imprevisível; de outro lado, como o não-senso da identidade
perdida, irreconhecível” (Gilles Deleuze, Lógica do sentido. São Paulo,
Perspectiva, pp.77, 79 e 81).
[6] “Pode-se encontrar nele”, diz Henri Lefebvre (Nietzsche [1939]. México,
Fondo de Cultura Económica, 1993, pp.135-6), “o espírito mais revolucionário e
o ódio a toda revolução, o espírito mais destrutor e a afirmação mais dura e a
mais repetida continuidade, tradição, herança. Pode-se encontrar em suas
obras as mais duras palavras para as massas e também as mais belas
definições do gênio popular; a apologia da relação feudal e militar de pessoa a
pessoa subordinada e o ódio ao militarismo; a apologia da tirania e a rebeldia;
o elogio da violência como elemento criador da história e o da generosidade
espiritual; a crítica do idealismo e o idealismo mais ingênuo; a apologia do
arianismo e a condenação expressa do racismo... // Nele pode-se encontrar
também o irracionalismo mais deliberado e o elogio do pensamento puro por
cima das paixões e dos sentimentos; os mais violentos ataques contra a
ciência e o esforço mais seguro para chegar ao conhecimento; o elogio do
inconsciente, a crítica da consciência e, não obstante, a exaltação desta
consciência ! // Em certo sentido, a obra de Nietzsche se torna exaltadora e
estimulante porque levou até o paroxismo todas as contradições espirituais do
mundo moderno; porque faz insustentável a situação e obriga a sair dela.
Nietzsche não saiu”.
[8] “Sangue” aqui no sentido de saber produzido pelo corpo, pela experiência
vivida. Neste sentido, o jovem Nietzsche diz sobre Parmênides: “Todas as
percepções dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões (...) Agora a
verdade só pode habitar nas mais desbotadas e pálidas generalidades, nas
caixas vazias das mais indeterminadas palavras, como num castelo de teias de
aranha; e ao lado de uma tal ‘verdade’ senta-se o filósofo, igualmente exangue
como uma abstração, e luta enclausurado em fórmulas. A aranha quer o
sangue de suas vítimas; mas o filósofo parmediano odeia justamente o sangue
de sua vítima, o sangue da empiria por ele sacrificada” (Nietzsche, A filosofia
na época da tragédia grega, § 10, grifos meus).
[9] Cf. Marx, O Capital (Crítica da economia política). São Paulo, Nova Cultural,
1988, Liv. I, t.1, p.77, nota 33.
[11] Inclusive com base no crédito e no “capital fictício”: cf. O Capital, op.cit.,
Liv. III, t.1, cap. 25.
[12] Kant fala em nome da felicidade. Mas para isso convoca a razão prática
pura contra uma espécie de razão instrumental que estaria sempre a serviço
apenas do prazer próprio casual. O homem “não é totalmente animal para ser
indiferente a tudo quanto a razão diz por si mesma e para usá-la somente
como instrumento para satisfazer sua necessidade como ente sensível (...). A
própria finalidade, o prazer que buscamos, não é em último caso um bem, mas
algo agradável, não é um conceito de razão mas um conceito empírico de um
objeto da sensação” (Kant, Crítica de la razón prática. Buenos Aires, Losada,
1961, p.70). Para isso Kant é obrigado a afastar toda a experiência individual e
a postular uma “vontade pura” que cria leis universais (e não máximas gerais
ou particulares), conforme o imperativo categórico: “Age de tal modo que a
máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio
de uma legislação universal” (ibid. p.37). Tal é, segundo Kant, o “paradoxo do
método de uma crítica da razão prática”, a saber: “que o conceito de bem e mal
não tem que determinar-se antes da lei moral (a qual, aparentemente, deveria
servir de fundamento), mas somente (como efetivamente se faz aqui) depois
dela e por meio dela” (p.71). E Kant não esconde o sado-masoquismo da lei:
“O essencial de toda determinação da vontade pela lei moral é: que se
determina somente pela lei, como vontade livre; por conseguinte, não só sem a
intervenção de impulsos sensíveis, mas ainda rechaçando-os e desprezando
todas as inclinações que possam ser contrárias a essa lei” (p. 82). É
exatamente esse esforço paradoxal de encontrar leis práticas a priori que
determinem a vontade, por “amor à lei” (ibid., p.81), que Nietzsche está
destruindo como forma metafísica de sujeição da vida à abstração da razão
(vide, p.ex.: AC, §§ 11 e 12).
[15] Como diz Pierre Klossowski: “Teremos então uma cultura de escravos?
Parece que isso é um falso problema: a cultura é o resultado do Escravo –
porque ele a produziu, é agora seu Mestre consciente – assim demonstrou
Hegel. Nietzsche é o beneficiário irrefutável dessa demonstração” (Nietzsche e
o círculo vicioso . Rio, Pazulin, p.31). E ainda como diz Gilles Deleuze:
“Aqueles que Nietzsche chama de senhores são seguramente homens de
potência, mas não homens de poder, pois o poder se julga pela atribuição dos
valores em curso; ao escravo, não basta tomar o poder para deixar de ser
escravo; é mesmo a lei do curso ou da superfície do mundo ser conduzido por
escravos” (Diferença e repetição, p.61, versão eletrônica). Vide ABM, § 62.
[16] “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou
deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres” (Heráclito, D
53); ou: “Do logos com que mais constantemente convivem, deste divergem; e
(as coisas) que encontram cada dia, estas lhes aparecem estranhas”
(Heráclito, D 72).
[17] Cf. Gilles Deleuze – Nietzsche [1965]. Lisboa, Ed. 70, 1990, pp.22 e 27.
[19] “Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem, em
definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintomas, só como sintomas
entram em consideração – em si tais juízos são imbecilidades. É preciso
estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de
compreender essa assombrosa finesse – de que o valor da vida não poder ser
avaliado. Por um vivente não, pois este é parte interessada, e até mesmo
objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão. – ” (CI, “O
problema de Sócrates”, § 2).
[21] “Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje ao
mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato” (Espinosa, Ética, Parte IV,
Proposição 21). E na seqüência (Prop. 22): “Não se pode conceber nenhuma
virtude anterior a esta (isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo)”, com
o seu Corolário: “O esforço [conatus] para se conservar é o primeiro e único
fundamento da virtude”. De onde que: “Agir absolutamente por virtude não é,
em nós, outra coisa que agir, viver, conservar o seu ser (estas três coisas
significam o mesmo) sob a direção da Razão, segundo o princípio da procura
da própria utilidade” (Prop. 24). Já Descartes (Discurso do método, Sexta
parte) valoriza “conhecimentos úteis à vida” para “nos tornar como que
senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não só para a
invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer
custo, os frutos da terra, e todas as comodidades que nela se acham, mas
principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o
primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida”.
[23] “Este princípio não significa (pelo menos não significa em primeiro lugar)
que a vontade queira o poder ou deseje dominar. Enquanto interpretarmos a
vontade de poder (‘puissance’) no sentido de ‘desejo de dominar’ fazê-mo-la
forçosamente depender dos valores estabelecidos, os únicos capazes de
determinar quem deve ser reconhecido como o mais poderoso neste ou
naquele caso, neste ou naquele conflito. Desse modo, ficamos sem conhecer a
natureza da vontade de poder como princípio plástico de todas as nossas
avaliações, como princípio escondido para a criação de novos valores não
reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem
sequer em tomar, mas em criar e em dar. O Poder, como vontade de poder,
não é o que a vontade quer, mas aquilo que quer na vontade (Dionísio em
pessoa). A vontade de uma força obedece”. Deleuze, op.cit., p.22.
[24] “Como já tinha intuído Nietzsche, e tal como Heidegger demonstra com
termos ontológicos, a tradição metafísica é a tradição de um pensamento
‘violento’ que, ao privilegiar as categorias unificadoras, soberanas,
generalizantes, no culto da arkhé, manifesta uma insegurança e um pathos de
base a que reage com um excesso de defesa” (Gianni Vattimo, As aventuras
da diferença, op.cit., p.13).
[25] Henri Lefevre – Hegel, Marx, Nietzsche (ou o reino das sombras). Póvoa
de Varzim, Ulisséia, p.173.
[26] Marx, “Crítica ao Programa de Gotha” in: Marx e Engels, Textos, vol. 1.
São Paulo, Edições sociais, 1977, p.232.