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Revista SymposiuM

SUMÁRIO

3 Gêneros e comunicação: nota introdutória

Por que se ocupar dos gêneros?


5
Profª Irene Machado

Gêneros televisuais: a dinâmica dos formatos


14
Profª Yvana Fechine

O título como gênero discursivo nos romances de José Saramago


27
Profª Mirian Rodrigues Braga

Do feixe ao diagrama
37
Prof. Djalma Luiz Benette

Gêneros jornalísticos: repensando a questão


45 Prof. Jorge Lellis Bonfim Medina

O chat como gênero digital


56
Profª Maria do Carmo Martins Fontes

O gênero poesia digital


65 Prof. Jorge Luiz Antônio

Gêneros da comunicação impressa, audiovisual e


82 eletrônico-digital: uma bibliografia complementar
Profª Irene Machado

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 1


Ciências, Humanidades e Letras

Rua do Príncipe, 610, Revista


Boa Vista,
Fone: (81) 3216-4160, Fax: (81) 3216-4259
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SymposiuM
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Humanidades e
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CEP 50050-900, Recife-PE Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho/2001
E-mail: cedit@unicap.br
ISSN 0039-7695
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PUBLICAÇÃO SEMESTRAL
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Editor

Prof. Fernando José Castim Pimentel


Redator

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Prof. Álvaro Augusto M. Negromonte
Profª Rachel de Hollanda Costa
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Revista SymposiuM

Gêneros e comunicação: nota introdutória

Os artigos reunidos nesta publicação da Symposium são o primeiro resultado de um debate deflagrado
no Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP, a partir do seminário de
pesquisa aplicada “Gêneros na comunicação impressa, audiovisual e eletrônico-digital”, ministrado pela
professora Irene Machado, no primeiro semestre de 2000. As discussões geradas por esse seminário rever-
beram nos artigos aqui apresentados e sugerem, antes de mais nada, a necessidade de se discutir a pertinência
do campo conceitual dos gêneros para se tratar das mídias contemporâneas. Convencidos de que o gênero
é um conceito dos mais operativos no estudo da comunicação de massa, a preocupação subjacente, aqui,
à maioria dos autores é elaborar uma contraposição ao pensamento da crítica estruturalista e ao pensamen-
to dito pós-moderno, para os quais não há mais qualquer sentido em empreender “classificações” frente ao
hibridismo que caracteriza a cultura contemporânea. No entanto, o grande problema envolvido no estudo
dos gêneros parece estar não na complexidade dos fenômenos que agora enfrentamos, justamente na com-
preensão dos gêneros meramente como categorias classificatórias rígidas e estanques (meros “rótulos”).
Por isso, o conceito de gênero que norteia as propostas aqui apresentadas distancia-se da noção aristotélica
de “classes” e aproxima-se das idéias do pensador russo Mikail Bakhtin, para quem esses não podem ser
compreendidos como instâncias com um caráter “acabado”.

A própria condição do gênero é, de acordo com as idéias de Bakhtin, o movimento. Embora represen-
tem os modos de organização mais estáveis (enunciados típicos ou formas padrão) dentro de um determi-
nado meio e de uma determinada esfera da comunicação, todo gênero está também em contínua transfor-
mação em função das manifestações individuais que ele próprio tenta enfeixar: o que se identifica como um
gênero é sempre um conjunto de configurações, o qual resulta de suas próprias transformações a partir dos
processos de “contágio” entre os diferentes modos de organização dos enunciados (“contaminação” dos
próprios gêneros entre si). Na dinâmica de constituição dos gêneros, cada enunciado individual (re)atualiza
a forma padrão a partir da qual se formou ou renova a forma típica dos enunciados dos quais ele é uma
manifestação “viva”: “o gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo”,
renasce e se renova a cada manifestação individual de um dado gênero, é o que nos ensina Bakhtin. Todo
gênero surge simplesmente de outros gêneros, como diria Todorov. Cada gênero é, em suma, o resultado de
uma contínua regeneração.

Nada é mais adequado à análise da profusão e do trânsito de linguagens dentro de uma mesma mídia
e entre as próprias mídias que essa compreensão ampla e aberta dos gêneros como “modos de organização”

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e de recodificação das distintas linguagens e matrizes histórico-culturais nos diferentes meios. É dentro
desse quadro teórico que os sete artigos, reunidos neste número temático da Symposium, discutem a dinâmi-
ca de constituição dos mais variados gêneros discursivos nas mídias impressa, eletrônica e digital. Este é
um debate que, no entanto, está apenas começando no campo da comunicação. Os artigos aqui publicados,
ao mostrarem que há caminhos diferentes para compreensão dos gêneros dentro de uma mesma mídia (no
jornal, por exemplo), mostram que há muito ainda a ser repensado. Esperamos que esses trabalhos, apesar
de ainda estarem em desenvolvimento, possam contribuir para a discussão, envolvendo, agora, estudiosos
de outras instituições. O grupo de pesquisadores aqui reunido mantém ainda uma lista de discussão sobre
gêneros na comunicação (generosemiotica@yahoogroups.com), através da qual esperamos receber seus
comentários, críticas ou sugestões. No final, incluímos também uma bibliografia complementar, que pode
ser de grande valia para quem estiver disposto a enfrentar também essa problemática.

Obras citadas:

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _________. Estética da criação verbal. Tradução Maria
Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo : Martins Fontes, 1997.
TODOROV, T. Os gêneros do discurso. Tradução de Eliana Angotti Kossovitch. São Paulo : Martins
Fontes, 1980.

Yvana Fechine
UNICAP-DCS

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Por que se ocupar dos gêneros? Gênero como instrumento para o estudo das
mensagens

E
Irene Machado *
m tempos de mídias eletrônico-digitais, de
Resumo redes telemáticas, de proliferação de lin-
guagens artificiais e de comunidades vir-
Este artigo parte de uma questão que diz respeito tuais, nada pode parecer mais anacrônico do que
às possibilidades de organização das mensagens recorrer ao conceito de gênero para a análise do
em processos comunicativos mediados. processo de transmissão das mensagens e das pro-
Diferentemente das culturas fundadas na priedades discursivas que contribuem para a orga-
predominância da palavra oral ou escrita, a cultura nização textual na cultura. O próprio T. Todorov,
de mídias conta com linguagens cujos códigos são uma das maiores autoridades teóricas no que diz
processados por meios técnicos. Como se respeito ao estudo dos gêneros, dizia, ainda nos
organizam as mensagens neles produzidas? Existe anos 70, que ‘’persistir em se ocupar de gêneros pode
ou não organização nesse tipo de mensagem? parecer hoje em dia passatempo ocioso, senão anacrônico’’.
Com essa frase, abre seu estudo sobre a origem
Palavras-chave: organização, mensagem, discur- dos gêneros (TODOROV, 1981, p. 45). Que dirão
so, mídia, narrativa os nossos críticos diante de nossa persistência em
encaminhar o estudo dos gêneros na comunicação
impressa, audiovisual ou digital? Anacronismo ou
Abstract inadequação? Argumentos contrários a nossos pro-
pósitos não faltam.
The departure point of this article is a question
concerned with the possibilities of the messages Se, por um lado, gênero recorda a clássica
organizations in the mediated communication teoria poética fundada por Aristóteles, por outro
process. In a different way respecting to litteracy vai de encontro às classificações que delimitam o
culture of the oral and writting word, media culture caráter das obras da cultura literária que muitos
developed so many languages which codes are tendem a classificar como “coisas do passado’’.
processed by technical media. How messages Dentro da tradição literária, tanto os gêneros poé-
organize themselves in such media? There is some ticos, derivados da hierarquia no uso da voz, quanto
kind of organization in this kind of message? os gêneros literários, direcionados para a classifi-
cação das produções da littera, foram tratados como
Key words: organization, message, discourse, formas fixas e imutáveis como produtos acabados.
media, narrative Daí a idéia de que cada mensagem se produz den-
tro de um gênero que tem, assim, o poder de regra.
______________________ Ressuscitar tal conceito em meio à explosão dos
* Doutora em Letras pelo Departamento de Teoria Literária da FFLCH–
sistemas de escrita e, conseqüentemente, deslocá-
USP e professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Comu-
nicação e Semiótica da PUCSP, onde é responsável pelas disciplinas lo para o processo de expansão para fora da littera
sobre semiótica da cultura e pela home page “sobre semiótica russa não seria uma anacronismo?
(www.pucsp.br/~cos-puc/cultura/index.html). É autora, entre ou-
tros, dos livros Roteiro de leitura: Inocência, de Visconde de Taunay As profundas transformações do processo
(São Paulo, Ática, 1997), O romance e a voz: a prosaica dialógica de
comunicativo e a diversidade provocada pela mi-
M. Bakhtin (São Paulo, Imago/FAPESP, 1995), Literatura e re-
dação: gêneros literários e a tradição oral (São Paulo, Scipione, 1994) gração de formas discursivas e de meios parecem
e Analogia do dissimilar: Bakhtin e o formalismo russo (São Paulo, afirmar o contrário do anacronismo. De fato, vive-
Perspectiva, 1989). Atualmente, coordena o Núcleo de Pesquisa mos num tempo em que as formas de comunica-
“Semiótica da Comunicação” da INTERCOM e é editora científica ção, em vez de serem fixas e fechadas, são anár-
de Galáxia – Revista Transdisciplinar de Semiótica, Comunicação,
quicas e inacabadas. Contudo tal desorganização
Cultura, entre outras atividades.

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reivindica, senão um ordenamento, pelo menos trário, implicam algum tipo de mediação. Nesse
métodos de compreensão. sentido, conhecer as propriedades discursivas que
se manifestam em termos de gêneros é conhecer
Para os críticos que entendem os gêneros as linguagens dos sistemas comunicativos em sua
como coisa do passado, sobretudo tendo em vista transformação. O estudo do gênero não pode ser
a pulverização que os próprios textos ajudaram pensado fora de uma ação com vistas ao conheci-
a realizar transgredindo categorias e desativando mento. Tal é o ponto que motivou a reconsideração
hierarquias, Todorov presta o seguinte esclare- dos gêneros no mundo de mídias.
cimento:
A aventura dos gêneros nas mídias
“Não foram ‘os’ gêneros que desapareceram, mas
os gêneros-do-passado que foram substituídos por O estudo dos gêneros atende a uma necessi-
outros. Já não se fala de poesia e de prosa, de teste- dade específica: explicitar os modos pelos quais as men-
munho e de ficção, mas do romance e da narrati-
sagens se organizam em meio à profusão de códigos, de
va, do narrativo e do discursivo, do diálogo e do
diário. linguagens e, conseqüentemente, de mídias. Num mundo
O fato de a obra desobedecer ao gênero não o em que as mensagens contam com apenas um úni-
torna inexistente; (...). Primeiro, porque a transgres- co meio de transmissão, caso das culturas que se
são para existir enquanto tal, tem necessidade de desenvolveram a partir da palavra, oral ou escrita,
uma lei - que será precisamente transgredida.(...) as diferenças de gêneros são apenas diferentes
Mas há mais. A obra não só pressupõe necessaria- modos de organização das mensagens no interior
mente uma regra, para poder ser uma exceção,
de uma única linguagem. Esse quadro há muito já
como também logo que é reconhecida no seu esta-
tuto excepcional, se torna, por sua vez, graças ao foi subvertido. Os meios se diversificaram e torna-
sucesso de livraria e à atenção dos críticos, uma ram-se mais complexos; os modos de organização
regra’’. (TODOROV, 1981, p. 47) das mensagens se transformaram e, conseqüente-
mente, novos formatos surgiram.
Se nunca houve literatura sem gêneros, como
assegura Todorov, como entender um sistema co- Se não se pode negar que os gêneros organi-
municativo que prescinda de algum tipo de orga- zam a linguagem formando discursos dentro de uma
nização discursiva, ou melhor, de gêneros? Afinal, mídia específica, não se pode negar também que o
a própria existência de gêneros está vinculada à conjunto de diferentes mídias constituem diferen-
codificação das ‘’propriedades discursivas’’ de todo tes gêneros em relação ao sistema maior da cultu-
ato comunicativo. Além disso, os gêneros forne- ra. Em ambos os casos, trata-se de diferentes esfe-
cem pistas tanto para a escritura quanto para a lei- ras de uso público de linguagem e de seus sistemas
tura ou recepção. Nesse sentido, eles se asseme- semióticos. Estamos, cada vez mais, convencidos
lham a um sistema codificado que não apenas se de que uma determinada gestão cultural é definida
reporta a um sistema de idéias como permite trans- pela predominância do gênero. O escritor ameri-
formações contínuas, pois é assim que nascem os cano Steve Tomasula traduz com muita clareza o
gêneros: ‘’um novo gênero é sempre a transformação de que queremos dizer. Conta ele que
um ou vários gêneros antigos: por inversão, por desloca-
mento, por combinação’’ (TODOROV, 1981, p. 48). Há um século e meio atrás era impossível fazer
São transformações relacionadas com os atos de um curso sobre romance. Os romances eram con-
siderados uma estupidez e não se prestavam a es-
comunicação que se confundem com o próprio ho-
tudos sérios. Há cinqüenta anos atrás era impossí-
mem. Onde existirem atos como esses, haverá gê- vel fazer um curso sobre cinema. O filme era uma
neros. Os gêneros são, assim, instrumentos para o estupidez e não se prestava a um estudo sério. Dez
conhecimento das construções comunicativas que anos atrás não se podia estudar histórias em qua-
se servem de sistemas específicos de linguagem que drinhos. No ano passado,[1997] era impossível es-
não se limitam ao sistema verbal, mas, pelo con- tudar videogames. Mas hoje [1998] é possível.

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DigiPen, um confiável ‘college’ com campus em folhetim do século XIX não contava uma história
Vancouver e Washington, recentemente começou da mesma forma que um narrador oral diante de
a oferecer um curso de quatro anos para a criação seus ouvintes. Mesmo que se considere a figura do
de videogames. Dez mil candidatos disputaram as
narrador oral das novelas radiofônicas, inútil ne-
primeiras 100 vagas. (TOMASULA, 1998, p. 342).
gar a confluência de meios para um mesmo mode-
Nesse panorama traçado por Tomasula, está lo organizacional. Em todos esses casos, é eviden-
claro que, em cada gestão cultural, apenas um meio te a intermediação de meios. Contudo, enquanto
se destaca e tem o poder de indicar a nota domi- as histórias se reproduziam a partir de uma mídia,
nante dentro do sistema maior da cultura. Nele, o a palavra, as distinções de seu suporte, voz ou pa-
meio se constitui num gênero. Contudo o gênero pel não denunciavam as diferenças. Tanto assim
não é uma classe, mas uma estrutura molecular que sempre se acreditou que a narrativa oral ou
movida pela complementaridade. Logo cada nova escrita diziam respeito a um só e único fenômeno.
forma de mediação na cultura pressupõe uma es- A partir do momento em que foi possível ouvir a
cala ascendente de uma cadeia. Seria ingênuo acre- voz através de um suporte técnico, a fita cassete,
ditar que o predomínio do gênero seja apenas uma se descobriu que a narrativa oral é, antes de mais
tendência do mercado. Trata-se de definir as for- nada, performance. Analisar um ato de
mas dominantes no processo cultural e também performance não é analisar uma narrativa literária
visualizar o quadro evolutivo dessas formas no impressa em livro. Com isso, com a proliferação
processo das gestões culturais. A propósito, recu- de meios a partir das possibilidades de reprodução
perar os elos do processo cultural e sua conseqüente da imagem (fotografia, cinema, televisão), a dife-
explosão num sistema é uma das propriedades dos rença de suporte implica uma diferença de
gêneros. codificação, logo, de linguagem e, por conseguin-
te, de compreensão. Os diferentes códigos passam
Um olhar mais atencioso para o movimento a coexistir na produção de uma única mensagem,
dos gêneros na cultura será revelador de um outro exigindo outros modos de compreender. Ainda que
aspecto igualmente fundamental: o gênero evolui a substância temática seja a mesma, a linguagem
e se transforma e torna-se elemento comum de di- não é; por conseguinte, o encaminhamento se
ferentes sistemas. O que existe de comum entre modifica e se enriquece, oferecendo diferentes
romance, filme, videogame e a novíssima modelos cognitivos. Em nome desse conhecimen-
hipermídia? Cada um a seu modo cumpriu o desa- to, é que se propõe a atualização do estudo dos
fio de organizar um dos mais antigos gêneros da gêneros. Podemos comprovar essa constatação se
tradição ocidental: a narrativa. Contudo o modo prestarmos um pouco de atenção para o quadro
de contar uma história no cinema não dispõe dos da narrativa e dos modelos cognitivos que ela tem
mesmos recursos usados pela narrativa literária. O gerenciado.

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Tipologia da narrativa em diferentes sistemas semióticos

Mitos
Bíblia
Lendas
Poemas épicos
Drama
Novelas de cavalaria
Folhetins
Romances
Filmes
Notícias jornalísticas
Casos
Problemas
Novelas radiofônicas
NARRATIVA Novelas televisuais
Propaganda
Música
Dança
Canção

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A narrativa é o gênero que mais transforma- aventura (sobretudo do homem de idéias) – se-
ções sofreu ao longo de sua existência. O fato mais riam elementos fundamentais para a elaboração
significativo de sua história é o deslocamento para das narrativas tecnológicas como os ´´romances
outras mídias além da palavra. Mitos e lendas mi- holográficos´´ (os holonovels) desenvolvidos em
graram para filmes e hoje se acomodam muito bem ambientes virtuais? Tal é a perspectiva da defi-
ao meio digital. Acompanhar o desenvolvimento nição de gênero que tem levado a um
da narrativa em sua fase digital tem sido uma das reposicionamento conceitual. Diante disso, é ne-
tarefas de engenheiros, de comunicólogos e pro- cessário fazer um reparo ao que afirmamos ini-
fessores de literatura que se voltam, por exemplo, cialmente: não é o gênero que é coisa do passa-
para a construção de narrativas em ambientes di- do, mas sim a consagrada teoria aristotélica cuja
gitais, com recursos, dentre outros, da soberania nunca foi tão radicalmente questiona-
tridimensionalidade. A narrativa, que saiu da boca da. Como observou Ralph Cohen,
dos narradores orais, deitou-se nas páginas tipo-
gráficas, virou história em quadrinhos, vagou pe- A natureza combinatória dos gêneros movimen-
las ondas das novelas radiofônicas, ganhou corpo ta-se, em nosso tempo, para misturas de produ-
e voz em filmes e novelas televisuais, agora é tos da mídia impressa e eletrônica. Se até bem
pouco tempo atrás se falava em combinatória
videogame e hipermídia. Nada indica que todas as de gêneros e se pensava em misturas entre épi-
possibilidades já foram esgotadas. ca, tragédia, romance, poesia lírica, agora os ter-
mos de combinação são outros: filmes, gêneros
A dinâmica da narrativa apenas evidencia televisuais, programas educativos. (COHEN,
como um gênero representa um “nicho’’ 1989, p. 18)
semiótico que as gestões culturais não se can-
sam de reinventar. E por que a narrativa foi e Não precisamos ir muito longe para atestar a
continua sendo um gênero tão importante para evidência de tal formulação, basta lembrar o caso
a cultura? Porque em toda narrativa existe o do videogame para traduzir o deslocamento no
gérmen de uma aventura que explora um elemen- espaço-tempo: misturou literatura, cinema, vídeo
to vital ao homem e à cultura: o deslocamento, e realidade virtual que cumprem as velhas histori-
o movimento rumo ao desconhecido, à desco- etas de grandes aventuras, em que o acaso jogava
berta. Por representar o deslocamento no tempo aos jovens audaciosos que não mediam esforços
(chronos) e no espaço (topos), a aventura foi con- para combater monstros e salvar princesas as clás-
siderada o elemento mais importante do roman- sicas histórias dos erotika pathemata do romance
ce, o cronotopo privilegiado de tudo que se pode grego. Mas não é só isso. O videogame é também
chamar narrativa, segundo o teórico r usso história em quadrinhos, televisão e software
Mikhail Bakhtin. Na aventura, estão impressas interativo. Tudo isso é continência de uma ativi-
as marcas do tempo e do espaço. O tempo de dade programada para funcionar assim. Trata-se de
aventuras é sempre um tempo de mudanças, de uma combinatória de gêneros e de mídias em que
acasos, de renovação. Por isso Bakhtin defen- um não vale mais do que o outro. Se, por um lado,
deu a tese do romance como um gênero em devir, as combinações são mais complexas, por outro, é
contra os argumentos daqueles que anunciaram preciso lembrar que a digitalização equipara todas
sua morte. As possibilidades instauradas pelas as tecnologias.
narrativas criadas com recursos das tecnologias
digitais, como a realidade vitual, só vêm confir- Um conjunto de dados é tão somente uma se-
mar o que previra o teórico russo. Quem pode- qüência de números; nada mais nada menos.
ria imaginar que formulações de Bakhtin sobre Cada filme digital, cada imagem, cada som não
é nada mais que uma seqüência de zeros e uns
o romance como um gênero em devir – armazenados na memória do computador. Digi-
plurilingüismo, bivocalidade, pluriestilização, tal: ajuda não a acumular conhecimento, mas a
polifonia, a interatividade e o cronotopo da usá-lo. (TRAUB, 1998, p. 364).

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Se partimos da teoria do dialogismo1 formu- mídias digitais criaram formas discursivas que não
lada por M. Bakhtin (1988), é porque nela os gê- são nada mais do que interpretação de formas cul-
neros são possibilidades combinatórias entre dife- turais que têm uma história. Por envolverem novas
rentes esferas de usos da linguagem. No caso da ferramentas e suportes2 , tais interpretações criam
narrativa, a aventura tanto é ação quanto idéia; formas modelizantes encadeadas por uma longa
logo uma narrativa se desenvolve por meio de di- tradição de gêneros.
álogos que podem assumir uma forma filosófica, Nesse caso, existem muitos pontos em co-
poemas, provérbios, contos intercalados, crônica mum entre o diálogo socrático e a home page ou
jornalística, documentos históricos, experimenta- entre uma narrativa virtual e a narrativa do ro-
ção científica etc. A aventura do homem de idéias mance grego.
criou o romance polifônico em Dostoiévski. Aca-
so não foi a mesma necessidade que levou John O movimento dos gêneros
Casti (1998), um dos teóricos da vida artificial e
dos “mundos possíveis’’, a escrever o romance The Sem dúvida alguma, a narrativa manifesta,
Cambridge Quintet? Se as possibilidades em relação aos meios que lhe servem de suporte,
combinatórias são inúmeras e inesgotáveis no meio uma das mais caras relações dos estudos semióticos:
verbal, a tendência é aumentar quando se pode a relação entre ontogênese e filogênese. Este sem-
operacionalizar um meio visual ou digital. Enquan- pre foi um ponto de honra dos estudos semióticos,
to o diálogo for a forma privilegiada de porque nele reside toda a dinâmica da cultura. Os
interatividade, a cultura será, igualmente, um es- meios, ou as mídias, trouxeram um outro modo de
paço de “mundos possíveis’’ que nos são acessí- se compreender a relação entre gêneros e espécies
veis em forma de gêneros. que se transformam pela combinatória de diferen-
tes códigos culturais. É aqui que a retomada do
Se, para Bakhtin, o uso da linguagem estava estudo dos gêneros mostra outro aspecto de sua
vinculado à interação social, aqui trataremos das propriedade.
interações que estão além da língua e, por isso
mesmo, podem ser situadas dentro de um ecossistema No domínio do código verbal, por mais que
constituído por sistemas que mal começaram a ser possamos reconhecer a transformação das for-
conhecidos. mas, tudo acontece graças à mediação da pala-
vra, a única mídia de produção das mensagens.
Com o instrumental da teoria do dialogismo, A evolução da narrativa no interior de um único
é possível, igualmente, examinar como alguns gê- sistema de codificação (verbal, visual, sonoro,
neros da cultura literária ou tipográfica, por exem- gestual etc.) promove uma diferenciação de es-
plo, da prosa literária, jornalística ou mesmo de pécies. Por exemplo, no sistema de codificação
documentos como cartas, foram interpretados e verbal, é possível falar de narrativa oral, literá-
aclimatados ao ambiente digital; e, contrariamen- ria; de conto, novela, romance, crônica. No sis-
te, como gêneros surgidos em contexto digital: a _____________________
home page, games e o e-mail interpretam e reprocessam 2
Existe uma impregnação mútua entre ferramenta e suporte: o primei-
gêneros das tradições orais e letradas, como o diá- ro realiza uma operação, o segundo é o sustentáculo, o material que
logo socrático, as narrativas, os gêneros epistolares. armazena a informação articulada pela ferramenta. Papel, fita magné-
Com isso, o que está em tela é a idéia de que as tica, tela, disco rígido, disquete, madeira, pedra são suportes; alfabeto,
sinais, ondas, algorítmos são ferramentas. Se entendemos a voz como
_____________________ uma ferramenta de realização da palavra cujo suporte é um conjunto
1
O dialogismo celebra as interações comunicativas nas mais variadas de meios (órgãos da fonação), vamos entender a mídia digital de igual
mediações da linguagem. Foi formulado no contexto da interação modo: um conjunto de múltiplos suportes e ferramentas. Suportes e
social, mas hoje é possível ver que as mediações mediadas pelos dispo- ferramentas mudam segundo processos culturais: a palavra tanto é
sitivos eletrônico-digitais são também dialógicas. O homem continua realização de voz quanto de littera ou da digitalização. Mudança e
no centro, porém os elementos com os quais ele interage através de complementaridade são condições do homem e da cultura que ele cria
linguagem procedem dos infinitos pontos do cosmos. como seu complemento.

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tema visual, pode-se falar em pintura, história crita é possível avaliar concretamente os códi-
em quadrinhos, desenho. No sistema cinésico, gos envolvidos e como se processa a relação entre
de filme, novela televisual. No sistema sonoro, eles.
canção, música, radionovela. Enfim, quando a
transformação diz respeito à evolução dentro de Podemos dizer, sem temor, que as mídias
um único sistema, esta será uma evolução de contemporâneas demonstram com muita proprie-
ontogênese. dade que são lugar privilegiado das transformações
semióticas de filogênese e de ontogênese. Uma
Considerando que evolução da narrativa única mídia concentra um conjunto híbrido de es-
como migração para diferentes meios – desenho, pécies, confirmando a hipótese do semioticista
palavra, filme, televisão, computador, rádio – co- Roman Jakobson de que os códigos estão ficando
loca em confronto os diferentes sistemas de cada vez mais diferentes.
codificação, temos, então, uma evolução da
filogênese. Contudo, diferentemente do sistema bi- Se, durante muito tempo, as propriedades
ológico, a filogênese que verificamos no gênero discursivas da linguagem diziam respeito tão-so-
narrativo não se caracteriza pela pureza das for- mente ao ato de fala, o desenvolvimento de possi-
mas; pelo contrário, ainda que o sistema de bilidades comunicativas trazidas pelos meios de
codificação do filme no cinema seja diferente do comunicação mostra que esse quadro se modifi-
filme projetado pela televisão, impossível não cou. As formações discursivas proliferam em um
falar em mistura. Na filogênese da narrativa, campo cada vez mais diversificado de sistemas
quanto mais as espécies entram em correlação, comunicativos audiovisuais e eletrônico-digitais.
mais complexo será o sistema semiótico que o Enquanto a escrita alfabética se restringia ao mundo
realiza. Isso é extremamente significativo para da littera, onde reina a palavra e a comunicação
a produção num determinado meio. verbal, nunca se cogitou que propriedades
discursivas pudessem referir-se a outro sistema que
Se as linguagens se expandem por conta não o sistema verbal escrito. Com o desenvolvi-
das relações diversificadas que começam a do- mento da consciência de que escrita cobre um cam-
minar entre os códigos culturais e os diferentes po muito amplo de possibilidades comunicativas
suportes deles resultantes, cresce, na mesma pro- – como teremos oportunidade de verificar em ou-
porção, todo um sistema de mediação. A media- tro momento –, adquiriu-se a consciência também
ção torna-se o termômetro de aferição do grau de que há outros meios fora da palavra que reali-
de envolvimento entre diferentes códigos, vale zam discurso e são esferas de uso da linguagem
dizer, da descentralização da palavra. O código tão efetivo quanto a palavra. Trata-se de uma dife-
verbal não ocupa mais, sozinho, o centro produ- rença de uso da linguagem.
tivo das mensagens e, por conseguinte, não de-
tém mais sozinho a definição da linguagem. A idéia de que a linguagem apresenta esfe-
Como veremos em outro momento, produtivi- ras diferenciadas de uso, quer dizer, de gêneros,
dade é conceito chave das abordagens que pro- não é nova (BAKHTIN, 1986). A novidade é
curam dar conta das formas híbridas resultantes sua extensão ao conjunto da comunicação me-
de miscigenação, ou seja, da transformação da diada por processos eletrônico-digitais não cen-
filogênese e da ontogênese. Quanto maior a tralizados por um único sistema de codificação.
quantidade de códigos envolvidos, maior a me- Esse aspecto leva a retomada dos gêneros para
diação e, conseqüentemente, mais complexo e a compreensão da comunicação realizada em
descentralizado o modo de organização da men- meios audiovisuais e digitais.
sagem e de seu processo de significação. Nesse
sentido, a mediação que se tornou o mais evi- A proposta de retomada dos gêneros no
dente sinal desse processo foi a escrita. Pela es- estudo das mensagens não significa uma

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Ciências, Humanidades e Letras

reconsideração das teorias dos gêneros. O obje- mentas diferentes do código alfabético. Tal pro-
tivo é propor uma busca da função semiótica dos cesso intelectual é o centro irradiador da cultura
produtos comunicacionais. Para que o estudo dos tecnológica e de seus meios3 ou mídias – alvos dessa
gêneros na comunicação contemporânea seja en- investigação.
tendido como uma proposta de crítica semiótica
da linguagem em toda sua extensão, é preciso A cultura tecnológica definida pelo cir-
que fique bem claros os pontos da distinção en- cuito integrado de sistemas de escritas oferece
tre teoria dos gêneros e gêneros como objeto de crítica uma outra perspectiva para a reflexão sobre os
semiótica. Só para isso, iremos voltar a Aristóteles gêneros. Trata-se de considerar a organização das
e ao mundo da cultura grega, que consagrou a mensagens como organização de diferentes me-
clássica teoria dos gêneros. Nela, os gêneros são diações ou diferentes mídias. Como afirmamos
categorias paradigmáticas, centralizadas numa anteriormente, a diferença entre as mídias é,
única mídia que produz formas fixas e acaba- igualmente, uma diferença de gênero. Isso é o
das. Algo radicalmente diferente do contexto que está por trás de algumas das teorias sobre a
cultural onde proliferam os sistemas mediados modernidade cultural. O gênero já não é uma
pela solidariedade de vários códigos e várias lin- categoria importante por oferecer uma tipologia
guagens. da produção literária da cultura letrada, mas por
organizar as mensagens de modo a garantir um
Embora esse seja apenas o preâmbulo de uma “horizonte de expectativa’’ que una a leitura à
reflexão mais ampla, é imprescindível não perder escritura, o leitor ao texto, o texto à mídia. O
de vista que este estudo também opera uma revi- gênero torna-se instrumento criador da relação
são conceitual, uma vez que procura alcançar li- interativa entre texto, leitor, cultura. Como afir-
mites cada vez mais amplos da comunicação con- ma Thomas Erickson, um dos estudiosos dos
temporânea. Logo não poderíamos deixar de pre- gêneros digitais,
cisar o que estamos chamando de “cultura
tecnológica’’. Ainda que a noção em voga se refira a análise orientada pelo gênero é útil porque en-
às conquistas eletrônico-digitais, o que está no coraja a focalização dos meios em que tais dis-
horizonte dessa reflexão é cultura tecnológica con- cursos tomam corpo. Por exemplo, na análise de
uma conversa on-line pela perspectiva do gêne-
siderada em suas linguagens e em seus sistemas de ro identificamos seus propósitos comunicativos,
escritas, particularmente da escrita alfabética oci- regularidades de formas e substância (tais como
dental, cuja história se iniciou, provavelmente, com palavras em jogo e afirmações) bem como as
os sumérios e não somente está longe de chegar a situações onde ocor rem tais regularidades.
um fim, como também serve de modelo para es- (ERICKSON, 1996, p. 1)
critas de diversa natureza semiótica. Se entende-
mos tecnologia como explicitação, seguindo a ori- Sem esses elementos, como construir as fer-
entação deixada por McLuhan, cultura tecnológica ramentas que vão viabilizar, de fato, a mediação?
só pode existir como manifestação encadeada de A valorização dos meios, ou das mídias como
encontros de escritas, vale dizer, de mediações cri- estamos referindo-nos aqui, modifica o aspecto da
adas pelo homem para produzir linguagens. Nesse tela dialógica da linguagem e o conceito de texto
sentido, escrita é um processo intelectual cuja rea- se enriquece. Se, para o contexto da investigação
lização está longe de se limitar a uma única ferra- de Bakhtin, bastava afirmar que “por trás de todo
menta; pelo contrário, escrita já foi manuscrita, texto está uma língua’’, no ambiente da cultura digi-
pictográfica, tipográfica, eletrônica e agora é digi- tal é necessário introduzir alguns acréscimos. Para
tal (MACHADO, 1996, p. 46-61). Daí, McLuhan _____________________
ter considerado a escrita a mais sofisticada 3
Lembrando McLuhan, meio é um processo de tradução de experi-
tecnologia criada pelo homem; os sistemas ências ou de explicitação. Nesse sentido, os meios são tecnologias
que explicitam o trabalho muscular, o campo sensorial ou cere-
modelizantes de outros sistemas criados por ferra- bral.

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Revista SymposiuM

a confecção do tecido textual digital, é preciso con- REFERÊNCIAS


siderar também as ferramentas que constroem os
gêneros. A tela dialógica da linguagem é construída BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de
por programas capazes de modelizar as interações. estética: a teoria do romance. Tradução Aurora F.
Desse conjunto resulta o “enunciado concreto’’ da Bernardini et al. São Paulo : Hucitec; Unesp. 1988.
comunicação digital. Como afirma Paul Gilster, COHEN, R. Do Postmodern Genres Exist?
(1997, p. 17), “a tecnologia demanda de nós um senso de Postmodern Genres (ed. by Marjorie Perloff).
possibilidades, uma prontidão para adaptar nossas facul- University of Oklahoma Press. 1988.
dades a um novo meio evocativo. Isso é o coração da alfa-
betização digital’’. ERICKSON, T. Social Interaction on the Net:
virtual community as participatory genre.
Diferentemente da clássica Poética, “a teoria Proceedings of the Thirtieth Hawaii
modernista dos gêneros minimiza as classificações e au- International Conference on System Sciences.
menta a clarificação e a interpretação. Tal teoria faz parte Maui, Hawaii. p. 6-10, jan.1996.
das teorias semióticas da comunicação que relaciona o gê-
http://www.pliant.org/personal/Tom_Erickson/
nero com a cultura (COHEN, 1988, p. 13). A classi-
VC_as_Genre.html
ficação foi substituída pelas relações interativas.
O conceito de gênero abandona a escala _______. Genre Theory as a Tool for Analyzing
hierarquizante e passa a valorizar a interação. Con- Network-Mediated Interaction: The Case of the
siderar os gêneros em tempos de cultura digital Collective Limericks. 1998.
implica atentar não só para o modo como as men-
sagens são organizadas e articuladas do ponto de http:// www.pliant.org/personal/Tom_Erickson/
vista de sua produção, como também para sua ação Genre.chi98.html
sobre a troca comunicativa, vale dizer, para o pro- GILSTER, Paul. Digital Literacy. New York :
cesso de recodificação pelos dispositivos de medi- John Wiley & Sons. 1997
ação. Os programas digitais são assim processo de
recodificação dos gêneros. Gênero não se reporta JAKOBSON, Roman. Fonema e fonologia. Tradu-
apenas à língua, mas também ao meio, ao ambien- ção J. Mattoso Câmara Jr. In: _______. Os pensa-
te formalizado digitalmente que agora participa da dores. São Paulo : Abril Cultural, 1978. p. 55-117.
enunciação. MACHADO, Irene. A língua entre as linguagens:
a expansão da escrita no confronto de múltiplas
Os gêneros digitais estão prontos para lan- escrituras. In: ENCONTRO NACIONAL DE
çar um golpe mortal contra a hierarquia, fixidez, PROFESSORES DE PORTUGUÊS DAS ETFs,
classificações, para liberar as formas culturais e EAFs e CEFETs. 11, 1996, Natal. Anais... Na-
colocá-las em interação. Concluindo o caso citado tal : MEC, SEMTEC, 1996. p. 46-61.
no início de nossa exposição, acadêmicos e geren-
tes do DigiPen jamais abririam um curso sobre TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso.
videogames com repercussão em dois países dife- Tradução Ana M. Leite. Lisboa : Edições 70, 1981.
rentes se não tivessem plena consciência do signi- TOMASULA, Steve. Bytes and Zeitgeist. Digitizing
ficado potencial que essa mídia congrega: a possi- the Cultural Landscape. Leonardo. Journal of the
bilidade de recodificar aspectos fundamentais da International Society for the Arts, Sciences and
cultura. A potencialidade da ‘’mídia’’ também diz Technology. V. 31, n. 5, p. 337-344. 1998.
respeito ao gênero.
TRAUB, Charles H.; LIPKIN, Jonathan. Leonardo.
Journal of the International Society for the Arts,
Sciences and Technology. V. 31, n. 5, p. 363-
366. 1998.

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Ciências, Humanidades e Letras

Gêneros televisuais: Abstract


a dinâmica dos formatos For a long time, in the audio-visual industry and in
the institutional universe of television, genres were
Yvana Fechine * taken as mere classificatory categories through
which one could recognize the programmes within
Resumo the programming. However, the very hybridism of
television programmes brought to light how
Na indústria do audiovisual e no universo impractical this one-to-one correspondence
institucional da televisão, os gêneros foram between genre and programme was. More than
compreendidos, por muito tempo, como meras ‘labels’, through which ‘consumption’ of the vast
categorias classificatórias, através das quais se po- televisual production is guided, we must
dia reconhecer os programas dentro da understand genres as matrices of semiotic and
programação. Mas o próprio hibridismo dos socio-cultural natures that allow for the
programas de televisão encarregou-se de mostrar organization of television language itself. This
o quanto essa correspondência termo a termo en- paper aims at discussing how they constitute
tre gênero e programa era pouco operativa. Mais themselves and which of these organizational
do que “rótulos”, através dos quais se busca matrices of the televisual language actually
direcionar o “consumo” da vasta produção correspond to the notion of genre they belong to. I
televisual, é preciso entender os gêneros como will describe these matrices as formats that emerge
matrizes, de natureza tanto semiótica quanto so- from the way they are set in relation to the appeal
ciocultural, que permitem a organização da própria of certain cultural matrices (which include the
linguagem da televisão. O objetivo deste trabalho ‘genres tradition’ of previous media), the
é discutir como se constituem e quais são essas exploitation of techno-expressive resources of the
matrizes organizativas da linguagem televisual que medium (stemming from the genuine codes of
corresponderiam à sua própria noção de gênero. videographic image) and their very insertion in the
Proponho aqui descrever essas matrizes como programme grid according to the expectations from
formatos que surgem do modo como se coloca em and about the audience. In this approach, the
relação o apelo a determinadas matrizes culturais programme is nothing but the ‘operating place’ of
(o que inclui toda a “tradição dos gêneros” das one or more formats that will be presented here.
mídias anteriores), a exploração dos recursos
técnico-expressivos do meio (dos códigos próprios Key words: genre, formats, televisual programme,
à imagem videográfica) e a sua própria inserção na televisual language.
grade da programação em função de um conjunto
de expectativas do e sobre o público. Nessa I. O campo conceitual dos gêneros
abordagem, o programa nada mais do que o lugar”
de operação de um ou mais dos formatos que serão Basta abrir os suplementos especializados em
aqui apresentados. TV ou as revistas de programação das grandes
operadoras dos canais por assinatura para se dar
Palavras-chave: gênero, formato, programa conta do quanto a perspectiva dos gêneros é
televisual, linguagem televisual importante no estudo das mídias. Essa abordagem
mais empirista dos gêneros tende a tratá-los como
___________________ “categorias” que norteiam a própria relação da
* Jornalista e professora da Universidade Católica de Pernambuco indústria do audiovisual com o seu público; como
(UNICAP). É doutoranda do Programa de Comunicação e “categorias” a partir das quais se decide o que se
Semiótica da PUCSP, integra o Centro de Pesquisas quer ver na TV e até o controle institucional da
Sociossemióticas (PUCSP; USP; CNRS) e desenvolve, junto
programação. Nessa abordagem, os gêneros são
a essas instituições, estudos sobre vídeo e televisão.

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entendidos, antes de mais nada, como “discursos isolado. Mas não exatamente nos termos em que
institucionalizados” através dos quais se busca dele se apropriou a indústria do audiovisual.
organizar o “consumo” da vasta produção
televisual. Tratar de gêneros televisuais, nesse tipo É o próprio Arlindo Machado quem sugere a
de abordagem, limita-se a tratar de classificações, pergunta que não apenas dá título a um dos seus
orientadas geralmente pelo conteúdo, que nos ensaios sobre o tema, como também abre caminho
permitam identificar certos tipos de programas para a discussão aqui proposta: “pode-se falar em
antes ou enquanto entramos em contato com eles. gêneros televisuais?” 3 . Para responder de modo
Na indústria do audiovisual, essas categorias afirmativo à pergunta, é preciso admitir, de
classificatórias permaneceram bem definidas até o antemão, que há um enorme abismo entre o que o
início dos anos 50, quando, restritas praticamente discurso institucional da própria TV trata como
ao universo dos filmes hollywoodianos, estes gênero – gêneros numa perspectiva
“gêneros institucionalizados” estiveram imunes ao institucionalizada – e todo um campo conceitual
hibridismo de mídias e de linguagens que domina aberto a partir da compreensão dos gêneros como
hoje o campo do audiovisual, especialmente o da esferas de organização de linguagens – gêneros
televisão. numa perspectiva teórica. Novamente, é Arlindo
Machado quem sugere que, dentre todas as teorias
Toda a discussão sobre os gêneros na dos gêneros em circulação, a que lhe parece mais
televisão esteve, por muito tempo, presa a essa apropriada para a compreensão da dinâmica de
abordagem empirista inclinada a ver os gêneros constituição dos gêneros na televisão é a proposta
como parte do discurso institucional da própria TV por um pensador russo que sequer teve contato
(“rótulos” através dos quais se tentava identificar com o discurso videográfico, Mikhail Bakhtin.
os programas dentro da programação). Toda essa Partindo das idéias de Bakhtin, qual é, então, a
discussão foi influenciada, por outro lado, pelo que noção de gênero teórico com a qual Arlindo
Andrew Tolson denominou de uma abordagem Machado se propõe a pensar a TV? Para Machado,
“idealista” dos gêneros através da qual estes eram “o gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora
tratados como “ideais tipo de texto”1 . Não é de se dentro de uma determinada linguagem, um certo
admirar que, nas últimas décadas, a própria idéia modo de organizar idéias, meios e recursos
de gênero – como bem lembra Arlindo Machado – expressivos, suficientemente estratificado numa
tenha sido veementemente questionada pela crítica cultura, de modo a garantir a comunicabilidade
estruturalista e por grande parte dos pensadores dos produtos e a continuidade dessa forma junto
ditos pós-modernos2 . Toda resistência dos críticos às comunidades futuras. Num certo sentido, é o
pós-modernos ao estudo dos gêneros parece gênero que orienta todo o uso da linguagem no
confundir-se com seu esforço para abolir quaisquer âmbito de um determinado meio, pois é nele que
idéias de “pureza”, de hierarquização ou se manifestam as tendências expressivas mais
classificação (“rotulação”) dos textos, nos moldes estáveis e organizadas na evolução de um meio,
propostos pelas abordagens gestadas sob o manto acumuladas ao longo de várias gerações de
da teoria aristotélica dos gêneros. Se tais abordagens enunciadores” 4 .
acabaram revelando-se inadequadas para a
discussão dos modos de organização da linguagem Os termos grifados em negrito revelam, na
na TV, isso não significa, no entanto, que o campo minha opinião, pelo menos duas dimensões
conceitual dos gêneros não tenha como dar conta envolvidas na compreensão dos gêneros, apontadas
do hibridismo estético-cultural que define hoje o não apenas por Arlindo Machado mas também por
universo televisual. O gênero é um conceito chave outros autores influenciados pelo pensamento
para a compreensão dos textos nos meios de bakhtiniano: uma dimensão mais propriamente
comunicação de massa, nos quais um determinado semiótica (associada às estratégias de organização
texto dificilmente pode ser analisado de modo interna da linguagem) e uma dimensão de natureza

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mais sociocultural (histórica, por conseguinte). Que comunicacionais em toda sua diversidade e
eqüivale a dizer, em outras palavras, que os gêneros complexidade.
são, ao mesmo tempo, unidades estéticas e
culturais. No âmbito das mídias, que é o que aqui Justamente por estarem inseridos nessa
nos interessa, compreender os gêneros nessa dupla complexa dinâmica cultural e submetidos às
dimensão é reconhecê-los, antes de mais nada, instabilidades inerentes aos processos
como estratégias de comunicabilidade5 . Como entidades comunicativos, os gêneros não podem ser
instauradas no próprio processo de comunicação, concebidos, dentro do esquema teórico proposto
os gêneros podem ser entendidos como articulações por Bakhtin, como instâncias com um caráter
discursivas que resultam tanto dos modos “acabado”. O gênero é, nessa perspectiva, um
particulares de colocar em relação certos temas e fenômeno que se define na dialética entre repetição
certas maneiras de exprimi-los, quanto de uma e inovação, entre prescrição e transgressão, entre
dinâmica envolvendo certos hábitos produtivos continuidades (tradição) e rupturas. Nas palavras
(determinados modos de produzir o texto) e certos do próprio Bakhtin, “o gênero sempre é e não é o
hábitos receptivos (determinado sistema de mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo”:
expectativa do público)6 . Os gêneros podem ser renasce e se renova a cada manifestação individual
definidos, enfim, como for mas discursivas de um dado gênero8 . Cada novo texto e cada novo
prototípicas, definidas a partir de determinadas gênero se define sempre em relação a outros que
propriedades semânticas e sintáticas de uma dada lhe são anteriores (uns estão “inscritos” nos outros;
linguagem, tecidas e reconhecíveis em função de uns se “escrevem” sobre os outros). A própria
fatores históricos e socioculturais. condição do gênero é, de acordo com as idéias de
Bakhtin, o movimento. Embora representem os
Por envolver uma relação social de modos de organização mais estáveis (enunciados
reconhecimento, um gênero se define sempre, em típicos ou for mas padrão) dentro de um
condições especificas para cada esfera da determinado meio e de uma determinada esfera
comunicação e em dada época, em relação a outros da comunicação, todo gênero está também em
gêneros. Ou seja, a apropriação e o reconhecimento contínua transfor mação em função das
de um determinado gênero discursivo é, antes de manifestações individuais que ele próprio tenta
mais nada, o resultado de uma “cultura de gêneros”. enfeixar: cada enunciado individual (re)atualiza a
Ainda que ignoremos sua existência teórica, forma padrão a partir da qual se formou ou renova
possuímos, como assegura Bakhtin, um rico a forma típica dos enunciados dos quais ele é uma
repertório de gêneros: “Esse gêneros do discurso manifestação “viva”.
nos são dados quase como nos é dada a língua
materna, que dominamos com facilidade antes Embora não possuam a estabilidade e rigidez
mesmo que lhe estudemos a gramática (...) se não das formas prescritivas da língua comum (os
existissem os gêneros do discurso e se não os componentes e estruturas gramaticais), os gêneros
dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela não deixam, porém, de ter um certo valor
primeira vez no processo de fala, se tivéssemos de normativo. Os gêneros são, de qualquer maneira,
construir cada um dos nossos enunciados, a “formas organizativas” dadas a priori a um falante
comunicação verbal seria impossível”. Bakhtin para organização de sua fala: em todos eles há
ressalva, no entanto, o quanto as formas dos sempre constituintes genéricos que permanecem e
gêneros são “mais maleáveis, mais plásticas e mais há sempre elementos específicos que mudam de
livres do que as formas da língua”, são “mais ágeis” acordo com as transformações socioculturais, en-
e “muito mais fáceis de combinar”7 . Podem, por tre as quais se inclui o próprio surgimento de no-
isso mesmo, superar a pobreza dos rígidos esquemas vas mídias. Embora entenda o gênero como uma
classificatórios dos estudos da estilística e ajudar manifestação das “tendências expressivas mais
na compreensão da dinâmica dos processos estáveis e mais organizadas da evolução de um

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meio”, é o próprio Machado que nos adverte para discursivas mais simples (básicas) são repetidas e
não concluirmos, a partir disso, que o gênero é combinadas para produzirem for mas de
necessariamente conservador. Pelo contrário, cada organização discursiva mais complexas. Não se está
gênero é, antes de mais nada, o resultado de uma postulando aqui nada diferente do que o próprio
contínua regeneração entre discursos que reenviam Bakhtin já afirmou quando nos ensinou que, no
uns aos outros, replicando e renovando, ao mesmo seu processo de formação, os gêneros secundários
tempo, determinadas estruturas. Arlindo Machado absorvem e transmutam os gêneros primários. É
descreve esse modo como os gêneros se constituem evidente que não desconhecemos aqui que, para
nessa dialética entre a estabilidade e instabilidade Bakhtin, os gêneros primários estavam
de articulações organizativas, comparando o que necessariamente associados às for mas mais
faz o gênero no meio semiótico ao que faz o gene elementares do discurso cotidiano
no meio biológico: (predominantemente orais). Por se tratar de formas
mais elaboradas e, por definição, mediadas, os
“Os geneticistas definem o gene como uma entidade gêneros midiáticos jamais poderiam ser
replicante, presente nas moléculas de DNA, cuja considerados como gêneros primários, quando se
função principal é transmitir às novas células que considera a definição proposta por Bakhtin num
estão sendo formadas as informações básicas que
vão garantir a preservação de uma determinada
sentido estrito. O que especulo aqui, porém, é se,
espécie. O paradoxal com relação aos genes é que, na constituição dos gêneros midiáticos, poderia
embora eles sejam entidades conservadoras por dar-se essa mesma dinâmica de “replicação” de
missão biológica, eles são também os responsáveis formas mais simples em outras mais complexas.
pela evolução da vida desde as formas mais simples
às mais complexas, através de um longo processo É essa dinâmica de constituição dos gêneros
de seleção natural. Como se sabe, o zoólogo e que Arlindo Machado parece ter em mente quando
geneticista Richard Dawkins, em seu livro The Self-
ish Gene, defendeu a idéia de que os genes não são
retoma as idéias de Bakhtin, para defender o que
os únicos responsáveis pela evolução: quando a se pode considerar como uma capacidade de
questão é a cultura humana, temos de pensar num “expansão” (ampliação) dos gêneros e sua
equivalente “cultural” – segundo ele, o meme – que variabilidade infinita na televisão: “os gêneros são
se encarregaria da mesma função replicante das categorias fundamentalmente mutáveis e
entidades genéticas (...) Na minha opinião, os gêneros heterogêneas (não apenas no sentido de que são
discursivos, tais como Bakhtin os imaginou, se diferentes entre si, mas também no sentido de que
estendidos para toda a produção semiótica do
homem, dariam muito maior precisão e coerência
cada enunciado pode estar “replicando” muitos
à idéia – de qualquer maneira fertilíssima – do gêneros ao mesmo tempo)”11 . Há, em afirmações
replicante cultural, o meme”9 . como essa, uma idéia claramente delineada de que
um gênero pode resultar da combinatória de duas
É essa idéia dos gêneros como “replicantes ou mais formas, dois ou mais gêneros. O que nos
culturais”, proposta por Machado, que nos permite permite, aqui, levantar uma questão à qual, pelo
compreender, em meio ao hibridismo das menos de modo explícito, Machado não faz
linguagens e das mídias da contemporaneidade, referência no seu texto: poderiam ser identificadas,
como os discursos se organizam nesse “trânsito”, nessa dinâmica de combinação, formas básicas de
nesse “movimento” entre formas: na repetição e articulação discursiva que corresponderiam, no
combinação de determinados modos organizativos, âmbito específico das mídias, ao que Bakhtin
surge a variação que permite essa contínua identificou no campo mais amplo da cultura como
“evolução” de formas. Parece ser possível ainda gêneros primários? 12 Essa é, sem dúvida, uma
pensar na própria dinâmica de transformação dos questão que merece ser levada em consideração
gêneros primários em secundários 10 , tal como num estudo mais profundo sobre como surgem os
descrita por Bakhtin, nos mesmos moldes desse gêneros nas mídias e, particularmente, numa mídia
processo de “replicação”: formas de organização como a TV, cuja principal característica é

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Ciências, Humanidades e Letras

justamente sua capacidade de absorver formatos em torno de cada programa, de um quadro de


e usos tanto de mídias que a antecederam (o rádio expectativas tanto do ponto de vista da produção
e o cinema, por exemplo) quanto das que a quanto da recepção. Toda a dinâmica de
precederam (a Internet). Sem perder essa constituição dos gêneros descrita até aqui impede-
característica de vista, vamos, por ora, deter-nos nos, no entanto, de estabelecer uma
na compreensão da própria noção de gênero no correspondência direta e imediata entre um
meio especificamente televisual, a partir do campo determinado gênero e certos tipos de programas
conceitual proposto até aqui. (ou de certas “famílias de programas”). Parece ser
justamente por entenderem o gênero como uma
II. Os gêneros na televisão mera categoria classificatória e tentarem
estabelecer esse tipo de correspondência termo a
Em qualquer mídia, a dupla natureza dos termo, que muitos teóricos contemporâneos
gêneros – é tanto uma configuração textual quanto consideram esse campo conceitual pouco operativo
um fenômeno sociocultural – envolve na sua na compreensão da televisão. Afinal, é cada vez
constituição critérios de pertinência mais raro encontrar hoje um programa de televisão
completamente diferentes: critérios que podem ser que possa ser descrito a partir das particularidades
identificados tanto no nível da configuração organizativas de um único gênero. O que vem a
sintático-semântica (esfera dos conteúdos e estilos) ser, então, um programa de televisão? O termo
quanto no nível das matrizes culturais em torno programa designa aqui cada uma das partes que
das quais já se produziu toda uma “tradição de compõem o todo que é a programação, o que inclui
gêneros” (esfera dos usos). Quando colocados em também os elementos que funcionam como
relação, tais critérios nos ajudam a compreender amálgama dessa programação, tais como as
melhor como, a partir dos recursos técnico- chamadas, inserts de institucionais e os breaks
expressivos de um dado meio e de uma comerciais. Mas, mesmo entendido nesse sentido
determinada linguagem, toda uma tradição de amplo, o termo “programa”, certamente, não
gêneros é regenerada em um modo de organização designa o que poderia ser considerado como uma
próprio àquela mídia. No caso da televisão, o modo matriz organizativa das mensagens da televisão. O
próprio de organização é a programação – uma programa é antes uma instância na qual se articulam
seqüência de unidades articuladas transmitida em as mais variadas unidades organizativas da
tempo real. Os gêneros televisuais podem ser linguagem televisual ou, se preferirmos, o programa
definidos, portanto, como unidades da é um “lugar” de operação dos vários gêneros
programação definidas por particularidades abrigados pela programação.
organizativas que surgem do modo como se coloca
em relação o apelo a determinadas matrizes O que poderia ser considerado, então, uma
culturais (o que inclui toda a “tradição dos gêneros” matriz organizativa dos gêneros na televisão? Qual
das mídias anteriores), a exploração dos recursos seria a unidade capaz de colocar em relação, ao
técnico-expressivos do meio (dos códigos próprios mesmo tempo, particularidades de natureza tanto
à imagem videográfica) e a sua própria inserção na semiótica quanto sociocultural, capaz de abrigar
grade da programação em função de um conjunto em si mesma tanto a dinâmica de constituição dos
de expectativas do e sobre o público. programas quanto da programação? Seja como for
que denominemos essa matriz organizativa, ela
A programação de uma determinada poderá ser considerada, desde já, como o “gênero
emissora de televisão é o resultado do modo como de base” da televisão, uma vez que permitirá a
os programas são organizados em uma grade de compreensão, a partir de si, do modo como todos
exibição em função do dia da semana, do horário, os demais gêneros se constituem e operam nas suas
do sexo e faixa etária, entre outros critérios. Todos particularidades estético-culturais. Proponho que
esses critérios já indicam por si sós a constituição, tentemos compreender esse “gênero de base” da

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televisão como um formato. A noção de formato programa, cada um desses segmentos está pautado,
não se confunde, de maneira alguma, com a de de qualquer maneira, por um ou vários formatos
programa. Cada programa na televisão já é o de natureza completamente diversa. Estamos
resultado de uma combinatória de formatos. falando, em outras palavras, de uma articulação de
Qualquer tentativa de definição do formato, gêneros que se dá tanto no interior de um programa
entendido aqui como sendo essa matriz quanto na relação deste com a programação.
organizativa das mensagens televisuais, acabará Entendidos nessa perspectiva, o conceito de
repetindo, no entanto o próprio conceito de gênero gênero escapa assim de qualquer pretensão
televisual proposto anteriormente, ainda que em meramente classificatória que, no caso da TV,
novos termos. Não se podia esperar que fosse resultaria necessariamente numa tentativa estéril
diferente. Propor um conceito de gênero literário, de “rotular” cada programa como pertencente a tal
gênero radiofônico, gêneros digital ou gênero televisual, ou qual “família de programas”. Frente ao
entre outros, nada mais é, a meu ver, do que propor hibridismo que caracteriza as mídias
um “gênero de base” para cada uma dessas mídias. contemporâneas (e a televisão mais ainda), essa
No caso específico da televisão, a noção de formato pretensão classificatória não teria nem mesmo
incorpora toda dinâmica de produção e recepção como ser empreendida sob pena ou de deixar de
da televisão a partir daquilo que lhe parece mais fora das taxonomias propostas um número enorme
característico como princípio de organização: uma de programas ou de acabar propondo um número
fragmentação que remete tanto às formas quanto quase tão grande de “categorias” quanto o de
ao nosso modo de consumi-las. programas existentes, tamanha a diversidade entre
eles e a dificuldade de reuni-los numa mesma
Há pelo menos dois modelos genéricos de classificação. Parece mais pertinente entender o
recepção da televisão: no primeiro, admite-se que modo como se organizam as mensagens na TV em
“assisto a TV para ver algo” e, a partir dele, justifica- termos de grandes formatos que, à medida que
se minha preocupação mais pontual com o “traduzem” e renovam, com os recursos técnico-
reconhecimento dos programas. No segundo, expressivos do meio, toda uma “cultura de gêneros”
admite-se que o espectador se instala frente à tela (matrizes histórico-culturais), constituem-se
simplesmente para “assistir TV”, o que desloca a também como gêneros – gêneros televisuais, cujo
ênfase da abordagem para a fr uição da reconhecimento é, a um só tempo, causa e
programação. Tanto num caso quanto no outro, não conseqüência de toda uma “cultura de programas”
há como desconhecer que ao que se assiste é, a que a própria TV, apesar de pouco mais de meio
rigor, uma sucessão de fragmentos que, para fugir século de existência, já instaurou.
de todo o campo conceitual associado ao uso desse
termo (“fragmento”), passarei a tratar agora como Proponho, então, analisarmos os mais
segmentos. O que ocorre mesmo quando assisto, diversos programas de televisão, tentando não mais
atenta e particularmente, a um determinado enquadrá-los no que se pode considerar como os
programa de televisão? Pensado em relação à “gêneros institucionalizados” pelos grandes
programação, a grande maioria dos programas de conglomerados da comunicação, mas tentando
TV repete, de modo fractal, o mesmo princípio de observar como estes se organizam a partir de
organização da programação: pode ser descrito determinados formatos que, inicialmente, serão
como uma sucessão de unidades articuladas, entre tratados aqui como formatos estético-culturais. Embora
as quais se incluem, geralmente, seus próprios haja, na maioria dos programas, a predominância
blocos (sem esquecer que, em muitos programas, de um dado formato, o mais pertinente será sempre
esses blocos consistem numa sucessão de quadros tratá-los em termos de combinação de formatos.
autônomos), vinhetas, chamadas e anúncios Por esse caminho parece mais fácil entender, por
publicitários, entre outros. Sendo ou não parte exemplo, por que colocar sob o mesmo “rótulo”
integrante do que se considera como sendo o de talk-show programas tão diferentes quanto

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 19


Ciências, Humanidades e Letras

Passando a limpo (Rede Record), apresentado pelo profissionais de TV e dos seus convidados para
respeitado jornalista Boris Casoy, e o Programa do um público apenas pressuposto ou presente no lo-
Jô (Rede Globo), apresentado pelo humorista Jô cal de produção/gravação como figurativização
Soares, acaba dizendo muito pouco sobre o modo mais imediata desse público-modelo. Como toda
de organização de cada um deles. Os dois performance, esse formato depende daquilo que
programas articulam-se, afinal, em torno de se constrói enquanto se exibe: nesse caso, enquan-
formatos bem diferentes. Se pensarmos agora em to se exibe na e para a televisão. Esse formato cos-
termos de formato, acabaremos concluindo que o tuma ser marcado por uma sucessão de atrações
modo de organização do Programa do Jô parece das mais diferentes naturezas com o objetivo prin-
muito mais próximo de programas como o Domingo cipal de proporcionar, nos moldes dos antigos es-
Legal, com Gugu Liberato (SBT), uma vez que os petáculos dos music-hall e vaudevilles, momentos de
dois programas apelam, predominantemente, para entretenimento. Nesse formato, também pode ser
o que descreverei, logo a seguir, como um “formato incluída a maioria dos espetáculos realizados não
fundado na performance”. Incluindo este, apenas para a televisão, mas fundamentalmente
identifico, a princípio, pelo menos mais 12 formatos para serem registrados e transmitidos pela televi-
ou gêneros televisuais, a partir dos quais se são (“shows”, concertos, entrega de prêmios etc.).
organizam os programas de televisão mais Exemplos: programas de auditório, tais como
conhecidos no Brasil. São eles: Domingão do Faustão e Programa do Jô (Rede Globo);
Domingo Legal e Hebe (SBT), entre outros;
1. Formato fundado no diálogo: é aquele funda-
do essencialmente na conversação interpessoal, na 5. Formato fundado no jogo: é aquele que se ar-
exploração das situações de interlocução direta e ticula em torno de disputas por prêmios e/ou em
nas suas diferentes manifestações (debates e en- torno de sorteios, da solução de questões, enigmas
trevistas, entre outros): a TV funcionando como e adivinhações. Exemplos: Top TV (Record), Pou-
metáfora de um grande chat. Esse formato inclui, pa Ganha (Bandeirantes), Fantasia e Show do Milhão
em suma, todas as formas fundadas no diálogo (SBT);
socrático13 . Exemplos: Passando a limpo (Record),
Fala que eu te escuto (Record) Gabi (RedeTV!), Car- 6. Formato fundado no apelo pedagógico: é
tão Verde e Roda Vida (TV Cultura), entre outros; aquele que têm o objetivo explícito de “ensinar”
algo ao telespectador. Exemplos: Telecurso 2000
2. Formato fundado no folhetim: é aquele base- (Rede Globo), X-Tudo e Vestibulando (TV Cultu-
ado nas narrativas seriadas dos folhetins (histórias ra), programas e/ou quadros ensinando como pre-
de costumes, cotidiano, intrigas, amor etc.), parar pratos culinários, entre outros;
marcadas pela regularidade na exibição de episó-
dios que são interrelacionados e, completa ou re- 7. Formato fundado na propaganda/publici-
lativamente, autônomos. Exemplos: telenovelas, dade: é aquele que explora um discurso nitidamen-
seriados e minisséries em geral; te persuasivo com o objetivo explícito de “ven-
der” algo ao espectador (uma ideologia, um credo,
3. Formato fundado no filme: é aquele baseado um produto). Exemplos: Santo culto em seu lar
na narrativa fílmica (cinematográfica), mesmo (Record), Igreja da graça (Bandeirantes), Santa Mis-
quando incorpora, por força da programação, uma sa (Globo), horário eleitoral gratuito, Liquida Mix
estrutura em blocos. Exemplos: os telefilmes em (Gazeta), Brasil Connection (RedeTV!), segmentos
geral e os documentários, entre outros; publicitários, vinhetas e chamadas da programa-
ção (incluindo teasers e trailers), entre outros;
4. Formato fundado na performance: é aquele
articulado em torno da realização de uma 8. Formato fundado na paródia: é aquele de ape-
performance (cênica, artística, musical etc.) dos lo cômico-humorístico ou paródico com a inten-

Universidade Católica de Pernambuco - 20


Revista SymposiuM

ção explícita de “fazer rir”. Geralmente, esses for- vigilância” para flagrar situações e comportamentos
matos são organizados em torno de sketches monta- da “vida real”. Graças ao uso de câmeras
dos a partir de situações e personagens ficcionais geralmente ocultas e, geralmente, sem o
ou não. Exemplos: A Praça é nossa e Chaves (SBT); conhecimento prévio dos envolvidos, propõe-se a
Escolinha do barulho (Record) Megatom e Zorra Total, mostrar como vivem, como reagem e o que fazem
Casseta & Planeta (Globo), entre outros; pessoas comuns ou famosas frente a situações
inusitadas ou absolutamente triviais (o voyeurismo
9. Formato fundado no jornalismo: é aquele vol- do cotidiano). Exemplos: Na real (MTV), as
tado para a divulgação, discussão e repercussão de “pegadinhas” presentes em programas de auditório
atualidades, tendo como referência os modelos e quadros como o “Telegrama legal” (do Domingo
narrativos informativos do jornalismo nas mídias Legal), No Limite (Rede Globo), entre outros.
que antecederam a própria TV. Exemplos:
telejornais em geral, programas jornalísticos Diante disso que pode ser considerado, ainda
temáticos (ecologia, ciência, negócios, viagens) e que provisoriamente, como um “mapeamento” dos
programas de grandes reportagens (Globo Repórter, principais formatos ou gêneros televisuais, é
na TV Globo, e Caminhos e parcerias, na TV Cultu- importante tentar responder a pelo menos duas
ra, por exemplo), entre outros; questões relacionadas diretamente à pertinência e
à operatividade da descrição proposta: 1) até que
10. Formato fundado na transmissão direta: é ponto o “mapeamento” levou em consideração a
aquele cujo sentido está intrinsecamente associa- dupla natureza dos gêneros – cultural e semiótica
do à simultaneidade entre a realização do aconte- (questão da pertinência); 2) até que ponto o
cimento e a sua transmissão pela TV. Nessa simul- “mapeamento” desses formatos pode colaborar
taneidade, está o próprio apelo estético do progra- para a compreensão do “funcionamento” e
ma e/ou quadro. O acontecimento/fato transmi- reconhecimento dos programas (questão da
tido determina toda a função comunicativa desse operatividade). Para responder convenientemente
tipo de transmissão televisiva, cujo principal atra- a primeira questão, seria necessária uma longa
tivo é justamente a imprevisibilidade, a espera pelo discussão sobre os próprios critérios envolvidos na
inesperado, proporcionados pela simultaneidade constituição dos gêneros, que não há como ser feita
entre a produção, transmissão e recepção do fato aqui. Para pensar na pertinência do “mapeamento”
através da TV. Exemplos: transmissão dos cha- proposto, parece ser suficiente, por ora, lembrar
mados media events14 (os funerais do presidente novamente o quanto a própria noção de formato já
Tancredo Neves e do piloto Ayrton Senna, por remete tanto a aspectos de pertinência semiótica –
exemplo), transmissão de partidas esportivas e cer- são o resultado de certas estratégias enunciativas
tos “flashes” na programação (tipo plantão), entre e de certos modos discursivos, de determinados
outros; contratos e competências textuais – quanto a de
pertinência histórico-cultural – são o resultado do
11. Formato fundado nas histórias em quadri- modo como a linguagem televisual se apropria de
nhos: é aquele que articula narrativas baseadas da certas matrizes delineadas pela própria cultura (o
animação de formas estáticas (desenhos, bonecos diálog o, a paródia, a perfor mance etc.) e,
etc.). Exemplos: cartoons em geral (desenhos ani- particularmente, pelo que se pode hoje identificar
mados); como sendo uma cultura própria às mídias. Entre
critérios de pertinência diferente, cabe ao
12. Formato fundado no voyeurismo: é aquele pesquisador perceber quais os aspectos dominantes
fundado na idéia da TV como dispositivo de “visão na constituição de um dado gênero para
permanente” (TV-detetive, TV-bisbilhoteira), empreender, a partir deles, sua descrição.
explorando os recursos e efeitos proporcionados
pelo uso das câmeras de TV como “câmeras de A compreensão dos gêneros não mais como

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Ciências, Humanidades e Letras

categorias fechadas e norteadas por um único nenhuma delas, mas na qual se vislumbram todas
critério, mas como unidades de reconhecimento elas. No caso da combinatória por sobreposição,
capazes de colocar em relação vários critérios os formatos parecem dispostos como que por
organizativos, é também o caminho para se entender encaixe: um entrando no outro, um dentro do outro
como o “mapeamento” proposto pode ser operativo de tal modo que já não se percebem claramente os
no estudo dos programas. Mais uma vez, é a própria limites de um e de outro. A competência
noção de formato que inviabiliza uma interpretativa diante de um programa de TV
correspondência biunívoca entre cada um deles e articulado de tal modo depende, nos termos de
um determinado tipo de programa. Nem sempre Eco, de uma prévia “competência para distinguir
um programa pode ser compreendido a partir de gêneros” forjada pelo que já se tratou aqui como
um único formato. Há, evidentemente, programas sendo uma “cultura de programas” 15 . É essa
que se pautam quase completamente em torno de competência para distinguir gêneros que permite
um formato. Para facilitar a própria compreensão hoje ao espectador fazer desse próprio hibridismo
do formato descrito, foram justamente esses os a sua “chave” interpretativa. É isso o que lhe
escolhidos como exemplos no “mapeamento” permite perceber, por exemplo, como formatos
proposto anteriormente. Basta observar, porém, a fundados no jornalismo, nos filmes e no folhetim
programação diária das emissoras de TV para se sobrepõem na articulação de programas
constatar como os programas mais propriamente absolutamente “inclassificáveis”, no âmbito dos
televisivos são, não por acaso, exatamente aqueles “gêneros institucionalizados pela própria TV, como
articulados em torno de maior combinatória de The Selena murder trial”, uma das edições do The E!
formatos, o que é mais condizente com o próprio True Hollywood Story (programa do canal por
hibridismo de linguagens associado à função de assinatura E!), exibido em 15/06/200016 .
instrumento de difusão assumida pela TV desde
seus primórdios (absorvendo, com isso, formatos Feitas todas essas considerações, agora
de várias mídias). Também não parece ser por acaso parece começar a ficar mais claras as razões pelas
que os programas cuja descrição comporta, quais considerei anteriormente o Programa do Jô e o
genericamente, um único formato sejam Domingo Legal como formatos fundados,
justamente aqueles fundados em gêneros que, predominantemente, na performance, embora
historicamente, já estavam bem consolidados em comportando outros formatos (aqui, claramente
outras mídias e linguagens (novelas/folhetins, articulados por justaposição). O que faz o
telejornalismo/jornal, programas humorísticos/ humorista Jô Soares no programa noturno que tem
paródias etc.). na Rede Globo? Ele, certamente, não se limita a
fazer entrevistas. Na maioria dos programas, suas
Coerentes, no entanto, com o modo de entrevistas sequer possuem um apelo jornalístico,
organização fragmentado (segmentado) da própria que é a marca das entrevistas apresentadas por
programação, grande parte dos programas de TV Boris Casoy no Passando a limpo (o nome já sugere
são estruturados em quadros autônomos que o tom). As entrevistas propostas pelo programa
podem ser pautados por formatos de natureza são, antes de tudo, uma oportunidade para que se
completamente diferente. Cabe, então, mais uma dê mostras da presença de espírito e do senso de
vez ao estudioso perceber qual ou quais o(s) humor tanto do apresentador quanto dos seus
formato(s) mais pertinente(s) à descrição de um entrevistados. No Programa do Jô, uma boa pergunta
determinado programa. Nessa descrição, ele não ou uma boa resposta é sempre sacrificada em prol
pode deixar de levar em conta que essa de uma boa piada ou de uma divertida intervenção
combinatória de formatos tanto pode se dar por do “Gordo” (é assim que Jô se refere a si mesmo).
justaposição – um “ao lado” do outro – quanto O programa também abre espaço para
por sobreposição – como “camadas” que, apresentações musicais, inclusive do próprio Jô e
sobrepostas, resultam num novo arranjo que não é do grupo de “jazz” que o acompanha (contracena

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com ele). Em um telão, ao fundo, também são O que significa zappear? Parece haver dois
exibidos quadros humorísticos protagonizados pelo níveis de compreensão dos gêneros a partir de dois
“Gordo”, assim como vídeos relacionados, de aspectos, igualmente importantes, desse
algum modo, ao assunto tratado com os comportamento espectatorial: 1) através do zap-
convidados. O Programa do Jô é, antes de mais nada, ping, o espectador pode vagar errante por variadas
uma grande performance do “Gordo” e dos seus programações; 2) no zapping, o espectador acaba
convidados para uma platéia entusiasmada. Nada perdendo a noção de parte/todo que articula cada
muito diferente do que faz Gugu Liberato, aos programa numa programação. A primeira situação
domingos no SBT, no seu reconhecido “programa ganhou nuanças particulares com a popularização
de auditório”. das TVs por assinatura. Com a grande profusão
de canais temáticos, pode-se admitir que a escolha
III. O formato televisão e o reconhecimento de um determinado canal pode
significar hoje a própria escolha e reconhecimento
Toda a descrição de formatos proposta acima de determinados formatos e vice-versa. Basta
privilegia o programa como a unidade básica de pensarmos, por exemplo, no modo como muitas
recepção da televisão: o espectador liga a TV para redes internacionais de televisão, como a CNN ou
“assistir a algo”. Nesse caso, admite-se que o o Cartoon Network, consolidaram-se pela sua
espectador possa estar, deliberadamente, em busca dedicação exclusiva a determinados formatos
de determinados formatos, o que justificaria por si (for matos fundados no jornalismo e nos
só a preocupação inicial e mais pontual com o quadrinhos, respectivamente). Nesse caso,
reconhecimento dos modos de organização dos também parece possível pensar nas programações
programas. Não se pode desconhecer, no entanto, diferenciadas desses mais variados canais
que o espectador, sem maiores pretensões, pode também em termos de determinados formatos,
instalar-se frente à tela simplesmente para “assistir de tal modo que também se pudesse pensar nos
a TV”, o que nos obriga a deslocar a ênfase da canais em termos, de fato, de gêneros: não de
abordagem para a fruição despretensiosa e/ou “gêneros” como sinônimo de tema, como se pode
dispersiva da programação. Privilegiar, na análise, obser var nas revistas de prog ramação das
esse tipo de abordagem é reconsiderar a histórica grandes operadoras dos canais por assinatura,
posição de teóricos como Raymond Williams mas de gêneros como modos de organização, para
para os quais a experiência de “assistir a TV” os quais concorrem outros elementos de natureza
não se dá na atenção particularizada a cada uma semiótica e cultural.
das unidades que compõem a sua programação.
Pelo contrário, W illiams considera que a A dissolução da relação entre programa e
experiência central da televisão é a “experiência programação (parte/todo), apontada acima como
do f luxo” 17 : é entregar-se a uma fruição uma das possíveis conseqüências do zapping, exige
indiscriminada daquilo que desfila pela tela, de também o deslocamento para um outro nível de
tal modo que o “real broadcasting” não estaria análise em relação ao conceito aqui proposto de
na seqüência de unidades discretas (os formato. Nessa segunda situação, admite-se, a pri-
programas), mas na seqüência indiscriminada de ori, que o espectador não está muito preocupado
várias seqüências (seqüência de seqüências). Não ou mesmo interessado em assistir a um
há como desconhecer que a noção de fluxo de determinado programa ou tipo de programa. Ele
Williams, ainda que contendo uma visão parece aqui bem mais próximo da experiência do
homogenizante demais da TV 18 , parece ainda fluxo descrita por Raymond Williams, já na década
importante para se compreender, hoje, um modo de 70, quando não haviam proliferados os
de recepção que tem no zapping, se não a única, chamados canais temáticos: o espectador aqui é
a sua principal forma de manifestação. aquele que se contenta com a fruição de seqüências.

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Ciências, Humanidades e Letras

Ele assiste não propriamente ao programa x, y ou produtora, nem de um interlocutor (destinatário):


z, mas a uma seqüência formada por fragmentos procuram mostrar-se como se fossem uma
de x, y, z e assim por diante. Esse espectador que “história” contada por ninguém e para ninguém.
se entrega a essa espécie de “fluxo” não está em
busca de algo previamente definido. Pode-se dizer, Configurações interativas e não-interativas. O
no máximo, que ele está em busca de algo emprego do termo “interativo”, aqui, remete
vagamente pré-concebido e é nesse momento que apenas à possibilidade de intervenção efetiva do
operam formatos de natureza mais comunicativa. espectador na transmissão televisual. As
O espectador parece, nesse caso, estar menos configurações interativas, portanto, são aquelas que
interessado na fruição de determinados formatos dependem e/ou permitem a participação do
e mais disposto a experimentar o que poderíamos espectador por maio de fax, telefone e “e-mail” (on
chamar de o próprio formato televisão. line). Com isso, abrem a possibilidade de um
intercâmbio comunicativo entre os produtores/
Com essa expressão, o que se pretende realizadores do programa e os telespectadores. As
designar aqui é um modo de organização da própria configurações não-interativas são, ao contrário,
comunicação através da televisão. Esse modo mais aquelas que não permitem esse tipo de
abstrato de organização não está mais fundado no participação, que, apesar de mediada, dá-se em
reconhecimento dos formatos estético-culturais tempo real. Não permitem, portanto, a
constituintes de cada programa, mas, sim, no possibilidade de qualquer contato entre destinador
reconhecimento de formatos constituintes do e destinatário da mensagem televisual.
projeto comunicativo, que é a programação mesma.
Esses formatos comunicativos teriam, em outras Configurações ao vivo (direto) e gravadas. A
palavras, uma função de reconhecimento de certos configuração ao vivo ou direta é aquela na qual a
modos de comunicação, conformados pelos próprios produção, a transmissão e a recepção de um
meios de massa, que podem ser considerados como determinado ato/fato/acontecimento ocorrem
um aspecto fundamental da definição de estratégias simultaneamente. Essa simultaneidade é, aqui,
de comunicabilidade mais amplas, para as quais mais que uma operação técnica ou uma condição
concorrem também os aspectos estético-culturais expressivo-narrativa. É nela que reside a
já tratados. Tratamos agora de formatos comunicativos possibilidade de intervenção do espectador naquilo
que nos obrigam a pensar os modos de organização que vê/ouve. Nas configurações gravadas, a
das mensagens televisuais na perspectiva do fruidor transmissão é posterior à produção/realização do
da programação mais que dos programas. Esses fato.
formatos passam, então, a ser pensados a partir de
grandes configurações que orientam a produção e Se considerar mos que o projeto
a recepção do próprio medium. Proponho, por ora, comunicativo da própria televisão está fundado
a descrição de pelo menos três dessas configurações nessas configurações, nada nos impede de admitir
traduzidas em três grandes pares apresentados a seguir. que o modo de organização de qualquer
programação televisual, seja ela de um canal
Configurações interpelativas e não- temático ou generalista, pode também ser pensado
interpelativas. As interpelativas podem ser a partir de formatos comunicativos que resultam
descritas, genericamente, como aquelas que instalam da combinatória desses três pares. Pensando agora
o espectador no texto televisual, reconhecendo a sua rigorosamente em termos do formato televisão, parece
existência e “falando” diretamente para ele possível identificar pelo menos cinco grandes
(constroem posições de subjetividade para o formatos particulares: I) interpelativo interativo
espectador dentro do texto); As não-interpelativas direto; II) interpelativo não-interativo direto; III)
podem ser definidas, por oposição, como aquelas interpelativo não-interativo gravado; IV) não-
que não reconhecem a existência nem de uma fonte interpelativo não-interativo gravado; V) não-

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interpelativo não-interativo direto. Todos esses contemplativo). Esse comportamento espectatorial


formatos são o resultado do modo como a TV, com está, por sua vez, implicado diretamente na
os recursos técnico-expressivos que lhe são constituição da competência textual do espectador,
próprios e com mais voracidade que qualquer outro isto é, nas condições a partir das quais ele
meio, coloca em relação e incorpora certas matrizes desempenha sua função interpretativa frente ao que
comunicativas forjadas ao longo de toda essa nossa vê (função que envolve, naturalmente, o
vasta cultura de mídias. Quando se pensam os reconhecimento da natureza do que vê). O que
modos organizativos da TV, a partir desses permite, em suma, tratar de tais formatos, a partir
formatos, torna-se mais difícil ainda pensar em do campo conceitual dos gêneros, é justamente o
qualquer correspondência termo a termo entre estes seu papel na organização da própria competência
e os programas19 . Aptos a nos dizer mais sobre os comunicativa dos produtores e dos espectadores
modos de organização deflagrados na recepção da de TV e, conseqüentemente, da definição de toda
programação do que sobre os modos de organização uma estratégia de comunicabilidade intrínseca aos
relacionados à produção dos programas, esses programas e à programação.
formatos comunicativos nos obrigam a enxergar o
que seria um “esqueleto” da própria TV. Qualquer NOTAS
que seja a perspectiva adotada – a dos programas
ou a da programação –, pode-se considerar que a 1
Cf. A. Tolson, Mediations. Text and discourse in
TV, independente de suas formas e conteúdos, Media Studies (Chapter 4: Genre), Arnoldo,
estrutura-se como segmentos dentro de segmentos London/New York, 1996, p. 91-93.
(e é esse seu “esqueleto”, do ponto de vista
organizativo). 2
Cf. “Pode-se falar em gêneros televisuais?”, in
Revista Famecos, No.10, Junho 1999, Porto Ale-
Concebidos, assim, como elementos gre, PUCRS/FAMECOS, p. 142-143.
estruturais da própria recepção televisiva, os 3
Cf. A. Machado, Op. cit.
segmentos não se distinguem mais por formas e/
ou conteúdos, mas exigem ser pensados como 4
A. Machado, Op. cit., p. 143
unidades de mediação do próprio processo
comunicativo. Entendidos desse modo, os formatos
5
Cf. J. Martín-Barbero, De los medios a las
relacionados acima permitiriam, então, o mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía, Bar-
reconhecimento de certas esferas de intenção e celona, Gustavo Gili, 3a. ed., 1993, p. 238-242.
interpretação subjacentes a sucessivos segmentos 6
Idéias baseadas na discussão sobre o telejornal
da programação (quer se considere como segmento como gênero, proposta por Gianfranco Marrone
uma parte de um programa, um programa, um no seu livro Estetica del telegiornale, Roma,
conjunto de programas de um mesmo ou de vários Meltemi, 1998.
canais). Deduz-se daí que, frente a cada segmento
da programação, é, necessariamente, estabelecida
7
Cf. M. Bakhtin, “Os gêneros do discurso”, in
uma espécie de pacto entre produtores e receptores Estética da criação verbal, Trad. Maria Ermantina
que possuem, antes de mais nada, uma natureza Galvão G. Pereira, Martins Fontes, São Paulo,
comunicativa: um pacto que diz respeito aos 1997, p. 301, 302, 304.
próprios modos de organização do ato 8
M. Bakhtin, “Peculiaridades do gênero, do en-
comunicativo (interpelativo ou não, interativo ou
redo e da composição das obras de
não, em tempo real ou não). A natureza do ato
Dostoiévski”, in Problemas da poética de
comunicativo pressuposto em cada um dos
Dostoiévski, Trad. Paulo Bezerra, 2a. ed., Rio de
formatos apontados acima permite que se relacione
Janeiro, Forense Universitária, 1997, p. 106.
a cada um deles um determinado comportamento
espectatorial (do mais participativo ao mais 9
A. Machado, Op. cit., p. 143-144.

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Ciências, Humanidades e Letras

10
Os gêneros secundários, segundo Bakhtin, “apa- homem à lua (Cf. D. Dayan & E. Katz, A histó-
recem em circunstâncias de uma comunicação ria em directo. Os acontecimentos mediáticos na televi-
cultural, mais complexa e mais evoluída, prin- são, Trad. Ângela e José Carlos Bernardes,
cipalmente escrita: artística, científica, Coimbra, Minerva, 1999).
sociopolítica”. Para ele, o romance, o teatro e o
discurso científico, entre outros, são exemplos
15
Cf. U. Eco, “Can television teach?”, in The Screen
bem acabados de gêneros de discurso secundá- Education Reader – Cinema, Television, Culture, M.
rio. O que Bakhtin entende por gêneros primá- Alvarado , E. Buscombe e R. Collins (eds.),
rios são, ao contrário, aqueles que se constituí- London, Macmillan, 1993, p. 100.
ram em circunstâncias de uma comunicação 16
O programa reconstitui toda a cobertura
verbal espontânea; estão identificados, portan- jornalística do assassinato da cantora Selena
to, com os diversos tipos de enunciado do dis- pela líder do seu fã-clube, Yolanda Saldívar. O
curso cotidiano (as réplicas de diálogo, docu- programa faz isso através da encenação do jul-
mentos, diários íntimos e as cartas, por exem- gamento de Yolanda Saldívar. Essa encenação
plo). Cf. “Os gêneros do discurso”, in Op. cit., remete, insistentemente, a outras encenações,
p. 281. em preto e branco, que funcionam como as tra-
11
A. Machado, Op. cit. , p. 144. dicionais reconstituições com atores, emprega-
das pelos telejornais, na cobertura de um caso
12
Poderíamos pensar, por exemplo, em formas policial de grande repercussão. Um zapper mais
como a entrevista (rearticulável nos mais dife- desatento, que parasse para ver apenas em um
rentes formatos) como sendo uma dessas for- dos blocos do programa, pensaria estar diante
mas primárias de articulação das mensagens nas de um desses inúmeros telefilmes
mídias. hollywoodianos. Seria necessário acompanhar
todo o programa para que o espectador, através
13
A proposição desse formato é diretamente ins- da inserção, no último bloco, de fotos e de de-
pirada na descrição das “formas fundadas no poimentos dos reais protagonistas da história (o
diálogo socrático” feita por Arlindo Macha- promotor, os fãs e familiares de Selena), perce-
do, no já mencionado artigo “Pode-se falar em besse que se tratava de uma narrativa dramatiza-
gêneros televisuais?”. No artigo, além das da, embora fundada em fatos jornalísticos (caso
“formas fundadas no diálogo socrático” (ele verídico).
reconstitui ali toda a descrição que faz o pró-
prio Bakhtin das várias formas assumidas 17
Cf. R. Williams, Television. Technology and cultural
pelos diálogos socráticos), Machado apresen- form (1974), University Press of New England,
ta as “narrativas seriadas” como sendo outro Hanover/London, 5a. ed., 1992, p. 80-89.
dos gêneros televisuais. Alegando que o tra-
balho de descrição dos gêneros televisuais
18
Cf. J. Corner, “Géneros televisivos y análisis de
ainda está em curso, Machado limita-se, no la recepción”, in En busca del publico, D. Dayan
artigo, a propor essas duas formas. Neste tra- (ed.), Trad. María Negroni, Gedisa Editorial,
balho, não me disponho a fazer descrições tão Barcelona, 1997, p. 137.
profundas e detalhadas quanto as realizadas 19
Foi essa a razão pela qual preferi não relacionar
por Arlindo Machado. Fiz a opção de propor, os cinco formatos comunicativos propostos a
ainda que superficialmente, um leque mais programas. É até possível identificar a predo-
amplo de formatos. minância de alguns desses formatos comunica-
tivos em determinados programas, mas é prefe-
14
Expressão utilizada por Dayan e Katz para de-
rível pensá-los desprendidos de programas e re-
signar as transmissões diretas, históricas e
lacionados a seqüências da programação (este-
monopolistas de grandes eventos, como o ca-
jam elas ou não no interior dos programas).
samento do Príncipe Charles ou a chegada do

Universidade Católica de Pernambuco - 26


Revista SymposiuM

O título como gênero discursivo Palavras-chave: tipologia, gênero, histórias,


Saramago
nos romances de José Saramago
Abstract
Mirian Rodrigues Braga *
The theme of titles on literary works has been
widely discussed by a number of theoreticians,
Resumo
among which, Henry Levin, who considered
titology a literary genre. The Literary History is
A questão dos títulos de obras literárias já foi am-
generous in showing how classical and prophetic
plamente discutida por muitos teóricos. Dentre eles,
works as well as biblical texts had some of their
Henry Levin, que considerou a titologia como gê-
phrases or fragments adapted to titles. It also shows
nero literário. A história literária é pródiga em mos-
how the great writers broke with the idea that titles
trar como obras clássicas, proféticas, textos bíbli-
should be the text frame, that is, a synthesis of its
cos tiveram suas frases ou fragmentos delas adap-
content. Hence, the study of titles has awakened
tados a títulos de obras. Mostra, também, como
as a research field about their functions as cultural
grandes escritores romperam com a idéia de que o
marks, reference structures, individuality’s
título deveria ser a moldura do texto, isto é, a sín-
proclamations, rupture with tradition, unveiling the
tese de seu conteúdo. Dessa forma, o estudo dos
variety within title composition. The aim of this
títulos tem-se despertado como uma esfera de in-
work is to raise the possibility of tackling titles as
vestigação de suas funções, como sinalizações cul-
a discursive genre, that is, as a particular kind of
turais, estruturas de referência, proclamações de
utterance that, in dialogue with the most different
individualidade, ruptura com a tradição, ou seja,
types of discourse, get their updating in the effective
apresenta caminhos reveladores da variedade da
verbal communication. Stemming from Bakhtin’s
composição titular. Pensar a possibilidade de tra-
perspective towards the constitution of discursive
tar o título como gênero discursivo, isto é, como
genres as well as from the concept of entymême, we
um tipo particular de enunciado que, em diálogo
hope to pose another viewpoint: taking titles as a
com os mais diferentes tipos de discurso, tem sua
discursive genre implies considering the extra-
atualização na comunicação verbal efetiva é a pro-
verbal situation shared by the author and reader as
posta deste trabalho. Partindo da perspectiva de
an indispensable element for its semantic
Bakhtin relativamente à constituição dos gêneros
constitution.
discursivos, como também do conceito de entymême,
pretende-se dar um outro ângulo de visão à ques-
Key words: titology, genre, stories, Saramago
tão: mostrar que o título como gênero discursivo
implica considerar a situação extraverbal, comum
ao autor e leitor, como elemento indispensável à
“Qualquer enunciado considerado isoladamente é,
sua constituição semântica. Os títulos dos roman-
claro, individual, mas cada esfera de utilização da
ces de José Saramago farão parte dessa discussão.
____________________ língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
* Mestra em Língua Portuguesa pela PUCSP. É autora de A enunciados, sendo isso que denominamos gêneros
Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o do discurso.”
escrito. Participou também de José Saramago – uma homena- Bakhtin
gem, livro organizado pela Profª Beatriz Berrini. Atuou como
professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato-sensu da Pensar a possibilidade de tratar o título
COGEAE-PUCSP. Exerceu o cargo de professora de Lín- como gênero discursivo nos romances de José
gua Portuguesa no Ensino Médio e curso pré-vestibular.
Saramago é a proposta que ora se apresenta. Numa
Atualmente, bolsista CAPES em fase de doutoramento tam-
perspectiva pautada nas considerações teóricas de
bém pela PUC-SP, amplia os estudos sobre a obra de José
Saramago. Bakhtin sobre a constituição dos gêneros do dis-

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Ciências, Humanidades e Letras

curso, pretende-se discutir a idéia de o título cons- catalogado de acordo com o assunto que havia tra-
truir-se como um tipo particular de enunciado que tado: Cícero de Amicitia, de Senectute, Metafísica
se diferencia de outros tipos de enunciados, com de Aristóteles, Diálogos Platônicos.
os quais, contudo, mantém uma relação dialógica,
sugerindo, portanto, que seja considerado como um LEVIN (1977) conta que, na Idade Média,
gênero discursivo. o projeto titular era o incipit, onde o escritor anun-
ciava que um novo texto vinha a seguir. O índice
Muitos teóricos, como Henry Levin, já tra- do incipit deveria ser realmente um índice que pu-
taram da questão do título como gênero, porém, desse percorrer toda a cultura medieval.
como gênero literário. Em The Title as a Literary
Genre, Levin (1977) diz que a crítica não dava a impor- A história literária é pródiga em mostrar
tância necessária a esse assunto e cita alguns críticos que como grandes escritores romperam com a idéia de
se dedicaram à referida discussão. Dentre eles, Adorno, que o título deveria ser a moldura do texto, isto é,
que concebe o título como “um microcosmo do traba- a síntese de seu conteúdo. Assim, não só Dante
lho”, acrescentando que o título é “uma típica e para- deixou um furacão clássico para o gênero tradicio-
doxal combinação de particularidades e generali- nal quando intitulou sua visão/sonho de Comé-
dades.” 1 dia, como também Balzac em sua Comédia Hu-
mana conscientemente disputando o lugar de
Para Levin, o assunto da titologia concerne Dante, enquanto diferenciava planos de mundo
aos detalhes e análises sistemáticas de textos lite- com planos espirituais.
rários de um ponto de vista formal e, por uma con-
cepção mais rigorosa, de relações psicológicas en- Já MONTAIGNE, procurando um modo
tre o escritor e o leitor, enquanto que, para Barthes, mais tentador e mais informal do que o convenci-
o título pode ser definido como “formulação de um onal, inventou um título e um gênero quando cha-
enigma e arranjo de seu deciframento”. Jonathan Culler, mou de Ensaios suas reflexões. “ E tal ousadia
outro estudioso da questão, tem apontado nessa pode ser justificada, tomando-se por base as refle-
mesma direção e diz que o título “é considerado como xões do moralista francês de que o ensaio se carac-
misterioso de identificar.” teriza pelo auto-exercício da razão que busca, den-
tro da disciplina interior da própria razão legislado-
A questão da titologia nos é contada pela ra, tornar inteligíveis as coisas. Portanto, regem o
história literária, que mostra como obras clássicas, ensaio três idéias básicas: a) o auto-exercício das
proféticas, textos bíblicos tiveram suas frases ou faculdades, b) a liberdade pessoal, c) o esforço
fragmentos delas adaptados a títulos de obras. O constante pelo pensar original.” 2
Livro dos Eclesiásticos, por exemplo, provou ser uma
das mais ricas fontes para os títulos e epígrafes dos Dessa forma, quando Montaigne criou
modernos; não é coincidência que frases fragmen- Ensaios estava a propor um gênero discursivo
tadas de Dante estejam presentes nas novas cole- novo, já que consistia em discussão livre e pessoal
ções de poemas de Pound e Eliot. Isso nos leva a sobre determinado assunto, sem a preocupação em
imaginar que a polifonia criada transforma o título provar ou justificar idéias, nem muito menos esgo-
em uma câmara-eco, despertando o leitor para a com- tar o tema escolhido. Preocupava-o, fundamental-
plexa interação entre escritores modernos e seus mente, desenvolver por escrito um raciocínio, uma
predecessores. intuição, a fim de verificar-lhe o possível acerto,
em que medida era defensável o seu entendimento
A existência de títulos, geralmente, pres- do problema em foco. Assim, nesse contexto re-
supunha o reconhecimento de relações com o au- pleto de indagações e tentativas inventivas, pare-
tor e o nome do autor. Dessa forma, quando o ce ser apropriado o título Ensaios a reflexões es-
cânon de um autor era construído, o mesmo era critas, reconhecidas a priori pelo autor como for-

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Revista SymposiuM

ma de divisar melhor o que pensava e de saber se impossível de ser separado dos elos anteriores que
pensava corretamente. A partir daí, o gênero en- o determinam e que lhe refletem seus ecos e lem-
saio vale menos pelo acerto ou procedência de idéi- branças. Também é importante entender que es-
as que pelos horizontes que descortina. ses enunciados não precisam pertencer, unicamen-
te, ao gênero literário. Portanto podem ser discur-
Notam-se mudanças significativas na di- sos de esferas diferentes que se entrecruzam, cons-
mensão histórica do título, às vezes por meio de truindo uma dialogização mais ou menos marcada
uma grande mudança na tecnologia da publicação, deles, isto é, dos gêneros secundários do discurso
assim como ocasionado por impresso ou mídia (o romance, o teatro, o discurso jornalístico, o dis-
eletrônica. Ademais, diferenças de cultura e de lin- curso científico), em que ocorrem o enfraqueci-
guagem são reavaliadas expressamente nas pala- mento do princípio monológico de sua composi-
vras que as pessoas escolhem para caracterizar seus ção, uma nova sensibilidade ao leitor e novas for-
livros. Para Levin, um estilo significa entre outras mas de conclusão do todo.
coisas, um nome; e acredita que uma pista para se
reconhecer o estilo do escritor é verificar como ele Outro dado a ser considerado é que o
chama sua escritura. enunciado está ligado não só aos elos que o prece-
dem mas também aos que lhe sucedem, já que, des-
O estudo de títulos tem-se despertado de o início, o enunciado se elabora em função da
como uma esfera de investigação de suas funções, eventual reação-resposta, a qual é o objetivo de
como sinalizações culturais, estruturas de referên- sua elaboração. Isso significa que, ao criar um títu-
cia, proclamações de individualidade, sinais que lo, o autor pensa no papel dos outros, para os quais
revelam a plenitude, a variedade e a qualidade das seu pensamento se torna, pela primeira vez, um
comunicações que se pode escolher/receber, já pensamento real, já que não são leitores passivos,
que há muitos tipos de títulos e vários caminhos mas participantes ativos da comunicação verbal.
de composição, de busca ou de uso deles. Todos O autor espera deles uma resposta, uma compre-
servem para ligar um texto à sua audiência e reve- ensão responsiva ativa, visto que o índice
lam a variação tanto de um lado como de outro. constitutivo do enunciado é o fato de dirigir-se a
Assim, para Levin, o estudo genérico do título te- alguém, de estar voltado para o destinatário.
ria um número indefinido de classificações, isto é,
gêneros diferentes levariam a convenções diferen- Parece que é isso que entra em questão
tes de títulos. quanto à criação do título de uma obra literária, já
que o autor pretende que o destinatário/leitor re-
Sobre o estudo genérico do título, Levin conheça a intenção do título: de ser síntese do con-
restringiu-se em tratá-lo no âmbito do gênero lite- teúdo, de estar relacionado com a temática, ou de
rário. No entanto pode-se dar um outro ângulo de criar um campo lúdico que interaja com o leitor e
visão a essa questão e se pensar o título como um exija sua participação efetiva na construção de sen-
tipo particular de enunciado, isto é, como um gê- tido.
nero do discurso que, diversamente da concepção
de Levin, está em diálogo com os mais diferentes Para tanto, deve-se considerar não só o
tipos de discurso, tendo sua atualização na comuni- momento que precede à leitura da obra, isto é,
cação verbal efetiva e escrita, visto que a comuni- quando o destinatário/leitor lê somente o título e
cação oral não se vale de títulos. cria interpretações conjecturais, mas também a si-
tuação extraverbal comum ao autor e ao destina-
O enunciado/título tário/leitor. Isso implica perceber que a situação
extraverbal é constituinte do enunciado/título, cir-
É preciso entender o enunciado/título cunscrevendo e absorvendo a situação vivida,
como um elo na cadeia da comunicação verbal, e, portanto, não exterior a ele, mas um elemento

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indispensável à sua constituição semântica. Só que Daí ser possível entender os títulos como
isso não é marcado verbalmente, não é dito, visto gêneros discursivos secundários que, “no processo
que a avaliação ocorre no psiquismo das pessoas de sua formação, absorvem e reelaboram diversos gêneros
envolvidas nesse processo, em que tudo parece estar primários, que se transformam e adquirem um caráter es-
subentendido. Isso significa que o subentendido subjaz pecial: perdem sua relação imediata com a realidade.” 5
o horizonte espacial e semântico dos participantes
da situação, possibilitando-os a conhecer, a com- Para a confirmação ou não dessas conside-
preender e a avaliar o significado global do enun- rações tecidas, passo a analisar os títulos dos ro-
ciado/título. mances de Saramago, buscando encontrar argumen-
tos que validem o título como um gênero
O enunciado cotidiano e a noção de entimema discursivo, além de sugerir a possibilidade de aceitá-
lo como gênero discursivo em diferentes mídias.
Segundo VOLOSHINOV (1981)3 , o suben- Para tanto, seguiu-se o percurso cronológico dos
tendido é parte do enunciado cotidiano, que, consi- romances, que se inicia com Terra do Pecado e vai
derado como um todo portador de sentido, apre- até Todos os Nomes.
senta duas partes: uma verbal atualizada; outra su-
bentendida, equivalente a um entimema.4 A questão da titologia nos romances de
Saramago
Dessa forma, o subentendido se estabele-
ce no enunciado e instaura o social – unidade ma- Observa-se que os títulos dos romances de
terial do mundo que entra no horizonte de expec- Saramago se articulam por recorrências e percur-
tativas dos locutores, suscitando avaliações de uma sos dialogais, de ordem semântica e lexemática (vi-
comunidade (locutores pertencentes a uma mes- agem, viajante, o ano, manual, memorial), prati-
ma família, a uma mesma profissão, a uma mesma cando-se, numa segunda fase da sua obra, muito
classe social, enfim, a uma mesma época). As ava- mais em relação aos conteúdos do que às designa-
liações subentendidas não são, por conseqüência, ções.
o produto de emoções individuais, são atos social-
mente determinados e necessários. As reflexões sobre contexto extraverbal,
já apresentadas, parecem confirmar-se nos títulos
Assim, todo enunciado cotidiano é um dos romances, já que o título está fora e antes do
entimema objetivo e social. Ele é “uma palavra discurso romanesco, ao mesmo tempo se inclui e
de passagem” conhecida somente de seus parcei- aponta para a conclusão. E, nesse duplo movimen-
ros com o mesmo horizonte social. Ele é a particu- to, secundando a ambigüidade constitutiva de qual-
laridade do enunciado cotidiano, unido por milha- quer limite, suspende-se na dúvida a lógica habi-
res de fios do contexto extraverbal. tual: tudo é posto em xeque, e parece encontrar-se
no título a justificativa da curiosidade inicial des-
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se pertada pelos romances.
pensar o entimema como o gênero de base que susten-
ta e organiza o título como gênero discursivo, já que o Para além do título, verifica-se que, para
entimema instaura o social, ou seja, favorece o Saramago, trabalhar a titologia implica considerar
direcionamento interpretativo dos discursos para subtítulos e epígrafes como fios que contribuem
tipos específicos de destinatários/leitores. Mas isso na construção do sentido titular. Assim, observa-
só é possível porque essa base está num discurso remos, em vários de seus romances, a relação
cotidiano – gênero discursivo primário usado na metonímica que estabelece entre eles.
comunicação interpessoal – em que o horizonte
comum sob o qual o título se apóia se alarga no A primeira tentativa de Saramago de escre-
tempo e no espaço. ver romance foi inicialmente chamado de A Viú-

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va, mas que aparece como Terra do Pecado História e, finalmente, da pintura à caligrafia. A
(1947), título a que nunca Saramago se há-de acos- estrutura do romance se funda numa intersecção
tumar. O editor considerou que A Viúva era um doseada e atentíssima de fragmentos discursivos
título sem atrativo comercial e deveria ser substi- distintos, de gêneros literários escolhidos (retrato,
tuído. Para Saramago, esse romance foi uma tenta- auto-retrato, biografia, crônica digressiva, diário,
tiva frustrada e frustrante. autobiografia, romance de formação).

Num outro romance, Manual de Pintura Os títulos da obra saramaguiana não ante-
e Caligrafia (1977), observa-se que o aspecto cipam o conteúdo e podem, portanto, confundir o
identitário impõe-se como questão não-resolvida leitor que os lê no sentido literal, já que, na maio-
no plano literário, porque se inicia já instaurado no ria das vezes, constroem um campo lúdico em que
subtítulo : Ensaio de romance. Parece claro que o parecem estar a provocar o leitor, desafiando-o a
hibridismo de gêneros sugerido nesse subtítulo faz entrar no jogo interpretativo. Exemplifico com um
parte da intenção de Saramago de instaurar a am- caso que se conta a respeito do Manual de Pintura e
bigüidade ao longo da obra. Caligrafia: um livreiro angolano adquiriu não sei
quantas centenas de exemplares do romance, con-
Daí que o “Primeiro exercício de autobiogra- vencido de que os venderia como manuais para as
fia, em forma de narrativa de viagem”, frase-título ini- escolas.
cial de um capítulo central do volume, indicie a
dualidade perceptível desde o próprio título do O romance Levantado do Chão (1980),
livro, em que duas palavras – pintura e caligrafia – se uma verdadeira epopéia campesina, tem por
encontram associadas. A articulação de autobiogra- epígrafe: “E eu pergunto aos economistas po-
fia e narrativa de viagem, para além de sugerir o líticos, aos moralistas, se já calcularam o nú-
entrecruzamento de gêneros discursivos, assenta mero de indivíduos que é forçoso condenar à
a noção de percurso: ambas se estruturam como miséria, ao trabalho desproporcionado, à des-
duração no tempo e deslocamento no espaço, moralização, à ignorância crapulosa, à desgra-
ambas se escrevem assumindo a mesma forma frag- ça invencível, à penúria absoluta, para produ-
mentária de trânsito, de errância. E o que as define zir um rico?” Almeida Garrett
é a maneira de serem lidas: uma e outra como per-
cursos, como tempo decorrido e lugares visitados. O título condensa a idéia da consagração de
uma identidade comunitária, estruturada em fun-
A ambigüidade do título incide sobre a ção de uma imagética “apocalíptica”, ou seja, “os
palavra Manual, que, em sentido de dicionário, homens levantados” de um chão que é solo
pode significar um pequeno livro que contém no- alentejano. A estratégia do título estaria em aliar-
ções essenciais acerca da técnica de manejar pin- se pela epígrafe ao discurso do outro a fim de inici-
céis e esmerar a grafia. No entanto Saramago usou ar a estruturação da matéria discursiva. Dessa for-
a palavra numa outra acepção possível: feito com ma, no momento em que a epígrafe é lida, uma
as mãos, ou mais bem adaptado à temática, renas- cenografia enunciativa já começa a ser construída:
cido pela escritura. Almeida Garrett denuncia a mesma situação que
os trabalhadores rurais alentejanos da narrativa
Manual de Pintura e Caligrafia é um título que passarão a denunciar. As palavras da epígrafe fun-
busca circunscrever sua temática complexa e cionam como câmara-eco que provocam a articu-
polimorfa: é a idéia de trânsitos, de multíplices lação/integração da oralidade popular no discurso
passagens, não só num caminho de ida e volta – de do narrador, de molde a estabelecer a fusão entre
retrato ao auto-retrato, da biografia à autobiogra- o discurso do outro social e o autoral. Daí, a pro-
fia, da percepção da idéia , da falsidade do verda- pensão para o registro da oralidade popular, dos
deiro à autenticidade do verossímil, da ficção à provérbios ou aforismos, da mitologia, das históri-

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as de ouvir, das canções populares e do vocabulá- dessa narrativa de textualidade barroca, de matriz
rio campesino, remetendo-nos a um universo sim- prosística vieiriana: “Para a forca hia um homem:
bólico que constitui um modo peculiar de registrar e outro que o encontrou lhe dice: Que he isto
a memória coletiva. senhor fulano, assim vay v.m? E o enforcado
respondeo: Yo no voy, estes me lleban” Pe.
Viagem a Portugal (1981) talvez seja um Manuem Velho
dos títulos mais ilusórios da obra saramaguiana. Tem por
epígrafe: “A quem me abriu portas e mostrou O título tem na palavra Memorial a
caminhos – e também em lembrança de polissemia geradora de ambigüidades, isto é,
Almeida Garrett, mestre de viajantes.” pode-se imaginar como um indício de que a obra
tem caráter memorialista, isto é, uma coleta de
De inspiração garrettiana, seria um título fatos vividos e evocados pelo autor ou por uma
para um falso livro de turismo, tal como Viagens das personagens; ou, então, sugerir um escrito
na Minha Terra, uma falsa crônica de viagens. A em que se acham registrados certos fatos me-
alusão a Garrett permite ao leitor com conheci- moráveis; ou ainda, exposição escrita apresen-
mento de sua obra inferir juízos e conjecturar sen- tada à autoridade pública, na qual se pleteia ou
tidos. A Viagem a Portugal seria, assim, uma ro- se descreve alguma coisa.
magem pela cultura portuguesa, que, na esteira de
Garrett, com sua jornada Tejo arriba, continuaria No entanto, mais uma vez, o título não
a lição da antiepopéia marítima. indicia seu conteúdo, porque o que temos é mais
do que uma simples história do convento de Mafra
O título sugere um gênero “guia turístico”, presente no Memorial do Convento. O que se lê é
quando de fato é um gênero “narrativa de viagens” o memorial do século XVIII português e, porque
com um compromisso entre a ficção, a crônica e o relido, recordado e memorizado por um narrador
guia turístico. Saramago pretendeu despertar a ob- do nosso tempo, é também de hoje que se trata, e
servação pela terra e incitar a outras viagens, de da visão do homem do presente que aprendeu a
acordo com um programa que, em vez de roteiros, reler criticamente o seu passado, não para nele en-
chamaria a atenção para a cultura. Esse título fun- contrar modelos utópicos de perfeição saudosista,
ciona como um guia turístico ao contrário, ou um mas para exercitar a sua capacidade de refletir,
guia do não-turista: em vez da informação objetiva analisar e colocar questões.
que um guia pode oferecer, Viagem a Portugal pro-
picia uma visão de subjetividade de um homem, já O Memorial é um romance histórico. É his-
que é um livro fotográfico-paisagístico, em que a tórico e é romance. E é como romance que ele res-
emoção do narrador se revela diante do descrito. gata a densidade da História que se quer mais que
O texto produzido é um híbrido que participa si- um acúmulo de fatos e datas, que pretende ser
multaneamente do tipo “guia turístico”, da crônica revisitada pelos olhos do presente, pelos olhos
e autobiografia. novos do historiador que hoje não confia mais nos
manuais e nos compêndios oficiais.
O romance Memorial do Convento
(1982) deu a Saramago o reconhecimento da críti- Por isso a força centralizadora da pala-
ca. A presença do discurso histórico exigiu vasta vra Memorial no título apresenta ao leitor toda
documentação de processos inquisitoriais, vida a carga polissêmica que carrega, não permitindo
conventual, hábitos da corte joanina, andamento recortes interpretativos, já que pretende que seja
das obras de Mafra. entendida sem exclusão de significados. E pode-
se, inclusive, depois da leitura do romance, acres-
Sua epígrafe, em galaico-português, já ini- centar-se mais um: memorial como reflexão crí-
cia a construção do cenário temporal e espacial tica.

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O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) Saramago recorre aos jornais portugueses
é o romance preferido de José Saramago. Suas selecionados para reconstituírem o espaço-tempo
epígrafes, de certo modo, indiciam a temática, sem, da sua ficção: a crise espanhola, a invasão da
contudo, antecipá-la, já que só se percebe tal sina- Etiópia pela Itália, a força crescente do modelo
lização depois de se ler o livro. Epígrafes: alemão de militarização, meteorologia e publicida-
de (de caráter anódino); manchetes de jornais, no-
“Sábio é o que se contenta com o tícias de rádio, trechos de discursos políticos,
espetáculo do mundo.” Ricardo Reis. um conto de Borges, uma ode de Ricardo Reis.
“Escolher modos de não agir foi sempre
a attenção e o escrúpulo da minha vida”. Parece que a pesquisa realizada nos jor-
Bernardo Soares. nais portugueses sugeriu a Saramago a criação
do título do romance como se tratasse de uma
“Se me disserem que é absurdo fallar manchete jornalística. Essa possibilidade não
assim de quem nunca existiu, respondo está desvinculada do próprio conteúdo narrati-
que também não tenho provas de que vo, já que Ricardo Reis/personagem mostra-se
Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu sempre envolvido com as notícias jornalísticas
que escrevo, ou qualquer cousa onde como uma forma de se atualizar dos fatos ocor-
quer que seja.” Fernando Pessoa. ridos não só em seu país como no mundo, já
que teria ficado um longo tempo fora de Portu-
O trabalho das epígrafes cria efeitos de gal, morando no Brasil.
sentido surpreendentes, os quais se iniciam pela
identificação das assinaturas. Sabe-se que A Jangada de Pedra (1986) tem como
Ricardo Reis é um heterônimo de Fernando Pes- epígrafe: “Todo futuro es fabuloso.”Alejo
soa e que Bernardo Soares talvez fosse outro Carpintier
heterônimo, lançando-nos a incerteza de ter exis-
tido ou não, enquanto pessoa. No entanto apa- Talvez seja o título menos indiciante de
recem juntos, como se pertencessem ao mesmo todos os seus romances. Sua epígrafe em quase nada
mundo, vivendo, produzindo, assinando antecipa o conteúdo narrativo ou a temática. Cria
epígrafes como um autor convencional faria. um horizonte de expectativas ainda amplo e difuso
Esse autor é Fernando Pessoa, que concentra a para o leitor: promete o futuro. Parece que a proxi-
trindade na unicidade. midade do título se dá com o “incipit”, que Levin
nos mostrou como sendo um recurso usado am-
O conteúdo das epígrafes também é plamente na Idade Média, para sinalizar que um
indiciante, porque parece sugerir que pactuemos novo texto está por vir.
da utopia, posteriormente apresentada no conteú-
do narrativo: o heterônimo Ricardo Reis assume O incipit de A Jangada de Pedra começa por
sua corporização humana, vive e dialoga com o “Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho,
seu criador, também humano, Fernando Pessoa. todos os cães começaram a ladrar.” (p. 7), a fim de
explicar, informar o gesto de Joana Carda. Associa
A épica camoniana está presente na inver- a voz à escrita, na interpretação da alegoria que
são do célebre verso do Canto III “[...] aqui[...] Onde cria entre o ladrar dos cães “que sempre tinham
a terra se acaba e o mar começa”, quando Saramago sido mudos” com o riscar da vara.
cria a frase emblemática do romance, tanto no
epigráfico da cena primeira – “Aqui o mar acaba e Texto todo ele organizado a partir de um
a terra principia.” – como no final da narrativa, ato de riscar, coincidindo com a ruptura de uma
amarrada por – “Aqui, onde o mar se acabou e a certa mudez, numa auto-referência ao ato de es-
terra espera.” crever que o inaugura e permite a inserção da voz

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no narrativo. Transgride o gênero, as fronteiras O Evangelho segundo Jesus Cristo


do romance, com inter venções de caráter (1991) tem como epígrafe: “Quod scripsi,
ensaístico. scripsi.” Pilatos. (O que escrevi, escrevi.)

Uma viagem através da Península Ibérica, A epígrafe desse romance revela não só o
que se separa da Europa e, assim, se tornara ilha e discurso autoritário de quem se recusa a voltar atrás
barco de uma viagem também por mar, como aven- por ser o detentor do poder, mas também a denún-
tura de descoberta dos enigmas que ele propõe, e cia irônica – feita pelo narrador – da ignorância do
que a narrativa acompanha como espécie de um sujeito enunciador quanto à própria fatalidade da
“diário de bordo”. linguagem que, uma vez escrita, se des-absolutiza,
pois não pode mais fugir às múltiplas leituras que
História do Cerco de Lisboa (1989), ro- gerarão à sua própria revelia.
mance que lança o jogo interpretativo já no título
e expande-o para a epígrafe: “Enquanto não al- A ambigüidade do título cria, no leitor, a ex-
cançares a verdade, não poderás corrigi-la. pectativa de uma narração “em primeira mão”, por
Porém, se não a corrigires, não a alcançarás. oposição às canônicas. A preposição segundo remete
Entretanto, não te resignes.”Do Livro dos Con- para o narrador da história, pelo que o leitor espera
selhos. um narrador autodiegético. Engana-se, verifican-
do que o título é apenas a primeira grande subver-
Quanto ao título, Saramago aproveita-se da são das convenções que encontrará.
polissemia da palavra história para ambigüizar o
título. Essa ambigüidade instituída, de que o lei- A grande subversão parece ser do imagi-
tor, inicialmente, não se dá conta, sugere um rela- nário judaico-cristão, já que o romance faz a
to oficial de um acontecimento histórico, de modo releitura do texto bíblico em que a ironia e a paró-
que, só depois de conhecer a trama do romance, o dia ocupam papel fundamental. Atreve-se a apre-
leitor percebe que ela também sugere uma narrati- sentar como ficcional um discurso que a tradição
va ficcional, isto é, uma história da História do veicula como verdade.
Cerco de Lisboa. Em outros termos, o que vemos
é uma história dentro de outra, ou melhor, três his- Ensaio sobre a Cegueira (1995) é o roman-
tórias do Cerco: a primeira, a do próprio Saramago, ce que celebra o cotidiano, abandona a temática his-
que já começa no título da obra; a segunda, a his- tórica e mergulha no trivial povoado por pessoas co-
tória que Raimundo revisava; e a terceira, a que muns. Sua epígrafe “Se podes olhar vê. Se podes
Raimundo criou. ver, repara.” mais uma vez é retirada do ficcional
Livro dos Conselhos já apresentado como origem da
O discurso ficcional se constrói com (ou epígrafe da História do Cerco de Lisboa.
a partir de) discursos anteriores, atinge o seu tom
através do esforço oposto: o de levar ao paro- Como o próprio título sugere, trata-se de
xismo a irreverência em relação ao saber institu- um romance que se quer ensaio e, logo nessa
ído, cultivando o paradoxo como estratégia crí- ambivalência, instala-se uma oscilação pós-moder-
tica. na. Na verdade, o leitor confronta-se, desde as pri-
meiras páginas, com um evidente clima ficcional
Quanto à epígrafe, a “brincadeira” institu- que afasta o texto de qualquer modelização
ída está em fazer o leitor descobrir que suas frases ensaística. No entanto esse livro se revelará afinal
tão sérias e de profundo teor filosófico são retira- um ensaio sobre a condição pós-moderna, uma con-
das de um livro tão ficcional como o romance que dição marcada pela cegueira da razão, em que os
dá abertura: o Livro dos Conselhos não existe, foi princípios éticos são abandonados para que o
inventado por Saramago. hedonismo reine absoluto.

Universidade Católica de Pernambuco - 34


Revista SymposiuM

No volume II do diário, Cadernos de com naturalidade numa frase a propósito da iden-


Lanzarote, SARAMAGO (1995, p. 101) refere-se tificação completa de uma das pessoas famosas da
ao Ensaio sobre a Cegueira como “ensaio que não é coleção de Sr. José ( p. 24). Paulatinamente, a ex-
ensaio, romance que talvez o não seja, uma alegoria, um pressão vai ganhando força e importância logo des-
conto filosófico, se este fim de século necessita dessas coi- de sua reinteração na segunda ocorrência (p. 62-
sas.” 3). Finalmente, a expressão adquire importância e
protagonismo pelo destaque gráfico e semântico,
Este é o primeiro romance de Saramago que quando da sua utilização como nome próprio (p.
não fornece qualquer informação sobre o espaço e 217).
o tempo em que decorre a ação. Encontramo-nos
em plena atopia e em total acronia, o que contri- O título do romance e a epígrafe – “Conhe-
bui para a constituição da alegoria que edifica o ces o nome que te deram, não conheces o nome que tens” (p.
livro, de par, aliás, com o fato de as personagens 9) – convidam à leitura como alegoria não apenas
não terem nome. A cegueira, por extensão da busca ontológica do Sr. José mas também, por
metonímica, é a alegoria da condição pós-moder- metonímia, de todos nós, de todos os nomes, vi-
na, em que os homens revelam o grau zero da cons- vos e mortos, os quais acabarão con-fundidos num
trução de um sentido para o futuro, onde não há único arquivo, por vontade expressa e consciente
lugar nem tempo para recuperarem a dignidade da do chefe da Conservatória quando conclui pela “du-
vida e até a própria humanidade. pla absurdidade que é separar os mortos dos vivos.” (p.
208) em termos arquivísticos. Porém, como a mu-
Todos os Nomes (1997) tem por epígrafe: lher do verbete já morreu, esse absurdo arquivístico
“Conheces o nome que te deram, não conhe- transporta-se para o domínio da condição huma-
ces o nome que tens.” Livro das Evidências. na, diluindo a polaridade essencial vida-morte.
Ao ambiente histórico contrapõe-se aquilo
a que podemos chamar de poética da universalida- O título do romance, a epígrafe proveni-
de. Assim, a ausência é característica decorrente ente do apócrifo Livro das Evidências e a
do afastamento histórico: ausência de certificação Conservatória do Registro Civil, o eixo do lugar
de nominalização, datas e topônimos. Aos espaços onde se desenrolam muitas cenas, erigem o nome
nomeados e reconhecidos dos romances anterio- – expressão lingüística e legal da identidade – o
res sucedem espaços indefinidos e inomináveis. Não conceito fundamental.
há mais topônimos, apenas designações genéricas.
Sob a aparência de uma história banal,
Apesar dessa ausência de nomes, o roman- Saramago mobiliza as imensas questões da identi-
ce intitula-se ironicamente Todos os Nomes. Sabe- dade, das relações entre os indivíduos, do amor,
mos da importância do título enquanto orientador da verdade e da mentira, da vida e da morte, do
interpretativo, condicionador de sentido; sabemos poder divino ou institucional sobre o destino dos
que a leitura de qualquer obra é sempre pré-defini- homens. Há abundância de máximas e provérbios
da pelo “seu nome”. Involuntariamente, ao iniciar- populares indiciando a crença na sabedoria comum
mos o nosso percurso pelos meandros do texto, dos homens simples.
partimos também em busca dos sentidos sugeri-
dos pelo texto. As ocorrências da expressão que dá Conclusão
nome à obra ecoam ao longo do texto, funcionan-
do como produtores de sentido, indiciando progra- Ao terminar a análise dos títulos dos ro-
mas de leitura. Nessa medida, Todos os Nomes cons- mances de Saramago, reitera-se a possibilidade de
titui-se como exemplo paradigmático. As ressonân- conceber o título como gênero discursivo, já que
cias intertextuais pontuam o discurso começando foi esse o objetivo dessas reflexões. Os títulos
por fazer ouvir-se de forma tênue e sutil, inseridas mostraram-se como tipos relativamente estáveis de

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 35


Ciências, Humanidades e Letras

enunciados e apresentaram características comuns, _________. Manual de Pintura e Caligrafia. São


tais como: Paulo : Companhia das Letras, 1992.
- a articulação por recorrências e percur-
sos dialogais;
- estão fora e antes do discurso romanes- _________. Levantado do Chão. Rio de Janeiro :
co, ao mesmo tempo se incluem e apon- Bertrand Brasil S. A., 1993.
tam para a conclusão – têm duplo mo-
vimento; _________. Viagem a Portugal. São Paulo: Com-
- suspendem na dúvida a lógica habitual. panhia das Letras, 1998.
_________. Memorial do Convento. Rio de Ja-
Observando-se as características desses neiro : Bertrand Brasil S. A. 1993.
títulos de romances que se acredita poder
considerá-los gêneros discursivos, por que não se _________. O ano da Morte de Ricardo Reis.
pensar em verificar se essas mesmas característi- São Paulo : Companhia das Letras, 1993.
cas se fazem presentes na titologia de outras mídias,
_________. A Jangada de Pedra. São Paulo :
ou em que medida se aproximam ou se distanci-
Companhia das Letras, 1999.
am, de tal forma que se pudesse estender a con-
cepção de gêneros discursivos a títulos inseridos _________. História do Cerco de Lisboa. São
em diferentes sistemas de codificação e de lingua- Paulo : Companhia das letras, 1996.
gem?
É, com certeza, uma idéia interessante para _________. O Evangelho Segundo Jesus Cris-
um próximo trabalho. to. São Paulo : Companhia das Letras, 1991.
_________. Ensaio sobre a Cegueira. São Pau-
lo : Companhia das Letras, 1995.
REFERÊNCIAS
_________. Todos os Nomes. São Paulo : Com-
panhia das Letras, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Ver-
bal. São Paulo : Martins Fontes, 1992. VOLOSHINOV, V. Le discours dans la vie et le
discours dans la poesie. In: TODOROV, T.
________. Questões de Literatura e de Estéti- Mikhail Bakhtine: le principe dialogique. Paris :
ca: a teoria do romance. São Paulo: Ed. da UNESP, Seuil, 1981.
1993.
LEVIN, Harry. The title as a literary genre. In: NOTAS
________. Modern Language Review. v. 72, n.
4, oct. 1977. 1
Adorno apud Harry Levin, 1977.
MACHADO, Irene. O romance e a Voz: a pro- 2
Sílvio Lima apud Massaud Moisés (1992)
saica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro:
Imago, 1995.
3
Voloshinov apud Todorov (1981).

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Lite-


4
Entimema, em lógica, é um silogismo em que
rários. São Paulo: Cultrix, 1997. não é expressa uma das premissas. O termo même
de entymême (que vem do grego ‘encontra-se na
REVISTA COLÓQUIO LETRAS. Lisboa: Fun- alma’, ‘subentendido’) faz ressoar um toque
dação Calouste Gulbenkian, n. 151, 152. 1999. psicologizante.
SARAMAGO, José. Terra do Pecado. Lisboa: Ca- 5
Irene A. Machado (1995) p. 67.
minho, 1997.

Universidade Católica de Pernambuco - 36


Revista SymposiuM

Do feixe ao diagrama of translating such written text into the visual text
present on every press page makes the daily printed
Djalma Luiz Benette * newspaper a genre itself.

Key words: journalism, printed media, newspaper


genres
Resumo

Engana-se quem acredita que lê a tradução em lin-

N
guagem verbal feita pelo jornalista quando pega os Estados Unidos e em diferentes países
em mãos um jornal impresso diário (JID) qualquer. da Europa, na América Latina e no Ori-
A diferença entre o que o jornalista percebe na “re- ente, existem instituições organizadas para
alidade/fato” – e traduz em palavras escritas – e o dedicarem atenção aos jornais, jornalistas, empre-
que o leitor lê, toda manhã, no JID pronto, está na sas jornalísticas, seja do ponto de vista ético e da
linguagem visual que toda página de jornal possui. liberdade de expressão, seja do “negócio” enquan-
Desse modo, jornalismo é, a partir de um sistêmico to indústria.
processo bem particular, a tradução da “realida- No Brasil, a Associação Nacional de Jornais
de/fato” em texto verbal escrito num determina- (ANJ), entidade que congrega, do ponto de vista
do gênero jornalístico, incluindo aqui a fotografia, dos proprietários de jornal impresso diário (JID),
por mais paradoxal que possa ser, e a tradução desse 96 dos principais jornais diários impressos em cir-
texto escrito em texto visual, aquele que toda pá- culação no Brasil, é a que há mais tempo e com
gina de jornal tem, fazendo, assim, do JID um gê- eficiência vem dedicando-se aos empresários des-
nero. se ramo.
A partir de alguns dados da ANJ, como os
Palavras-chave: jornalismo, mídia impressa, gê- que indicam a evolução da mídia JID em diferen-
neros jornalísticos tes aspectos (quantidade da tiragem, volume pu-
blicitário, comparativos com anos anteriores nos
próprios jornais e outros tipos de mídia;
Abstract credibilidade), na virada do século 20 para o sécu-
lo 21, chega-se às seguintes constatações.
It is a mistake to believe any daily newspaper is a Primeira: o jornal impresso diário continua
translation of verbal language made by journalists. calcado, essencialmente, em processos eletrônicos,
The difference between what the journalist feels ou seja, o uso de tecnologia com específicas possi-
in the “reality/fact”- and translates into written bilidades de expressão que alcançou seu ápice em
words - and what the reader actually verifies every meados de 1980, tendo deixado para trás as eras
morning in the printed newspaper, lies on the visual gutemberguiana (impressão) e audiovisuais (rádio
language that every newspaper has. Hence, e televisão) proporcionadas pelos satélites. Hoje,
journalism is, from a particular systemic process, no início do milênio, o JID ainda engatinha no
the “reality’s” translation into verbal text written mundo digital, mas gradativamente busca o uso de
in a specific journalistic genre, which includes, ferramentas como fotografias digitalizadas e aces-
however paradoxically, photography. This process so a arquivos distantes da sede do jornal. Uma
_____________________ mudança mais radical para o mundo digital depen-
* Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; de muito mais de uma revolução no próprio ambi-
especialista em jornalismo numa parceria da Universidade de ente social do que uma simples decisão de fazer
Navarra (Espanha) e Centro de Estudos Universitários de São uso dessa tecnologia, ou seja, o JID só será digital
Paulo; especialista em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero de
quando o mundo em que se baseia estiver
São Paulo; professor universitário e editor responsável do jornal
Cruzeiro do Sul, Sorocaba-SP.
digitalizado.

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Ciências, Humanidades e Letras

Segunda: o crescente número de leitores dos a existência do JID, pois há um condicionamento


jornais impressos diários, nas edições semanais social, engendrado na cultura, de que o leitor deve
como um todo, ou simplesmente nas edições do- ter em mãos o seu exemplar do dia, antes mesmo,
minicais, tidas como “modelo” por empresários do em muitos casos, que a higienização habitual do
setor. Em conseqüência, o crescente volume de logo após levantar-se da cama ao final de uma noi-
publicidade e a crescente quantidade de pessoas te de sono. É tão verdadeira essa afirmação, que o
que lêem o JID. JID ganhou o sinônimo de matutino. Há experiên-
Essas duas constatações indicam que, seja cias de vespertinos e até jornais da noite registradas
como objeto, produto ou signo, o JID está calcado pela história da imprensa, no Brasil e no mundo,
num processo empresarial e, por isso, possui custo que perderam a importância com o advento do
financeiro tanto para ser produzido quanto para mundo audiovisual, possibilitado pela tecnologia
ser adquirido. Esse processo é sustentado por três televisiva. Diante desse fato concreto da vida das
grandes elementos: circulação, publicidade, reda- pessoas, se o JID não chegar ao leitor antes de ele
ção. ser “engolido” pelo cotidiano, não terá a impor-
Dados de entidades como a ANJ indicam que tância que preserva nos dias de hoje. Os empresá-
um JID só existe com esses três elementos. Sozi- rios, cada vez mais, estão cientes de que não se
nho, nenhum deles é jornal. Juntos, são. O que faz deve contrariar o hábito (como o interpretante ló-
com que permaneçam aglutinados são outros se- gico de uma relação, para usar uma expressão da
tores, de menor expressão, porém fundamentais semiótica peirceana) daquele que garante a exis-
para sua coesão: a Administração, o Jurídico, a Con- tência do seu produto.
tabilidade. O segundo grande elemento é o Departamen-
Aqui nasce a primeira metáfora desse estu- to Comercial. Num período da história da humani-
do, a do feixe, no sentido de grande porção de qual- dade, aconteceu de o custo do JID (a tinta, o pa-
quer coisa: imagine que cada um dos três grandes pel, impressão e profissionais envolvidos em sua
elementos que compõem o JID seja como um pe- produção, seja a mecânica, nas oficinas, ou inte-
queno graveto. Uma ação externa qualquer, com o lectual, seu conteúdo) ser inteiramente arcado pelo
mínimo de esforço, quebra um graveto. Imagine, leitor que adquiria e pagava cada uma das edições.
por outro lado, a junção, o aglutinamento dos Outro modelo, quando o JID chegava gratuitamen-
gravetos formando um outro único graveto. Have- te ou com um custo baixo ao leitor, devia-se ao
rá a necessidade de uma força muito maior para fato de o JID ser bancado financeiramente por gru-
quebrá-lo. A semelhança, na metáfora, entre o pos de interesse no que estava em circulação em
graveto e os elementos do JID é para dar o em- cada edição. Na Europa, especialmente, alguns
préstimo do sentido mental de que, juntos, os ele- partidos políticos bancavam as edições de alguns
mentos do JID resistem a variados e diferentes ní- jornais diários de tiragem expressiva. No primeiro
veis de pressão, tão comuns nas relações sociais. caso, por ter um custo muito alto aos padrões de
Isoladamente, já teriam sucumbido. Para uma apro- massa que adquiriu, o JID tornou-se inviável. No
ximação com a verdadeira dimensão do que está segundo, pelo atrelamento segmentário, o JID não
sendo dito, é necessário compreender cada um des- adquire a credibilidade junto ao grande público con-
ses três grandes elementos que formam o JID como sumidor desse tipo de mídia. Ao menos, há essa
“feixe”. crença entre os empresários brasileiros. Desse
O primeiro grande elemento é o Departamen- impasse, ganhou adeptos o modelo Departamento
to de Circulação, responsável pela distribuição do Comercial, enfim, responsável pela divisão espa-
jornal: a agilidade em transportar o JID da boca da cial, em cada página do jornal, entre o que é pro-
máquina de impressão até o local onde ele possa paganda, publicidade, marketing e o que é jorna-
ser adquirido (as tradicionais bancas de jornal ou lismo, enfim entre o que é de interesse do grupo
na própria residência, quando o leitor assina o jor- empresarial e o que é de interesse da coletividade.
nal). Se não existir essa agilidade, de nada adianta Dessa forma, tudo o que não é jornalismo, numa

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Revista SymposiuM

página de jornal qualquer, é publicidade e, portan- desses conhecimentos, que são imperativos e se
to, de responsabilidade do Departamento Comer- atribuem o espaço da verdade, consideram-se, por-
cial. Enquanto no jornalismo, ao menos no senso tanto, preteridos na fala jornalística1 .
comum e mais adiante esse estudo coloca em xe-
que, o que é expresso (os gêneros que, a seguir, Ou seja, é a elaboração de enunciados cal-
serão tema da discussão) é gratuito, fruto da liber- cados no que o mestre Lage chama de realidade,
dade do pensamento e ação dos profissionais en- num primeiro instante, e fato, no subseqüente, li-
volvidos em sua confecção; no espaço destinado à gado ao cotidiano das pessoas que lêem um JID
publicidade, o interessado em ver naquele espaço específico em cada uma de suas edições. Diante
seu produto (seja algo a ser comercializado ou sim- disso, fica evidente que cada JID se diferencia de
plesmente uma idéia que deseja compartilhar) de- outro à medida que elabora a sua linha editorial,
sembolsa dinheiro para isso, ou seja, paga e assina algo como norma de conduta a ser seguida como
um contrato onde, entre vários itens, está o fato parâmetro, na elaboração diária e cotidiana dos
de ser de inteira responsabilidade sua, portanto não enunciados. Numa analogia, Linha Editorial é o
do JID diretamente o que estiver na publicidade. que Peirce chama de Legi-signo “uma lei que é um
O responsável por esse comércio é o Departamen- Signo comumente estabelecida por homens”, ou
to Comercial. Em todo o mundo, onde é adotado seja, é um parâmetro, algo que conduz a expressão
o que se convencionou chamar de modelo norte- jornalística de modo adequado ao convencionado,
americano, os principais jornais estão organizados mas que se altera e se submete a condições de rea-
dessa maneira: loteando em suas páginas espaços lização e compreensibilidade ditadas por contex-
ao Departamento Comercial, responsável por man- tos sociais, históricos ou econômicos, pois “todo
ter financeiramente o JID. É da venda desses espa- legi-signo ganha significado por meio de um caso
ços nas páginas, essencialmente, que vem o dinhei- de sua aplicação” (PEIRCE, 1972, p. 101).
ro que permite a existência do JID como produto É da Linha Editorial de cada JID que nasce,
(papel, tinta, impressão de um lado; profissionais em essência, o parâmetro do jornalismo nele prati-
de oficina ou de trabalho intelectual de outro e, cado. Nesse ponto, a contribuição da semiótica da
por fim, o lucro do proprietário, afinal o mundo é cultura ganha uma aplicabilidade que se encontra
capitalista). Importante, mas em menor dose, é o inédita até o momento: o jornalismo de todo e qual-
dinheiro desembolsado pelo leitor que paga pelo quer JID centra-se, sem escapatória, no projeto
produto seja na banca, diariamente, ou na assina- editorial, no parâmetro, portanto, num sistema. Iuri
tura feita em planos mensais, semestrais, anuais. Lotman, no artigo “Teoria da Semiótica da Cultu-
O terceiro grande elemento desse “feixe” é ra”, aborda a questão “sistêmico-extra-sistêmico”,
o Departamento Jornalístico. Aqui, dentro do JID, afirmando que “a descrição estrutural baseia-se
é onde se pratica o jornalismo. Nas palavras de um numa delimitação, no seio do objeto a descrever,
dos maiores mestres da questão, Nílson Lage, jor- daqueles elementos e daquelas relações do siste-
nalismo é: ma que se mantêm invariáveis através de todas as
transfor mações homomorfas do objeto”
Um conjunto de gêneros textuais que se elabora (LOTMAN, 1981, p. 69). Ou seja, é na descrição
como discurso discorrendo sobre a realidade. Não (da realidade e do fato, como cita Lage ao definir
se pode falar sequer em um só discurso jornalístico, jornalismo) que existe o jornalismo, ou seja, na
porque há, além do discurso jornalístico dominan- estruturalidade (discursividade) do conjunto de
te, outros que constróem versões divergentes, em- elementos que compõem cada uma das páginas do
bora menos visíveis, da realidade. Melhor seria di-
zer que jornalismo é uma forma de conhecimento
JID, fazendo dela o que M. McLuhan chamou de
que parte da singularidade dos fatos para a univer- mosaico.
salidade, construindo sobre o senso comum e re- Nesse ponto, do jornalismo enquanto
correndo, sempre de forma indireta, aos discursos discursividade, começa de fato esse estudo, anun-
particulares dos conhecimentos instituídos. Cada um ciado já há algumas páginas: o JID (signo) é a com-

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Ciências, Humanidades e Letras

binação e uso de duas linguagens (visual e verbal) ou seja, haverá a expressão de um ponto de vista
e tem a tinta e o papel como suportes. Esse papel, da “realidade/fato”.
por sua vez, tem formato e tamanho específicos e No processo de confecção do JID, em cada
está disposto em cadernos – dependendo do nú- uma de suas edições, o que está envolvido, quan-
mero de páginas da edição e da linha editorial, a do se trata dos gêneros jornalísticos, é a manifes-
quantidade de cadernos varia de uma edição a ou- tação verbal, portanto escrita, do seu autor. Uni-
tra –, um dentro do outro, formando, assim, o JID camente verbal, nada mais. Antigamente, era dati-
pronto para o leitor pegá-lo nas mãos todo dia de lografado em laudas; do final dos anos 80 para cá é
manhã. digitado diretamente em computador, ato possível
Portanto, nas linguagens das imagens fixas graças a programas específicos, mas todos como
(visual) e da escrita (verbal), nasce o JID. Mais do similaridade com o que mundialmente ficou co-
que isso: um JID, seja ele qual for e de onde for, é nhecido como “programa de texto word”. Ou seja,
dependente da questão da linguagem nos âmbitos não há nesses textos nada além do que a tradução
do visual e verbal. Disso, que parece óbvio – mas da concretude do mundo, pelo viés de um autor
o senso comum tem demonstrado que muitos ig- que usou de suas percepções para verificar a “rea-
noram tal situação – fica evidente que o objeto lidade/fato”, para a abstração das palavras escri-
JID é totalmente dependente do jornalismo. O ne- tas.
gócio, ao contrário, para dar lucro e se manter, pre- Por fim, a metáfora do JID, como feixe está
cisa dos outros dois elementos da tal metáfora do calcada na inter-relação desses três elementos: a
“feixe”, mas o objeto não. circulação só existe se tiver produto; o jornalismo
Desde que foi inventado, de modos diferen- só é possível no objeto que, por sua vez, não seja
tes, de acordo com a época e a cultura, os “arqui- viável sem a sustentação econômica viabilizada,
tetos” do JID perceberam esse ponto e, para pa- no modelo abordado neste estudo, pelo Departa-
dronizar e ensinar a prática do jornalismo àqueles mento Comercial.
que pretendem trabalhar num JID, foi formatado
todo conhecimento desenvolvido no exercício do Movimento 1
jornalismo.
Para a compreensão desse estudo por quem Engana-se quem acredita que lê a tradução
é leigo no assunto, não é demais lembrar que o pri- em linguagem verbal feita pelo jornalista quando
meiro conhecimento que um profissional deve do- pega em mãos o JID. Não está sendo afirmado aqui,
minar, ao ingressar no JID, é o conceito de notícia, como pode parecer num primeiro momento, que
afinal ele domina o todo do JID, seja ele de onde haja a adulteração entre o que o autor do texto
for. Há outros conhecimentos que fazem o todo original (repórter/redator) escreveu e o que o que
do JID: reportagem, entrevista, crônica, resenha, acaba impresso (editado). Podem, como é freqüen-
crítica. Convencionou-se chamar cada uma dessas te, aliás, acontecer modificações estilísticas e es-
técnicas, por assim dizer, de gêneros jornalísticos. truturais no texto original, mas nunca no que está
Ou seja, o profissional que vai tratar da “realida- sendo abordado.
de/fato”, como ensinou Nílson Lage, necessaria- A diferença entre o que o jornalista percebe
mente, em jornalismo, vai usar um desses conheci- – e traduz em palavras escritas – na “realidade/
mentos. Cada um deles tem a sua especificidade fato” e o que o leitor lê, toda manhã, no JID pron-
que diferencia um de outro, como José Marques de to, está na linguagem visual que toda página de
Mello, Juarez Bahia, Mário Erbolato, Fraser Bond, jornal possui. Logo após detonado o processo
Alberto Dines, Luiz Amaral, Teun A. Van Dick e jornalístico de abertura no sistema de confecção
tantos outros já demonstraram. Dependendo da do JID – pauta, entrevistas, fotografias, ilustrações
técnica escolhida para abordar a “realidade/fato”, até a tradução da “realidade/fato” em texto escri-
haverá um discurso – isso, ainda, sem contar o es- to com palavras ou imagens – vem o processo de
tilo, idiossincrasias e cultura do autor – enunciado, fechamento. Todo JID vive essas duas fases – a

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Revista SymposiuM

metodologia como isso é feito varia de empresa Vê, portanto, figuras geométricas que conduzem o
para empresa, de cultura para cultura, mas sempre olhar e, portanto, a leitura.
existem os momentos de início do processo (aber- É importante, nesse momento, a lembrança
tura) e o do encerramento (fechamento). de que, antes de qualquer texto verbal escrito por
É nessa última etapa do processo jornalístico, um jornalista (repórter/redator/“copidesk”), há
portanto antes da participação do primeiro grande sempre um título verbal escrito por outro jornalis-
elemento que compõe o negócio JID, como dito ta (editor, subeditor, editor-assistente). O título
acima, a Distribuição e, logo após a manifestação nasce do texto originário que traduziu em lingua-
do segundo grande elemento, a Comercialização gem verbal a “realidade/fato”, mas não obedece
Publicitária, é que é possível a manifestação aos mesmos critérios dos gêneros jornalísticos, prin-
jornalística da linguagem visual. Grosso modo, cipalmente os gessados na técnica do lide, onde se
pode-se dizer que jornalismo é, na seqüência, a tra- escreve primeiro o mais importante da “realidade/
dução da “realidade/fato” em texto verbal escrito fato” apreciado. Enquanto o texto verbal escrito
num determinado gênero jornalístico, incluindo vai sendo composto, no geral, em orações simples
aqui a fotografia, por mais paradoxal que possa ser, ou subordinadas, mas todas com sujeito e
e desse texto escrito em texto visual àquele que predicado, o título é expresso, somente, em ora-
toda página de JID tem. ções simples. Enquanto o texto escrito é compos-
Pois bem, dependendo da empresa e da li- to no “pretérito perfeito” (afinal o JID de hoje fala
nha editorial em questão, é do volume de espaço da “realidade/fato” de ontem) ou no “presente
publicitário comercializado que vem a definição pelo futuro” (quando o JID aborda o que está pre-
da quantidade de página que cada edição do JID visto, mas ainda não ocorreu), o título escrito tem
tem, ou seja, sabe-se quanto custa para fazer o jor- o seu tempo verbal no “presente” mesmo que es-
nal, no final do dia se sabe quanto de dinheiro en- teja tratando do passado ou do futuro, pois
trou e, desse modo, é possível saber se haverá lu-
cro ou prejuízo com determinada edição. Definida (...) o verbo central, no gênero notícia, vem no pre-
a quantidade de páginas da edição, então se deci- térito perfeito, se fato acontecido, e no futuro ou
de, de acordo com a linha editorial (parâmetro), (em português), presente pelo futuro, se anúncio
de fato por acontecer. O presente ocorre apenas
quantas e quais páginas ou cadernos serão desti-
em títulos (que tendem à generalização e
nados para que o leitor saiba o que acontece em indeterminação) e os aspectos verbais imperfeitos,
“Economia”, “Política”, “Esportes” e “Cultura”, como o pretérito imperfeito e o presente
entre outros, ou seja, é o primeiro momento onde concomitante ou freqüentativo, em informações
é dada visualidade à “realidade/fato” no diagrama subsidiárias sobre características dos actantes.2
– um pedaço de papel de tamanho idêntico ao da
página impressa no princípio e uma similaridade Somente nessa diferença, já seria possível
na tela do computador, como é nos dias atuais. chamar o título de gênero, afinal ele é um enuncia-
Estipulado isso, enfim, é possível iniciar o do que se torna independente visual e verbalmen-
processo de tradução do texto verbal escrito em te do texto que o originou. O mesmo acontece com
texto visual, a chamada edição. Nesse momento, o os outros elementos que aparecem numa página:
texto escrito é transformado em centímetros e com- uma legenda só existe para “explicar/implicar” uma
binado com outros elementos, todos eles novos fotografia no texto verbal escrito. O “olho”, como
enunciados que se caracterizam por serem “gêne- recurso gráfico, busca dar uma importância acen-
ros discursivos”. Na página pronta de qualquer JID, tuada a um dos vários elementos do texto. As ilus-
o leitor vê textos verbais escritos nunca sozinhos, trações ou infográficos tendem a sugerir ao leitor,
mas, ao contrário, acompanhados de títulos, legen- um paralelo ao enunciado pelo texto. Enfim, cada
das, olho, pré-títulos, fotografias, ilustrações, co- um desses recursos que nascem na visualidade ga-
res, tons de preto, espaço em branco, fios finos, nha uma função discursiva e, “se é lícito conceber
fios médios, fios grossos, anúncios publicitários. o texto como uma manifestação espacial, parece-

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Ciências, Humanidades e Letras

nos igualmente válido entender o gênero como uma datas e localização de um empresário.
dimensão temporal, um uso”, portanto, são gêne- O que essa fonte diz não pode ser qualquer
ros discursivos, numa página do JID, todos os enun- informação, mas, sim, a narração resumida de
ciados nela presentes, sem exceção, afinal “os gê- “realidade/fato” de interesse público que tenha o
neros reportam-se às formas de uso das línguas e aspecto de novo, ou seja, aquilo que não é conhe-
linguagens” (MACHADO, 1997, p. 153). cido do público-leitor, afinal “jornalismo é a busca
da circunstância nova” (DINES, 1986, p. 52), sen-
Movimento 2 do essa circunstância fato/acontecimento possí-
vel de ser traduzido em notícia, o princípio de todo
Está evidente, até aqui, que o jornal impres- o processo sistêmico onde está calcado o jornal
so diário apresenta uma estrutura própria, particu- impresso diário.
lar, que o determina, fazendo com que seja dife- A circunstância se constitui numa notícia que,
rente de qualquer outro veículo. por sua vez, dissemina-se na cadeia de gêneros
Essa estrutura se concentra num núcleo, a discursivos que podem ser entendidos a partir dos
notícia, ponto de partida para a compreensão do recursos próprios da edição do jornal, tais como:
jornal como sistema semiótico e entender o jorna- título, imagens (fotografias, ilustração, infografia,
lismo como uma equação matemática, onde há selo, charges). A edição pode, também, exigir re-
equivalência de grandezas – umas subseqüentes a cursos gráficos (olho, linhão) que também se en-
outras –, sendo que a primeira é a fonte da subse- quadram como gêneros discursivos. Está claro,
qüente. Em outras palavras, só existe, no JID, algo então, que é da notícia que surgem os gêneros
expresso (visual ou verbal) em conseqüência da jornalísticos como a crônica, o comentário, a aná-
próxima da existência da anterior. Ou, dito desta lise, a crítica, a opinião. No jornal impresso diário,
forma: na maioria absoluta das vezes (no caso da crônica
Fonte origina Informação; sempre pode haver exceção), esses são gêneros que
Informação origina Notícia; se originam depois da notícia que “nasceu” depois
Notícia origina gêneros [gêneros da informação.
jornalísticos (notícia, reportagem, entrevista, É essa possibilidade de ler os gêneros
crônica, crítica, opinião etc.)] e gêneros discursivos discursivos gerados pela notícia que revela o pro-
(título, legenda, olho, linhão, infografias etc.). cesso em que o jornal se apresenta como um siste-
Gêneros originam o JID (objeto/produto/ ma articulado por vários subsistemas: a notícia (re-
signo) alidade/fato) aparece, pela primeira vez, dentro de
Nos gêneros, enfim, reside a noção de jornal uma coluna; depois (edições seguintes) aparece sob
como sistema. Para o jornal ser jornal, é, antes de o aspecto de circunstância nova numa entrevista
mais nada, necessário que haja informação. A fon- (gênero jornalístico) que, para manifestar-se, pre-
te (seja um documento, o próprio jornalista ou al- cisa da linguagem visual de título, intertítulo e olho.
guém que dê uma declaração), necessariamente tem Nas edições seguintes, sob novas circunstâncias,
de ser uma autoridade que, do ponto de vista aparece em outros gêneros jornalísticos (opinião,
jornalístico, divide-se em duas possibilidades. Pri- análises, carta, crônica, crítica, comentário etc.) e
meira: alguém com um título outorgado na esfera discursivos (infografias, charges, título, legendas,
social, como, por exemplo, o Presidente da Repú- fotografias etc.)
blica, que pode não saber nada de economia, mas Esse processo deve ser pensado, ainda, na
uma palavra sua sobre o assunto repercute no am- diagramação do jornal, onde nascem outros gêne-
biente social. Segunda: alguém que, de fato, pode ros discursivos. A partir da diagramação, torna-se
falar sobre o assunto, pois se preparou para isso, possível verificar a disposição dos textos (verbais
por exemplo, o motorista de um empresário envol- e não-verbais) organizados do modo como o leitor
vido num esquema de corrupção ao falar sobre vê.
Compreender a dimensão semiótica do tra-

Universidade Católica de Pernambuco - 42


Revista SymposiuM

tamento gráfico é uma forma de se alcançar a pró- “realidade/fato”. Para dar respaldo a tal afirma-
pria dimensão ideológica que define não só o que ção, há o apoio de Mikhail Bakhtin que nos ensi-
vai ter mais ou menos destaque num jornal, mas nou:
também aquilo que deve despertar o interesse do
leitor e fazer com que a troca (comunicação) não a unidade real da comunicação verbal é o enun-
acabe. ciado. A fala só existe, na realidade, na forma
Não se pode esquecer que o jornal é feito concreta dos enunciados (...) quaisquer que se-
jam o volume, o conteúdo, a composição, os enun-
pelos jornalistas (executores daquilo delineado pela ciados sempre possuem, como unidades da co-
empresa) e comprado pelo leitor. Se o leitor não municação verbal, características estruturais que
gostar do jornal, ele não compra, e a troca acaba lhe são comuns, e, acima de tudo, fronteiras cla-
(não existe comunicação) e o jornal, por conse- ramente delimitadas (BAKHTIN, 1997: 293).
qüência, também.
É necessário evidenciar que não há nenhu- Nada mais óbvio do que uma página de JID,
ma idéia ingênua descartando o fato ideológico e onde a composição dos enunciados são claras fron-
de jogos de interesse pessoal (do jornalista ou gru- teiras a serem transpostas por qualquer leitor, por
po que ele tem condições de representar). Sob esse mais desatento que seja. É muito comum, nos dias
ponto de vista, para se alcançar a dinâmica ideoló- de hoje, encontrar quem não ultrapassa todas as
gica, é preciso lançar para o jornal um olhar fronteiras de uma página para obter o sentido real
cibernético não apenas como controle mas tam- da “realidade/fato” expresso pelo jornalismo, fi-
bém como forma de organização e manutenção de cando, grande parte das vezes, nos enunciados pe-
uma ordem de coisas. los gêneros discursivos de títulos, fotos, legendas,
Diagramação refere-se à disposição dos ele- olho. É um erro tal limitação; afinal, continua
mentos básicos das linguagens (verbal e visual), Bahktin:
ou seja, texto verbal + título + imagem na página
em branco. Elementos da física, em específico da as fronteiras do enunciado concreto, compreen-
ótica, criaram uma estrutura no sentido de facili- dido como uma unidade da comunicação verbal,
tar o acesso do olho humano, que vê/lê o jornal são determinadas pela alternância dos sujeitos
numa tentativa de achar a harmonia entre o que falantes, ou seja, pela alternância dos locutores.
Todo enunciado – desde a breve réplica
está escrito e a forma como está apresentado. Da
(monolexemática) até o romance ou tratado ci-
mesma forma como a notícia desencadeia a rede entífico – comporta um começo absoluto e um
dos gêneros discursivos, o texto (em seus diferen- fim absoluto: antes do seu início há os enuncia-
tes tamanhos) e as imagens (fotos, infografias, dos dos outros, depois do seu fim, há os enunci-
charges, ilustrações, selos etc) são responsáveis ados-respostas dos outros (BAKHTIN, 1997, p.
pelo nivelamento da importância da informação 293-294).
veiculada.
Desse modo, no JID, o que comunica não é a Desse ponto de vista, os gêneros “se carac-
“realidade/fato” traduzida na linguagem verbal terizam por aquilo que se faz com a linguagem:
escrita dos gêneros jornalísticos, mas a tradução mostrar, descrever, explicar... antes de tudo, pelos
em visual do verbal que se manifesta em gêneros tipos de enunciados e modo de encadeamento des-
discursivos, sendo que cada um deles é um enun- tes enunciados” (MELO, 1997, p. 190), ou seja,
ciado à parte. É da combinação dos enunciados jornalismo, como grande gênero do jornal impres-
presentes nos gêneros discursivos de cada página so diário, é o modo de encadeamento dos gêneros
que se origina o enunciado verbal que, crê-se, como discursivos e o tipo de enunciado abordado em cada
é visto em diferentes manifestações, estaria no tex- um dos seus gêneros, ainda mais se for levado em
to primeiro que nasce das declarações colhidas pelo conta que “gênero é uma categoria que nos faz
repórter junto a sua fonte; de documentos que vi- pensar de modo diferente sobre qualquer tema”3 .
ram notícias; da percepção de alguém diante da Ou, nas palavras de Bakhtin, “o gênero vive do

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 43


Ciências, Humanidades e Letras

presente mas sempre recorda o seu passado, o seu (Entrevista concedida a Maria Lúcia Garcia
começo sendo o representante da memória criati- Pallares-Burke).
va do processo de desenvolvimento (jornalístico)
e, precisamente por isso, tem a capacidade de as- PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia:
segurar a unidade e a continuidade desse desen- textos escolhidos. Tradução Octanny Silveira da
volvimento”. (BAKHTIN, 1981, p. 91). Ou seja, Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo : Cultrix,
da metáfora do “feixe” à concretude do diagrama, 1972.
o jornalismo é o grande gênero de um jornal im-
presso diário.
Sites consultados:

REFERÊNCIAS Associação Nacional dos Jornais: www.anj.org.br

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Ver- Nesse site, da associação fundada em 1979 no Bra-
bal. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Perei- sil, há um vasto material da área jornalística feito
ra. São Paulo : Martins Fontes, 1997. para auxiliar as 121 empresas associadas (18/2/
2001) nos variados aspectos que constituem uma
DINES, Alberto. O Papel do Jornal: uma empresa jornalística, desde questões jurídicas e ad-
Releitura. 6. ed. São Paulo: Summus, 1986. ministrativas até as de recursos humanos e treina-
mento de funcionários.
LOTMAN, Iuri. La semiosfera I: semiótica de la
cultura y del texto. Tradución Desiderio Navarro. Jornalismo: www.jornalismo.ufsc.br/index.html.
Madrid : Frónesis Cátedra; Universitat de Valéncia,
1996. Nesse site, da Universidade Federal de Santa
Catarina, estão informações referentes à comuni-
LOTMAN, I.; USPEN SKII, Boris; IVÁNOV, V. dade acadêmica, porém há importante material,
Ensaios de Semiótica Soviética. Tradução como comentários de professores sobre trabalhos
Victória Navas; Salvato Teles de Menezes. Lisboa e teses de alunos da universidade.
: Livros Horizonte LDA, 1981.
NOTAS
MACHADO, Irene Araújo. Os Gêneros e o Corpo
do Acabamento Estético. In: BRAIT, Beth. (org.). 1
Comentários de Nílson Lage à tese “Cenas
Bakhtin, Dialogismo e Construção do Senti- benefactivas e movimentos semânticos no con-
do. Campinas : Ed. da Unicamp, 1997. texto da linguagem jornalística”, de Avani T.
Campos de Oliveira, consultada em 3/10/2000
MELO, Lélia Erbolato. Estrutura da Narrativa ou no site: www. jornalismo.ufsc.br/teseavani.html
Gêneros, mundos, lugares discursivos & compa-
nhia? In: BRAIT, Beth. (org). Bakhtin, dialogismo 2
Comentário de Nílson Lage à tese “O conheci-
e construção do sentido, organização Campinas : mento dos jornalistas sobre gêneros textuais:
Ed. da Unicamp, 1997. uma contribuição à Teoria das Superestruturas
Textuais”, de Adair Bonini, consultada em 3/
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunica- 10/2000 no site: www. jornalismo.ufsc.br/
ção como extensões do homem. Tradução de teseadair.html
Décio Pignatari. São Paulo : Cultrix, 1974.
3
Juliet Mitchell, psicanalista inglesa, em entre-
MITCHELL, Juliet. A luta permanente. Folha de vista ao suplemento Mais, nº 453, Folha de S.
S. Paulo. 15 de out. 2000. Mais! n. 453, p. 6-9. Paulo, 15 de outubro de 2000.

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Revista SymposiuM

Gêneros jornalísticos: appear, grow, change and disappear according to


the technological and cultural development of each
repensando a questão nation and each journalistic enterprise. In this
article, we carry out a literature review on the
Jorge Lellis Bomfim Medina * concepts of genre, discourse and discursive genres
from Plato to Mikhail Bakhtin, as well as Derrida
Resumo and José Marques de Melo.
Os gêneros jornalísticos são determinados pelo Key words: journalistic genres, printed media,
modo de produção dos meios de comunicação de journalism
massa e por manifestações culturais de cada socie-
dade onde as empresas jornalísticas estão inseridas. A questão dos gêneros
Precisam, portanto, ser estudados como um fenô-
meno histórico. Realizar uma classificação univer- Classificar gêneros já era uma atividade na
sal dos mesmos é praticamente uma tarefa impos- Grécia antiga, onde Platão propôs uma classifica-
sível, visto que estão sempre em transformação. ção binária, entre gênero sério, que incluía a epo-
O que pode ser um gênero hoje amanhã não o será péia e a tragédia, e gênero burlesco, do qual faziam
mais ou o que pode ser um gênero em um determi- parte a comédia e a sátira. Posteriormente, o pró-
nado país não o é em uma outra sociedade. Gêne- prio Platão realizou uma nova classificação, agora
ros aparecem, crescem, mudam e desaparecem con- em três modalidades, baseada na variação das re-
forme o desenvolvimento tecnológico e cultural lações entre literatura e realidade, à luz do concei-
de cada nação e de cada empresa jornalística. Nes- to de mimesis, ou seja, da imitação: gênero mimético
te trabalho, propomos uma revisão de literatura ou dramático (tragédia e comédia); gênero
sobre o conceito de gênero, de discurso e de gêne- expositivo ou narrativo (ditirambo, nomo, poesia
ros discursivos, de Platão a Mikhail Bakhtin, pas- lírica); e gênero misto, constituído pela associação
sando por Derrida e José Marques de Melo. das duas classificações anteriores (epopéia). Com
isso, Platão lançou o fundamento da tripartida dos
Palavras-chave: gêneros jornalísticos, mídia im- gêneros literários.
pressa, jornalismo.
Gênero vêm da raiz da palavra gen, da qual
Abstract provém o verbo latino gigno. Este conexiona a for-
ma, igualmente latina, genus quer com a idéia de
Journalistic genres are determined by the sexo (de onde o género gramatical), quer com a de
production mode of mass media and by the cultural estirpe ou de linhagem, como princípio de classifi-
manifestations of every society where the cação: temos assim, entre os usos literários das pa-
journalistic enterprises are inserted, which imposes lavras, genus scribendi ‘estilo’, e os genera literários,
their study as a historical phenomenon. To agrupamentos comparáveis aos da ciência, onde
accomplish a universal classification of these subsiste também uma diferença de generalização
genres is practically impossible since they are not (genus, por oposição a species).” (ENCICLOPÉDIA,
finished cultural signs: they are in permanent 1989, p. 72). Para GREIMAS (1979, p. 202):
change, in constant transformation. What is
considered to be a genre today might not be so “O gênero designa uma classe de discursos, reco-
tomorrow, or else, what is considered a genre in a nhecível graças a critérios de natureza socioletal.
certain country, is not so in another society. Genres Estes podem provir quer de uma classificação im-
____________________ plícita que repousa, nas sociedades de tradição oral,
* Jornalista profissional da Universidade Federal do Espírito Santo sobre a categorização particular do mundo, quer
(UFES) e mestrando do Programa de Comunicação e Semiótica de uma “teoria dos gêneros” que, para muitas soci-
edades, se apresenta sob a forma de uma
da PUCSP.

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Ciências, Humanidades e Letras

taxionomia explícita, de caráter não científico. De- só se revela no drama romântico mas também em
pendente de um relativismo cultural evidente e fun- outras formas literárias, como no romance. Um
dada em postulados ideológicos implícitos, tal teo- outro exemplo desse hibridismo é a tragicomédia,
ria nada tem de comum com a tipologia dos dis-
cursos que procura constituir-se a partir do reco-
que foi uma das maiores manifestações da litera-
nhecimento de suas propriedades formais específi- tura barroca espanhola. Com isso, podemos con-
cas. O estudo da teoria dos gêneros, característico cluir que não existe pureza dos gêneros, pois todo
de uma cultura (ou de uma área cultural) dada, não texto participa em um ou em vários gêneros. Sem-
tem interesse senão na medida em que pode evi- pre haverá um gênero ou vários gêneros em uma
denciar a axiologia subjacente à classificação: ele determinada obra.
pode ser comparado à descrição de outros etno ou
sociotaxionomias”.
Para o pensador russo BAKHTIN (1997):
Platão, sem dúvida nenhuma, foi o primei- “gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora
ro cientista a estudar os gêneros, além de definir dentro de uma determinada linguagem, um certo
que todos os textos literários são uma narrativa de modo de organizar idéias, meios e recursos expres-
acontecimentos, sejam eles passados, presentes ou sivos, suficientemente estratificado numa cultura,
futuros. Desde a época antiga, uma questão que de modo a garantir a comunicabilidade dos produ-
sempre esteve em debate até os dias de hoje é a tos e a continuidade dessa forma junto às comuni-
dades futuras. Num certo sentido, é o gênero que
mistura destes gêneros, que o próprio Platão, na
orienta todo o uso da linguagem no âmbito de um
sua classificação triádica, definiu como gêneros determinado meio, pois é nele que se manifestam
mistos, ou seja, a mistura das suas duas classifica- as tendências expressivas mais estáveis e mais or-
ções anteriores: mimético ou dramático e expositivo ganizadas da evolução de um meio, acumuladas ao
ou narrativo. longo de várias gerações de enunciadores.”

Saltando para uma época mais recente so- Os gêneros discursivos


bre os estudos de gêneros, Jacques Derrida, um dos
principais pensadores contemporâneos, no seu tra- Como o nosso estudo ficará centrado nos
balho sobre a “lei do gênero”, brinca afirmando que gêneros jornalísticos – os gêneros discursivos que
os gêneros não podem ser misturados. Para ele, “os aqui nos interessa –, iremos apresentar algumas
gêneros não devem ser misturados, como um voto definições sobre discurso. Os dicionários apresen-
de obediência, como um voto de compromisso e tam dois significados principais para o discurso:
fidelidade, sendo assim fiel à lei do gênero, ou seja, um é de exposição de um determinado assunto,
à lei da pureza” (DERRIDA, 1980). Em seguida, escrito ou proferido em público; o outro é o ato de
ele desmente essa afirmação, ao falar que a lei do discorrer, ato de comunicação lingüistica. Enten-
gênero, a lei da pureza, é impossível de ser pratica- demos como comunicação lingüistica o ato da pa-
da. Para ele, é impossível não misturar os gêneros. lavra e o uso da língua. Ouçamos Bakhtin:
Pode-se falar, então, segundo Derrida, de uma lei
da lei do gênero: a lei da impureza, que é precisa- “As diversas esferas da atividade humana estão re-
mente o princípio da contaminação. Para ele, o lacionadas com o uso da língua, e este uso, nas
grande enigma dos gêneros é trabalhar com os seus formas de enunciados, sejam eles orais ou escritos.
Os enunciados refletem as condições específicas e
limites: até que ponto um gênero não pode ser con-
o objeto de cada uma destas esferas, não só pelo
taminado por um outro gênero? é a questão que seu conteúdo e pelo seu estilo verbal, ou seja, pela
ele nos sugere. seleção dos recursos léxicos e gramaticais da lín-
gua, mas sim, antes de tudo, pela sua composição
Na literatura, o gênero drama, por exem- ou estruturação. O conteúdo temático, o estilo e a
plo, participa dos caracteres da tragédia e da co- composição estão vinculados na totalidade do enun-
média, da ode e da epopéia. Esse hibridismo não ciado e se determina pela especificidade de uma
esfera dada de comunicação. Cada enunciado se-

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parado é individual, mas cada esfera do uso da língua. “Nem um só fenômeno novo (fonético, lé-
língua elabora seus tipos estáveis de enunciado, que xico ou gramatical) pode ser incluído no sistema
são gêneros discursivos. Assim, a língua participa da língua sem passar por uma larga e complexa via
da vida através dos enunciados concretos que os
realizam, como a vida participa da linguagem atra-
de prova de elaboração genérica,” ensina Bakhtin.
vés dos enunciados “ (BAKHTIN, 1997).
Para ele, o estudo da natureza do enunciado e dos
gêneros discursivos tem uma importância funda-
O discurso é um processo e produto da mental para ultrapassar as noções simplificadas
interação verbal e o enunciado, sua unidade real, sobre a vida discursiva da chamada “corrente do
pois, segundo Bakhtin, “a enunciação é o produto discurso” e sobre a comunicação discursiva, que
da interação de dois sujeitos socialmente organi- permitirá compreender, de maneira mais correta, a
zados. O discurso se molda à forma do enunciado natureza das unidades da língua como sistema (as
(unidade real de comunicação verbal), que perten- palavras e as orações).
ce a um sujeito falante e não pode existir fora des-
sa forma”. Então, o discurso pode ser entendido Gêneros midiáticos
como uma linguagem em funcionamento numa
determinada situação ou um processo de produ- Definir gêneros nas mídias e, mais especi-
ção de significação, sendo a língua o instrumento ficamente, no jornalismo impresso não é uma tare-
dessa produção. fa fácil. Vejamos a opinião do professor José Mar-
Para se manifestar, o discurso usa o texto, ques Melo sobre o assunto: “classificar gêneros
que podemos definir como toda e qualquer mani- jornalísticos é o maior desafio do jornalismo, como
festação da capacidade humana, realizada medi- campo do conhecimento, é, sem dúvida, a confi-
ante um sistema de signos. Pode ser tanto um poe- guração da sua identidade enquanto objeto cientí-
ma ou uma conversa, quanto uma pintura ou uma fico e o alcance da autonomia jornalística que pas-
escultura. Bakhtin ressalta que é através do texto sa inevitavelmente pela sistematização dos proces-
que a história do pensamento, orientada para o sos sociais inerentes à captação, registro e difusão
pensamento, o sentido e o significado do outro se da informação da atualidade, ou seja, do seu dis-
manifestam e se apresentam. “Texto é modalidade curso manifesto. Dos escritos, sons e imagens que
composicional, produto comunicativo, unidade de representam e reproduzem a atualidade, tornando-
informação vinculado à vida interativa. Gêneros se indiretamente perceptível” (MELO, 1985).
são articulações discursivas que organizam e defi-
nem a textualidade. Os gêneros são inconcebíveis A questão dos gêneros jornalísticos assu-
fora do texto; sem os gêneros, o texto se esfarela” me um papel importante para a compreensão dos
(MACHADO, 1999). O texto é a manifestação do diferentes discursos produzidos pelos meios de
discurso por meio de um plano de expressão. comunicação de massa, pois a preocupação em
Bakhtin nos informa ainda que, para haver a co- defini-los tem sido uma inquietação constante en-
municação verbal, o sujeito tem à sua disposição tre os estudiosos norte-americanos, europeus e la-
uma imensa variedade de gêneros discursivos e ele tino-americanos. No seu conhecido estudo sobre
elege uma das formas dos enunciados em função os gêneros jornalísticos, A opinião no jornalismo bra-
do objeto que está diretamente ligado à esfera sileiro, José Marques Melo faz uma compilação à
discursiva, seja pelo tema, seja pela situação de concepção de vários estudiosos sobre o que seri-
comunicação ou ainda pela orientação do locutor am os gêneros jornalísticos. Para estudiosos como
consigo mesmo e com o outro. Em outras pala- Juan GARGUREVICH (1982), por exemplo, os gê-
vras, o sujeito aprende a falar utilizando os gêne- neros jornalísticos são formas que os jornalistas
ros do enunciado. buscam para se expressar. Seus traços definidores
estão, portanto, no estilo, no manejo da língua. Para
Os gêneros discursivos são canais de trans- ele, trata-se de formas jornalístico-literárias, por-
missão entre a história e a sociedade e a história da que o seu objetivo é o relato da informação e não

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Ciências, Humanidades e Letras

necessariamente o prazer estético. Já Emil quais ele considera como sendo os mais importan-
DOVIFAT afirma que os gêneros jornalísticos são tes. Em seguida, vêm as colunas, os artículos, os
formas de expressão jornalísticas que se definem testemunhos, as resenhas, a crítica, a polêmica ou
pelo estilo e assumem expressão própria pela obri- debate, as campanhas, a titulação e os folhetins. O
gação de tornar a leitura interessante e motivadora. autor observa que não é uma classificação fecha-
Entretanto FOLLIET acredita que são formas uti- da e que vários textos combinam vários gêneros
litárias, pois as diferenças entre os gêneros surgem dependendo do talento do redator.
justamente da correspondência dos textos que os
jornalistas escrevem em relação às inclinações e A revisão de todos esses trabalhos nos per-
aos gostos do público. Ou seja, a essência do esti- mite aqui propor que, no jornalismo, o gênero de
lo jornalístico estaria na tentativa de fazer o relato base é a notícia (o relato puro dos acontecimentos).
do cotidiano, utilizando uma linguagem capaz de Os pesquisadores ARMAÑANZAS e NOCI apud
estar sintonizada com o que Gonzalo Martin MELO (1998) afirmam que os gêneros
Vivaldi chama de ‘linguagem de vida’ e que pres- jornalísticos ficaram mais evidentes a partir do sé-
supõe o uso de todos os recursos expressivos e vi- culo XIX, quando a notícia, com informações so-
tais, próprios e adequados para expressar a bre os principais acontecimentos daquela época,
variadíssima gama do acontecer diário. consolidou-se como o gênero jornalístico por ex-
celência. “A produção da notícia é um processo
GARGUREVICH (1982), no livro Géneros que se inicia com um acontecimento. É o sujeito
periodísticos, traz-nos, outra vez, uma preciosa re- observador que dá sentido ao acontecimento. Os
visão de conceitos de alguns pesquisadores do jor- acontecimentos estariam formados por aqueles ele-
nalismo sobre gêneros jornalísticos, como, por mentos exteriores ao sujeito a partir dos quais ele
exemplo, Maria Júlia Sierra, que faz uma distinção mesmo vai recorrer e construir o acontecimento”
entre jornalismo noticioso e jornalismo literário. No (ALSINA, 1993, p. 81). Como escreve Rodrigues
primeiro grupo, são classificadas as crônicas, as (1988), “o acontecimento constitui o referente de
colunas, as entrevistas, as reportagem, o editorial, que se fala. Lemos a notícia acreditando que elas
o artículo e a notícia. No segundo grupo, estão os são um índice do real; lemos as notícias acreditan-
ensaios, as biografias, os contos e as histórias verí- do que os profissionais do campo jornalístico não
dicas ou conto da vida real. Já o estudioso John irão transgredir a fronteira que separa o real da fic-
Hohenberg classifica os gêneros da seguinte ma- ção. E é a existência de um “acordo de cavalhei-
neira: notícia básica (a que concede a virtude da ros” entre jornalistas e leitores pelo respeito dessa
objetividade), notícia de interesse humano, entre- fronteira que torna possível a leitura das notícias
vista, biografia popular, notícia interpretativa (sub- enquanto índice do real”.
jetividade), reportagem especializada, colunas, re-
portagem investigativa e reportagem de campanha). LAGE apud HENN, (1994, p. 27), em seu
Johnson Harris, por sua vez, divide os gêneros em livro Ideologia e técnica da notícia, agrupou algumas
notícias correntes, crônicas especiais, nota de in- definições de notícia, entre as quais destacamos:
teresse humano, notícias sociais (englobando pes- notícia é uma copilação de fatos e eventos de
soas, notas breves, entretenimento e coluna soci- interesse ou importância para os leitores do jornal
al), ilustrações (fotografia, caricaturas, mapas e que publica; é tudo que o público necessita saber,
diagramas) e editoriais. tudo aquilo que o público deseja falar, quanto mais
comentários suscite, maior é o valor. É a inteligên-
Depois de resgatar o trabalho de vários cia exata e oportuna dos acontecimentos que inte-
pesquisadores, Gargurevich encerra o seu próprio ressa aos leitores; fatos essenciais de tudo que acon-
trabalho, propondo a seguinte descrição: nota in- teceu ou idéia que tem interesse humano; infor-
formativa, entrevista, crônica, reportagem, gráfi- mação atual, verdadeira, carregada de interesse
cos (fotos, caricaturas, mapas, tiras cômicas), os humano e capaz de despertar a atenção e a curiosi-

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Revista SymposiuM

dade de grande número de pessoas. sempre é a transformação de um ou vários gêneros


velhos. Cada trabalho novo dentro de um gênero
Voltemos, neste ponto, aos gêneros para tem o potencial para influenciar mudanças dentro
concluir com Marques Melo que: do gênero ou talvez o aparecimento de subgêneros
novos, que podem florescer depois em gêneros cres-
“Se os gêneros são determinados pelo estilo e se cidos. (CHANDLER, 1997)
este depende de uma relação dialógica que o jorna-
lista deve manter com o seu público, apreendendo TOMASHEVSKY apud CHANDLER (1997) afir-
seus modos de expressão (linguagem) e suas expec- ma que nenhuma classificação lógica de gêneros é
tativas (temáticas), é evidente que a sua classifica- possível. A demarcação dela é sempre histórica,
ção restringe-se a universos culturais delimitados. quer dizer, só vale para um momento específico
Por mais que as empresas jornalísticas assumam da história. Alguns gêneros só são definidos
hoje uma dimensão transnacional em sua estrutura retroativamente e não são reconhecidos como tal
operativa, permanecem contudo as especificidades pelos produtores originais. Gêneros precisam ser
nacionais ou regionais que ordenam o processo de estudados, sobretudo, como um fenômeno históri-
recodificação das mensagens importadas. Tais co. Gêneros atuais passam por fases ou ciclos de
especificidades não excluem as articulações popularidade, como o ciclo de filmes de desastre
interculturais que muitas vezes subsistem através nos anos setenta. Sem perder a história de vista,
das línguas e são prolongamentos do colonialismo” MELO (1985) faz uma revisão de literatura sobre
(MELO, 1985). as classificações dos gêneros jornalísticos em vári-
os países europeus, além das classificações norte-
Existem muitos gêneros nos meios de co- americana, hispano-americana e brasileira. Em re-
municação de massa. Esse número depende da lação a classificação brasileira, o autor nos informa
que o único pesquisador a se preocupar com o
complexidade e diversidade da sociedade. Para uma assunto foi Luiz Beltrão, que classificou os gêneros
sociedade, uma coisa pode ser um gênero e, para jornalísticos em três categorias (informativo,
outra, um subgênero ou ainda, para uma terceira, interpretativo e opinativo), com as funções de in-
poderá ser supergênero. O mesmo texto pode per- formar, explicar e orientar o público leitor. Para
tencer a gêneros diferentes em países e tempos tam- Melo, Luiz Beltrão não se ateve à natureza de cada
bém diferentes “No cinema, por exemplo, alguns um (estilo/estrutura, narrativa/técnica de
gêneros estão baseados em conteúdos de história codificação), mas obedeceu ao senso comum que
rege a própria atividade profissional, estabelecen-
(o filme de guerra), outro é obtido emprestado de do limites e distinções entre as matérias.”
literatura (comédia, melodrama) ou de outras mídia
(o musical). Enquanto outros estão baseados em Convencido de que é impossível fazer uma
estado artístico (o filme de arte), identidade racial classificação universal, já que os gêneros são de-
(cinema afro), localização (o ocidental) ou orien- terminados pelos modos de produção dos jornalis-
tação sexual.” Concluímos que os gêneros são de- tas e têm uma identificação com a questão cultu-
terminados pelo modo de produção jornalística e ral de cada nação, MELO propõe uma classifica-
por manifestações culturais de cada sociedade. ção dos gêneros jornalísticos brasileiros. Essa sua
Determinar uma classificação universal é impossí- nova classificação obedece a dois critérios. Primei-
vel, uma vez que estão sempre em mudança, o que ramente, ele agrupa os gêneros em categorias que
se pode fazer é adaptá-la da melhor forma possí- correspondem à intencionalidade determinante dos
vel para cada comunidade. (STAM apud relatos, nas quais podem ser identificadas duas
CHANDLER, 1997). vertentes: 1) a reprodução do real, através da qual o
jornalista comunica os fatos noticiosos (jornalis-
Os gêneros e as relações entre eles mudam mo informativo), o que significa descrevê-los
com o passar do tempo. Gêneros novos e jornalisticamente a partir de dois parâmetros – o
subgêneros emergem e outros desaparecem, en- atual e o novo, ou seja, a observação da realidade
quanto outros per manecem duradouros. e a descrição do que é apreensível à instituição
TODOROV nos informa que um gênero novo

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Ciências, Humanidades e Letras

jornalística; 2) leitura do real (jornalismo opinati- venção não há verdadeiro distanciamento. Nem
vo), que significa identificar o valor do atual e do espacial, nem temporal, nem cultural, nem socioló-
novo na conjuntura que nutre e transforma os pro- gico. Até porque, como salienta Paul Riccoeur ‘nar-
rar é já refletir sobre os acontecimentos narrados´.
cessos jornalísticos, ou seja, a análise da realidade O jornalista transporta, em si , a Lebenswelt (mun-
e a sua avaliação dentro dos padrões jornalísticos, do vivido ou vivência do mundo), conceito que
ou em outras palavras, a versão dos fatos construída Habermas retirou da fenomenologia de Husserl,
por meio de argumentações, em favor de determi- pra designar aquele nível profundo de um grupo,
nadas idéias e valores. de uma coletividade, onde se enraízam linguagens,
normas e comportamentos comuns. Inscreve-se,
O segundo critério usado por MELO para pela sua própria praxis, na realidade que descreve
e estabelece, com o jornal para qual escreve, uma
descrever os gêneros jornalísticos busca identifi- relação mimética que o conduz a reproduzir o léxi-
ca-los a partir da natureza estrutural dos relatos co e os valores desse mesmo jornal. Atua, assim,
observáveis nos processos jornalísticos. Não se duplamente, como protagonista de um discurso
referindo apenas à estrutura do texto ou das ima- dialógico e como parte de um coletivo profissional
gens e sons que representam e reproduzem a reali- com regras e projetos próprios” (REBELO, 2000,
dade, e sim, à articulação que existe do ponto de p. 17-8).
vista processual entre os acontecimentos (real), sua
expressão jornalística (relato) e a apreensão pela O próprio verbete sobre objetividade do
coletividade (leitura). Partindo dessas premissas, Manual de Redação do Jornal Folha de São Paulo
o autor propôs a sua classificação: gêneros infor- não deixa dúvida sobre esse mito:
mativos (nota, notícia, reportagem e entrevista) e
gêneros opinativos (editorial, comentário, artigo, “Objetividade - não existe objetividade em jornalis-
resenha/crítica, coluna, crônica, caricatura e car- mo. Ao redigir um texto ou ao editá-lo, o jornalista
toma uma série de decisões que são em larga medi-
ta).
da subjetivas, influenciadas por suas posições pes-
soais, hábitos e emoções. Isto não o exime, porém,
Um problema, no entanto, que podemos da obrigação de procurar ser o mais objetivo possí-
identificar na classificação de MELO é a questão vel. Para retratar os fatos com fidelidade, reprodu-
do real, o que ele considera “real”. O que é repro- zindo a forma em que ocorrem bem como suas
duzir e ler o real para os leitores. Será que o jorna- circunstâncias e repercussões, o jornalista deve
lista quando está perto do real, para apreendê-lo, procurar vê-los com distanciamento e frieza, o
que não significa apatia nem desinteresse....”
não modifica de uma forma ou de outra esse real
(MANUAL, 1987)
quando passa para os seus leitores? Podemos afir-
mar que existe objetividade jornalística? Não exis-
te interferência do profissional de imprensa no
Gêneros jornalísticos
retratamento desse real? Podemos concluir, sem
dúvida nenhuma, que a relação com o real não
Para que servem os gêneros jornalísticos?
permite uma reprodução fiel do mesmo, entretan-
Com certeza servem para orientar os leitores a le-
to também a leitura do real não será a mesma. Acre-
rem os jornais, permitindo-os identificar as formas
ditamos que ninguém consegue reter na mente to-
e os conteúdos dos mesmos. Servem, também,
dos os detalhes de um acontecimento. Podemos
como um diálogo entre o jornal e o leitor, pois é
concluir que a objetividade jornalística é um mito,
através das exigências dos leitores que as formas e
uma utopia na busca da tão sonhada “verdade”
os conteúdos dos jornais se modificam. Os gêne-
jornalística.
ros servem ainda para identificar uma determina-
da intenção, seja de informar, de opinar, de inter-
“O jornalista não é aquele sujeito exterior e distan-
te, armado de uma independência, de uma neutra- pretar ou de divertir. Podemos afirmar que os gê-
lidade sem falha. Entre ele e o objeto da sua inter- neros são determinados pelo estilo que o jornalis-

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Revista SymposiuM

ta emprega para expressar para o seu público os por Marques Melo, tem que ser deixada de lado.
acontecimentos diários. A maioria dos jornais bra- Um outro conceito que temos de abdicar é a ques-
sileiros divide os gêneros jornalísticos em quatro tão do gênero que alguns autores definem como
grandes grupos: informativo, com a preocupação de interpretativo, que teria a função de aprofundar as
relatar os fatos de uma forma mais objetiva possí- notícias. Se estamos interpretando, automaticamen-
vel; interpretativo, que, além de informar, procura te estamos opinando, pois acreditamos que os tex-
interpretar os fatos; opinativo, expressa um ponto tos são manipulatórios, possuem pontos de vistas.
de vista a respeito de um fato; entretenimento, que Segundo FIORIN (2000, p. 52), “a finalidade últi-
são informações que visam à distração dos leito- ma de todo ato de comunicação não é informar,
res. mas é de persuadir o outro a aceitar o que está
sendo comunicado. Por isso, o ato de comunica-
Essa divisão serve para identificarmos ção é um complexo jogo de manipulação com vis-
como os fatos jornalísticos são processados, ser- tas a fazer o enunciatário crer naquilo que se trans-
vindo como uma ferramenta inquestionável para mite’’. Feitos esses esclarecimentos, vamos, então,
que os leitores se orientem na procura das infor- a nossa mencionada proposta de descrição.
mações desejadas, pois, quando lemos um editori-
al, por exemplo, devemos ter consciência de que Gêneros na comunicação jornalística
estamos recebendo um ponto de vista da empresa
jornalística, o mesmo acontecendo com um artigo Jornalismo
ou uma crônica. Entretanto os jornais, além de
serem canais eficientes para transmissão de infor- - Gêneros informativos
mação, servem também como prestadores de ser- Nota, notícia, reportagem, entrevista, título e cha-
viços, como suportes para publicidade e propagan- mada.
da, entre outras utilidades; a fim de orientar os lei-
tores para essa multiplicidade de utilidade que os - Gêneros opinativos – (totalmente subjetivos,
órgãos de comunicação possuem, propor aqui um com opiniões de colaboradores e editores).
novo rearranjo para os gêneros jornalísticos. Editorial, comentário, artigo, resenha ou crítica,
coluna, carta, crônica.

Uma proposta de organização - Gêneros utilitários ou prestadores de servi-


ços – roteiro, obituário, indicadores, campanhas,
A classificação dos gêneros decorre das “ombudsman”, educacional (testes e apostilas).
necessidades e das exigências dos leitores e, ao
mesmo tempo, da organização e do desenvolvimen- - Gêneros ilustrativos ou visuais – engloba grá-
to das empresas jornalísticas (não esqueçamos que, ficos, tabelas, quadros demonstrativos , ilustra-
até bem pouco tempo, o jornalismo era considera- ções , caricatura e fotografia.
do um gênero literário). A nossa proposta de
mapeamento dos gêneros resulta, sobretudo, de um Propaganda
“diálogo” direto com a classificação feita pelo pro-
fessor Marques Melo. A primeira questão que deve - Comercial, institucional e legal.
ser analisada é a divisão de alguns autores na clas-
sificação dos gêneros, em informativos, opinati- Entretenimento
vos e interpretativos. Como já foi dito, considera-
mos aqui a objetividade jornalística como um mito. - Passatempos, jogos, história em quadrinhos, fo-
Então, a divisão baseada na reprodução do real (in- lhetins, palavras cruzadas, contos, poesia, chara-
formativo) e na leitura do real (opinativo), proposta das, horóscopo, dama, xadrez e novelas.

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Ciências, Humanidades e Letras

A inclusão dos títulos e das chamadas como A fotografia, que o Jornal Folha de São Pau-
subgênero dos gêneros informativos, e da fotogra- lo já classifica como um gênero jornalístico, é um
fia como um componente dos gêneros visuais, que casamento perfeito da palavra e da imagem, onde
não constam nas classificações que serviram de a imagem, às vezes, fala mais do que a própria re-
subsídio para o nosso estudo, deveu-se, sobretu- portagem. É a fotografia um recorte da realidade
do, ao reconhecimento de sua grande importância oferecendo aos leitores a oportunidade de desen-
no jornalismo. Os títulos, por exemplo, falam por volver sua capacidade de interpretar uma imagem
si mesmos, despertando o interesse do público para visual que representa esse pedaço da realidade: “a
as matérias jornalísticas. Como sabemos, a maio- fotografia tem a capacidade de reproduzir com ta-
ria dos leitores se limita somente à leitura de títu- manha fidelidade o mundo exterior, uma capaci-
los, e são os títulos que vão motivar a lerem ou dade advinda de sua técnica, o que outorga a ela
não as notícias contidas nos jornais. As chamadas um caráter documental e a coloca como o mais
que definimos como um resumo da notícia, colo- exato e íntegro processo de registro da vida social”
cada na primeira página ou na capa de um cader- (Freunf, apud Pierre, 1999). Ou ainda:
no, com esclarecimento sobre a seção ou página
em que pode ser lida, têm o mesmo objetivo dos “A fotografia fornece provas (...). Uma fotografia
títulos, incentivando os leitores para a leitura das passa a ser uma prova incontroversa de que uma
notícias. Os títulos de primeira página destacam determinada coisa aconteceu (...) o que exigimos
primariamente à fotografia: que registre, diagnosti-
as notícias que foram consideradas pela empresa
que, informe (...). As imagens fotográficas são, de
jornalística como as mais importantes. Os títulos fato, capazes de usurpar a realidade, porque, antes
de mais nada, uma fotografia não é só uma ima-
“Representam manifestações constantes do traba- gem (no sentido em que a pintura é uma imagem),
lho plástico da linguagem no mundo moderno. O uma interpretação do real; é também uma marca,
arranjo gráfico do jornal associa-se, aliás, à disposi- um rastro direto do real, como uma pegada ou
ção fonética, sintática e semântica das formas lin- uma máscara mortuária. Enquanto uma pintura,
güísticas para constituírem em conjunto uma ma- ainda que conforme aos padrões fotográficos da
nifestação particularmente complexa, ao mesmo semelhança, nunca é mais do que a afirmação de
tempo estética e estratégica, assegurando uma uma interpretação, uma fotografia nunca é menos
multiciplidade de funções comunicacionais, nome- do que o registro de uma emanação (ondas de luz
adamente poéticas, fáticas, referenciais, apelativas refletidas pelos objetos), um vestígio material da-
e metalinguísticas. Os títulos de imprensa recor- quilo que foi fotografado e que é inacessível a qual-
rem, no entanto, tanto à plasticidade verbal como à quer pintura”. (Sontag, apud Santaella, 1999: 122).
plasticidade gráfica. É, alias, através do grafismo
que a retórica discursiva se abre a recursos
A transferência da caricatura, da qual a
semióticos extralinguísticos, com particular relevo
para a imagética. Dos recursos da imagética, os charge faz parte, do gênero opinativo para o gêne-
títulos utilizam, sobretudo, o material fotográfico, a ro ilustrativo deve-se ao seguinte: a caricatura,
disposição gráfica da mancha da página, o como sendo uma representação gráfica, ocupava o
cromatismo, a disposição dos grafemas, o design lugar que ocupa hoje a fotografia (antes da inven-
topográfico da paginação. É por isso uma prática ção dessa linguagem), com desenhos mostrando a
semiótica que sintetiza de modo particularmente realidade abordada pelas matérias jornalísticas da
original todos estes domínios, conferindo ao seu
época. A caricatura, normalmente, apresenta uma
estudo uma extrema complexidade...Os títulos de
imprensa, graças ao próprio processo de figuração, imagem em forma satírica ou humorística e não
constituem um verdadeiro texto dentro do texto. depende de texto para explicação, e a atualidade é
Fazem ao mesmo tempo ver e esconder o texto a fonte de inspiração dos seus produtores. Entre-
para que dirigem o olhar do leitor. São uma espécie tanto, nem tudo que sai nas caricaturas tem o efei-
de véu transparente, mostram o que escondem to de opinar, por isso não as consideramos um gê-
como escondem aquilo que dão a ver” ( Rodrigues, nero opinativo: «muitas vezes ela perde essa fun-
1997).
ção destruidora (crítica e sátira social e política),

Universidade Católica de Pernambuco - 52


Revista SymposiuM

para servir como instrumento de promoção de per- turais de cada sociedade. Realizar uma classifica-
sonagens desconhecidas do público, cujo objetivo ção universal é praticamente uma tarefa impossí-
é tornar rápida a sua popularização. É o caso de vel, uma vez que eles estão sempre em mudança,
muitos artistas e políticos iniciantes que se tornam em transformação. O que pode ser um gênero hoje
conhecidos através dos traços satíricos utilizados amanhã não será mais ou o que pode ser um gêne-
pelos caricaturistas” (SILVA, 1992, p. 9). ro em um determinado país não é em uma outra
sociedade. Gêneros aparecem, mudam e desapa-
Outro ponto que temos que explicar é a recem, conforme o desenvolvimento tecnológico
inclusão do folhetim na categoria de subgênero do e cultural de cada nação e da empresa jornalística.
gênero do entretenimento. Os folhetins, apesar de O que é politicamente correto é adaptá-los da
não serem muito comuns nos dias de hoje, em nossa melhor forma para suprir as necessidades dos lei-
mídia, já foram muito utilizados. Os folhetins são tores e dos profissionais de imprensa.
capítulos, fragmentos de romance ou de novelas,
que são publicados diariamente nos jornais, com o O cientista Boris Tomashevsky (apud
objetivo de manter o interesse do leitor pelo veí- Chandler, 1997) afirmou que nenhuma classifi-
culo de comunicação. Já a campanha incluímos cação lógica de gêneros é possível. A demarca-
como um formato dos gêneros prestadores de ser- ção deles é sempre histórica, quer dizer, só está
viços, que é um conjunto de ações cujo objetivo é correto para um momento específico da história
beneficiar a população no esclarecimento ou na e eles precisam ser estudados como um fenôme-
prevenção de um determinado assunto. Por Exem- no histórico. A nossa classificação é mais uma
plo, o Jornal da Tarde, de São Paulo, durante as in- forma de pensamento; acreditamos que contri-
vestigações dos vereadores acusados de corrupção bua para mais uma etapa nos estudos dos gêne-
na Câmara Municipal, realizou uma campanha ros no jornalismo impresso, uma vez que o pro-
intitulada: “eu tenho vergonha dos vereadores cor- fessor Marques Melo afirmou que enfrentar essa
ruptos de São Paulo”. questão representa o maior dilema dos que se
dedicam a estudar o jornalismo nas universida-
Incluímos também, como um subgênero des brasileiras. Também acreditamos que nenhum
dos gêneros prestadores de serviços, apostilas e trabalho é definitivo e fechado sobre um deter-
testes que têm o objetivo de prestar um serviço à minado assunto, e as conclusões dependem da
sociedade, uma vez que são os estudantes e interpretação e do repertório de vida de cada
prestadores de concursos os maiores interessados pessoa e do seu engajamento na sociedade em
nesses materiais. Outro ponto também foi a exclu- que está inserida. Também não podemos esque-
são dos gêneros interpretativos, acreditamos que a cer que o conhecimento é um processo
análise, o perfil, a enquete e a cronologia são com- evolutivo, que está sempre em mutação.
ponentes, ou melhor, são complementos de uma
boa reportagem. As propagandas, nós não as divi- Nas discussões sobre gêneros jornalísticos,
dimos como fazem alguns grupos de estudo. Em o que mais importa é que eles sirvam de estilos de
se tratando de propagandas, elas carregam, direta organização para os profissionais da mídia, com o
ou indiretamente, uma grande carga ideológica. dever de informar os seus leitores de uma forma
mais neutra possível, visando à construção de uma
sociedade justa e transparente, seja opinando, di-
Conclusão: retomando os pressupostos vertindo, orientando, criticando, esclarecendo ou
de outra forma qualquer. O que importa é que o
Como vimos, os gêneros jornalísticos são jornalismo cumpra com a sua função social, ou seja,
determinados pelo modo de produção dos meios deve estar a serviço da sociedade, e não de grupos
de comunicação de massa e por manifestações cul- econômicos, sociais ou religiosos.

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Ciências, Humanidades e Letras

Pequeno glossário Editorial – texto que expressa a opinião oficial do


jornal sobre os acontecimentos de maior repercus-
Análise – explora diversos aspectos de fatos rele- são no momento.
vantes e recentes, seus antecedentes e conse-
qüências. É sempre assinado. Encartes – são aquelas propagandas que cobrem
toda a página dos jornais ou está em anexo, tendo
Artigo – traz interpretações ou opiniões de pesso- mais destaques do que os demais anúncios.
as que não precisam ser necessariamente jornalis-
tas. É sempre assinado. Enquete – pesquisa de opinião onde são ouvidas
várias pessoas sobre um determinado assunto.
Avulsas – realizados pelas agências de publicida-
de e propaganda. Entrevista – permite ao leitor conhecer opiniões
e idéias das pessoas envolvidas no ocorrido ou em
Calhau – propaganda da própria empresa um determinado assunto
jornalística para preencher um espaço vazio no jor-
nal. Indicador – informações úteis sobre órgãos go-
vernamentais, empresas, instituições, países ou
Caricatura – imagem de opinião em forma satíri- sobre determinado assunto especializado, como
ca ou humorística, por meio da qual a opinião se mercado econômico: ações, dólar, fundos.
manifesta de forma explícita.
Nota – relato de um acontecimento.
Carta ou coluna do leitor – é um recurso em que
o leitor pode expressar seus pontos de vista e opi- Notícia – puro registro dos fatos, mas sem entre-
niões. vistados.

Chamadas – resumo da notícia colocado na pri- Obituário – informações sobre óbitos registrados
meira página ou na capa de um caderno, com es- pelos cartórios especializados, publicados em co-
clarecimentos sobre a seção ou página em que pode lunas específicas.
ser lida.
Ombudsman – profissional pago pela empresa
Classificados – anúncios realizados pelo cidadão para representar os interesses dos seus leitores.
comum.
Perfil – tipo de biografia sobre um dos persona-
Coluna – espaço no jornal onde uma pessoa es- gens da reportagem.
creve regularmente.
Reportagem – relato ampliado de um aconteci-
Comentário – pequeno artigo interpretativo de um mento. O jornalista vai ao local para apurar os
fato. fatos.

Crônica – tem como característica tratar de as- Resenha ou crítica – apreciação de um trabalho
suntos cotidianos de maneira mais literária. É sem- intelectual ou de um desempenho artístico com o
pre assinada. objetivo de orientar o público leitor.

Cronologia – trata-se de rememorar os eventos Roteiro – informações de “shows”, espetáculos,


passados que dispensa o texto. televisão e cinema.

Universidade Católica de Pernambuco - 54


Revista SymposiuM

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Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 55


Ciências, Humanidades e Letras

O chat como gênero digital perspective, new forms of communication belong


to differentiated spheres of human activities which,
Maria do Carmo Martins Fontes * in turn, lead to new discourse genres. Hence, it is
possible to trace their compositional features both
at their conveyance level (the medium) and at their
Resumo formal level (message organising modes). To
proceed to the mapping, two chat sessions were
O objetivo deste artigo é fazer um mapeamento selected from an English online course held in 1998
preliminar daquilo que chamamos de gênero and conducted by researchers at PUCSP.
conversacional digital: o chat. Partindo do pressu-
posto de que para cada gênero é possível estabele- Key words: digital genres, digital media, chat
cer seu gênero de base (formatador de mensagens)
e os gêneros a ele relacionados, este trabalho faz 1. Introdução
um levantamento sobre os chats existentes e pro-
cura constituir uma base de análise desses gêne- Nos últimos dez anos, temos observado
ros. Desde o aparecimento das CMCs, vem-se de- que, além da incorporação de novos signos
senvolvendo uma enorme quantidade de ferramen- semióticos, vem ocorrendo uma revolução na for-
tas comunicacionais e programas de computador ma como esses elementos circulam: o meio digital
que permitem trocas de mensagens de forma tem servido de mediação para trocas entre diver-
síncrona. Sob uma perspectiva bakhtiniana, essas sos setores da sociedade contemporânea, ocupan-
novas formas pertencem a uma esfera diferencia- do um lugar de destaque na condução e organiza-
da de atividade humana a qual, por sua vez, leva à ção de um grande número de atividades humanas.
constituição de novos gêneros. Essa noção torna A proposta deste artigo é fazer um levantamen-
possível recuperar as características composicionais to preliminar das características de uma dessas for-
do gênero chat em dois níveis: o da mídia de circu- mas de trocas interacionais mediadas pelo compu-
lação (digital) e o da sua estruturação formal (for- tador – os chamados chats –, que ocorrem na Rede
mas de organização das mensagens). Os dados ana- Mundial de Computadores (World Wide Web), de
lisados para essa tarefa foram obtidos num curso modo a conhecer melhor suas particularidades e
de inglês oferecido a distância, em 1998, por pes- contribuir para uma discussão bakhtiniana de no-
quisadores da PUCSP. vos gêneros discursivos que vêm se constituindo
e, conseqüentemente, transformando as relações
Palavras-chave: gêneros digitais, mídia digital, chat entre os homens.
Para analisar os impactos da digitalização nas
Abstract interações humanas, a noção bakhtiniana de gêne-
ros do discurso é indispensável. Bakhtin1 define
The main aim of this study is to carry out a os gêneros discursivos a partir do uso concreto da
preliminary mapping of what we define as a digital linguagem nas diferentes esferas de atividade hu-
conversational genre: the chat. Under a bakhtinian mana que, por sua vez, estabilizam algumas for-
mas enunciativas que passam a funcionar como
___________________ característica de uma determinada comunidade e,
* Bolsista do CNPq, doutoranda no Programa de Lingüística ao mesmo tempo, como orientação para a produ-
Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUCSP. ção de novos textos que passam ser reconhecidos
Sua linha de pesquisa está voltada para questões de ensino- como pertencentes àquela esfera. Assim, essa no-
aprendizagem em contextos a distância. Trabalhou como pro- ção de gêneros como instrumentos de regulação
fessora convidada no Projeto NAVE (Novos Ambientes Vir-
das produções discursivas permite que se faça uma
tuais de Aprendizagem), desenvolvido junto ao Programa de
caracterização adequada das formas e usos da lin-
Pós-graduação em Educação da PUCSP, em parceria com a
IBM e o Ministério da Ciência e Tecnologia. guagem para cada texto produzido em determina-

Universidade Católica de Pernambuco - 56


Revista SymposiuM

do contexto social, sem que a riqueza da vida hu- atividade especificamente humana, a reação transformadora
mana tenha de ser abstraída, para que se chegue a humana sobre a natureza, a produção(...) Mas o cérebro
uma descrição completa dos gêneros existentes. acompanhou a par e passo a evolução da mão”. Portan-
Dentro dessa perspectiva de análise, a comu- to, se uma simples ferramenta usada numa ativida-
nicação mediada pelo computador (CMC) pode ser de produtiva, como é o caso do uso de um macha-
vista como uma nova forma de mediação comuni- do para cortar lenha, altera profundamente a orga-
cativa que engendra novas atividades humanas, nização da sociedade e os processos cognitivos em
novas comunidades discursivas e, portanto, novas geral, a mediação digital das interações humanas
estruturas enunciativas que merecem ser avalia- revoluciona radicalmente a forma como se dá a
das e investigadas como fruto do desenvolvimen- organização e a produção das trocas de mensagens
to humano. O meio digital, como todas as mídias entre indivíduos e, portanto, dentro da visão
desenvolvidas pelo homem no curso de sua histó- bakhtiniana, entre os diversos grupos sociais.
ria, reflete, incorpora e transforma as necessida- O uso de uma rede comunicacional com
des das organizações sociais de nossa época, suas uma base de transferência digital surgiu da neces-
formas de produção e recepção de textos e seus sidade de troca de informações militares4 . À me-
modos de organização de mensagens. dida que essa tecnologia foi popularizando-se, os
Do ponto de vista semiótico, conhecer essas seus usuários foram-se diversificando e criando
transformações a partir de suas características ge- novos usos para a mídia digital como meio de co-
nérico-discursivas é uma das formas de recuperar municação. Nessa medida, seguindo a tradição
a função social de todo signo, isto é, de mediar as bakhtiniana de análise, podemos afirmar que uma
relações humanas em toda a sua complexidade. esfera de atividade específica – troca de dados em
âmbito militar - gerou formas discursivas particu-
2. A visão bakhtiniana de gêneros: a mídia lares que se estabilizaram e passaram a caracteri-
como gênero zar um determinado tipo de troca interacional.
Por essa razão, os gêneros conversacionais
Para Bakhtin “(os) signos só podem aparecer em um em meio digital têm de ser analisados pelas propri-
terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um edades inerentes ao meio em que circulam, isto é,
terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido o computador e suas redes comunicacionais.
usual da palavra: não basta colocar face a face dois homo A primeira característica derivada desse
sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É meio é a sua forma de organização, isto é, a forma
fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente de documentos digitais. A idéia de documento, ini-
organizados, que formem um grupo (uma unidade social): cialmente, recupera a idéia de registro, de possibi-
só assim um sistema de signos pode constituir-se.”2 lidade de rastreamento, tornando possível um
acúmulo de informações de maneira organizada,
Em todas as ações humanas, há algum tipo sobre cada produção, em cada momento de sua
de mediação semiótica que organiza a produção e circulação. Tudo o que é produzido em meio digi-
a recepção de mensagens. A linguagem ou, mais tal é nomeado com informações precisas que ca-
especificamente, o signo semiótico medeia as racterizam um documento único, capaz de ser re-
atividades humanas permitindo que sejam cuperado a partir delas.
reproduzidas e reinventadas as mais diversas for- Isso só é possível por ser essa a maneira de
mas de atuação do homem para que ele evolua e se “operar” trocas comunicacionais mediadas pelo
transforme a si mesmo e o seu entorno. computador, lembrando que os próprios mecanis-
A digitalização altera objetivamente a for- mos que estruturam a organização dos dados no
ma como os signos aos quais se refere Bakhtin cir- meio digital tiveram por base a noção de “arqui-
culam e como as atividades sociais ligadas a eles vos” e “pastas”, ambos diretamente relacionados
são afetadas. Como lembraria Engels3 , “(a) especia- à noção de textos-documento. Em função dessa
lização da mão significa ferramenta, e esta pressupõe a estrutura, fica mais fácil a reprodução de percur-

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 57


Ciências, Humanidades e Letras

sos, a identificação de autoria e as alterações/inclusões feitas num dado documento.


Para permitir uma visualização desse registro, apresentamos um recorte feito a partir do registro de uma
sessão de bate-papo num curso de inglês a distância5 , na qual um dos participantes informa aos outros a
necessidade de viajar a negócios:

(22:28:39) STD2: maria, I am leaving now...I have a lot of work because I am going to
curitiba this week...
(22:29:00) Maria : So, u’ll be away... That’s a pity.
(22:29:20) Maria : We’ll miss u at the chat bar....
(22:29:28) STD2: I’ll be back!!!!!
(22:29:32) Maria : U and your good humour...

Podemos observar que a mensagem foi enviada às 22:28:39 pelo aluno STD2 e “respondida” pela
professora (Maria) cerca de um minuto depois. O fato de dessas informações estarem quase sempre presen-
tes ou, pelo menos, de serem sempre recuperáveis, faz com que a nossa recepção dessa mensagem seja feita
de tal forma, que possamos dar prioridade ou não à resposta pedida, saber se estamos ou não em atraso
com as informações e quem gerou a mensagem.
A segunda característica dos gêneros conversacionais digitais é a possibilidade de junção de múlti-
plos códigos, de maneira simultânea e complementar: fica reforçada a metáfora semiótica do signo adqui-
rindo múltiplas formas, deixando de ser apenas palavra (litteris). Essas novas formas impõem, por sua vez,
novas maneiras de mediação e de cognição que, necessariamente, transformam seu modo de recepção.
Como tudo são dígitos, imagens (estáticas ou em movimento), sons, textos e gráficos passam a compar-
tilhar a tela do computador, revelando cada um a seu modo os significados pretendidos por seus autores. A
recepção também é afetada; nesse caso, não há como “ler” um texto na tela sem percebê-lo, enquanto
construção hipertextual, que está em movimento e em diálogo com as outras linguagens que o constituem.
Tomemos como exemplo a inclusão de imagens num hipertexto em uma mensagem da mesma sessão
de bate-papo:

(21:46:49) STD2 : ok. wait a min


(21:47:07) Maria : Yes, I’ll take your word for it, I mean I trust u.
(21:47:35) STD2: http://www.netsrq.com/~access/
(21:48:00) Maria : Ok, thanks. I’ll have a go. Later at night, I mean.

O hipertexto é, neste caso, parte integrante do sentido pretendido pelo enunciador cujo tema de discus-
são era a respeito de um site que continha imagens. Em outras palavras, como leitores a posteriori e extrapostos
a essa mensagem, não saberemos o que o aluno STD2 entende como sendo “imagens interessantes”, a
menos que façamos uma visita à página indicada. Entretanto, para os participantes da interação, o site
indicado faz parte do sentido proposto pela sua autora e uma série de informações são imediatamente
acionadas a partir desse conhecimento a respeito dela.

Universidade Católica de Pernambuco - 58


Revista SymposiuM

Finalmente, a terceira característica é a possibilidade de intervenção do receptor na construção do


significado. Por meio do recurso de “copiar e colar” e da inserção de hipertextos, é possível que um leitor
inclua, ou exclua, partes que considere mais ou menos importantes. As idéias bakhtinianas de dialogismo –
a eterna situação de troca entre enunciados gerando significados – e heteroglossia – a existência de várias
‘línguas’ compondo um todo – adquirem uma forma particularmente visível quando nos colocamos diante
de produtos digitalizados.
Novamente, a título de ilustração, podemos verificar esse processo numa troca de mensagens ocorrida
no mesmo bate-papo educacional:

(23:27:52) STD1 fala paraSTD2: Please, in 23:25:32 is read “I would LIKE to go”...
(23:28:06) Maria : I can’t remember the title of the film either. I just remember the name
of the actress Bo Derek.
(23:28:30) STD1 fala para Maria: Tks for Carlsberg....;-]

Vemos que o aluno STD1 seleciona parte da mensagem de outro aluno (STD2), recortando-a e fazendo
com que ela seja parte integrante de seu enunciado. Fica aparente, portanto, a incorporação de discursos de
outrem na tessitura de um novo enunciado, além de permitir a intervenção de novos leitores tecendo
comentários sobre o trecho escolhido ou mesmo sobre a questão proposta por quem iniciou a mensagem.
Além disso, uma caractereta6 (emoticon, em inglês) é colocada no final do último enunciado de STD1 para
indicar um “sorriso”, fazendo com que ele seja percebido com uma entoação própria de agradecimento pela
oferta feita pela professora (Maria).
Em suma, os gêneros digitais sintetizam as múltiplas formas de comunicação humana num único meio
que reúne as condições para transformar todos os códigos a partir de uma mesma base: a digital. Sendo
assim, nossa discussão irá pautar-se por tentar fazer um mapeamento das várias formas existentes no meio
digital relacionadas a comunicações síncronas (bate-papos ou chats), de modo a trazer algumas contribui-
ções para o estudo e caracterização dos gêneros conversacionais digitais, buscando não incorrer em
reducionismos ou aproximações com outras formas de textos que empobreçam a complexidade desses
gêneros.

3. Levantamento do gênero bate-papo (chats)

Para darmos início à discussão do chat como gênero conversacional em meio digital, fizemos um
levantamento dos seus formatos encontrados na rede mundial de computadores (World Wide Web), até
junho de 2000.
A idéia aqui é olhar como, a partir da função social em que se inserem, as trocas interacionais orientam
a participação dos usuários e quais temáticas circulam em cada situação definida.
A tabela que se segue apresenta uma tentativa dessa caracterização. Não se trata, evidentemente, da
única forma possível de se proceder ao estabelecimento de características genéricas, tampouco a mais
exaustiva. Mas, levando-se em conta a mutabilidade e a flexibilidade inerentes ao meio digital, procuramos
seguir os critérios bakhtinianos de análise dos gêneros discursivos, que pressupõem a determinação da
esfera de atividade à qual essas interações se ligam.

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 59


Ciências, Humanidades e Letras

Tabela – Formatos de chat em função das esferas de atividade

Formatos Participantes e temáticas

Bate-papos educacionais alunos, professores, convid

em cursos a distânc
desenvolvimento de co
participantes numa dada ár
Bate-papos dentro de provedores múltiplos participantes; a l
usuários do provedor como

temas giram em torno


esporte, cotidiano etc).

Bate-papos de sites exclusivos participantes são admitido


usuários devem ser do prov

escolha de temas é mais ela

Bate-papos com personalidades em participantes são admitidos


sites de provedores e/ou exclusivos

os temas são referentes aos

ICQ/IRC: salas individualizadas participantes são seleciona


reguladas pelos usuários montada por cada usuário;
número ilimitado de partici
a seleção de temas é feit

Esse levantamento preliminar revela algumas características específicas da conversação em meio


digital. A primeira e mais evidente é a de que há uma possibilidade de seleção de vários tópicos de interes-
se, sem que haja a necessidade de pertencer a uma comunidade específica. Em termos bakhtinianos, pode-
ríamos dizer que uma nova esfera de atividade humana foi constituída em função não de interesses ou
conhecimento compartilhados apenas, mas, sim, de uma circunstância espaço-temporal que determina
uma convergência de interesses num dado momento. Trata-se, portanto, de uma situação de comunicação
concreta – daí porque a inadequação do termo “virtual” para defini-la, do meu ponto de vista.
Sendo assim, podemos agora passar para a avaliação do gênero conversacional digital no plano de
sua constituição enunciativa, isto é, do ponto de vista da sua forma genérico-composicional, que faz com
que o chat sirva de ferramenta reguladora que organiza as formas discursivas entre os participantes.

Universidade Católica de Pernambuco - 60


Revista SymposiuM

4. Características genéricas dos bate-papos digitais (chats)

Como pudemos observar no item anterior, o chat pode ser definido como um gênero participativo7 ,
cuja característica básica é a possibilidade de os interlocutores fazerem suas intervenções se e quando
quiserem e escolherem a quem se dirigem. Essa particularidade distingue os chats tanto dos gêneros orais
primários8 (trocas informais, utilizando a voz como meio) quanto dos que se utilizam da escrita como meio
(cartas pessoais, por exemplo). Por outro lado, podemos verificar, como nos demais gêneros interacionais,
que há inúmeras regularidades no modo e na organização da dinâmica discursiva, quando ela se dá de
forma síncrona em meio digital.

A primeira característica que marca essa dinâmica é a existência de uma “distância” entre os parti-
cipantes da interação, isto é, há, necessariamente, a ausência de contato corporal9 . Quando estamos distan-
tes da situação de troca, não podemos coletar informações importantes e constitutivas dos sentidos preten-
didos pelos interactantes, tais como o olhar, as pausas, os gestos, o tom de voz. O meio digital impõe,
então, que façamos uso de um gênero de discurso que permita a “transcrição” de emoções.
Vejamos como se opera esse discurso “descritor”:

(23:30:53) Maria fala para STD2: Right.


(23:30:56) STD2 : ahahahah
(23:31:04) STD1 fala para STD2: Yes, good observation, she never says “hi”...
(23:31:07) STD2 : very good maria!
(23:31:26) STD5 : Thank you for explanation!!!! :-))

Em primeiro lugar, é necessário estabelecer quem fala para quem, já que não se dispõe de recursos
visuais como o direcionamento dos olhos para interperlar este ou aquele participante. Esse direcionamento
pode ser feito opcionalmente dentro da sala de bate-papo, como podemos ver no primeiro enunciado
(Maria fala para STD2), mas precisamos indicar, clicando no nome da pessoa, a quem nos dirigimos.
Uma segunda característica dos bate-papos pode ser percebida a partir da comparação com as
trocas não mediadas pelo computador. Assim, ao contrário da situação face a face, no meio digital, os
interlocutores têm o poder de direcionar sua atenção a um determinado participante, tratar de assuntos
paralelos, interromper sua interlocução sem ter de negociar sua saída, incluir outras imagens e/ou textos
que julgue pertinentes à interação, entre outras ações. Assim, em 23:31:26, o aluno STD5 agradece à
professora uma explicação dada anteriormente, sem que se “rompa” ou “obstrua” a troca estabelecida – e
aparentemente privilegiada naquele momento - entre STD2 e a professora.
Em seu estudo sobre chats, Hilgert10 (2000) faz um extenso levantamento das características de
alternância de turnos que ocorre em interações síncronas mediadas pelo computador. Sua principal conclu-
são, no que concerne às especificidades das trocas em bate-papos, é a ausência da necessidade de negoci-
ação, típica das situações de troca face a face.
Outro dado que permite constituir as regularidades do gênero bate-papo está ligado às convenções
estabelecidas pelos usuários das salas acerca da utilização de recursos da escrita, para traduzir aspectos
orais (entoação, altura da voz, suavidade ou agressividade no tom). No recorte acima selecionado, vemos
dois desses recursos: o uso de (várias) exclamações (Very good, Maria! e Thank you for your explanation!!!!) e a
repetição grafada de onomatopéias (ahahaha).

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Ciências, Humanidades e Letras

Outra marca de pontuação bastante recorrente são as reticências, que traduzem, de certa forma,
um momento de hesitação do enunciador, ou ainda uma abertura a uma não-resposta por parte daquele que
está sendo, direta ou indiretamente, questionado. No caso selecionado, temos o enunciado Yes, good observation,
she never says “hi”... que pode significar uma tomada de consciência por parte do aluno STD1 sobre a forma
de estruturação discursiva (cumprimento/abertura) de um dos participantes do chat, a partir de uma
constatação feita pela aluna STD2 a respeito dessa estruturação recorrente.
A partir desse levantamento de características, poderíamos nos perguntar se o meio digital “criou”
essas formas de organização discursiva de forma totalmente inovadora e empírica.
Podemos fazer um paralelo dessa forma de organização discursiva com aquela presente no gênero
script teatral. Nele, como nos chats, faz-se uso do discurso escrito para se transmitirem sensações próprias
dos gêneros orais, tais como raiva, dor, felicidade e hesitação, que contam com o meio vocálico e todos os
seus recursos para a constituição do significado.
Na peça O Santo Inquérito, DIAS GOMES (1982) assim descreve aquilo que a platéia deveria “ver”
nos atores que interpretam Branca e Notário:

BRANCA
Estou de acordo.
NOTÁRIO
(Com ar zombeteiro) Ora viva!, enfim ela está de acordo com alguma coisa!

Podemos observar que, no caso do script, também o uso de pontuação (exclamações, parênteses etc)
e de nomes e parágrafos para distinguir “quem fala para quem” compõe o gênero de discurso que nos
permite “ouvir” e “ver” enquanto lemos. Portanto a mediação da escrita, usada sempre que há uma situa-
ção de distanciamento entre produtor e receptor do texto, deve fazer uso de marcas que permitam uma
apreensão a mais próxima possível da pretendida pelo autor do texto. Não houve, portanto, uma “criação”
de formas genéricas, mas, sim, a recuperação – e a necessária transformação – de algumas preexistentes,
mas que serão redefinidas em função das novas esferas em que passam a circular.
Assim é que, no caso dos chats, mantém-se a mediação escrita, mas o distanciamento não existe, à
medida que a digitalização do texto permite que ele seja transmitido praticamente no instante seguinte à
sua produção, como podemos ver pelos intervalos de tempo entre as mensagens (23: 31: 04 e 23: 31: 07,
resultando em 3 segundos). Essa possibilidade de resposta imediata os aproxima, então, das trocas orais
face a face.
Uma outra especificidade dos chats derivada do meio tecnológico em que circula é a possibili-
dade de se incorporarem ícones que representam ‘sorri’ ou ‘flerta com’ da mesma forma que se aciona
o enunciado fala para, ao clicar-se sobre uma das formas de intervenção disponíveis em algumas salas
de bate-papo.
Assim, os gêneros conversacionais digitais, e mais especificamente o chat, só são possíveis
dentro da idéia de documento digital, porque a troca mediada pela máquina exige que as trocas sejam
organizadas com base na identificação dos geradores de mensagens (quem ‘fala’/escreve para quem) e
em que momento da interação (hora/data). Em outras palavras, o enunciador precisa dirigir-se a
alguém, mas suas intervenções podem ser – e são – recebidas por todos os participantes de uma dada
interação.
Uma outra característica determinada tanto pelo propósito comunicativo do discurso quanto pela
natureza da comunidade discursiva é a informalidade das trocas, típica de situações cotidianas ou de gêne-

Universidade Católica de Pernambuco - 62


Revista SymposiuM

ros primários como propostos por Bakhtin. Essa sidade de se ‘escrever’ aquilo que se deve ‘falar’,
condição implica adaptações das for mas ou ainda de se ‘escrever’ aquilo que se deve ‘escu-
discursivas, tais como a adoção de linguagem tar’. Essa necessidade gerou mecanismos
icônica e das caracteretas, para complementar os sig- discursivos, tais como a colocação dos nomes dos
nificados propostos através das mensagens falantes entre parênteses, a inclusão de descritores
digitadas. de emoções e ações (‘grita com’, ‘gesticula’, ‘olhan-
Mas essa mesma informalidade da ‘fala’ do a platéia’, imagens de lábios sorrindo, as
digital é redimensionada pela possibilidade de caracteretas).
alternância simultânea de turnos sem que isso pre- Todos esses recursos só aparecem em função
judique ou ameace a face dos interactantes. Como do fato de estarem em meio digital, o único que
propõe Hilgert11, “os interactantes, uma vez garantida possibilita a combinatória de vários códigos: visu-
a eficiência comunicativa da interação, tendem a livrar-se al, televisual, sonoro, textual-grafado, hipertextual.
das coerções da codificação da língua escrita, recodificando-
a em favor de uma interatividade possível por meio da REFERÊNCIAS
manifestação escrita”. Privilegia-se a interatividade e
sua eficiência em detrimento da formalidade da lín- BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Lingua-
gua. Eu ainda acrescentaria que os gêneros digi- gem. São Paulo : Hucitec, [s. l.], 1992.
tais efetivamente redimensionam a ‘escrita’ den-
tro de seu espaço-tempo digital, de tal forma que, _______. El problema de los géneros discursivos.
embora mantendo algumas de suas características In:_______. Estética de la Creación Verbal :
fundantes como orientação (da esquerda para a Siglo Ventiuno, [s. l.], 1982.
direita) e seqüência (primeiro o sujeito), ela se
transforma radicalmente para servir ao propósito BRASIL, Ministério da Educação e Cultura.
de viabilizar as trocas mediadas no e pelo computa- Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e
dor. quarto ciclos do ensino fundamental, introdução.
Como podemos ver, os gêneros e as for- 1998.
mas discursivas que compõem o chat já existem e
não “aparecem” ou “desaparecem” em função de GOMES, Dias. O Santo Inquérito. Rio de Janei-
sua incorporação por um novo gênero. A transfor- ro : Civilização Brasileira, 1982
mação propiciada pelo gênero conversacional di-
ENGELS, F. Dialética da Natureza. São Paulo :
gital encontra-se na possibilidade que o documen-
Martins Fontes, 1979.
to digital tem de poder ser manipulado e transfor-
mado pelo seu receptor. Erickson, T. Social Interaction On The Net:Virtual
Assim, o meio digital permite que as interven- Community As Participatory Genre http://
ções, anteriormente feitas apenas de forma margi- w w w.pliant.org/personal/Tom_Erickson/
nal (notas à margem, grifos etc como hipertextos VC_as_Genre.html.
lineares), possam agora ser feitas de forma efetiva,
podendo ou não ser rastreadas em função da op- HILGERT, J. G. (2000) A Construção do texto
ção do autor. “falado” por escrito: a conversação na Internet In:
Vemos, assim, que estar inserido num meio di- PRETI, Dino (org). Fala e Escrita em Questão:
gital faz com que o chat recupere formas próprias projetos paralelos – NURC/SP. São Paulo :
do texto teatral, que é, por sua vez, fruto da neces- Humanitas, 2000.

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Ciências, Humanidades e Letras

NOTAS 6
Os emoticons são construções de expressões
faciais utilizando os recursos do teclado, como,
1
Bakhtin, M. El problema de los géneros discursivos por exemplo, sorrindo :)) [se olhado lateralmen-
(1982) te], ou triste : (( entre outros.

2
Bakhtin, M (Volochinov). Marxismo e Filosofia 7
Ver Erickson (2000).
da Linguagem (1977/1992: 35) - grifo do autor.
8
Estamos utilizando-nos da classificação pro-
3
Engels, F. Dialética da Natureza (1874/1979: posta por Bakhtin (1982).
26) - grifo do autor.
9
Na maioria das vezes e no nos casos aqui apre-
4
Ver Parâmetros Curriculares Nacionais - Terceiro e sentados, também há uma distância visual, mas
Quarto Ciclos do Ensino Fundamental- Introdução a tecnologia caminha no sentido de diminuí-la
com as câmeras já acopladas ao monitor.
5
O curso em questão foi ministrado entre feve-
reiro e maio de 1998 pela autora deste artigo. 10
Hilgert, J. G. (2000) A Construção do Texto “Fa-
Para maiores detalhes, a página pode ser lado” por Escrito: a conversação na Internet
acessada no endereço http://www.cogeae.uol.
com.br/sal. 11
Hilgert, J. G. (2000), A Construção do Texto
“Falado” por Escrito: a conversação na Internet,
página 53.

Universidade Católica de Pernambuco - 64


Revista SymposiuM

O gênero poesia digital the same time becomes movement. Though not
trying to establish a historical or national
Jorge Luiz Antonio * perspective, the mapping shows a variety of names
and kinds of digital poetry such as cyberpoetry,
Resumo infopoetry, hyperpoetry, interpoetry, virtual poetry,
digital poetry, videopoetry, etc.Within a perspective
Este comunicado tem o objetivo de traçar um bre- that relates poetry and image, a small sample of
ve panorama da poesia que circula nos computa- digital poetry will be analysed, in order to set their
dores (discos rígido e flexível), nos “cd-roms” e constituent elements: the micro-computer
nos “sites” das internet. Essa poesia pode ser cha- (hardware and software), digitality, infographic
mada de poesia experimental, nova poesia visual, image, poeticity and/or (il)legible word, pluri-
poesia digital, poesia internética ou nova poesia signification of the poetry-image relation, the
das mídias e, de certa forma, ela se constitui num conscious use of poetics by the computer
gênero, o gênero da poesia digital, como um dos operator-poet, intertextuality and hypertextuality,
muitos gêneros de poesias existentes (poesia ver- the similarity to the poetry-making process, the use
bal, visual, sonora etc.). Apresentamos um elenco of verbal-vocal-visual-digital language in its poetic
limitado de teóricos e poetas que criaram termos e function, etc.
o conceituaram para definir a nova poesia que vem
circulando nos meios eletrônico-digitais. Na ver- Key words: art and technology, cyberculture,
dade, este estudo representa uma reflexão sobre a digital literature, digital poetry.
poesia que vai tomando feição própria ao longo da
suas poucas décadas de existência.

Palavras-chave: arte e tecnologia, cibercultura,


literatura digital, poesia digital.

Abstract

This paper aims at mapping the constituent


elements of digital poetry as a genre whose
discourse has been adapting itself to the digital-
electronic media as a means of survival and
renewal of the existing visual and verbal
forms.Having as a goal the delimitation of poetry
in relation to other artistic digital forms, a brief
report on digital poetics (also called electronic art,
webart, cyberart, etc) is then necessary since it
traces back, to a certain extent, the route of the
word that evokes image, transforms itself in
visuality, changes into infographic image, and at

___________________
* Autor de Almeida Júnior através dos tempos (1983) e Cores, for-
ma, luz, movimento: a poesia de Cesário Verde (2001, no prelo),
professor de Literatura Portuguesa em escolas de ensino
superior, é doutorando em Comunicação e Semiótica pela
PUCSP e desenvolve pesquisa sobre poesia digital. Figura 1 - Elson Fróes - Orfeu

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Ciências, Humanidades e Letras

Alguns conceitos de apoio Cohen, Couchot e Donguy são três autores


que tratam da nova poesia de forma diferente:
“Eu tenho enfatizado os constituintes do texto como Cohen busca traçar os elementos constituintes do
gênero, as partes combinatórias que juntas produ- texto como gênero para compreender a literatura
zem efeitos sobre os leitores. Mas é necessário, tam- pós-moderna, Couchot aborda a formação da ima-
bém, enfatizar a noção de uma entidade, da conse-
gem digital e Donguy reflete sobre a criação poéti-
qüência dos tipos particulares de combinações,
misturas, discursos múltiplos, intertextualidade. Eles ca no computador.
se referem à voz, à visão, à audição, ao olfato, ao
movimento, etc. (...) Mas há outro significado no
qual a imagem do texto como parte de um gênero
é apropriada. Assim como o corpo humano tem
limites descritivos fisicamente, assim, também, tem
o texto. O corpo é dependente do oxigênio, para
introjetar dentro de si mesmo e expelir substâncias
que tornam possível sua preservação como uma
entidade física, da mesma forma que os textos de-
pendem da linguagem das formas de gênero a fim
de serem consideradas como entidades verbais. Isso
torna possível distinguir textos que, a qualquer
momento, são considerados desconhecidos ou mes-
mo gêneros conhecíveis dentre aqueles que são
conhecidos. Como o gênero desconhecido torna-se
conhecível? É que o conceito de gênero muda por-
que seus elementos constitutivos mudam é eviden-
te por si mesmo. O que não é evidente por si mes-
mo é como os constituintes de um texto começam
a enfraquecer a utilidade de um gênero, razão por
que os críticos oferecem substituições”, (COHEN,
1989, p. 20-22).

“A imagem é, daí, por diante, reduzida a um mosai-


co de pontos perfeitamente ordenado, um quadro
de números, uma matriz. Cada pixel é um
permutador minúsculo entre imagem e número,
que permite passar da imagem ao número e vice-
versa. Ao mesmo tempo, o pixel lançava as técnicas
numéricas de figuração numa lógica em total rup-
Fig. 2 - J. L. Antonio - Logo, logos, lago, algo.
tura com a lógica figurativa subjacente à imagem
gerada até então pelos procedimentos óticos (óti-
co-químicos e ótico-eletrônicos)”, COUCHOT A Figura 2, apresentada aqui, é um diálogo
(1993, p. 38-39). com os textos de Cohen, Couchot e Donguy. Tra-
ta-se de uma imagem construída com palavras e
“Com a generalização do computador que nos ha- pode servir de base para a primeira reflexão sobre
bitua a uma circulação espacial e não mais somen- o gênero poesia digital.
te temporal do texto, coloca-se o problema da cria-
ção literária e poética com a nova mídia, como o
computador, esperando a obra a ser colocada em Quais os constituintes da poesia digital aci-
CD-ROM, e em outros futuros suportes ma como gênero? As suas partes combinatórias
numerizados, integrando som, imagem e texto, rea- juntas produzem quais efeitos sobre os leitores?
lizando o sonho de Raul Haussmann, no início do Quais os tipos particulares de combinações, mis-
século XX, de uma arte verbi-voco-visual”,
turas, discursos múltiplos, intertextualidade que
DONGUY (1997, p. 257).
enfatizam a noção de entidade?

Universidade Católica de Pernambuco - 66


Revista SymposiuM

Cores, forma, luz, indicação de movimen- O objetivo deste artigo é mapear as poesi-
to, vestígios de palavras. Uma vaga semelhança com as digitais existentes e de certa forma, configurá-
uma planta, talvez pela escolha de “folhas” verdes las como um dos gêneros dos discursos da mídia
sobre um fundo lilás1 . Saber que essas “folhas” digital, partindo da idéia de gênero como uma
verdes são processamentos de imagem pelo com- combinatória de componentes. Há um certo risco
putador e que elas são as palavras logo, logos, lago e em usar o termo gênero, porque ele lembra
algo não ajuda a produzir o sentido que a imagem Aristóteles, poesia, prosa e drama, e assim por di-
pode sugerir ao leitor? ante. Lembra classificação já pronta. Mas, no pre-
sente estudo, nada está pronto, tudo se modifica a
O problema proposto cada novo “site”, a cada novo trabalho apresenta-
do num festival, num congresso, num grupo ele-
Já podemos afirmar que parte da poesia trônico como o WebArtery, por exemplo. Um work
existente nos livros, revistas e jornais de muitos in progress ou mesmo um work in process. Alguma coisa
países migrou para o disquete, para o “cd-rom”, que aconteceu, que acontece, que acontecerá, que
para o “hard disk” do computador ou para a “url” está acontecendo. As criações vão surgindo nas
de um “site”. Apesar disso, muitos livros, revistas mídias digitais, as reflexões geram ensaios, e tudo
e jornais continuam publicando trabalhos inova- isso vai formando um conjunto de teorias e práti-
dores e conservadores. Muitos “sites” contêm po- cas que vão tornando-se um todo hipertextual,
esias verbais, visuais, sonoras que passaram sim- interativo e multifacetado, como é próprio do sa-
plesmente a circular nos meios eletrônico-digitais, ber não somente digital.
sem muitas vezes sequer assimilar os que os novos Mapear a poesia digital como continuação
meios propiciam. da poesia oral, que era declamada ao som de ins-
Não há dúvida de que a poesia continua a trumentos antigos, como a lira e a flauta na Anti-
existir. E que a poesia se adaptou, mesmo, aos no- güidade Clássica, é estabelecer um percurso abs-
vos meios, conservando, sempre, as origens, a raiz, trato, que vai da poesia falada e acompanhada de
qualquer coisa que lembra a poesia verbal, visual, instrumentos (Trovadorismo Medieval) à poesia
ou sonora existentes. E também é certo que há uma desvinculada da música, impressa (Humanismo e
poesia inovadora que circula nos meios eletrôni- Renascimento), que, quando lida, resgata a
co-digitais. oralidade e a musicalidade e evoca imagens atra-
Muitas denominações para esse tipo de vés da construção sintática singular que produz
poesia refletem conceitos que demonstram uma rima, ritmo, métrica, comparação, metáforas e
busca de delimitação para esse tipo de comunica- metonímias, entre outras coisas.
ção poética. Em virtude de ser um fenômeno mun- A constante necessidade de buscar novas
dial, esses termos são escritos nas línguas de cada linguagens para expressar a arte que surge a partir
país, mas a maioria deles é expresso em língua in- da existência de novas tecnologias, de se utilizar
glesa, como uma espécie de homenagem aos Esta- das linguagens interagentes, conforme conceito de
dos Unidos, país onde surgiram o computador e Irene de Araújo Machado, a contínua relação entre
seus acessórios e a internet. arte e ciência, a utilização dos novos meios como
Muitos autores buscam delimitar essa nova forma de expressão poética, esses parecem-nos os
poesia e, de certa forma, diferenciá-la de outras primeiros elementos que podemos identificar como
artes e da literatura. Há denominações gerais que a procura de novos meios de comunicação artísti-
permanecem como conceitos que abrangem dife- ca, dentre os quais se enquadra a comunicação
rentes manifestações através dos tempos, como poética, ou seja, a poesia digital. À semelhança do
poesia experimental, nova poesia visual, nova poesia personagem da novela “Asas”, de Mário de Sá-Car-
das mídias, ou poesia digital. Ocorre, quase sempre, neiro, ou da americana bizarra e sua festa dos cin-
a expressão poesia visual, não a diferenciando da pers- co sentidos em uma parte de “A Confissão de Lú-
pectiva histórica e do uso de diferente suporte. cio”, uma outra comunicação surge na esteira da

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Ciências, Humanidades e Letras

palavra elétrica, de Jim Andrews2 , ou no seu con- Os elementos constituintes da poesia digital
ceito de ling(im)agem 3 , um produto no/do como gênero
ciberespaço. Como se trata de uma procura recen-
te, não há apenas uma poesia digital, mas muitas, Falar sobre gênero implica saber a
que expressam as mais diferentes tentativas de fu- etimologia da palavra e alguns conceitos
são/interação/diálogo de linguagens. norteadores. A palavra gênero vem do latim e signi-
Podemos parafrasear a lei de Lavoisier, li- fica tipo ou classe. O termo é usado amplamente
geiramente modificada: no mundo da poesia, tudo em Retórica, Teoria Literária, Teoria das Mídias,
o que se cria permanece transformado, adaptado. e, mais recentemente, na Lingüística, para se refe-
A poesia de hoje traz em seu bojo o que havia de rir a um tipo distintivo de texto.
essencial de ontem, assimila o que há de contem- Um dos conceitos abordados por Fishelov
porâneo como forma de expressão e faz desses re- vem auxiliar o objetivo deste ensaio: gênero é “uma
cursos um poderoso aliado para permanecer viva combinação de componentes representativos e
e se expandir em novo meio, mantendo-se íntegra prototípicos, e um conjunto de regras flexíveis que
e adaptada. se aplica a alguns níveis de textos literários, a al-
Assim nos parece ter sido a história: a poe- guns escritores individuais, comumente para mais
sia declamada, com todos os seus recursos de um período literário e a mais de uma língua ou
mnemônicos de rimas, ritmos e métricas, sobrevi- cultura” (FISHELOV, 1993, p. 8). Se ampliarmos
veu à memória das pessoas e foi registrada nos li- o conceito de um conjunto regras flexíveis que se aplica
vros, mas sempre foi lembrada e homenageada a alguns níveis e tipos de textos, as poesias digitais se
como arte da palavra e do som. Deixou de ser enquadram adequadamente.
acompanhada de instrumentos musicais, como é o Para Rosmarin, gênero é “uma espécie de
caso da poesia trovadoresca, para ficar impressa. esquema, uma forma de discutir um texto literário
Adotou inúmeras formas, espacializou-se, confi- de modo que esse texto se vincula a outros textos,
gurou-se em formas plásticas, visuais, incorporou sucessivamente, e, finalmente, expressa isso em
imagens, mas sobreviveu, sempre, como poesia. termos daqueles textos ... Nós podemos escolher,
E hoje, com o advento do computador, e corrigir, inventar, ou definir uma classe ampla o
toda a revolução que ele provocou, a poesia se suficiente para fazer o erro desejado possível
manteve como arte da palavra no meio eletrônico- (ROSMARIN apud FISHELOV, 1993, p. 11).”
digital. Como o livro, que passou de impresso a Juntamente com o conceito de Ralph
eletrônico, a poesia impressa também tornou-se Cohen, esses são os referenciais teóricos que auxi-
eletrônica. E ficará, de certa forma, indivisível, liam a estabelecer os elementos constituintes do
diferenciada, precisa em seus contornos, mesmo texto digital artístico como gênero, que é a nossa
quando for adaptada a outros meios que possam primeira reflexão, para chegarmos, então, às poesi-
surgir. as digitais.
As hipóteses que norteiam este ensaio são Combinação de componentes e prototípicos, con-
as seguintes: os textos digitais artísticos se diferenci- junto de regras flexíveis, uma espécie de esquema, partes
am de outros textos pelo uso do computador como combinatórias que juntas produzem efeitos sobre os leito-
intermediário entre o homem e a produção de sig- res, tipos particulares de combinações, misturas, discursos
nos com finalidades estéticas. De uma forma ge- múltiplos, intertextualidade – esse conjunto de expres-
ral, os textos digitais artísticos são vistos sob dois sões funciona e passa a ser os elementos basilares
prismas: as artes digitais, com o predomínio das para o objetivo deste ensaio, na busca dos elemen-
imagens infográficas, à semelhança das artes plás- tos constituintes da poesia digital como gênero.
ticas; e as poesias digitais, como união do poema e Um levantamento dos diferentes tipos de
da imagem em movimento e no meio eletrônico- poesia digital nos levou a mapear os elementos
digital, através do uso da interatividade, da constituintes dessa poesia, pois isso se mostrou
hipertextualidade e da interface. como o caminho mais adequado, para verificar as

Universidade Católica de Pernambuco - 68


Revista SymposiuM

partes combinatórias que juntas produzem efeitos poesia nos legou de belo, de sonoro, de sentimen-
sobre os leitores-operadores, e ajudou a descobrir tal, de enigmático, até. Logo, não é a presença da
os seus limites “físicos”, os tipos particulares de palavra, letra, signo lingüístico ou poético, tão-so-
combinações, a intertextualidade, a mente, mas, sim, algo que produz sensações de
hipertextualidade, a interface etc., enfim, a poesia.
intermidialidade, a “inter-relação entre diferentes A linguagem que a poesia digital apresenta
mídias, tais como imagem / som / movimento e (sonora + verbal + visual + eletrônica + digital) é
texto mutuamente enredados, que é o que o com- utilizada predominantemente em sua função poé-
putador permite.” (LAJOLO, 1998, p. 70). tica, da mesma forma que esse conceito é apresen-
Por texto eletrônico-digital artístico, cujo suporte tado, exemplificado e desenvolvido por Jakobson,
é a eletricidade e cujo instrumento de recepção é a ou seja, ela tem um procedimento que se asseme-
tela do computador, podemos pensar nas mais di- lha ao fazer poético, através da união do poema
ferentes utilizações do meio eletrônico-digital como com a imagem digital.
forma de comunicação artística, de uma maneira O predomínio alternado da palavra e/ou
ampla, para que possamos chegar às poesias digitais da imagem e/ou da tecnologia tem sido o elemen-
(uso particular da palavra e da imagem infográfica to desencadeador das diversas criações digitais e o
com função poética). Esse texto se conforma aos que vem, de certo modo, permitindo classificar uma
traços da arte da cibercultura: a participação da- delas como poesia digital. Vale lembrar que a inclu-
queles que a experimentam, interpretam, exploram são do som também é parte integrante do proces-
ou lêem, a típica organização de processos de cria- so.
ção coletiva etc. (LÉVY, 1997, p. 94-95). Eis a primeira delimitação ou fronteira para
A poesia digital faz parte dos gêneros o que podemos denominar de gênero dos textos digi-
midiáticos, ou seja, é produzida por um dos meios tais artísticos, de um modo geral, para podermos
de comunicação mediada: o computador e a lin- chegar à poesia digital: um certo número de versos
guagem técnica que ele produz. A linguagem téc- que “sofreu” a ação do computador ou uma men-
nica do computador é subjacente ou anterior ao sagem elaborada a partir dos elementos constitu-
que é apresentado como produto final, ou seja, a intes do computador como um todo.
obra de arte (literária, plástica, visual, fotográfica, Assim, de uma forma geral, os elementos
cinematográfica, teatral, digital etc.), mas esse pro- constituintes dos textos digitais são: a existência
duto é conformado, determinado, condicionado e de um microcomputador (“hardware” e
enformado pela linguagem que organiza e faz o “software”); a digitalidade; a presença de imagens
computador funcionar. Exemplo: o produtor-ope- infográficas; a existência de uma poeticidade, com
rador-artista4 digital conhece as regras para operar ou sem a presença da palavra; o som associado à
um software, mas pode desconhecer as regras da palavra ou à música, integrado ao conjunto; a
máquina e de seus componentes (hardware). Ao plurissignificação da imagem infográfica, associa-
conhecer as regras do “software”, ele tenta ade- da ou não à palavra; o texto digital como um obje-
quar, conformar e enformar o seu modus operandi to para ser contemplado ou com o qual se pode
ao do computador, pois, só assim, o artista-opera- interagir (interfaces), inclusive modificando-o; o uso
dor digital pode expressar-se via máquina. Se ele constante da intertextualidade e da
conhece o hardware e pode interferir, então, produ- hipertextualidade; o registro em fita magnética,
zirá outras criações, graças à possibilidade de usar disquete, “cd-rom” ou mesmo em papel, parcial
a programação como processo criativo-artístico. ou totalmente.
A condição básica para o estabelecimento Como forma de considerar os elementos
do gênero da poesia digital é a presença da palavra constituintes do texto digital artístico como gênero,
associada à imagem digital de forma analógica. A podemos afirmar que os processos criativos são os
presença da palavra indica uma relação da palavra elementos fundamentais e diferenciadores para que
com a poesia, a arte da palavra, em tudo aquilo que a seja possível a seguinte classificação: as poéticas

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Ciências, Humanidades e Letras

digitais, com base nas imagens infográficas; as Cada leitor-espectador-fruidor-operador


narrativas digitais ou virtuais, que usam os recursos pode selecionar essa poesia digital à sua maneira
infor máticos para as suas interfaces e pessoal, recortando ou não, reproduzindo ou não
desenvolvimento de uma narrativa; e as poesias o texto à sua maneira, na sua impressora, com os
digitais, que estabelecem uma relação entre recursos técnicos de que disponha, que estejam ao
poeticidade, sons à semelhança de música ou poesia seu alcance, que o leitor seja capaz de acessar.
falada, ou representação de massa sonora através A poesia digital é hiper e intertextual. Ela
de letras ou palavras, palavra legível ou ilegível, e dialoga consigo mesma, com a palavra ou vestígio
imagem infográfica com efeito poético. dela, com a imagem, com o “mundo exterior”, com
Embora aparentemente óbvia, a formação o “mundo interior” (da máquina, do “hardware”,
do operador-poeta pode ser um fator determinador do “software” etc.), com o som que a palavra evo-
da poesia, da narrativa, da poética digital ou do uso ca, ou com o som incluído nesse conjunto, com o
pragmático dos processos eletrônicos. É necessário leitor-fruidor-operador e com o operador da má-
partir de um ponto de vista: essa maneira particu- quina. Um texto digital é, faz parte e participa de
lar de ver é do artista plástico, do contista ou outros textos da cultura e dialoga com ela, sofren-
romancista ou do poeta. Também, nesse aspecto, do influências as mais diversas. Assim, ao chamar
o olhar estético num produto tecnológico, esse texto de poesia digital, nós atribuímos a ele a
científico, é que o leva a uma função poética e não característica geral de poesia, ou seja, linguagem tam-
referencial. bém, mas não somente verbal (mas que dialoga
De uma forma geral, essas reflexões nos com as artes plásticas, visuais, sonoras, teatrais,
levaram a apresentar alguns traços diferenciadores fotográficas, cinematográficas, videográficas,
da poesia digital. A utilização do microcomputador, holográficas etc.), que se comporta à semelhança
mesmo que estejamos trabalhando com um soneto, de poesia.
por exemplo, implica a mediação de um editor de À semelhança de poesia quer dizer que o poe-
imagens e/ou de textos, a qual altera o produto ta-operador (já não é mais o poeta que escreve, mas
final. Essa poesia se limita e se conforma à aquele que digita e que opera com uma máquina)
linguagem técnica que o computador possui5 . Sofre, faz uso de procedimentos que trazem semelhança
portanto, modificações a cada “leitura”, ou seja, com o fazer poético verbal.
cada leitor-operador verá essa poesia da forma que Se temos os elementos palavra, imagem, e a
o seu microcomputador permite, de acordo com relação entre ambas, a palavra ou vestígio dela nos
as escolhas e limites que a sua máquina tem e remete ao som, existente ou imaginado, a exemplo
conforme o conhecimento técnico do leitor-fruidor. da poesia verbal e/ou visual, impressa em papel, mas
O acesso a essa poesia é feito através da máquina que, na sua leitura, silenciosa ou não, faz-nos su-
(e é uma atitude diferente do ato de abrir um livro, bentender sonoridade e musicalidade. Aí parece re-
uma revista, um jornal, um caderno): ligar o sidir um entrelaçamento entre os gêneros poéticos
computador e ler o texto no monitor, ligar um (da voz) com os gêneros literários (da littera) e com
vídeo, ouvir uma fita cassete, um “cd-rom” etc. É os gêneros midiáticos, assunto específico desta re-
uma reapresentação do que já foi feito e é um refazer flexão.
e recriar ao microcomputador. As interfaces (“mouse”, teclado, monitor,
A poesia digital possibilita, se assim o “software” e “hardware”), como extensões do ho-
desejar quem a fez, a reprodução ad infinitum no mem e como intercâmbio entre o homem e a má-
monitor, na tela ou no papel, da forma que a quina, a exemplo da caneta e do lápis e/ou da
máquina pode reproduzir, da forma que o fruidor- máquina de escrever, correspondem a processos
operador sabe acessar, de acordo com os recursos de sentir com, de sentir e se expressar através de, de
técnicos dos seus softwares e hardware, ou seja, das mediar e de substituir a mão e suas “imperfeições”
mais diversas formas que a máquina é capaz de para processos supostamente (ou aparentemente)
reproduzir. perfeitos de produções artísticas e criativas. Essas

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interfaces possibilitam uma busca de uma leitura gital etc.), ou seja, palavras e imagens “o mais pos-
mais direta entre poesia digital e homem, pela sível heterogêneas e incongruentes, como que a
intermediação do microcomputador. É uma tenta- desafiar ao limite o processo metonímico de inter-
tiva de “humanizar” a tecnologia. pretação” (CAUDURO, 2000).
A leitura dessa poesia digital se dá nas mais A inclusão de símbolos matemáticos (Melo
diferentes direções, combinatórias e cruzamentos: e Castro, Vallias etc.), fórmulas, diagramas, indica
no papel (carta, folha solta, jornal, revista, livro outra aproximação entre arte e ciência, arte e
etc.); no microcomputador; no monitor, em tecnologia, ou poesia, e ciência, e tecnologia. Vale
tridimensionalidade, em movimento ou não; de exemplificar isso com o percurso do hipertexto no
forma linear na representação gráfico-espacial – um poema-diagrama de Rosenberg7, Vallias8 , ou de
verso após o outro; de forma hipertextual, ou seja, Györi9 .
partes do poema que nos remetem a outros “links”6 ; Podemo-nos apropriar daquilo que
de forma não-seqüencial, isto é, labiríntica ou in- Abraham Moles denominou de mito da máquina de
dividual; ou seja, o ingresso no texto poético se criar e aplicar esse conceito para afirmar, por exem-
faz de forma diferente a cada leitura. plo, que um editor de imagens, como o Adobe
A quarta dimensão, a dimensão virtual, di- Photoshop, bem como qualquer outro recurso
fere e se “opõe” à dimensão obtida na impressão programático ou de “software”, é uma máquina de
da poesia digital, um resultado estático e reduzido criar, que depende do conhecimento técnico, esté-
do que vemos na tela do monitor de um micro. tico e poético do operador-poeta para produzir
Essa dimensão, a virtual, permite novas leituras poesia digital. Ao acaso ou intencionalmente, o
do operador-leitor-espectador-fruidor do poema. operador-poeta inscreve a sua criação no meio ele-
A simulação de um elemento da realidade trônico-digital.
é uma tentativa de se pretender passar por realidade,
o que o fruidor passa a sentir, em vez de imaginar. As diferentes poesias digitais
O que há de simulação na poesia digital? Ela tenta
ou pretende se passar por poesia verbal ou visual? Há uma variedade significativa de poesias
Ou ela é poesia mesmo, modificada, enformada, que circulam no meio eletrônico-digital (discos rí-
conformada pelo meio digital? Num processo len- gidos internos e externos, discos flexíveis, “cd-
to, desde o poema computadorizado de Théo Lutz, roms”, vídeo, microcomputadores, internet). Sem
em 1959, na Alemanha, até as mais recentes poe- a intenção de esgotar o assunto e sem pretender
sias internéticas, uma nova poesia vem-se confor- esboçar um percurso histórico, eis um mapeamento
mando ao meio eletrônico-digital e se transforman- desses tipos de poesia digital.
do num discurso específico, diferenciado, que re-
presenta um novo caminho para a poesia. 1. Há uma poesia verbal, que antes circulava nos li-
Embora não seja atributo exclusivo dela, a vros, revistas e jornais dos países letrados, e que
noção de sobreposição de escritas, o palimpsesto, agora passa a ocupar os meios eletrônico-digitais
torna-se também uma forma corrente na produção em todas as suas mais diferentes modalidades. É
da poesia digital, pois é uma das partes integrantes uma transposição de meios, não é apenas uma atu-
do seu processo de variação, pois, muitas das ve- alização, modismo ou aproveitamento do outro
zes, a poesia verbal é apenas um palimpsesto de espaço: significa uma tomada de posição do leitor
outras (i)legíveis experiências. De igual modo, a e do poeta em relação às modificações que esse
poesia visual também é palimpsesto de outras intercâmbio impõe. Não é só a mudança do meio
(i)legíveis sintaxes visuais. No meio eletrônico-di- como forma de atingir mais leitores, mas a dispo-
gital, a fusão das poesias verbal e visual determina sição gráfico-espacial dessa poesia, que é confor-
um palimpsesto inicialmente duplo, mas com a ri- mada sob os moldes computacionais. É a poesia
queza proporcionada pela digitalidade. Trata-se da que foi digitada num microcomputador, com o uso
sobreposição de poesia (verbal, visual, sonora, di- de um editor de textos e/ou de imagens, e que ago-

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Ciências, Humanidades e Letras

ra faz parte de uma literatura “digital”, ou seja, zar” ao novo meio, podem ser consideradas as pre-
ocupa o meio virtual. Se esse é apenas um aspecto cursoras da poesia digital.
histórico – as primeiras poesias colecionadas em Não resta dúvida de que a poesia visual tem
antologias eletrônicas –, vale ressaltar que o con- características próprias que diferem bastante da
tato com esse tipo de poesia é uma relação entre poesia digital, como: o material de suporte, o pa-
homem e máquina, o que resulta num outra forma pel, o artesanato que utiliza o desenho, as cores e
de leitura, mesmo que essa poesia não apresente os materiais das artes plásticas, o uso dos limites
elementos inovadores característicos, mesmo que das três dimensões, certa individualidade que é
não passe de uma poesia impressa que ocupa o própria de um artesanato manual etc.
ciberespaço. CAPPARELLI et al (2000) a diferença é:
“O poema visual e o ciberpoema possuem um con-
2. Há uma poesia sonora, que era transmitida oral- teúdo de indeterminação presente no objeto e/ou
mente como uma arte da palavra falada, que se atribuído pelo leitor. No poema visual ambos es-
torna digital, também, principalmente pelo uso de tão imbricados, apesar da maior ou menor habili-
recursos eletro-eletrônico-digitais, como os labo- dade do leitor de perceber as ligações; entretanto,
ratórios de sons. Essa poesia, que teve grande de- elas são finitas pela própria natureza do objeto. Di-
senvolvimento durante as vanguardas históricas ferentemente do poema visual, o ciberpoema exi-
(Futurismo, Dadaísmo etc.), é criada a partir de ge um leitor atento e possuidor de habilidades téc-
sons de certa forma desvinculados de significado nicas. Com a interatividade o leitor torna-se co-
(os fonemas não chegam a formar uma palavra) e autor da obra. O preconceituoso postulado da au-
representa um tipo de poesia digital, comumente toria é posto contra a parede. No poema visual,
chamada de poesia sonora. É uma poesia produzida ela pode ser compartilhada.”
em laboratório de som, com os recursos da
informática, como as pesquisas e criações feitas 4. O conceito de máquina de escrever, emprestado da
por Philadelpho Menezes e alunos na PUCSP, reu- lingüística e desenvolvido pela estética
nidas em “cd-rom”.10 informacional, vai incorporar o uso da máquina
como possibilidade de “criar textos artificiais pro-
3. Toda uma gama de poesia visual passa a ser “acon- vidos de sentido” (MOLES, 1990, p. 149): “A
dicionada” nos “softwares” que editam imagens, redacção de um texto por uma máquina, quer ela
com ou sem movimento, e apresenta seja real, um grande computador, quer seja “ima-
tridimensionalidade. Trata-se de uma adaptação de ginária”, quer dizer, constituída por uma série de
suportes, cujos exemplos podem ser os poemas de operações a efectuar ou a mandar efectuar por ope-
Arnaldo Antunes11 , Elson Fróes12 , Melo e Castro13 radores desprovidos de inteligência – é finalmente
e outros. Dada a sua característica gráfico-espaci- sinónimo de criação intelectual.” (idem: ibidem)
al, o mesmo ocorre com a poesia concreta, cujo Trata-se de uma literatura experimental:
exemplo é Augusto de Campos14 : “Desde que, no “Ela parte de uma definição muito geral de lingua-
início da década de 90, pude pôr a mão num gem – é um sistema de signos ou símbolos reuni-
microcomputador pessoal, percebi que as práticas dos segundo certas regras – e propõe uma idéia
poéticas em que me envolvera, enfatizando a nova da mensagem literária, distinguindo na análi-
materialidade das palavras e suas inter-relações com se o conteúdo e o continente, o aspecto semântico e o
os signos não-verbais, tinham tudo a ver com com- aspecto estético.” (idem: 150)
putador. As primeiras animações emergiram das Eis o conceito de constelação de atributos do
virtualidades gráficas e fônicas de poemas pré-exis- poster , de Moles: “É a cristalização gráfica das leis
15

tentes.” (CAMPOS, 1999). de associação que o espírito segue ao unir um sig-


Podemos afirmar que a poesia concreta no central (palavra indutora) com uma série de
brasileira e a poesia experimental portuguesa, bem outros signos (palavras induzidas)” (idem: 151).
como a poesia visual posterior, que vão se “atuali- Parece-nos que aqui reside o princípio do

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hipertexto: as relações espaciais da palavra, como no poema-diagrama Diagram 4.1, de Jim Rosenberg
(EUA), o poema virtual VP12 de Ladislao Pablo Györi (Argentina) ou a poesia hipermídia Antologia Laboríntica
de André Vallias.

5. O texto abaixo mostra um dos primeiros usos da tecnologia informática como forma de expressão
artístico-literária, a poesia permutacional, em que um estoque de palavras passa por um tratamento de uma
máquina, que produz textos semelhantes com base num programa de computador. Moles e Barbosa estuda-
ram exaustivamente o assunto e publicaram estudos teóricos e antologias, como é o caso do fragmento da
poesia permutacional do italiano Nanni Balestrini no início dos anos 60:

MENTRE LA MOLTITUDE DELE COSE ACCADE I


CAPELLI TRA LE LABBRA ESSE TORNANO TUTTE E ALLA LLORO
RADICE L ACCECANTE GLOBO DI FUOCO GIACQUERO
IMMOBILI SENZA PARLARE TRENTA VOLTE PIU LUMUNINOSO
DEL SOLE FINCHE NON MOSSE LE DITA LENTAMENTE SI
ESPANDE RAPIDAMENTE CERCANDO DI AFFERRARE LE
SOMMITA DELLA NUVOLA

MENTRE LA MOLTITUDINE DELLE COSE ACCADE L ACCECANTE


GLOBO DI FUOCO ESSE TORNANO TUTTE ALLA LORO
RADICE SI ESPANDE RAPIDAMENTE FINCHE NON MOSSE LE
DITA LENTAMENTE E QUANDO RAGGIUNGE LA STRATOSFERA
GIACQUERO IMMOBILI SENZA PARLARE TRENTA VOLTE PIU
LUMINOSO DEL SOLE CERCANDO DI AFERRARE ASSUME LA
BEN NOTA FORMA DI FUNGO16

6. Outras tentativas de análise e levantamento das Revistas e jornais impressos ou eletrônicos


diferentes poesias digitais têm sido feitas por estu- (em disquetes, “cd-roms” e internet) têm tratado
diosos como Funkhouser, Barbosa, Moles, Bense, bastante sobre o tema.
Machado, Tolva, Parente, Plaza e Tavares, Várias edições de Dimensão: Revista Interna-
Capparelli, Andrews etc. Também os poetas Nanni cional de Poesia apresentaram opiniões de teóricos e
Balestrini, André Vallias, Melo e Castro, Augusto poetas da poesia digital. Na edição de 1995, Cláu-
de Campos, Cláudio Daniel, Ladislao Pablo Györi dio Daniel (Brasil) abordou as relações entre a po-
etc., que, nas diversas fases de suas obras, se dedi- esia e computador como forma de expressão poé-
caram à relação entre a arte e a tecnologia, estabe- tica diferenciada e Ladislao Pablo Györi (Argenti-
leceram denominações e diferenciações para as na) apresentou critérios para uma poesia virtual que
suas experiências poéticas com o computador. As- usa a terceira dimensão e é feita no espaço virtual.
sim, temos elementos constituintes individuais (de Na publicação de 1998, E. M. de Melo e Castro
determinados poetas-operadores) e coletivos (de (Portugal e Brasil) apresentou um manifesto teóri-
determinadas maneiras de produção de poesia di- co-prático que desenvolve o conceito da transpoética
gital). 3D, com uma série de 13 infopoemas sintetizados

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 73


Ciências, Humanidades e Letras

em 1997 e 98 num PC, em ambiente Windows 95, vinculados uns aos outros; alguns títulos (arqui-
com os softwares Adobe Photoshop 4.0, Fractint vos) incluem som. O supercartão (supercard) possi-
V18 e Corel Motion 3D 6. O número publicado bilita o uso de vídeo.
em 1999 conta com outro estudo de Melo e Castro
e seus alunos do Curso de Infopoesia. Hipertexto – historicamente, somente texto escrito,
O jornal Folha de S. Paulo, em seu caderno com ligações para outros textos; alguns textos in-
Folha Informática, buscou abranger a experiência cluem imagens estáticas visuais; em desenvolvi-
poética relacionada à digitalidade, sob a designa- mento gradual.
ção genérica de poesia digital, não estabelecendo
diferença entre poesia verbal, visual e digital. Al- Hipermídia na rede – predominantemente existe no
guns autores teóricos e poetas digitais, bem como WWW (World Wide Web); correntemente sem som
centros de estudos, são citados: Eduardo Kac17 , simultâneo e capacitação para vídeo.
Ted Warnell, Eletronic Poetry Center de Bufalo
(EUA), Janam Platt, Loss Pequeño Glazier, Mark Software gerador de texto – programas que automati-
Napier, Mark Amerika etc. Além de apresentar al- camente organizam palavras e imagens.
guns sites da poesia digital, o jornal mostra alguns
estudos sobre teoria literária e digital, de Allien 8. Enfocando as diferentes ciberpoesias com base
Flower, Augusto de Campos, Cyber Poetry Gallery, no uso de tecnologias, CAPPARELLI et al (2000)
Komninos Zervos, George Landow, Hypermedia chegaram ao seguinte resultado:
Research Center, Jim Rosenberg, Parallel Notion,
Christopher Funkhouser, John Cayley etc. Os arti- galerias e coletâneas em rede – as que levam a blocos
gos apresentados nesse jornal (Lavínia Fávero, de textos ou a galerias, mais especificamente com
Monica Rodrigues da Costa e “free-lancers”) pro- poemas visuais;
curam delimitar o conceito de poesia digital, jun-
tamente com entrevista com Augusto de Campos
fábrica de poemas – essas fábricas, ou melhor, esses
e Mark Amerika. Parece-nos um primeiro estudo,
geradores de poemas a partir de programas de com-
abrangente, geral e com pouca profundidade, ou seja,
putadores multiplicam-se;
um material que talvez futuramente deva ser reunido
em artigos para o caderno Folha Ilustrada ou Mais
poesia sonora – alguns sites de poesia sonora reto-
mam experiências do Futurismo de Marinetti e do
7. Funkhouser se refere a uma “poesia criada por
Dadaísmo de Hugo Ball;
escritores (e programadores / produtores) que se
baseia no computador para trazer suas visões ao
poesia declamada – sites em que, por exemplo, um
mundo através da luz efusiva e o sistema articula-
ator ou o próprio poeta lê seus poemas;
do da tela” (FUNKHOUSER, 1999). Para ele,
“toda poesia que usa a tela de um computador
nova poesia visual – experimentos que vão além da
como uma interface se enquadra em, pelo menos,
visualidade tradicional e criam poemas visuais em
uma das cinco categorias seguintes18 :
três dimensões; e
Hipermídia – inclui gráficos, imagens visuais em
poesia cinética – gênero poético em que são criadas ani-
movimento e arquivo sonoro vinculado ao (ou
mações em poesia através de técnicas variadas.
em vez de) texto impresso; uma variedade de as-
sociações intertextuais e combinações gráficas
9. O Estúdio de Poesia Experimental19 , site da PUCSP,
são possíveis.
que foi coordenada pelo Prof. Philadelpho Menezes
Neto (1960-2000), contém poemas verbais, visu-
Hipercartão – textos ou verbais e visuais são arru-
ais e sonoros “transcritos” no meio digital, como é
mados numa série de fileiras de arquivos digitais e
o caso de Katalin Ladik (Iugoslávia), Eugen

Universidade Católica de Pernambuco - 74


Revista SymposiuM

Gomriger (Suíça), Ana Hatherly (Portugal), entre zer o visual a reboque do verbal. (MENEZES e
outros. Esse site faz links com outros poetas de AZEVEDO apud DOMINGUES, 2000, p. 62).
vários países, fazendo do EPE uma antologia “on-
line” de poesia digital. 14. O direcionamento do uso criativo desses mei-
os eletrônicos para fins mais específicos, criando
10. Embora classificadas por Plaza e Tavares uma relação entre palavra e imagem por meio de
como poéticas digitais, podemos citar as experi- um editor de imagens – essa é uma das muitas ex-
ências de Ricardo Araújo com os poemas de periências de Melo e Castro e seus alunos em Por-
Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Dé- tugal e no Brasil. No seu percurso da poesia ver-
cio Pignatari, Arnaldo Antunes e Júlio Plaza, que bal, visual, concreta, digital, Melo e Castro utiliza
foram transformados em videopoesias e são ana- várias denominações e conceitos para a poesia di-
lisadas no livro Poesia Visual e Vídeo Poesia gital. Infopoesia tem inicialmente o conceito de po-
(1999). esia permutacional e aparece em Álea e Vazio, obra
poética de 1971, especialmente com o poema
11. Outra contribuição valiosa é o trabalho de Sil- “Tudo pode ser dito num poema” (CASTRO, 1990,
via Laurentiz20 , que recriou o poema “O Eco e o p. 225-226). Videopoesia será o conceito, e nisso
Ícon” (1994), de Melo e Castro, em ambiente 3D ele é pioneiro em Portugal, apresentando as pri-
interativo, visual e sonoro, produzido com a lin- meiras relações entre poesia e vídeo, nas obras Roda
guagem VRML2, em 1997. Lume, 1968-1969, Signagens, 1985-1989, e Sonhos
de Geometria, 1993. Além de poeta, Melo e Castro
12. Há um “grupo de experiências que represen- dedicou-se também ao ensaio. Dentre a sua nume-
tam a convergência da linguagem verbal, da ima- rosa obra de crítica e teoria literária, ele é autor de
gem (fixa e imóvel) e do áudio na poesia” Poética dos Meios e Arte High Tech (1988), no qual
(Capparelli et al 2000). É a poesia hipertextual que aborda a poética dos meios (a rede intersemiótica
se apresenta “como uma matriz de números em entre o oral e o visual, a visão fotográfica, o cine-
filas e colunas, na memória do computador. Seus ma e a arte correio) e arte high tech (infoarte,
números e “pixels” podem ser alterados e manipu- infopoesia, videopoesia, holopoesia, estética
lados, individualmente ou em grupos, e o conjun- fractal, poética de gravidade zero,
to pode ser traduzido na forma de imagens no desmaterialização, telearte, robótica etc.). A mes-
monitor de tv ou, inclusive, em forma impressa. ma infopoesia passa a ser um novo conceito, ou seja,
Qualquer modificação na matriz de números im- o tratamento da poesia associada a uma imagem,
plica uma modificação na imagem.” (PLAZA & cujas primeiras experiências são denominadas de
TAVARES, 1998: 73). “Infopoesia / Videopoesia: 1985-93” e estão reu-
nidas em Visão Visual (1994). Em Finitos mais
13. A interpoesia, ou seja, a poesia hipermídia Finitos (1996), o poeta registra duas experiências
interativa, criação de Philadelpho Menezes e de 1995: a primeira, denominada de infopoetry, ou
Wilton Azevedo, é uma outra contribuição à poe- infopoesia, foi uma exposição e comunicado no Yale
sia digital: “Interpoesia tem dois sentidos: o da Simphosophia on Experimental, Visual and
interatividade e o da poesia intersignos. Poesia Concretic Poetry since 1960, na Universidade de
intersignos é o nome que sintetiza a idéia de uma Yale, nos Estados Unidos. Essa infopoesia já é uma
poesia feita da fusão de signos verbais e não-ver- experimentação que associa palavra e imagem no
bais. No segundo semestre de 1997, iniciamos o microcomputador por meio do editor de imagem
projeto de produzir poemas em que sons, imagens Adobe Photoshop; e a segunda, denominada de
e palavras se fundem, num processo sempre Cibervisuais, fez parte da exposição coletiva “Poe-
intersígnico complexo, em ambientes tecnológicos sia Visiva e Dintorni”, no Museu de Spoleto
que propiciam precisamente a presença de signos (Perugia), na Itália, também em 1995. Durante o
verbais, visuais e sonoros em conjuminação: tra- ano de 1997, Melo e Castro foi professor convida-

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 75


Ciências, Humanidades e Letras

do do Programa de Comunicação e Semiótica da nominação poesia digital se refere a experiências que


PUCSP e ministrou dois cursos: um de Infopoesia envolvem a fusão da poesia com a imagem digital nas
e Poesia Sonora e outro de Infopoesia em 3D. Des- suas mais variadas formas.
se curso, foram criados dois outros conceitos: a
transpoética 3D, que representa a sua experiência Os diversos nomes para a poesia digital
individual, e a dos seus alunos, com o uso dos
softwares Adobe Photoshop 4.0, o Fractint V18 e o Que terminologia poderia ser dada à poesia
Corel Motion 3D 6; e a poética do pixel, no livro que sai, ultrapassa, sobrepõe, superpõe, interpõe,
Algorritmos (1998). perpassa a palavra e “vai” para o computador? Se
o mapeamento dos elementos constituintes da
15. A holopoesia e a arte da telepresença, de poesia digital como gênero tem sido uma
Eduardo Kac, são uma das mais abrangentes ma- preocupação constante, a denominação dessa
nifestações das poéticas digitais. A holopoesia é experiência também tomou conta de nossas
“uma nova linguagem verbal/visual que explora pesquisas. Adotamos colocar os nomes em
as flutuações formais, semânticas e perceptuais português e em inglês. Eis um primeiro resultado
da palavra/imagem no espaço – tempo de nosso estudo: o nome dado a esse tipo de poesia,
holográfico”21, assim como a arte da telepresença alguma descrição breve e os autores que as
é “uma nova área de criação artística que se ba- denominaram. Preferimos a ordem alfabética e,
seia no deslocamento dos processos cognitivos muitas vezes, o nome na língua original em que foi
e sensoriais do participante para o corpo de um elaborado:
telerrobô, que se encontra num outro espaço ge-
ograficamente remoto.”22 ciberpoesia – para Barbosa (1996), trata-se, essenci-
almente, de poesia permutacional; e para Capparelli
16. André Vallias é “designer” gráfico, trabalha com (1996)23 , é uma poesia visual adequada ao meio
multimídia, poesia visual e arte eletrônica. Partici- eletrônico-digital. O termo é usado em inglês –
pou de exposições na Alemanha, Viena e Tóquio. cyberpoetry – por Komninos Zervos24 , Brian Kim
A sua poesia digital abrange palavras e imagens Stefans25 etc;
em atuação interativa: cada letra ou fragmento de
imagem permite acesso a diferentes partes de sua cibervisual – termo utilizado por E. M. de Melo e
“Antilogia laboríntica [poema em expansão]”. Há Castro para uma série de infopoesias, que partici-
uma fusão da poesia já existente, e transcrita, mui- param na exposição coletiva Poesia Visiva e
tas vezes, com ou sem recortes, que se alia ao Dintorni, no Museu de Spoleto (Perugia), na Itá-
“webdesign” de alto nível e excelente efeito visual. lia, em 1995;

17. Os poemas em computador, criação de Gilbertto cine(E) poetry – trabalho criativo de produtores de
Prado (Unicamp) e Alckmar Luiz dos Santos filmes e vídeo poéticos. Trata-se de um grupo de-
(UFSC) apresentam uma relação que abrange poe- nominado LTV (Literary Television), nos EUA, an-
sia e imagem: um artista plástico e um poeta, am- teriormente denominado Poetry Film Workshop, que
bos professores universitários, unem seus conhe- tem formado um acervo para ser distribuído para
cimentos teórico-prático-criativos num produto que televisão, tv a cabo, instituições educacionais e
combina artes plásticas e literatura. redes de internet. O Cin(E)Poetry faz experimentos
Essas são algumas das possíveis diferentes com a imagem visual, usando um arranjo de vídeo,
poesias digitais pesquisadas até o presente momen- filme, animação, técnicas de som e computacional
to que ainda não nos permitem apresentar um qua- – tudo isso divide um foco especial com a poesia
dro geral, a exemplo de Funkhouser ou Capparelli, falada ou escrita, como essencial para o trabalho
mas nos levam a observar uma delimitação: a de- como um todo;

Universidade Católica de Pernambuco - 76


Revista SymposiuM

clip-poema digital – Augusto de Campos em seu site inter poesia ou poesia hipermídia interativa –
(1997); Philadelpho Menezes e Wilton Azevedo na obra
do mesmo título em “cd-rom” (1997-1998);
computer poem – Théo Lutz (1959, Alemanha),
Nanni Balestrini (1970, Itália), poesia new media poetry / poesia das novas mídias – termo
permutacional, Silvestre Pestana (1981, Portugal); apresentado por Eduardo Kac, numa antologia de
textos sob o mesmo título (1996), com textos teó-
diagram poem / poema-diagrama – trata-se das expe- ricos e exemplos práticos de vários países: Jim
riências de uma poesia não-linear de Jim Rosenberg Rosenberg (EUA), Philippe Bootz (França), E. M.
a partir de 1966, com uma série de poemas poli- de Melo e Castro (Portugal), André Vallias (Brasil),
lineares chamados “Word Nets”, o que, a partir de Ladislao Pablo Györi (Argentina), Eduardo Kac,
1968, evoluiu para os “Diagram Poems”; John Cayley (Reino Unido), Eric Vos (Holanda);

electric word – embora usando word, ao invés de poetry, nova poesia visual – experimentos que vão além da
Jim Andrews tece algumas considerações sobre o visualidade tradicional e que criam poemas visu-
uso da palavra poética no contexto eletrônico ais em três dimensões. Alguns autores tornam-se
(ANDREWS, 1997-1999) adeptos da poesia visual através da literatura e
outros através das artes plásticas (CAPPARELLI
electronic poetry – nome genérico atribuído às experi- et al 2000);
ências poéticas no computador (FUNKHOUSER,
1999); poema em computador – Alckmar Luís dos Santos
(1995), do Núcleo de Pesquisas em Informática,
holopoesia ou poesia holográfica – denominação dada Lingüística e Literatura (NUPILL), da Universida-
por Eduardo Kac, em 1983; de Federal de Santa Catarina, juntamente com
Gilbertto Prado, da UNICAMP;
hypermedia poetry / poesia hipermídia – Christopher
Funkhouser (1999), subdividida em cinco catego- poesia cinética – termo utilizado para designar um
rias: hypermedia / hipermídia, hypercard / dos diferentes usos de tecnologias nas experimen-
hipercartão, hypertext / hipertexto, network tações poéticas, ou seja, poesias com animações
hypermedia / hiper mídia na rede, e “text- através das mais variadas técnicas: “A poesia
generating software” / software gerador de texto; cinética usa a palavra enquanto objeto
arquitetônico e desenho, numa materialidade ca-
infopoesia – MELO e CASTRO (1971) em seu li- paz de se locomover, criando espaços de tensões
vro Álea e Vazio 26 . Trata-se de referências a poesi- ou de harmonias.” (CAPPARELLI et al 2000);
as experimentais feitas pelo italiano Nanni
Balestrini em 1961, retomadas pelo português poesia digital – jornal Folha de S. Paulo (1999), ter-
Herberto Helder em 1964, por Silvestre Pestana mo usado no fim da década de 90, especialmente
em 1981, de acordo com os estudos de Pedro Bar- derivado de poéticas digitais.
bosa na década de 70 (poesia permutacional). Em
1995, o autor faz um comunicado – The Cryptic Eye poesia eletrônica – nome genérico dado a tratamento
– no Encontro Yale Symphosophia on Experimen- de poemas, mesmo verbais, no computador;
tal, Visual and Concrete Poetry since 1960, na Yale
University, Estados Unidos, denominando suas poesia experimental – termo adotado por vários paí-
experiências de infopoetry. Essas mesmas experiên- ses, poetas e movimentos poéticos: trata-se da
cias são reproduzidas em Finitos mais Finitos (1996), Poesia Experimental Portuguesa (décadas de 60 e
nas quais o autor usa um tratamento de imagem e 70), nome dado a um movimento hispano-brasi-
palavra no Adobe Photoshop; leiro-americano por Clement Padin num período

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 77


Ciências, Humanidades e Letras

de 1950 a 2000, e uma denominação utilizada no poética ou poesia do pixel – Melo e Castro em
Festival de Poesia de Medelin, na Colômbia, em Algorritmos (1998);
dezembro de 2000, para designar poemas visuais,
poemas gestuais e performances poéticas, ações e transpoética 3D – Melo e Castro (1998), em Dimen-
intervenções poéticas, videopoemas, poemas vir- são: Revista Internacional de Poesia;
tuais, digitais e multimídias, holopoemas, poemas
sonoros; videopoesia – embora se configure como poesia fei-
ta em vídeo (como os trabalhos de Melo e Castro
poesia hipermídia / hypermedia poetry -– Christopher em Portugal, Arnaldo Antunes e Julio Plaza no Bra-
Funkhouser (1999); sil), a expressão denomina o tratamento de vídeo
dado aos poemas de Haroldo de Campos, Augusto
poesia hipertextual – George Landow (1995), uso do de Campos, Décio Pignatari e Júlio Plaza, através
modelo não-linear, aquele que é utilizado no de um estudo experimental feito por Ricardo Ara-
hipertexto. Essa poesia se apresenta “como uma újo em 1992-1994;
fila de números em filas e colunas, na memória do
computador.” (PLAZA, 1993, p. 73); videotexto – veículo de linguagem e distribuidor
de informações que usa o telefone como meio
poesia intersignos – Philadelpho Menezes (1999) no de transmissão. Apesar do sufixo texto, ele foi
Estúdio de Poesia Experimental do Programa de destinado também à produção poética (Plaza
Comunicação e Semiótica da PUCSP; 1986);

poesia internética ou poesia-da-rede / net poetry ou internet web poetry / web poesia – denominação das manifes-
poetry – há quem prefira o termo inglês “web tações artísticas na internet (para diferenciar de web
poetry”, o que passa a ser um conceito e pode ser art), provavelmente a partir de 1990.
traduzido por poesia-da-rede ou poesia-rede, o que A lista apresentada acima não tem a inten-
não deixa de ser poesia internética; ção de agrupar todas as diferentes poesias digitais
existentes até o presente momento desta pesquisa,
poesia virtual ou vpoema – Ladislao Pablo Györi, po- mas tão somente registrar os nomes que têm sido
eta argentino (1995); dado a essas experiências poéticas no meio eletrô-
nico-digital.
poetécnica ou poética digital (PLAZA & TAVARES
1998: 119) – não há uma preocupação em sepa- A título de conclusão
rar a poesia de poética, mas, sim, de determinar
poéticas digitais como um dos modos de fazer ima- Decompor o todo em partes, como fizemos,
gem infográfica. A palavra, para os autores, é permite reconstituir ou delimitar a “forma” da po-
imagem infográfica inserida num contexto mai- esia digital? É um processo válido?
or, embora tendo significado com a imagem, ao Os exemplos coletados ao longo deste
lado dela, e/ou independentemente dela. Plaza ensaio nos mostraram diferentes percursos que
e Tavares apóiam-se nos conceitos de poética de conformam a poesia digital como um dos gêne-
Luigi Pareyson (as poéticas têm caráter operativo ros das poesias existentes. Acima de tudo, é pos-
e histórico) e de Umberto Eco (poética é o pro- sível perceber o uso da palavra poética como
grama operacional inicialmente proposto, ou elemento desencadeador de um processo de lei-
melhor, corresponde ao projeto de formação ou tura que une palavra, imagem e som no contex-
atribuição de uma determinada obra); to eletrônico-digital.

Universidade Católica de Pernambuco - 78


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Universidade Católica de Pernambuco - 80


Revista SymposiuM

NOTAS 11
Vide:http://www.artezero.com.br/anarldobaixo.
html
1
Essas são as cores da imagem infográfica. 12
Vide: http://www.gratisweb.com/popbox
2
ANDREWS, Jim. VispO Langu(im)age. Victoria, 13
V i d e : h t t p : / / w w w. c u l t u r a b ra s i l . a r t . b r /
Canadá, 1995-2001, in http://www.vispo.com/ meloecastro/
3
A expressão em inglês é lang(im)age. Em inglês, 14
Vide:http://www.uol.com.br/augustodecampos
podemos pensar em language, age, e image, ou seja,
na era da fusão da linguagem (escrita ou oral) e
15
Vide gráfico em Moles1990: 151.
a imagem infográfica. Em português, ficamos 16
Ballestrini in Moles 1990: 158
com linguagem e imagem.
17
Vide: http://www.ekac.org
4
A preferência pelo termo produtor-operador-artis-
ta digital pareceu-nos mais genérica e adequada 18
Traduzimos as denominações hypermedia,
ao texto do que produtor-operador-poeta ou produ- hypercard, network hypermedia, tex-generating software,
tor-operador-escritor. para hipermídia, hipercartão, hipermídia na rede
internética e software gerador de texto.
5
Vale referir-se ao fato de que, com o uso de ou-
tras técnicas (papel, tinta, impressão) ocorreu, 19
Vide:http://www.pucsp.br/~cos-puc/epe
igualmente, outra limitação e conformação.
20
Vide:http://www.pucsp.br/~cos-puc/interlab/
6
O aportuguesamento da palavra link já pode ser in4/index.html
pensado – linque, lincar – à semelhança de print
– printar. 21
Biografia de Eduardo Kac in http://www.ekac.org
7
Vide: http://well.com/user/jer/diags4/ 22
Idem.
d4.1.html
23
CAPPARELLI, Sérgio. Ciberpoemas. In: http:/
8
Vide: http://www.refazenda.com.br/aleer/ /www.ciberpoesia.com.br/
9
Vide: http://www.postygraphika.com/menu-
24
Vide:http://ww.experimedia.vic.g ov.au~
sp1/generos/vpoesia/ejemplos.htm komninos/masters.html
25
V i d e : h t t p : / / w w w. u bu . c o m / p ap e rs / o l /
10
Embora com curta duração, E. M. de Melo e stefans.html
Castro, enquanto professor convidado do Pro-
grama de Comunicação e Semiótica da PUC- 26
O mesmo texto foi republicado em Poética dos
SP, em seu Curso de Infopoesia e Poesia Sono- meios e arte high tech (1988: 58-63) e O fim visual
ra, no 1º semestre de 1997, também trabalhou do século XX (1993: 233-238)
a questão da poesia sonora com seus alunos.

Ano 5 • nº 1 • janeiro-junho 2001 - 81


Ciências, Humanidades e Letras

Gêneros da comunicação impressa, audiovisual e


eletrônico-digital: uma bibliografia complementar

U
m dos aspectos fundamentais da engenharia da linguagem é a compreensão de sua textualidade.
Esse é um dos eixos que orientou o desenvolvimento da lingüística nesse século. Até que ponto
elementos dessa engenharia contaminam e organizam a linguagem da comunicação não-verbal que
naturalmente adquiriu o estatuto de texto? Como os gêneros são recodificados e atualizados por diferentes
meios? Perguntas como essas sustentam as investigações sobre os gêneros do discurso produzidos pela
combinatória de meios. Trata-se de uma contrapartida à noção de gênero como classe e à idéia da morte do
discurso no mundo ‘’plugado’’ pela comunicação eletrônico-digital. A bibliografia recomendada abaixo
permite-lhe uma aproximação com esse campo de investigação no sentido de compreender a textualidade
da comunicação contemporânea em sua configuração sistêmica. Para isso, além de uma revisão das teorias
dos gêneros (fundadas na voz e na littera), os títulos recomendados propõem uma análise da engenharia da
linguagem em meios impressos, audiovisuais e eletrônico-digitais. Os trabalhos relacionados, a seguir, for-
necem ainda uma base conceitual, a partir da qual se pode repensar a noção de gênero discursivo como
instrumento para a análise textual dos sistemas de signos da cultura, não apenas na produção como tam-
bém nos processos de recepção e de recodificação das mensagens.

Irene Machado

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