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VERDADES SANGRENTAS

Paradoxos na crítica da modernidade em Nietzsche

“Eu não sei o que significa uma verdade objetiva, todas as verdades são, para
mim, verdades sangrentas" (Nietzsche).

Fenomenologia dos Paradoxos em Nietzsche

“Nós, homens modernos”, diz Nietzsche na 2ª dissertação de Para a


Genealogia da Moral (II, § 24, [abrev. = GM] [1]), “somos herdeiros da milenar
vivisecção da consciência e da auto-tortura desse animal que somos nós: é o
nosso mais longo exercício, talvez nossa vocação artística, sem dúvida nosso
refinamento, nossa perversão do gosto”. E, na sua autobiografia, descreve
esse livro e esse texto em especial como o caminho fenomenológico da
revelação de uma “verdade nova”: “A crueldade pela primeira vez revelada
como um dos mais antigos e indeléveis substratos da cultura” (Ecce Homo
[abrev. = EH], sobre “Genealogia da Moral”).

Arte e auto-tortura, humanização e bestialização, crueldade e refinamento


cultural: desde já se vê como Nietzsche é um pensador sensível ao movimento,
e, nesta medida, um escritor de paradoxos. “A hostilidade, a crueldade, o
prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso
voltando contra os possuidores de tais instintos“, exclama ele, “um espetáculo
demasiado fino, portentoso e paradoxal ...” (GM, II, § 16). Como muitos
apontaram, o seu perspectivismo consiste justamente em multiplicar os ângulos
de visão sobre as coisas. Mais, a própria “vida” é por ele concebida como
forças em luta, como devir, criação de diferenças e portanto de conflitos,
ambigüidades, paradoxos. Impossível decidir se foi o conceito ou a realidade
que mudou. Os choques, assim, são inevitáveis. Quem passa por seus textos
com um olhar atento a isso terá de passar por turbilhões de idéias e avaliações
ambivalentes. As oscilações constantes, de livro a livro, de aforismo em
aforismo, precipitam continuamente o conteúdo pensado no abismo do
aparente ou do nada, desvelando a relatividade, a ficção ou a mentira do que
“é”, no que propriamente constituem valorações históricas diversas, abrindo o
leque dos possíveis e portanto de projetos de ação.

“Tenho necessidade de fortes oposições, da força luminosa das idéias


contrárias, para mergulhar no abismo de irreflexões e de mentiras que até o
presente se chamou moral” (A vontade de potência [abrev. = VP], §167, C).

Por outro lado, é o pensador que liqüida oposições, diluido-as em transições:

“A observação inexata comum vê na natureza, por toda parte, oposições (como


por exemplo ‘quente e frio’) onde não há oposições, mas apenas diferenças de
grau. Esse mau hábito nos induz também a querer entender e decompor a
natureza interior, o mundo ético-espiritual, segundo tais oposições. É indizível o
quanto de dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza penetrou assim no
sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar das transições” (O
andarilho e sua sombra, § 67, “Hábito das oposições”).
Sem dúvida, esse movimento assemelha-se à dialética: movimento do real e do
pensamento, avaliação, inversão de perspectivas e transformação do conceito,
tomada de posição e transformação prática. Neste livre caminhar pelo espaço-
tempo, Nietzsche faz desfilar uma galeria de tipos e máscaras: o apolíneo e o
dionisíaco, o homem teórico (ou racional) e o homem intuitivo, o nobre e o
escravo, o cristão e o anticristão, o espírito livre e o padre ascético, o camelo
(ou o burro), o leão e a criança, o anão, o último homem, o homem superior, o
“além/acima-do-homem” (Übermensch)... . Como em Hegel, a história veste-se
de “açougueiro”[2], com a faca sacrificial na mão, embora ela seja, em
Nietzsche, menos o “calvário do espírito absoluto”[3] que o calvário do corpo,
da vida, da potência. Há, assim, uma espécie de “fenomenologia do espírito”
nietzscheana[4], um movimento regressivo e progressivo da consciência
experiente pela história:

“Avante. – Assim avante no caminho da sabedoria, com um bom passo, com


firme confiança ! Seja você como for, seja sua própria fonte de experiência !
Livre-se do desgosto com seu ser, perdoe a se próprio Eu, pois de toda forma
você tem em si uma escada com cem degraus, pelos quais pode ascender ao
conhecimento. (...) Não é possível, exatamente com ajuda de tais experiências,
explorar com maior compreensão enormes trechos do passado humano ? Não
foi precisamente neste chão que às vezes tanto lhe desagrada, no chão do
pensamento impuro, que medraram muitos dos esplêndidos frutos da cultura
antiga ? (...) Faça o caminho de volta, pisando nos rastros que a humanidade
fez em sua longa e penosa marcha pelo deserto do passado: assim aprenderá,
da maneira mais segura, aonde a humanidade futura não pode ou não deve
retornar. (...) Está em suas mãos fazer com que tudo o que viveu – tentativas,
falsos começos, equívocos, ilusões, paixões, seu amor e sua esperança –
reduza-se inteiramente a seu objetivo. Este objetivo é tornar-se você mesmo
uma cadeia necessária de anéis da cultura, e desta necessidade inferir a
necessidade na marcha da cultura em geral” (Humano, demasiado humano,
Livro I [abrev. = HHI], § 292).

Na sua paixão pela sabedoria – a gaia ciência – entre saúde, doença e a


conquista da “grande saúde”, o filósofo andarilho-dançarino toma seu partido;
quebra as velhas tábuas da lei, aniquila valores consagrados, transvalora-os e
por fim reafirma outros valores (nobres e dionisíacos). No entanto, não chega a
concluir, pois “aí”, diz sobre si mesmo, “não fala um fanático, aí não se ‘prega’,
aí não se exige fé” (EH, “Prólogo”, § 4). Zaratustra guarda consigo “novas
tábuas escritas pela metade” (Assim falou Zaratustra [abrev. = Z.], III, “Das
velhas e novas tábuas”, § 1, grifo meu). Nietzsche aprende neste percurso que
“o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia”
(HHI, §2, “Defeito hereditário dos filósofos”). A procura de Nietzsche é
metódica, rigorosa, e no entanto é plural, não vê “caminhos únicos“ e uma
verdade substancial a ser dialeticamente atingida no percurso (Aurora [abrev. =
A.], § 474, “Os únicos caminhos”) pois não está subsumida à lógica da
contradição [5]: o autor não resolve qualquer contradição, ao contrário, sofre-
as, multiplica-as e deixa-as flutuar na superfície do aparente como conflitos e
paradoxos[6], como que disponíveis aos mais diversos paladares:
“Coragem com meu alimento, comedores !
Amanhã o seu gosto já lhes será melhor
E depois de amanhã será bom !
Se então quiserem mais –
Minhas sete velhas receitas
Me serão sete novas audácias”
(A Gaia Ciência [abrev. = GC], “Prelúdio”, §1)

Daí o mal-estar, a dificuldade em apreciá-lo. Assim, ele pede a ruminação:


talvez “seja imprescindível ser quase uma vaca, e não um ‘homem moderno’: o
ruminar” (GM, Prólogo, § 8]. Assim, alguns saborearam-no numa sopa insossa
de existencialismo, anarquismo ou marxismo; outros se empanturraram numa
versão soft ou pós-moderna festiva, sem desenvolver realmente suas
antinomias. Por outro lado, o marxismo tradicional, sedento pela unidade
positiva do que seria útil ao dia D da Revolução, logo vomitaria Nietzsche como
“ideólogo reacionário”, “pré-fascista” e “irracionalista a serviço do imperialismo”
(Lukács, entre outros)[7]. Ao contrário dessas posições creio ser preciso deixá-
lo falar, interrogá-lo no seu próprio terreno, para criticá-lo e potencializá-lo. Seu
terreno é o da crítica do sujeito e da razão ocidental. Aqui, Nietzsche nos
coloca problemas mais que respostas, e hoje talvez seja necessário pensar
com ele, mais do que simplesmente como ele. É preciso sobretudo bem
ruminá-lo, aprender com ele, como recomendava Zaratustra, noutro contexto:

“Porque eles aprenderam mal, e não o melhor, e tudo cedo demais e tudo
depressa demais: porque eles comeram mal, por isso veio-lhes esse estômago
estragado – um estômago estragado, sim, é seu espírito” (Z., III, “Das velhas e
novas tábuas”, § 16).

“A facilidade de tudo apreciar não é dos melhores critérios. Enalteço as línguas


delicadas e os estômagos meticulosos que aprendem a dizer ‘eu’, ‘sim’, ‘não’ “
(ibid., “Do espírito de gravidade [ou pesadume]”, § 2).

Enfim, “não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda;


harmonia de tensões contrárias, como a do arco e da lira” (Heráclito, Fragm. D
51). Pois em Nietzsche, como em Heráclito, a luta e o paradoxo são a “lei” de
todas as coisas. Mas sendo assim, sua própria filosofia torna-se
essencialmente paradoxal. O dionisíaco, a mais pura vontade de potência, é
sua definição. Em Zaratustra, diz Nietzsche, “todos opostos se fundem numa
nova unidade. As mais baixas e as mais elevadas forças da natureza humana,
o mais doce, mais leve e mais terrível flui de uma nascente com certeza
perene” (EH, sobre “Assim falou Zaratustra”, §6) - sem que estes termos
opostos se dissolvam numa identidade final. Eles convivem justapostos. De
uma fonte passam a fluir várias formas e perspectivas divergentes.

Do mesmo modo em Nietzsche, seu criador. Por um lado, temos a escrita


sensível do corpo, o escrito com o próprio sangue:

“De todo escrito amo apenas aquele escrito com seu sangue. Escreva com
sangue: e tu aprenderás que sangue é espírito” (Z., I, “Do ler e escrever”)[8].
Pois como ensina Zaratustra, “o corpo” é nossa “grande Razão“:

“Por trás de seus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais


poderoso, um guia desconhecido. Chama-se ‘eu sou’. Habita teu corpo; é o teu
corpo” (Z., I, “Dos desprezadores do corpo”).

Por outro, expõe os poderes que agem com e contra o corpo, fazendo-o
sangrar:

“Nós todos sangramos na mesa secreta dos sacrifícios, nós ardemo-nos e


assamo-nos em honra aos velhos ídolos” (Z., III, “Das velhas e novas tábuas”,
§ 6).

Por outro, ainda, é moralmente rude, impassível, insensível, violento e


sanguinário – com o adverso:

“Vós, porém, fatigados do mundo! Vós, preguiçosos da terra! Deve-se açoitar-


vos com chibatas ! Deve-se acelerar-vos as pernas com chibatadas ! ... E se
não quereis tornar a correr alegremente, então vós devestes desaparecer ! (...)
Ó meus irmãos! Então eu sou cruel ? Mas eu digo: deve-se empurrar ainda
mais aquilo que cai ! (...) Aniquilai, aniquilai os bons e os justos ! (...) Por que
sois tão moles, tão brandos e complacentes ? ... Pois os criadores são severos.
(...) Um Sol mesmo e uma inevitável vontade de Sol, pronta à destruição na
vitória !” (ibid., §§ 17; 20; 27; 29; 30).

Filosofia a marteladas (aqui também a “chicotadas”)... Metáfora? Certamente,


mas Nietzsche sabe como poucos qual a potência do discurso, qual seu poder
material efetivo! No filósofo da flexibilidade e da modéstia torna-se
estranhamente comum a exortação a ideais grandiosos: “A humanidade
enquanto massa sacrificada ao florescimento de uma espécie mais forte de
homem – isto seria um avanço” (GM, II, § 12). Quem diz o “imenso ilimitado
Sim e Amém” (EH, sobre “Assim falou Zaratustra“, § 6) a todo acontecer, nada
mais exclui como “necessário à afirmação da vida”, inclusive a inflexibilidade
radical: fúria e gozo, “prazer mesmo no destruir. O imperativo: ‘tornai-vos
duros!’, a mais básica certeza de que todos os criadores são duros, é a
verdadeira marca de uma natureza dionisíaca. -” (EH, sobre “Assim falou
Zaratustra”, §8). Imperativamente, então, fala em nome de uma ”verdade” mais
“elevada” (a sua):

“É certo que não devemos nos entregar a ilusões humanitárias, no tocante às


origens de uma sociedade aristocrática (ou seja, do pressuposto dessa
elevação do tipo ‘homem’): pois a verdade é dura” (Além do Bem e do Mal
[abrev. = ABM], § 257).

Ao contrário do que fazem os intérpretes soft de sua filosofia, Nietzsche não


deixa esconder seus pressupostos terríveis. Em sua autobiografia (EH), diz o
autor sobre “Além do Bem e do Mal” (§2): “O refinamento na forma, na
intenção, na arte do silenciar, está em primeiro plano, a psicologia é
manipulada com dureza e crueldade confessas – o livro carece de qualquer
palavra bondosa...”. Vê-se então como a forma trágica (ABM, §229) não lhe é
um enxerto: sangra - expõe a sangria histórica - faz sangrar.

Desenvolver as antinomias deste “filósofo trágico” (EH, sobre “O nascimento da


tragédia”, §1) até o limite da insolubilidade, aonde faísca sua verdade negativa
– paradoxal –, implica numa apresentação dupla, montada sobre um estrito
paralelismo: por um lado, temos o Nietzsche crítico da moral e do mundo
moderno – mundo que se repete sob coerção, manchado de sangue pela
racionalidade da autoconservação “escrava”, pela moral da renúncia e do
trabalho (1ª parte: “A verdade da moral sangrenta – Nietzsche crítico da moral
escrava”); por outro, o Nietzsche “hard”, “blood, sweat and no tears”, defensor
moral de força, poder, opressão e sangue “nobres”, “além do bem e do mal” (2ª
parte: “A moral da verdade sangrenta – Nietzsche advogado da moral nobre”).
Nesta seqüência dá-se a exposição fenomenológica dos momentos de suas
antinomias.

I – A verdade da moral sangrenta – Nietzsche crítico da moral


escrava

1- Crítica da modernidade como crítica do fetichismo dos valores morais

No itinerário de Nietzsche a questão da modernidade (ou se quisermos, da


moderna sociedade produtora de mercadorias) foi se revelando aos poucos,
principalmente na sua última década de vida (1880). Voltado à filologia, aos
gregos, seu ponto de vista crítico se quis, desde o início, “extemporâneo”. Ao
final da vida, porém, ele pensa pelo menos parte de sua obra exatamente nos
termos de uma “crítica da modernidade” (EH, sobre “Além do Bem e do Mal”, §
2; VP, § 25 e ss.; e também: Crepúsculo dos Ídolos [abrev. = CI], “Incursões de
um extemporâneo”, § 39).

Ocorre que sua recusa da sociedade burguesa vem entrelaçada com a crítica
da moral judaico-cristã, como se o passado insuperado reverberasse e
dominasse, compulsivamente, as várias questões do presente. Em O Anticristo
(abrev.= AC), pode-se ler:

“E para não deixar qualquer dúvida sobre o que desprezo, e quem desprezo: é
o homem da atualidade, o homem de quem, por fatalidade, sou contemporâneo
(...) atravesso esse mundo-manicômio de tantos milênios com triste prudência
(...). Porém meu sentimento transforma-se, rompe-se, mal eu ponho o pé no
tempo moderno, no nosso tempo. Nosso tempo é sábio... o que outrora era
apenas patológico, hoje tornou-se indecente; nos dias de hoje é indecente ser
cristão. E aqui começa o meu asco. Olho ao redor: não restou uma palavra
sequer do que antes se chamava ‘verdade’; nem suportamos mais quando um
sacerdote apenas pronuncia a palavra ‘verdade’ ” (AC, § 38).

O que Nietzsche mais despreza no cristianismo é sua “mania de grandeza” e


auto-suficiência, sua fuga do mundo real, ainda mais uma fuga para uma
crença de fachada, manipulando mentiras escandalosas, com seu sacrifício a
um puro ideal doutrinário, isolado da prática efetiva. Sua moral sempre vira
moralismo, isto é, a submissão de corpo e alma a um fetiche, invulnerável à
experiência, à crítica e à mudança. O Jesus histórico, neste ponto, foi mais
honesto, pois estava mais próximo da prática vivida, se opunha a simples
fórmulas moralistas (Cf. AC, § 32). O absurdo maior, porém, é haverem cristãos
após o século das Luzes. Assim, por analogia, digamos que uma questão
fundamental de Marx será a mesma de Nietzsche: a crítica do fetichismo de
uma relação social que se naturaliza, se autonomiza e inverte a relação com
seu criador: “Mercadoria”, “Capital”, “Estado” no primeiro; “Deus”, “Além”,
“Linguagem”, no segundo:

“Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, é meu ofício” (EH,
“Prólogo”, § 2).

Marx também mostrou como, pelo mecanismo fetichista da valorização do


capital, a história tende a ser “recalcada” na consciência dos homens
modernos: o tempo presente, moldado pela forma-valor, aparece objetivamente
como o coroamento, o fim, a verdade indiscutível da história: “houve história,
mas agora não há mais”, assim diz o “sábio” economista político clássico[9]. No
limite desse discurso fetichista, de forma cínica e indecente, o violento curso do
mundo – o processo de valorização e de identificação de todas as coisas com a
forma-mercadoria – aparece com valor de verdade por si só, sem que essa
verdade precise se comprovar, sem necessitar justificativa ideológica
complementar; a coisa é simplesmente vivida e constatada, como numa
“religião da vida cotidiana”[10]. Da mesma forma, no fenômeno religioso
contemporâneo, Nietzsche observa que:

“Os conceitos ‘além’, ‘juízo final’, ‘imortalidade da alma’, mesmo o de ‘alma’ são
instrumentos de tortura, são sistemas de crueldade que permitiram que o
sacerdote se tornasse e permanecesse senhor... Todos sabem disso: e no
entanto, tudo continua como antes. Para onde vai o último sentimento de
decência, de respeito por si mesmo, se atualmente, até nossos governantes,
uma espécie até então despreocupada e completamente anticristã de homens,
se dizem cristãos e até comungam ?” (AC, § 38).

... mais ou menos, digamos, como os chefes de Estado “sabem” que o dinheiro
não pode ter vida própria (sem a exploração do trabalho social abstrato no
âmbito da economia real) ou “sentem” que seus projetos de administração da
crise do capital estão fadados ao insucesso político – mas continuam
cumprindo o programa liberal como um ritual de exorcismo dessa verdade
fictícia [11].

A “verdade”, seu “valor” fictício, seu poder real mistificador e ao mesmo tempo
cínico de conservação e coação sanguinária do existente – a “verdade” como
imposição de “instrumentos de tortura e sistemas de crueldade” (ibid.) – eis o
tema de diversos textos de Nietzsche. A questão da moral e seu poder de
verdade parece ser, pois, o acesso a sua crítica da modernidade.

2 - Moral como vampirismo


No final de Ecce Homo há como que um condensado da filosofia de Nietzsche,
um “raio da verdade” que pretende rachar ao meio o edifício social:

“Tudo o que se chamava ‘verdade’ é reconhecido como a mais nociva, pérfida


e subterrânea forma da mentira; o sagrado pretexto de ‘melhorar´ a
humanidade como ardil para sugar a própria vida, torná-la anêmica. Moral
como vampirismo... quem descobre a moral descobriu com isso o não-valor
dos valores todos nos quais se acredita ou se acreditou; nada mais vê de
venerável nos tipos mais venerados e inclusive proclamados santos, neles vê a
mais fatal espécie de aborto, fatais porque fascinavam... A noção de ‘Deus’
inventada como noção-antítese à vida – tudo nocivo, venenoso, caluniador,
toda a inimizade de morte à vida, tudo enfeixado em uma horrorosa unidade !”
(EH, “Por que sou um destino”, § 8).

Nietzsche fala sempre da verdade, da história de consciência e dever, culpa e


castigo, como algo que “foi largamente banhado de sangue” (GM, II, § 6).
Nesse caso, a mentira ou ficção impostora que, por séculos e séculos, vem
castrando o que ele entende por “vida”. Assim, localiza tal mentira nos valores
judaico-cristãos, cuja genealogia ele procura retroceder aos gregos, a Sócrates
e Platão. Na seqüência do mesmo aforismo de Ecce Homo, diz-se:

“Inventada a noção de ‘além’, ‘mundo verdadeiro’, para desvalorizar o único


mundo que existe – para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim,
nenhuma razão, nenhuma tarefa ! A ‘noção de alma’, ‘espírito’, por fim ‘alma
imortal’, inventada para desprezar o corpo, torná-lo doente – ‘santo’ -, para
tratar como terrível frivolidade todas as coisas que na vida merecem seriedade,
as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual, assistência a doentes,
clima ! Em lugar da saúde a salvação da alma – isto é, uma folie circular
[loucura circular] entre convulsões de penitência e histeria da redenção ! A
noção de pecado inventada juntamente com o seu instrumento de tortura, a
noção de ‘livre arbítrio’, para confundir os instintos, para fazer da desconfiança
frente aos instintos uma segunda natureza ! Na noção de desinteressado, de
negador de si mesmo, a verdadeira marca de décadence, a sedução do nocivo,
a incapacidade de encontrar o próprio proveito, a autodestruição, convertidos
no signo de valor absolutamente, no ‘dever’, na ‘santidade’, no ‘divino’ no
homem!” (ibid.).

Todas as qualidades sensíveis da boa vida, aquilo que realmente importa no


cotidiano de cada um – corpo, alimentação, habitação, cultura, clima, saúde –
passam pelo filtro dos valores morais, sejam os do cristianismo ou os do
utilitarismo inglês, seja ainda os da abstração metafísica de uma “razão prática
pura”, como em Kant[12] – a ponto de se tornarem uma “segunda natureza”
inquestionada.

Note-se como o ponto de vista da crítica da economia política não está tão
longe: Marx mostrou como todas as qualidades sensíveis da atividade humana
precisam passar pela mediação cega da forma-valor, a fim de serem abstraídas
e comparadas no mercado, para se transformarem em “trabalho humano igual”
ou “trabalho social abstrato”. Também ele mostra a força de “segunda natureza”
das relações sociais pautadas pelo valor econômico, tal como assinalou a
relação entre a economia burguesa e o “cristianismo”, que, “com seu culto do
homem abstrato”, diz Marx, “é a forma de religião adequada, notadamente em
seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc.”[13] Assim, há
uma relação oculta entre economia burguesa do valor e os valores da moral
cristã e moderna. Nietzsche certamente percebeu algo disso:

“Após o fim da crença de que um deus dirige os destinos do mundo e, não


obstante as aparentes sinuosidades no caminho da humanidade, a conduz
magnificamente à sua meta, os próprios homens devem estabelecer para si
objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antiga moral,
notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem de
todos os homens: o que é algo belo e ingênuo; como se cada qual soubesse,
sem dificuldades, que procedimento beneficiaria toda a humanidade, e portanto
que ações seriam desejáveis; é uma teoria como a do livre-comércio,
pressupondo que a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma,
conforme leis inatas de aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das
necessidades da humanidade mostre que não é absolutamente desejável que
todos os homens ajam do mesmo modo, mas sim que, no interesse de
objetivos ecumênicos, deveriam ser propostas, para segmentos inteiros da
humanidade, tarefas especiais e talvez más, ocasionalmente. – Em todo caso,
para que a humanidade não se destrua com um tal governo global consciente,
deve-se antes obter, como critério científico para objetivos ecumênicos, um
conhecimento das condições da cultura que até agora não foi atingido. Esta é a
imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo século” (HHI, § 25, “Moral
privada e moral mundial”).

Em Marx, da mesma forma, há uma crítica do funesto universalismo abstrato


do valor, que da economia passa a reger todas as esferas da vida, pretendendo
regular todas as ações individuais. A liberdade seria justamente a emancipação
da ditadura de comportamentos formalmente iguais, abstratos e insensíveis,
formas de produzir e criar pautadas unicamente pela lógica reificada da
acumulação do dinheiro e da concorrência empresarial. Portanto, uma posição
concreta das diferenças qualitativas, para além do direito burguês. O valor-
capital aparece, em Marx, como o grande negativo da diferença, num amplo
sentido: o da produção e autodestruição sistemática da vida social e natural.

Para Nietzsche, diante da “segunda natureza” da moral “autodestrutiva” do


cristianismo, o “livre-arbítrio” é a pura ficção da liberdade de um sujeito
obediente, humilde e resignado, condenado a se adaptar à “moral do rebanho”,
aos valores previamente estabelecidos. Para Nietzsche, “moral é hoje, na
Europa, moral de animal de rebanho” (ABM, § 202; cf. tb. GC, § 116). O
paralelo com a forma-valor, que sujeita tudo o que é sensível, corporal,
qualitativo, singular à disciplina fabril e consumista da acumulação, é
novamente plausível.

Nietzsche, porém, não é exatamente um “crítico da economia política”, mas um


psicólogo perspicaz; mais precisamente um crítico do valor moral. Neste
sentido, perscruta a dominação remetendo-a ao plano específico da vida
subjetiva. Neste plano, a moral surge como o vampiro que subtrai ou limita as
forças do outro. É o que ele chamará “moral do ressentimento”. Viver em
rebanho, segundo ele, é participar de uma neurose coletiva, ficar preso ao
atoleiro da repetição maníaca de obediência e perseguição ao diferente; ou,
voltando ao aforismo de Ecce Homo: eis aqui o mundo da “loucura circular”
entre pecado, penitência e redenção imaginária. A Igreja fez do mundo um
“hospício” (GM, II, § 22; AC, § 51). As próprias “idéias modernas” emergidas
com a Revolução Francesa – em que ele coloca além dos direitos
democráticos de igualdade, liberdade e solidariedade, os valores da
cientificidade, do trabalho, do progresso e do socialismo – seriam esse
“hospício” em ato (cf. GC, § 350).

3 - A rebelião escrava na moral

Como erigiu-se o poder da “moral de rebanho” ? A genealogia nietzscheana


ensaia várias respostas para isso. Uma delas, a mais famosa, diz que através
do domínio religioso da casta dos sacerdotes, em comunhão com o Estado, os
“fracos” venceram os “fortes”. E o caminho de sua dominação é marcado, real
e simbolicamente (crucificação etc.), pelo sangue:

“Sinais de sangue escreveram eles sobre o caminho que trilhavam, e sua


loucura ensinava que com sangue se prova a verdade. Mas sangue é o pior
testemunho da verdade; sangue envenena a doutrina mais pura e transforma-a
em delírio e ódio dos corações” (Z., II, “Dos sacerdotes”).

A genealogia nietzscheana é essa tentativa de mostrar como se deu a “rebelião


escrava na moral”, isto é, como a perspectiva escrava, que opõe “bem e mal”,
substantivados e dicotomizados, prevaleceu sobre a perspectiva “nobre” de
“bom e ruim”.

Na Fenomenologia do espírito, Hegel também narra a ascensão dialética da


consciência escrava que luta por reconhecimento[14]. O senhor, que não
temeu a morte, afasta-se da vida natural e produtiva por intermédio do escravo
(§ 190). Exerce assim sua dominação, reconhecido mas sem reconhecer
propriamente o Outro, o escravo: “o que se efetuou foi um reconhecimento
unilateral e desigual” (§ 191). Pode viver imediatamente para o consumo, i.é, a
“aniquilação”, “a pura negação da coisa”, “e aquietar-se no gozo” (§190); assim
perde, contudo, a possibilidade da mediação do trabalho e da formação
(Bildung), e se reconhece, enfim, como Eu abstrato e imediato, como a
consciência e o agir “inessenciais”:

“ali onde o senhor se realizou plenamente, tornou-se para ele algo totalmente
diverso de uma consciência independente; para ele, não é uma tal consciência,
mas uma consciência dependente. Assim o senhor não está certo do ser-para-
si como verdade; mas sua verdade é de fato a consciência inessencial e o agir
inessencial dessa consciência” (Fenomenologia do espírito, § 192).

Já o escravo, sujeito à “vida”, temeu a morte, o “senhor absoluto” (§ 194), e não


simplesmente seu senhor. Mas, pela experiência do “serviço” e do “trabalho”,
refreando o desejo, o escravo forma um mundo e ao mesmo se forma (§ 195),
e, assim, pode reconhecer o senhor como seu outro, como seu dependente.
Ele “intui-se” como senhor do senhor, como a “verdadeira independência” (§
193). Superando seu estranhamento, pelo trabalho, o escravo reconhece ainda
o mundo como sua obra e restabelece a igualdade e sua liberdade no elemento
do “pensamento” ou da “consciência-de-si livre” (§§ 196 e 197). É já, para nós
ou em-si, a liberdade “abstrata”, “obstinada” e “impassível” do estoicismo (§§
198, 199 e 200).

Pode-se ver uma certa inspiração da dialética de Marx nesse esquema.


Nietzsche, porém, tira outras conseqüências dele:

“- A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna


criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a
verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária
obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’
– e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores –
este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio
do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo
oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação”
(GM, I, § 10).

Eis sua crítica da dialética hegeliana como moral do ressentimento e do


trabalho. O nobre “por vezes não reconhece a esfera por ele desprezada, a do
homem comum, do povo baixo” (ibid.) – abaixo dele, ignorado ou
negligenciado, está o que é medíocre, vil, ruim. Mas Nietzsche não deixa de
reconhecer essa dialética como historicamente necessária – aliás, como o
declínio da aristocracia e a ascensão do cristianismo, da cultura e da
sociedade burguesa (revolução francesa, industrial etc.) (cf. ABM, §§ 46, 242
etc.)[15]. Por fim, Nietzsche diz que o escravo também falsifica ao extremo a
perspectiva nobre:

“Por outro lado, considere-se que o afeto do desprezo, do olhar de cima para
baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a imagem do desprezado,
em todo caso estará muito longe do falseamento com que o ódio entranhado, a
vingança do impotente, atacará – in effigie, naturalmente – o seu
adversário”(GM, I, §10).

A aristocracia, diz Nietzsche, deve ser entendida originalmente num sentido


“social” (GM, I, § 4), de “espiritualmente bem nascido” e “privilegiado”
(certamente proprietários, HHI, § 479). Mais tarde, com o “declínio da nobreza”,
continua o autor, ela designa uma “aristocracia espiritual” (GM, I, § 5),
hierarquicamente “superior” aos servos do “instinto de rebanho”.

Da perspectiva nobre, “bom” é igual a “veraz”, “corajoso”, “livre de toda coerção


social”, ”bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses” (ibid., §§ 5;
7; 11), típico do “homem da disputa”, da dissensão (duo), como o guerreiro”
(ibid., § 5). Ao nobre não interessa a questão de utilidade imediata de seus
valores (ibid., § 2). Por outro lado, “ruim” era originalmente igual ao que é
“comum”, “plebeu”, “baixo”, “simples”, “temeroso”, “infeliz”, “sofredor”, “mísero”,
os dois últimos (entre os gregos), segundo Nietzsche, a condição natural do
“escravo do trabalho e da besta de carga” (ibid., § 10). “Despreza-se o covarde,
o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade” (ABM, § 260). A
vitória dos fracos foi então a vitória do “escravo”, “cristão”, “medíocre”, “chinês”,
“impotente”, “mentiroso”, elevando-se ao topo os valores “reativos”,
“vingativos”, da “inveja” e do “ressentimento”: a “compaixão”, a “humildade”, a
“submissão”, a “obediência”, a “utilidade”, “a paciência”, “o trabalho”, a
“astúcia”, “a mentira”, o “ascetismo” moral, o “anseio de liberdade e felicidade”,
a “hostilidade à ação” e “à vida” (GM, I, passim.; ABM, § 260 e outros).

“O cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum” (AC, §58), ou: “Roma


contra Judéia, Judéia contra Roma” – eis o “sentido” da história. O judaísmo foi
uma “radical transvaloração dos valores” nobres (GM, I, § 7). Assim, diz o
filósofo:

“Os judeus realizaram esse milagre da inversão dos valores, graças ao qual a
vida na terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios – os
seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ateu’, ‘mau’, ‘violento’ e ‘sensual’ numa só
definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra ‘mundo’”
(ABM, § 195).

4 - Vontade de potência como vontade de verdade

Grande inversão, já esquecida e recalcada. Deste modo, não existe para


Nietzsche uma “verdade objetiva”, “absoluta” ou “eterna”, mas apenas
perspectivas e avaliações sobre o mundo, que se impõem na luta histórica de
posições de valores e, portanto, de poderes – ou melhor, de “vontades de
potência” (ou de poder):

“(...) – moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as


quais se origina o fenômeno ‘vida’” (ABM, § 19).

Seu “fundamento” está na concepção heracliteana[16] do ser:

“O estado normal é a guerra: estabelecemos a paz somente em determinados


períodos” (O livro do filósofo [abrev. = LF], “O último filósofo. Considerações
sobre o conflito entre arte e conhecimento, outono-inverno de 1872, § 56).

O cerne da filosofia de Nietzsche, portanto, será uma teoria das forças. Só há


forças no plural, como um agir sobre outras forças. “A relação da força com a
força chama-se vontade”, diz Deleuze. Uma vontade consciente, um sujeito
cartesiano ? Não exatamente, pois segundo Deleuze, “os conceitos
nietzscheanos são categorias do inconsciente” [17], tal como são as categorias
“avaliação” e “força” e seus correlatos (“afeto”, “impulso”, “instinto” e “vontade”).
Estas não têm nada de “consciente” ou “livre” por si mesmas, pois sempre
estão atreladas a “exigências fisiológicas” (ABM, § 3). No homem, não é uma
consciência, um ego, um sujeito – é um corpo (Leib), um “isso” (Es), quem
pensa, quer, avalia (Cf. ABM, §§ 17 e 32; e Z., I, “Os desprezadores do corpo”)
– e o mais importante: eles mesmos constituídos pelas forças. Nada a ver,
portanto, com um sujeito ou substrato a priori ou oculto por trás da ação natural
da força:
“exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-
dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se
expresse como força. (...) como se houvesse um substrato indiferente que
fosse livre para expressar ou não a força.” (GM, I, § 13).

Há divergência no seio da vontade de potência[18]. As avaliações dependem


de dois tipos diferentes de vontade, que as impulsionam: as “fortes”, “ativas” e
“afirmativas” (próprias da moral nobre), por um lado; e as “fracas”, “reativas” e
“negativas” (próprias da moral de escravos), por outro (cf. ABM, § 19; 21, 36
etc.). A vontade de potência, a chamada “essência da vida” (GM, II, § 12), é
impessoal e pré-individual, e, como tal, não poderia ser avaliada ou julgada
moralmente em relação à verdade: é simplesmente fática, indestrutível e
neutra, sem valor imanente [19]. Seu caráter fundamental é o do puro fluxo do
devir, não o de átomos indivisíveis ou unidades fixas de poder. Atribuir um valor
ao devir implica em interpretação, escolha de sentido, em acentuação ou
seleção, e portanto simplificação, abstração, falsificação, projeção e
estruturação de um “mundo próprio”, estável e organizado, dentro do caos
desse devir. É a isso que Nietzsche chama “formações de domínio”[20]. O vir-
a-ser – o caos – tem precedência em relação ao ser. A partir dele, no entanto,
nascem os valores, a constância fictícia do “ser”, do “objeto”, “do sujeito”, de
um “mundo”, de uma “verdade” para fins da conservação e/ou afirmação da
vida. De modo que interpretar é exercer poder.

Ora, como diz Zaratustra:

“Onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; e até mesmo na


vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor. (...) Com vossos
valores e palavras de bem e mal exerceis poder, ó estimadores de valores” (Z.,
II, “Da superação de si”).

Ocorre então que a “vontade de potência” (Wille zur Macht) dos “fracos”
aparece na história sobretudo como “vontade de verdade” (Wille zur Wahreit):

“ ‘Vontade de verdade’ é como se chama para vós, ó mais sábios dos sábios, o
que vos impele e vos torna fervorosos ? // Vontade de que seja pensável tudo o
que é: assim chamo eu a vossa vontade! // Quereis antes tornar pensável tudo
o que é: pois duvidais, com justa desconfiança, de que seja pensável. // Mas
deve adaptar-se e curvar-se a vós! Liso deve ele tornar-se, e submisso ao
espírito, como seu espelho e reflexo. // Essa é toda a vossa vontade, ó mais
sábios dos sábios, como uma vontade de potência; e mesmo quando falais de
bem e mal e das estimativas de valores” (ibid.).

A paixão pela verdade é um querer obrigar o mundo ao saber e aos valores


comuns, de rebanho, do sujeito moral autocentrado: conceber claramente tudo
o que é, reduzir tudo à malha de causas e efeitos, destruir o imprevisto,
ordenar tudo a partir do sujeito racional. Nietzsche a desvenda em vários
níveis: no plano religioso, como a busca de garantias religiosas ou metafísicas,
uma vontade de presença e profundidade, a participação imaginária num além-
mundo (real, empírico-sensível, aparente); no saber filosófico e científico, como
a busca de segurança de um fundamento no sujeito transcendental, da certeza
de si e do mundo, tal como em Descartes e toda filosofia moderna após Kant;
no plano social e natural, o controle de si e do outro, uma vontade de durar,
permanecer vivo, enfim, como impulso de autoconservação da vida...

“O homem procura a “verdade”: um mundo que não se contradiga, que não


engane, nem se transforme, um mundo-verdadeiro – um mundo em que não se
sofra: contradição, ilusão, mutação – causas do sofrimento ! (...) O desprezo, o
ódio de tudo o que passa, muda e se transforma: de onde vem essa evolução
que permanece ? Visivelmente a vontade de verdade é apenas o desejo de um
mundo em que tudo seja durável” (VP, § 285).

Sabe-se como Espinosa, após Descartes, erigiu esse impulso (o conatus) a


fundamento da virtude[21]. De fato, talvez ele seja, diz Nietzsche, o “mais
antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável” nos homens, “porque ele
é a essência da linhagem e rebanho que somos” (GC, § 1).

Num primeiro momento, então, o filósofo sustenta que tanto o que se toma por
saber verdadeiro (filosofia, ciência), como aquele voluntariamente ilusório (a
arte), tanto o que se chama de “bem” como o que se chama de “mau” (GC, §1),
são condições pragmáticas da vida e da luta pela sua afirmação:

“...a vida necessita de ilusões, quer dizer, de não-verdades tidas como


verdades. Necessita da crença da verdade; no entanto basta a ilusão,
enquanto as ‘verdades’ são demonstradas por seus efeitos e não através de
provas lógicas, pela prova definitiva. O verdadeiro e o eficaz mostram-se
igualmente válidos e também se curvam diante da violência. (...) Tudo o que
representa um esforço real pela verdade chegou ao mundo por meio da luta
por uma convicção sagrada: através do pathos da luta”. (LF, § 47).

“Portanto, a força do conhecimento não está no seu grau de verdade, mas na


sua antigüidade, no seu grau de incorporação, em seu caráter de condição
para a vida.” (GC, §110, “Origem do conhecimento”).

Nossos “erros” originários têm força e eficácia, portanto poder, e isso basta
para a dominação técnica da natureza e a preservação da espécie. Mas não
para o filósofo que quer pensar a contradição até o fim, revelando-a como um
paradoxo. Um ceticismo fundamental em relação à Verdade e à Totalidade
alimenta toda a filosofia de Nietzsche:

“Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que
nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de
folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um
esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na
natureza além das folhas houvesse algo que fosse ‘folha’, uma espécie de
folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas,
recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo
que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da
forma primordial” (LF, “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, § 1).
Há portanto aqui um radical nominalismo: os conceitos são meros nomes
arbitrários que apontam para estados de coisas, ações, sentimentos etc.
totalmente variáveis e instáveis (cf. GC, § 58). O devir, a aparência, o caos não
podem ser reduzidos à identidade do ser, da coisa, do objeto ou do sujeito, a
não ser cometendo “injustiça”, “simplificações”, “abstrações” das diferenças.
Mas, segundo Nietzsche, fazemos isso necessariamente:

“Por exemplo, nenhuma experiência relativa a alguém pode ser completa a


ponto de termos um direito lógico a uma avaliação total dessa pessoa (...) De
antemão somos seres ilógicos e por isso injustos, e capazes de reconhecer
isto: eis uma das maiores e mais insolúveis desarmonias da existência” (HHI, §
32, ‘Necessidade de ser injusto”).

O vivido, o sentido e até o inventado precedem o percebido e o concebido:

“Por mais longe que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais
incompleto do que sua imagem da totalidade dos impulsos que constituem seu
ser. (...) tudo isso que chamamos de consciência é um comentário, mais ou
menos fantástico, sobre um texto não sabido, talvez não ‘sabível’, porém
sentido? (...) o que são, então, nossas vivências ? São muito mais aquilo que
nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas
não se acha nada? Que viver é inventar ?” (A., § 119, “Viver e inventar”).

Sem mencionar, ainda, que:

“o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a


pior (...). Todas as nossas ações, no fundo, são pessoais de maneira
incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo
as traduzimos para a consciência, não parecem mais sê-lo... Este é o
verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da
consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar
conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado – que tudo o que se
torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral,
signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada
uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.
Afinal, a consciência crescente é um perigo (GC, § 354, “Do ‘gênio da
espécie’).

De modo que se dependesse apenas da consciência (e não dos instintos),


pensa o filósofo, “a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu
fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade” (ib., § 11, ”A
consciência”).

“O que é a verdade, portanto ?”, pergunta ele:

“Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma


soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas, obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o
são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais
como moedas”. (LF, ibid., §1).

Nietzsche propõe, a seu jeito, munido desse ceticismo e desse nominalismo de


base, uma espécie de hermenêutica ou fenomenologia do vir-a-ser (não
propriamente do Ser), enquanto posição e supressão de posições, desfile de
máscaras e desmascaramentos de verdades[22]. Mas diferente de Hegel, não
há o telos positivo de um Saber Absoluto, mas a dança e o riso (GC, §1)
alegres, em meio a um reino de sombras e simulacros antiplatônico. Sujeito,
objeto, consciência, coisa, homem, deus (este o conceito mais abstrato e geral)
– tudo é demolido como pura ficção de identidade. Essa atitude é abertamente
uma espécie de niilismo, porém “ativo” (VP, § 22 e 152). É claro que isso não
significa acabar com o mundo material, corporal, empírico, exterior à
consciência, mas colocar seu valor e seu significado entre parênteses. A
“objetividade” que possamos alcançar nessa espécie de fenomenologia será
formada, segundo ele, pela “diversidade de perspectivas e interpretações
afetivas”:

“Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e


quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos,
diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será
nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’” (GM, III, § 12).

Ele vê em toda busca de verdade “profunda” ou “fundamental” talvez nada


“mais que avaliações-de-fachada” ou “superficiais” (Vordergrunds-
Schätzungen) (ABM, §§ 2 e 3): pretende pôr fim, assim, à Verdade metafísica
como identidade ontológica ou correspondência de palavras e coisas,
adequação final de sujeito e objeto. A identidade conceitual é uma abstração
antropocêntrica, conforme o adágio do “homem como medida de todas as
coisas” de Protágoras (ibid.). Todas as Verdades são convicções, crenças,
ficções: ou literalmente, “pré-conceitos”, conscientes ou inconscientes.

Voltando ao ponto, o fato de um juízo ser falso e injusto, porém, não o torna
pior:

“A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra
ele (..) A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva
ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os
juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais
indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a
realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo,
o homem não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos equivale a
renunciar à vida, negar a vida” (ABM, § 4).

Como escreveu o autor, num livro anterior:

“(...) do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha firmemente alojado nas
paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à
vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas
coisas” (HHI, § 31).
É disso tudo que Nietzsche tirava a máxima: “(...) o filosofar histórico é
doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia” (HHI, §2, “Defeito
hereditário dos filósofos”). A verdade, então, não é teórica: é prática, é moral, e
portanto, combate social de vontades. As ficções científicas e filosóficas que se
cristalizam como “Verdade”, aliás, são inteiramente pragmáticas: estão sempre
ligadas a uma “moral do temor” e da “utilidade”, à “moral do rebanho”, àquilo
que pacifica, dá segurança, nos afasta da violência e da morte, criando laços
comunitários pacíficos entre os indivíduos. Ou ainda:

“a compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a


diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras – pois são as
propriedades mais úteis no caso, e praticamente os únicos meios de suportar a
pressão da existência. A moral dos escravos é essencialmente uma moral de
utilidade” (ABM, § 260).

Se estes valores não são em si “verdadeiros”, apesar de serem das mais


antigas necessidades da espécie para sua autoconservação, seriam eles
também mais primordiais e, por isso, melhores, ou os únicos “bons” e “justos” ?
Ora, a operação nietzscheana consiste basicamente na destituição da
autoconservação utilitária como impulso primordial da existência (rebaixando-o
a uma derivação da “vontade de potência”):

“Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de


autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura
viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de
potência – : a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes
conseqüências disso. – Em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os
princípios teleológicos supérfluos! – um dos quais é o impulso de
autoconservação (nós o devemos à inconseqüência de Spinoza)” (ABM, § 13).

E num outro aforismo esclarecedor:

“Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma


limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão de
potência e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a
autoconservação. (...) na natureza não predomina a indigência, mas a
abundância, o desperdício, chegando mesmo ao absurdo. A luta pela existência
é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta
grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e
expansão, de potência, conforme a vontade de potência, que é justamente
vontade de vida” (GC, § 349).

Por isso, talvez, Zaratustra diz que a “vontade de potência” é mais ampla que a
“vontade de vida”:

“Não atingiu a verdade, por certo, quem atirou em sua direção a palavra
‘vontade de existência’: essa vontade – não há !// Pois: o que não é, não pode
querer; mas o que está na existência, como poderia ainda querer vir à
existência ! // ’Somente onde há vida há também vontade: mas não vontade de
vida, e sim – assim vos ensino – vontade de potência ! // ‘Muito, para o vivente,
é estimado mais alto do que o próprio viver; mas na própria estimativa fala – a
vontade de potência !” (Z., II, “Da superação de si”).

Ou seja, no fundo (aqui o filósofo interpreta), o que querem as vontades


(sempre no plural) é crescer, se expandir, ir “em direção” (zur) à maior potência,
não primariamente conquistar a estabilidade, a identidade de um eu rígido, o
poder (político), a conservação e adaptação ao mundo estabelecido ou a
destruição do outro: uma vontade de poder (por isso, melhor dizer potência),
não exatamente vontade do poder [23]. É antes o “querer-vir-a-ser-mais-forte”
de um espírito guerreiro (de polêmica) e artístico (de plasticidade) que se choca
com resistências de outras forças, mas que não tem objetivo ou finalidade
última, não prevê trégua nem termo de parada (tal como o aguilhão constante
das pulsões em Freud e a “vontade de vida” sempre insatisfeita de
Schoppenhauer):

“O que é bom ? Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, a


vontade de potência, a própria potência. // O que é mau ? Tudo o que provém
da fraqueza. // O que é felicidade? O sentimento de que a potência cresce, de
que uma barreira é superada. // Não contentamento, porém mais potência; não
paz em absoluto, porém guerra; não virtude, mas habilidade (virtude no estilo
renascentista, virtus, virtude livre de moralismo)” (AC, § 2).

Nietzsche, assim, postula a

“primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas,


criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação precede
a adaptação” (GM, II, §12).

Na origem da moral e da verdade dos fracos temos sempre, ao contrário, uma


economia do medo: “o temor (Furcht) é aqui novamente”, diz ele, “o pai da
moral” (ibid.; ver tb.: A., §104, “Nossas valorações”). E se a vontade de
potência é vontade de crescer, criar, dar, a “vontade de verdade”, diz Nietzsche,
“é a impotência da vontade de criar” (VP, § 248).

Com sua moral reativa e negativa, presa à adaptação e à autoconservação, os


fracos se erigem senhores, tomam o poder, sugam e limitam a vida do outro, a
própria proliferação da “vida”. Segundo Nietzsche, estes valores morais, no seu
próprio impulso de dominação e exclusividade – se tomando pela “Verdade”
única –, são violentos, cruéis e sanguinários na sua imposição contra a “vida”.
Por uma “contradição” necessária (que ele diz também ser aparente), a
vontade de potência, transfigurada em “vontade de verdade” e “impulso de
autoconservação”, torna-se vontade do poder e impulso de autodestruição,
fechando-se num círculo de violência fatal:

“Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento


ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja
senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições
maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força
para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra
o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a
beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro,
na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si,
autoflagelação e autosacrifício” (GM, III, §11).

“Prazer em infligir dor” ou “fruir a si mesmo neste sofrimento” (masoquismo)


(ibid., “sadismo” e “masoquismo” dir-se-ia com a nomenclatura psicanalítica),
ou ainda, reduzir “ao nível mais baixo o sentimento vital”(ibid., §17) – eis o
significado do ideal ascético. Sua vontade de vida, de presença a si, de
crescimento e poder, torna-se “vontade de destruição”, “vontade de morte”,
“vontade de nada” – partes integrais de um “pessimismo” e de um “niilismo”
permanentes contra a vida (GM, III, §§ 11, 13, 14, 27 e 28; AC, § 9)[24].

Esta é, enfim, a “verdade” da autoconservação do sujeito como “escravo”,


cristão e homem burguês moderno, sempre segundo Nietzsche. Ocorre então
que tal “verdade” funesta da autoconservação foi imposta historicamente como
“domesticação da besta homem”, transfigurada como seu “melhoramento”:

“Em todos os tempos quis-se ‘melhorar’ o homem: a isto sobretudo chamou-se


moral. Mas sob a mesma palavra escondem-se as mais diferentes tendências.
Tanto a domesticação da besta homem quanto o aprimoramento de um
determinado gênero de homem foi chamado ‘melhoramento’: somente estes
termos zoológicos exprimem realidades. Realidades das quais com certeza o
sacerdote, o típico ‘melhorador’, nada sabe – nada quer saber... Chamar a
domesticação de um animal seu ‘melhoramento’ soa, para nós, quase como
uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries [circo de animais,
estábulo etc.] em geral duvida de que ali a besta seja ‘melhorada’. Ela é
enfraquecida, tornada menos danosa, torna-se, pelo sentimento depressivo do
medo, pelas feridas, pela fome, uma besta doentia. – Com os homens
domesticados que o padre ‘melhorou’ não se passa nada de diferente” (CI, “Os
melhoradores da humanidade”, § 2).

No mundo moderno, porém, esse “melhoramento da besta homem” se dá não


apenas como cristianização das almas, mas sobretudo pela imposição do
trabalho capitalista ao corpo do sujeito.

5- Crítica da autoconservação como crítica do trabalho e das “idéias


modernas”

No ataque à moral judaico-cristã, Nietzsche condensa às vezes todos os níveis


e dimensões da imposição da modernização burguesa. Por força de seu
método genealógico, sua crítica é ampliada à história como tal [25]. Mas se
garimparmos bem, podemos encontrar em Nietzsche uma crítica do trabalho e
de sua cultura, como imposição da autoconservação e de certo “melhoramento”
do homem.

De início, Nietzsche percebe a valoração burguesa do trabalho como uma


“nova barbárie”:

“Por falta de tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie.


Em nenhum outro tempo os ativos, isto é, os intranqüilos valeram tanto. Logo,
entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está
fortalecer em grande medida o elemento contemplativo” (HHI, § 285, “A
intranqüilidade moderna”).

Ou como “cinismo e indecência”:

“Como o trabalho e o trabalhador se acham próximos até do mais ocioso entre


nós atualmente! A cortesia real das palavras ‘Somos todos trabalhadores!´ seria
um cinismo e uma indecência ainda no tempo de Luís XIV.” (GC, § 188,
“Trabalho”).

Nesta batalha, Nietzsche valoriza, então, a perspectiva nobre do “ócio”:

“Os eruditos se envergonham do otium. Mas há algo de nobre no ócio e no


lazer. – (...) o ocioso é sempre um homem melhor do que o ativo. – Mas não
pensem que, ao falar de ócio e lazer, estou me referindo ao vocês,
preguiçosos” (HHI, § 284, “Em favor dos ociosos”).

“O desejo incessante de criar é vulgar, demonstra fervor, inveja, ambição.


Quando se é alguma coisa, não é preciso fazer nada – e contudo se faz muito.
Acima do homem ‘produtivo’ há uma espécie mais elevada” (HHI, § 210,
“Serena fecundidade”).

Ao contrário, o indivíduo burguês não suporta o ócio:

“Para as raças laboriosas é um grande fardo suportar o ócio: um golpe de


mestre do instinto inglês foi tornar o domingo tão sagrado e tedioso que, sem
se dar conta, o cidadão inglês anseia novamente pelos dias de trabalho da
semana – como uma espécie de jejum sabiamente inventado e intercalado (...)
e apenas sob a pressão de juízos de valor cristãos, o impulso sexual foi
sublimado em amor (amour-passion)” (ABM, § 189).

Por isso, os homens modernos são “homens de negócios”:

“Seu negócio – é seu grande preconceito, prende-os ao seu lugar, à sua


sociedade, a suas inclinações. Diligentes no negócio – mas preguiçosos no
espírito, satisfeitos com sua carência, o avental do dever cobrindo esta
satisfação: assim vivem vocês, assim querem que vivam seus filhos !” (A., §
186, “Homens de negócios”).

Ao otium nobre, após o negócio e a exploração universal, sucedem as férias


programadas:

“Apenas não se pode negar, a esses pobres animais de tiro, as suas ‘férias’ –
como é chamado o ideal de ócio de um século sobrecarregado: quando se
pode folgar e ser estúpido e infantil à vontade” (A., §178, “Os cotidianamente
usados”).
É por isso que Nietzsche não se contenta sem mais com o prazer estético de
obras de arte como tais, frutos de um mundo que funcionalizou a arte e a festa
como esferas separadas da vida, como “l’art pour l’art”:

“Que importa toda a arte de nossas obras de arte, se chegamos a perder a arte
superior que é a arte das festas ? Antigamente as obras de arte eram expostas
na grande avenida de festas da humanidade, para lembrança e comemoração
de momentos felizes e elevados. Agora se pretende, com as obras de arte,
atrair os miseramente exaustos e enfermos para fora da longa via dolorosa da
humanidade, para um instantezinho de prazer; um pouco de embriaguez e de
loucura lhes é oferecido. “ (GC, § 89, “Agora e outrora”).

O indivíduo burguês tem no trabalho sua ligação férrea, policialesca, com o


instinto gregário (indivíduo = o indiviso, o inseparável da comunidade):

“Na glorificação do ‘trabalho’, nas incansáveis referências à ‘bênção do


trabalho’, vejo a mesma idéia oculta que há no louvor às ações impessoais e
de utilidade geral: a do temor ante o que seja individual. No fundo sente-se
agora, à visão do trabalho – entendendo por isso a dura laboriosidade desde a
manhã até a noite – que semelhante trabalho é a melhor polícia, que ele detém
as rédeas de cada um e sabe impedir o desenvolvimento da razão, dos
anseios, do gosto pela independência”.

Na seqüência, vê-se que no objetivo de manter a autoconservação


(segurança), o sujeito abandona-se a um prazer limitado, sempre subordinado
ao princípio de realidade:

“Pois ele despende muita energia nervosa subtraindo-a à reflexão, à


ruminação, aos sonhos, às preocupações, ao amor e ao ódio; ele coloca diante
da vista um pequeno objetivo e garante satisfações regulares e fáceis. Assim,
terá mais segurança uma sociedade em que se trabalha duramente: e hoje se
adora a segurança como a divindade suprema. – E então ! Que horror!
Precisamente o ‘trabalhador’ tornou-se um perigo! Pululam os ‘indivíduos
perigosos’! E por trás deles o perigo maior – o individuum !” (A., § 173, “Os
apologistas do trabalho”).

O ritual escolástico do trabalho, junto com a religião, o entorpecimento, a


renúncia aos afetos, é indiciado como um método fundamental do “ascetismo”:

“Está fora de dúvida que através dela [da atividade maquinal] uma existência
sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente,
de modo algo desonesto, “a benção do trabalho” (GM, III, § 18).

O ascetismo então gera uma espécie de prazer masoquista. Indo além, nas
melhores páginas de Nietzsche, apreende-se a relação entre trabalho, corpo,
experiência e moderna racionalidade mercantil:

“Há uma selvageria pele-vermelha, própria do sangue indígena, nos modos


como os americanos buscam o ouro: e a asfixiante pressa com que trabalham
– o vício peculiar ao Novo Mundo – já contamina a velha Europa, tornando-a
selvagem e sobre ela espalhando uma singular ausência de espírito. As
pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz
remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto almoçam, tendo os olhos
voltados para os boletins da bolsa - vivem como alguém que a todo instante
poderia ‘perder algo’. ‘Melhor fazer qualquer coisa do que nada’ – este princípio
é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior” (GC, §
329, “Ócio e ociosidade”).

Este entrelaçamento entre trabalho e racionalidade mercantil degrada,


portanto, a própria cultura e a possibilidade da experiência social:

“Assim como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que


trabalham, o próprio sentimento da forma, o ouvido e o olho para a melodia dos
movimentos também sucumbem. A prova disso está na rude clareza agora
exigida em todas as situações em que as pessoas querem ser honestas umas
com as outras, no trato com amigos, mulheres, parentes, crianças, professores,
alunos, líderes e príncipes – elas não tem mais tempo e energia para as
cerimônias, para os rodeios da cortesia, para o esprit na conversa e para
qualquer otium [ócio], afinal. Pois viver continuamente à caça de ganhos obriga
a despender o espírito até à exaustão, sempre fingindo, fraudando,
antecipando-se aos outros: a autêntica virtude, agora, é fazer algo em menos
tempo que os demais. Assim, são raras as horas em que a retidão é permitida;
nessas, porém, a pessoa está cansada e gostaria não apenas de se ‘deixar
ficar’, mas de se estender desajeitadamente ao comprido. É conforme tal
inclinação que as pessoas agora escrevem cartas, e o estilo e o espírito das
cartas sempre serão o verdadeiro ‘sinal dos tempos’. Se ainda há prazer com a
sociedade e as artes, é o prazer que arranjam para si os escravos exaustos de
trabalho. Que lástima essa modesta ‘alegria’ de nossa gente culta e inculta!
Que lástima essa desconfiança crescente de toda alegria! Cada vez mais o
trabalho tem a seu lado a boa consciência: a inclinação à alegria já chama a si
mesma ‘necessidade de descanso’ e começa e ter vergonha de si. ‘Fazemos
isso por nossa saúde’ – é o que dizem as pessoas, quando são flagradas num
passeio ao campo. Sim, logo poderíamos chegar ao ponto de não mais ceder
ao pendor à vita contemplativa (ou seja, a passeios com pensamentos e
amigos) sem autodesprezo e má consciência. – Ora, antes era o inverso: o
trabalho sofria da má consciência. Alguém de boa família escondia seu
trabalho, quando a necessidade o fazia trabalhar. O escravo trabalhava
oprimido pela sensação de fazer algo desprezível: o próprio ‘fazer’ era
desprezível. ‘A nobreza e a honra estão apenas no otium e no bellum [na
guerra]’: assim falava a voz do preconceito antigo!” (GC, § 329).

A cultura moderna, enquanto cultura do tipo “escravo”, é uma cultura do


trabalho. Assim, ele lamenta o declínio da antiga educação de “honnête
homme”, irracionalmente trocada pela frívola e fugaz educação técnico-
profissionalizante:

“(...) O que as ‘escolas superiores’ alemãs conseguem de fato alcançar é um


adestramento brutal para, com o dispêndio de tempo mais restrito possível,
tornar um sem número de homens jovens utilizáveis para o serviço público; o
que significa dizer, passíveis de serem explorados por ele (...). E por toda parte
reina uma pressa indecente, como se fosse uma falta grave para o homem
jovem ainda não estar ‘pronto’ aos 23 anos, ainda não saber responder à
‘questão principal’: que profissão escolher? – Um tipo superior de homem, seja
dito com vossa permissão, não ama ‘profissões’, exatamente pelo fato de se
saber diante de uma vocação... Ele tem tempo, ele toma o tempo para si, - ele
não pensa de modo algum em ficar ‘pronto’. Com 30 anos se é, no sentido da
cultura superior, um principiante, uma criança. - Nossos ginásios apinhados,
nossos professores de ginásio sobrecarregados e tornados estúpidos são um
escândalo: para defender este estado de coisas, como fizeram recentemente
os professores de Heidelberg, tem-se talvez causas. Mas não há razões para
ele (CI, “O que falta aos alemães”, § 5).

Implícito na imposição dessa educação pragmática está toda a esfera do


trabalho abstrato, sem mais qualquer ligação direta com a necessidade e o
prazer pessoal, mas somente ao dinheiro:

“Buscar trabalho pelo salário – nisso quase todos os homens dos países
civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por
isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma
boa renda (...). Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar
trabalhar sem prazer” (GC, § 42, “Trabalho e tédio).

Da mesma forma, Nietzsche desvela, a seu estilo, a irracionalidade da


acumulação capitalista de trabalho morto:

“Aos homens ativos falta habitualmente a atividade superior, quero dizer, a


individual. Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é,
como representantes de uma espécie, mas não como seres individuais e
únicos; neste aspecto são indolentes. – A infelicidade dos homens ativos é que
sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao
banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade
incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme
a estupidez da mecânica. – Todos os homens se dividem, em todos os tempos
e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do
dia para si é escravo, não importa que seja: estadista, comerciante, funcionário
ou erudito” (HHI, § 283, “Defeito principal dos homens ativos”; grifo meu).

Com efeito, para Nietzsche, o moderno trabalho assalariado seria até mesmo
pior que a escravidão antiga, onde o homem ainda não era literalmente uma
“coisa”, comprada impessoalmente no mercado:

“trabalhadores da escravidão fabril” (...) “acreditar que um pagamento mais alto


pode remover o essencial de sua miséria, isto é, sua servidão impessoal ! Ora,
convencer-se de que um aumento dessa impessoalidade, no interior do
funcionamento maquinal de uma nova sociedade, pode tornar uma virtude a
vergonha da escravidão ! Ora, ter um preço pelo qual não se é mais pessoa,
mas engrenagem ! Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que
querem sobretudo produzir o máximo possível e tornar-se mais ricas possível ?
Deveriam, isto sim, apresentar-vos a contrapartida: as enormes somas de valor
interior que são lançadas fora por um objetivo assim exterior ! Mas onde está o
seu valor interior, se nem sabem mais o que significa respirar livremente ? Se
mal têm posse de si mesmos ?” (A., § 206, “A classe impossível”).

Junto à crítica do trabalho, surge todo o espectro dos valores modernos de


igualdade, liberdade e solidariedade. A Revolução Francesa aparecerá como a
“última grande rebelião de escravos” (ABM, § 47). A luta pela igualdade, a
princípio pode ter dois sentidos:

“A ânsia de igualdade pode se expressar tanto pelo desejo de rebaixar os


outros até seu próprio nível (diminuindo, segregando, derrubando) como pelo
desejo de subir juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando,
alegrando-se com seu êxito)” (HHI, § 300, “Dois tipos de igualdade”).

As revoluções burguesas são exemplos paradoxais da vontade de potência


como vontade de rebaixar e nivelar por baixo, tornar igual num sentido
pejorativo e vingativo – no fundo, tornar a todos trabalhadores. Ou seja, a
“humanização”, vem no sentido de uma “homogeneização”, ou de

“um nivelamento e mediocrização do homem – um homem animal de rebanho,


útil, laborioso, variamente versátil e apto.” (ABM, §242)

Pensa-se que

“tudo o que ergue o indivíduo acima do rebanho infunde temor ao próximo


doravante é apelidado de mau; a mentalidade modesta, equânime, submissa,
igualitária, a mediocridade dos desejos obtêm fama e honra morais” (ABM
§201).

Já com o cristianismo, Nietzsche antevê o triunfo da “igualdade das almas”, do


“privilégio da maioria”, que faz e fará revoluções, traduzindo-as em “sangue e
crime” (AC, § 43). “O movimento democrático constitui a herança do movimento
cristão”, que instaura o reino do “rebanho autônomo” (ABM, § 202). Zaratustra,
então, revela o caráter dos modernos “virtuosos”:

“Com sua virtude querem arrancar os olhos de seus inimigos; e só se elevam


para rebaixar outros” (Z., II, “Dos virtuosos”).

E gritam eles:

“’Vingança queremos exercer, e ignomínia, sobre todos os que não são iguais a
nós” – assim se juramentam os corações de tarântula (...) E vontade de
igualdade – este mesmo deve ser, doravante, o nome da virtude; e contra tudo
o que tem potência, queremos levantar nossa gritaria!’ ” (Z., 2ª parte “Das
tarântulas”).

A eles Nietzsche retruca, de modo completamente extemporâneo (anti-


moderno):

“A doutrina da igualdade!... Mas não há nenhum veneno mais venenoso: pois


ele parece estar sendo pregado pela própria justiça, enquanto é o fim da
justiça... ‘Aos iguais algo igual, aos desiguais algo desigual - este seria o
verdadeiro discurso da justiça: e, o que segue daí, nunca tornar igual o
desigual’. - O fato das coisas terem girado em torno daquela doutrina da
igualdade de maneira tão terrível e sangrenta entregou a esta ‘idéia moderna’
por excelência uma espécie de glória e uma aparência de chama, de modo que
a revolução enquanto peça teatral seduziu mesmo os espíritos mais nobres.
Isto não é, por fim, nenhum motivo para apreciá-la mais. (CI, “Incursões de um
extemporâneo”, § 48).

Talvez isso não esteja tão distante assim de Marx, como já vimos antes. Na
sociedade burguesa, a produção e o intercâmbio de mercadorias igualam o
diferente. É nela que rege a igualdade, que é sempre equivalência econômica
dos trabalhos e, ao mesmo tempo, a igualdade social formal de todos como
sujeitos concorrentes no mercado. No fundo, por uma contradição, a igualdade
real dos trabalhos produz a desigualdade das condições sociais de vida, pois a
igualdade torna-se apenas formal, mera ilusão jurídica – a dura realidade da
concorrência e, além disso, da exploração dos não-proprietários pelos
proprietários dos meios de produção. Mas mesmo no socialismo, quando seria
superada essa contradição do direito burguês (o conflito entre seu princípio
formal e sua prática), Marx observa que ele ainda continuaria reduzindo
injustamente os homens à condição vil de operários, igualando as diferenças
individuais, sociais e naturais. É por isso que na Crítica ao Programa de Gotha
ele irá pensar a fase superior do comunismo como a afirmação de um direito
que “não teria de ser igual, mas desigual”[26] – pautado pelas diferentes
necessidades de cada um e não mais exclusivamente na quota-parte de
trabalho individual de cada um.

Para Nietzsche, a solidariedade (ou fraternidade) seria nada mais que a


ressurreição da compaixão cristã, isto é, o consentimento àquilo que é
totalmente malogrado e anacrônico (cf. AC § 7; ABM, § 62) ou o disfarce de um
pérfido egoísmo astucioso, cheio do desejo de domínio, da “ânsia por nova
propriedade” (GC, § 14; Cf. tb. ABM § 194). No fundo, enquanto reformismo
impotente, o humanismo cristão torna-se o seu contrário: condescendência
com a miséria e a mediocridade humana[27]. Como no Fausto de Goethe,
“tudo o que existe merece perecer”. Ou como em Marx, por trás de todo
moralismo dos “bons” e “justos”, Zaratustra vê a defesa dogmática do velho, do
rígido, do historicamente ultrapassado:

“O nobre sempre deseja criar algo nobre e uma nova virtude. O bom deseja o
velho e que o velho continue vivendo” (Z., I, “Da árvore da montanha”).

E quanto ao laisser aller, à liberdade burguesa, Nietzsche a antevê como a


farsa da livre sujeição aos valores dominantes da Igreja, do Estado e da
sociedade moderna (cf. ABM, § 188)[28]. Assim, também, ele percebe a ligação
oculta entre o socialismo, as revoluções burguesas e o despotismo, na sua
idolatria do Estado [“o mais frio de todos os monstros frios”, como diz
Zaratustra (Z., I, “Do novo ídolo”)]:

“O socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do


qual quer ser herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido
mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje
somente o despotismo teve, e até supera o que houve no passado, por aspirar
ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado
da natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgão da
comunidade. (...) Por isso ele se prepara secretamente para governos de terror,
e empurra a palavra ‘justiça’ como um prego na cabeça das massas
semicultas, para despojá-las totalmente de sua compreensão (depois que esta
já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma boa consciência para
o jogo perverso que deverão jogar” (HHI, § 473, “O socialismo em vista de seus
meios”).

Socialismo, portanto, como ditadura e terrorismo estatal, empulhação e


brutalização das massas – eis aí quase a profecia do “socialismo real”.
Também o anarquismo seria uma mera forma derivada disso: a sujeição cega a
ideais, a indignação moralista como “pequena embriaguez de potência”, o
desejo de vingança pessoal e rebaixamento do outro, a caça aos culpados –
tudo expressando uma vida décadent, como a do cristão (CI, “Incursões de um
extemporâneo”, § 34, “Cristão e anarquista”).

A cientificidade também é um ideal do moderno, típico da “vontade de


verdade”: o de espelhar uma verdade pronta ou registrar os fatos dados;
carregar o fardo da cultura herdada (de escravos), não criar uma nova, mais
alta (cf. ABM, § 207). Por último, a idéia de progresso também é implodida, por
exemplo, quando o filósofo-dinamite compara todo o desenvolvimento cultural
da Antiguidade greco-romana com o mundo cristão e burguês moderno:

“o desenvolvimento progressivo não constitui simplesmente, de forma


necessária, elevação, crescimento, fortalecimento. // Num outro sentido, nos
mais diversos cantos da terra e vindo das mais diversas culturas, existe um
êxito constante de casos isolados em que se manifesta, de fato, um tipo
superior: algo que em comparação com toda a humanidade é uma espécie de
super-homem [ou “além-acima-do-homem]” (AC, § 4).

Segurança, coleção funcional de saberes, utilitarismo da autoconservação – ou


esbanjamento, dispêndio criativo, hybris dionisíaca – este sim seria o critério
para decidir o que seria progresso. “Com isso se verifica”, diz Nietzsche,

“que aquele tempo tão perdulário e rico de fatalidade do Renascimento é o


último grande tempo e que nós, nós, modernos, com nosso angustiado cuidado
por nós mesmos e nosso amor ao próximo, com nossas virtudes do trabalho,
da despretensão, da legitimidade, da cientificidade – colecionadores,
econômicos e maquinais – somos um tempo fraco...” (CI, “Incursões de um
extemporâneo”, § 37).

6- O fim niilista da modernidade: vontade de verdade como vontade de


inverdade

(a continuar...)
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Notas

[1] Abreviaturas das principais obras de Nietzsche aqui citadas: Póstumos = P;


A vontade de potência = VP; Ecce Homo = EH; Crepúsculo dos ídolos = CI; O
anticristo = AC; Genealogia da moral = GM; Além do bem e do mal = ABM;
Assim falou Zaratustra = Z.; A gaia ciência = GC; Aurora = A.; O andarilho e
sua sombra = AS; Humano, demasiado humano, liv. 1 = HHI; O livro do filósofo
= LF; O nascimento da tragédia = NT. Pode-se consultar a bibliografia completa
no final.

[2] “Ao contemplarmos a história como o açougueiro em que foram sacrificadas


a felicidade dos povos, a sabedoria dos Estados e a virtude dos indivíduos,
surge sempre necessariamente ao pensamento a pergunta: a quem, a que fim
último foi oferecido este enorme sacrifício ?” (Hegel - A razão na história
(Introdução à filosofia da história universal). Lisboa, Ed. 70, p.73). Nietzsche
dissolve essa questão ao dissolver um fundamento teológico-racional para a
história.

[3] Hegel – Fenomenologia do espírito. Petrópolis, Vozes, 1999, parte 2, p.220


(§ 808).

[4] Cf. apontado também por Gianni Vattimo - As aventuras da diferença. (O


que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche). Lisboa, Ed. 70, p.28.

[5] “A força dos paradoxos reside em que eles não são contraditórios, mas nos
fazem assistir à gênese da contradição. (...) O paradoxo como paixão descobre
que não podemos separar duas direções, que não podemos instaurar um
sentido único, nem um senso único para o sério do pensamento (...). O
paradoxo é a subversão simultânea do bom senso e do senso comum [isto é, a
doxa, CRD]: ele aparece de um lado como os dois sentidos ao mesmo tempo
do devir-louco, imprevisível; de outro lado, como o não-senso da identidade
perdida, irreconhecível” (Gilles Deleuze, Lógica do sentido. São Paulo,
Perspectiva, pp.77, 79 e 81).

[6] “Pode-se encontrar nele”, diz Henri Lefebvre (Nietzsche [1939]. México,
Fondo de Cultura Económica, 1993, pp.135-6), “o espírito mais revolucionário e
o ódio a toda revolução, o espírito mais destrutor e a afirmação mais dura e a
mais repetida continuidade, tradição, herança. Pode-se encontrar em suas
obras as mais duras palavras para as massas e também as mais belas
definições do gênio popular; a apologia da relação feudal e militar de pessoa a
pessoa subordinada e o ódio ao militarismo; a apologia da tirania e a rebeldia;
o elogio da violência como elemento criador da história e o da generosidade
espiritual; a crítica do idealismo e o idealismo mais ingênuo; a apologia do
arianismo e a condenação expressa do racismo... // Nele pode-se encontrar
também o irracionalismo mais deliberado e o elogio do pensamento puro por
cima das paixões e dos sentimentos; os mais violentos ataques contra a
ciência e o esforço mais seguro para chegar ao conhecimento; o elogio do
inconsciente, a crítica da consciência e, não obstante, a exaltação desta
consciência ! // Em certo sentido, a obra de Nietzsche se torna exaltadora e
estimulante porque levou até o paroxismo todas as contradições espirituais do
mundo moderno; porque faz insustentável a situação e obriga a sair dela.
Nietzsche não saiu”.

[7] Cf. Mazzinno Montinari, “Equívocos marxistas”. Cadernos Nietzsche, 12,


São Paulo, 2002.

[8] “Sangue” aqui no sentido de saber produzido pelo corpo, pela experiência
vivida. Neste sentido, o jovem Nietzsche diz sobre Parmênides: “Todas as
percepções dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões (...) Agora a
verdade só pode habitar nas mais desbotadas e pálidas generalidades, nas
caixas vazias das mais indeterminadas palavras, como num castelo de teias de
aranha; e ao lado de uma tal ‘verdade’ senta-se o filósofo, igualmente exangue
como uma abstração, e luta enclausurado em fórmulas. A aranha quer o
sangue de suas vítimas; mas o filósofo parmediano odeia justamente o sangue
de sua vítima, o sangue da empiria por ele sacrificada” (Nietzsche, A filosofia
na época da tragédia grega, § 10, grifos meus).

[9] Cf. Marx, O Capital (Crítica da economia política). São Paulo, Nova Cultural,
1988, Liv. I, t.1, p.77, nota 33.

[10] Marx, O Capital , op.cit., Liv. III, t.2, p.262.

[11] Inclusive com base no crédito e no “capital fictício”: cf. O Capital, op.cit.,
Liv. III, t.1, cap. 25.

[12] Kant fala em nome da felicidade. Mas para isso convoca a razão prática
pura contra uma espécie de razão instrumental que estaria sempre a serviço
apenas do prazer próprio casual. O homem “não é totalmente animal para ser
indiferente a tudo quanto a razão diz por si mesma e para usá-la somente
como instrumento para satisfazer sua necessidade como ente sensível (...). A
própria finalidade, o prazer que buscamos, não é em último caso um bem, mas
algo agradável, não é um conceito de razão mas um conceito empírico de um
objeto da sensação” (Kant, Crítica de la razón prática. Buenos Aires, Losada,
1961, p.70). Para isso Kant é obrigado a afastar toda a experiência individual e
a postular uma “vontade pura” que cria leis universais (e não máximas gerais
ou particulares), conforme o imperativo categórico: “Age de tal modo que a
máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio
de uma legislação universal” (ibid. p.37). Tal é, segundo Kant, o “paradoxo do
método de uma crítica da razão prática”, a saber: “que o conceito de bem e mal
não tem que determinar-se antes da lei moral (a qual, aparentemente, deveria
servir de fundamento), mas somente (como efetivamente se faz aqui) depois
dela e por meio dela” (p.71). E Kant não esconde o sado-masoquismo da lei:
“O essencial de toda determinação da vontade pela lei moral é: que se
determina somente pela lei, como vontade livre; por conseguinte, não só sem a
intervenção de impulsos sensíveis, mas ainda rechaçando-os e desprezando
todas as inclinações que possam ser contrárias a essa lei” (p. 82). É
exatamente esse esforço paradoxal de encontrar leis práticas a priori que
determinem a vontade, por “amor à lei” (ibid., p.81), que Nietzsche está
destruindo como forma metafísica de sujeição da vida à abstração da razão
(vide, p.ex.: AC, §§ 11 e 12).

[13] Marx, O capital, op.cit., Liv. I, t.1, p.75.

[14] Hegel, Fenomenologia do espírito, op.cit., pp.126-37, citado por parágrafos


(§).

[15] Como diz Pierre Klossowski: “Teremos então uma cultura de escravos?
Parece que isso é um falso problema: a cultura é o resultado do Escravo –
porque ele a produziu, é agora seu Mestre consciente – assim demonstrou
Hegel. Nietzsche é o beneficiário irrefutável dessa demonstração” (Nietzsche e
o círculo vicioso . Rio, Pazulin, p.31). E ainda como diz Gilles Deleuze:
“Aqueles que Nietzsche chama de senhores são seguramente homens de
potência, mas não homens de poder, pois o poder se julga pela atribuição dos
valores em curso; ao escravo, não basta tomar o poder para deixar de ser
escravo; é mesmo a lei do curso ou da superfície do mundo ser conduzido por
escravos” (Diferença e repetição, p.61, versão eletrônica). Vide ABM, § 62.

[16] “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou
deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres” (Heráclito, D
53); ou: “Do logos com que mais constantemente convivem, deste divergem; e
(as coisas) que encontram cada dia, estas lhes aparecem estranhas”
(Heráclito, D 72).

[17] Cf. Gilles Deleuze – Nietzsche [1965]. Lisboa, Ed. 70, 1990, pp.22 e 27.

[18] “A vontade de poder é a multiplicidade das forças em combate umas com


as outras” (...) “Existe apenas uma multiplicidade de vontades de poder. A
vontade de poder é uma determinação essencial. A uma vontade de poder
cabe efetiva unidade apenas como concerto na oposição a outras vontades de
poder”. Wolfgang Müller-Lauter – A doutrina da vontade de poder em
Nietzsche. São Paulo, Annablume, 1997, pp.74 e 98.

[19] “Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem, em
definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintomas, só como sintomas
entram em consideração – em si tais juízos são imbecilidades. É preciso
estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de
compreender essa assombrosa finesse – de que o valor da vida não poder ser
avaliado. Por um vivente não, pois este é parte interessada, e até mesmo
objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão. – ” (CI, “O
problema de Sócrates”, § 2).

[20] Fragmento Póstumo de VP, outono de 1885-outono de 1886, nº 2 [87], ed.


Colli e Montinari.

[21] “Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje ao
mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato” (Espinosa, Ética, Parte IV,
Proposição 21). E na seqüência (Prop. 22): “Não se pode conceber nenhuma
virtude anterior a esta (isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo)”, com
o seu Corolário: “O esforço [conatus] para se conservar é o primeiro e único
fundamento da virtude”. De onde que: “Agir absolutamente por virtude não é,
em nós, outra coisa que agir, viver, conservar o seu ser (estas três coisas
significam o mesmo) sob a direção da Razão, segundo o princípio da procura
da própria utilidade” (Prop. 24). Já Descartes (Discurso do método, Sexta
parte) valoriza “conhecimentos úteis à vida” para “nos tornar como que
senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não só para a
invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer
custo, os frutos da terra, e todas as comodidades que nela se acham, mas
principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o
primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida”.

[22] “Assim, os conceitos de Nietzsche nunca designam ‘realidades’, entidades


estáveis: são grades hermenêuticas. Nietzsche nunca descreve o que é o
mundo ou como o Ser se oferece, como se “o mundo” e o “Ser” fossem
espetáculos pacificamente prodigados à minha contemplação. ‘Quer saber o
que é o mundo para mim ?’: o fluxo e o refluxo do devir, o remanejamento
incessante das figuras de forças – um caos que nenhum olhar apolíneo jamais
exorcizará, e onde só podemos pretender orientar-nos, mui modesta e
localmente. Em vez de uma teoria do conhecimento e de uma ontologia, é-nos
proposta uma estratégia da interpretação” (Gérard Lebrun – “Por que ler
Nietzsche, hoje ?” in: __. Passeios ao léu (ensaios). São Paulo, Brasiliense,
1983, p.38).

[23] “Este princípio não significa (pelo menos não significa em primeiro lugar)
que a vontade queira o poder ou deseje dominar. Enquanto interpretarmos a
vontade de poder (‘puissance’) no sentido de ‘desejo de dominar’ fazê-mo-la
forçosamente depender dos valores estabelecidos, os únicos capazes de
determinar quem deve ser reconhecido como o mais poderoso neste ou
naquele caso, neste ou naquele conflito. Desse modo, ficamos sem conhecer a
natureza da vontade de poder como princípio plástico de todas as nossas
avaliações, como princípio escondido para a criação de novos valores não
reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem
sequer em tomar, mas em criar e em dar. O Poder, como vontade de poder,
não é o que a vontade quer, mas aquilo que quer na vontade (Dionísio em
pessoa). A vontade de uma força obedece”. Deleuze, op.cit., p.22.

[24] “Como já tinha intuído Nietzsche, e tal como Heidegger demonstra com
termos ontológicos, a tradição metafísica é a tradição de um pensamento
‘violento’ que, ao privilegiar as categorias unificadoras, soberanas,
generalizantes, no culto da arkhé, manifesta uma insegurança e um pathos de
base a que reage com um excesso de defesa” (Gianni Vattimo, As aventuras
da diferença, op.cit., p.13).

[25] Henri Lefevre – Hegel, Marx, Nietzsche (ou o reino das sombras). Póvoa
de Varzim, Ulisséia, p.173.
[26] Marx, “Crítica ao Programa de Gotha” in: Marx e Engels, Textos, vol. 1.
São Paulo, Edições sociais, 1977, p.232.

[27] “Ao reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a


injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria
abrandar, como algo inalterável” (Max Horkheimer & Theodor W. Adorno,
Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p.98).

[28] Os que se engajaram na Revolução Francesa, “nada mais fizeram do que


exigir a nivelação, impor a gregariedade, expressar o ressentimento” (Scarlett
Marton - Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo,
Discurso ed., 2000, “Nietzsche e a revolução francesa”, p.151).

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