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Narrativas de si: lugares

da memória
Tânia Regina Oliveira Ramos*

Resumo Introdução
Uma breve história da escrita fe- Para dar início a essa trama discursi-
minina como tentativa de mostrar que va sugiro que travemos dois ou três de-
a invisibilidade pode se dar por uma
dos de prosa, seja lá o que isso signifique
história patriarcal e pelas relações
de poder. No entanto, da literatura de fato. É um convite. E por que razão?
de viajantes até a era da cibernética Quero dizer/pensar sobre narrativas de
muita coisa foi dada a ler nesta histó- si, mas muito mais sobre um assunto que
ria literária escrita por mulheres. me tem tocado profundamente, especial-
Palavras-chave: Literatura. Escrita
mente nesta fase de trocas de e-mails, de
feminina. Cibernética. posts no Orkut, em blogs etc.: os lugares
da memória, as escritas de mulheres, as
narrativas de si.
A exemplo de tantos outros compa-
nheiros e companheiras geracionais,
escrevi muitas cartas. Tantas que a mi-
nha tese de doutorado sobre memórias
de escritores começa assim:

*
Professora de Literatura Brasileira na Universidade Fe-
deral de Santa Catarina. Fez seu mestrado e doutorado
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro;
coordena o curso de pós-graduação em Literatura e o
núcleo Literatura e Memória. É uma das organizado-
ras do Seminário Internacional “Fazendo Gênero.”
Organizou o livro Falas de gênero (Editora Mulheres)
e Leituras em Rede: gênero e preconceito e tem vários
ensaios e artigos publicados sobre narrativas de si e
textualidades contemporâneas.

Data de submissão: junho de 2009. Data de aceite: julho de 2009.

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Se relatei meu dia a dia, nas cartas quase di- feminina afirmou-se no espaço das nar-
árias, não foi pela importância dos aconteci-
rativas de si, mais do que pensávamos.
mentos ou das coisas que lembrava naquele
cotidiano de um apartamento de quarto e Imersas numa cultura que estratificou a
sala no Rio de Janeiro. Fazer o texto do meu criação literária como um exercício mas-
cotidiano, não em um diário, mas em cartas,
culino, as mulheres escritoras oitocentis-
endereçadas, em sua grande maioria, aos
meus pais, irmão e a uma amiga, era uma tas deixaram escritas muitas narrativas
prática salutar, a oportunidade que tinha e poemas, embora a tradição literária as
de me ocupar comigo mesma, em uma expe-
fadasse durante muito tempo à invisibi-
riência diária do exercício de memória. As
cartas me transformavam em uma leitora lidade. Vejamos o que nos disse no século
de mim mesma, ainda que eu não me con- XIX uma de nossas mais importantes
tentasse com um texto sem destinatário...
escritoras Júlia Lopes de Almeida: “Sou
Tenho saudade desse paciente exercício.
Fora do que considerei exílio perdi o prazer uma boneca de carne e osso; não sou
da escrita solitária e das coisas acontecidas mais nada. A minha dependência é o
nas margens da tese. Deixei de prestar
motivo de felicidade que todos celebram
atenção ao meu redor para contar ns coisas
prosaicas do cotidiano. Hoje desejo que de em redor de mim. A minha pena é pensar
alguma forma que as minhas cartas tenham estas coisas e saber dizê-las.”1
feito parte das memórias de quem me leu.
O rótulo mais difundido acerca da
Um dia, quem sabe, poderão me reinventar.
Com saudade e com muita imaginação. literatura de autoria feminina – pela
Rio – março de 1987 /Florianópolis – abril historiografia literária – é aquele que a
de 1990.
enquadrou como uma literatura menor,
Minha opção para este texto, então, sem valor, sem qualidades geralmente
está centrada em alguns aspectos da his- atribuídas à escrita masculina – como
tória das mulheres, a minha, inclusive. se tivéssemos feito durante muito tempo
Melhor ainda: sobre a história das es- uma ficção doméstica. Uma boa nomen-
critas de mulheres. Começo, então, com clatura. A ficção doméstica registrava
as cartas de viajantes estrangeiras que os afazeres corriqueiros do cotidiano,
mostraram como, já na metade do século culturalmente atribuídos ao universo
XIX, as mulheres brancas brasileiras feminino: cuidados da casa, preparo dos
tinham um profundo desejo de estudar, alimentos, as ordens dadas aos empre-
de ampliar seus conhecimentos, de ir gados domésticos (predominantemente,
além do que lhes era domesticamente mulheres), organização da cozinha, a
ensinado: contar, rezar, um sofrível fran- limpeza em geral – armários, roupas
cês e conhecimento musical, o que exigia de cama, jardinagem, enfim, tudo, ou
horas e horas sentada em um piano, quase tudo que fosse específico, que
sem tempo de pensar em “bobagens” ou estivesse sob o domínio da mulher. Não
trivialidades. esqueçamos que a palavra domínio vem
Foi dentro de um conjunto sociocultu- de domus, senhor. Clarice Lispector,
ral opressor, no século XIX, que a pena Nelida Pinon, Ligia Fagundes Teles e

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tantas outras escritoras brasileiras do ideologia, estilo ou extensão do trabalho.
século XX descreveram isso muito bem. Segundo ele, apenas se exigiu ineditismo
O importante nessa leitura é perceber- dos textos. Houve, no entanto, uma pre-
mos que as mulheres, ao contrário do ocupação por parte da Editora Record e
que se pensou durante anos, pegaram da do organizador de registrar a geografia
pena e fizeram literatura, assumindo o que percorre seus dois volumes. Fiz o
papel a que se propuseram. Assim, elas exercício de contabilizar: vinte e uma
comprovaram e testemunharam um mo- nasceram no Rio de Janeiro; onze, em
mento importante da história cultural, São Paulo; seis, no Rio Grande do Sul;
embora para a historiografia fossem cinco, em Minas Gerais; duas, na Bahia;
consideradas sombras, destinadas ao duas, em Goiás; duas, no Paraná; uma,
silêncio, à submissão. em Santa Catarina; uma, na Paraíba;
Este meu interesse pela escrita fe- uma, no Espírito Santo; uma, no Ceará,
minina no século XIX se deve à minha e, paradoxalmente, uma em Portugal e
inserção na segunda etapa do projeto uma na Argentina.
de 27 pesquisadoras, coordenado pela Nessa matemática de inclusões ex-
professora Zahidé Muzart, para o resgate clusões, o que merece ser destacado é
de 108 mulheres que escreveram cartas, como essas autoras são apresentadas.
contos, poesias, romances no século XIX Antecedendo cada um dos contos, o orga-
e que por mais de cem anos foram si- nizador dedica literalmente duas linhas
lenciadas pela história da literatura, ou para cada uma delas: nome, cidade na-
mesmo pela história da leitura no Bra- tal, ano de nascimento, profissão e onde
sil.2 Some-se a isso a pesquisa que desen- mora atualmente. Porém, somando-se
volvi em um projeto sobre textualidades esses fragmentos, esses minicurrículos,
contemporâneas, quando procurei fazer essas minibiografias, construímos um
um levantamento de escritas femininas painel significante para a história con-
na contemporaneidade. temporânea da literatura brasileira.
Foi nesta fase que li e estudei duas Nessa economia biográfica nos são
antologias organizadas por Luiz Rufatto: informadas as profissões das cinquenta
25 mulheres que fazem a nova literatura e cinco mulheres. Elas fazem parte de
brasileira e 30 mulheres que fazem a um universo humanístico voltado para
nova literatura brasileira. Cinquenta e a linguagem, para a palavra e para a
cinco nomes foram elencados. Não há da expressão artística, quase todas voltadas
parte do organizador uma outra explica- para narrativas de si e lugares da me-
ção sobre o processo de seleção se não a mória: dez jornalistas, três funcionárias
de que escolheu as autoras que começa- públicas, dez formadas em letras, duas
ram a publicar prosa de ficção a partir em música, quatro publicitárias, uma
de 1990, sem limite de idade, tema, pedagoga, uma psicanalista, oito profes-

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soras, uma socióloga, uma roteirista, três contemporânea, escrevi um ensaio que
tradutoras, uma shiatsuterapeuta, uma foi ponto de partida para outras inquie-
arquiteta, duas editoras, uma crítica de tações. O texto se chamava “Meninas
arte, uma religiosa... Dez se assumem atrevidas, o que é que não vão dizer?”
escritoras e uma é declarada “escritora Nele eu fazia a primeira reflexão sobre
profissional”. diários de meninas. Eu me perguntava,
Tão importante quanto este lugar de já ali, por que continuávamos dando às
onde falam ou asseguram a sua sobrevi- adolescentes diários com chave? E qual
vência é a constatação da produtividade estava sendo a reação das adolescentes
literária dessas mulheres contemporâ- no início da década de 1990 sobre essa
neas (apenas duas ainda são inéditas). prática da escrita de diários?
Elas escreveram na última década: sete Chamava-me atenção uma resistên-
novelas, 55 livros de contos, 22 livros de cia para este texto silenciado e silencioso
poesia, duas biografias, 53 romances, 23 e exemplificava com minha sobrinha
livros de ensaios, um livro-reportagem, Fernanda. Aos 12 anos ela me deu um
um livro de autoajuda, uma peça de diário seu, para fazer rascunho, acom-
teatro... São 165 livros. Quem os leu? panhado do comentário: “Fica com ele,
Onde estão? Quem os publicou? Quando tia. Odeio ganhar diário. Nem sei onde
daremos visibilidade a essa produção? estão os outros.” Perguntei-lhe se não se
Por onde elas transitam? Onde elas estão importaria se eu lesse o que nele estava
inscrevendo suas histórias de vida? Que escrito. Ela me respondeu: “Pode ler, se
corpo feminino é este? Que visibilidade quiser.” Surpreendentemente, noto que
física têm essas mulheres? Como são Fernanda havia me dado um diário va-
seus rostos? Quando faremos a arque- zio até eu encontrar, quase no fim, uma
ologia desses textos? Será que elas não página escrita por ela. Um texto a lápis,
correm o risco de ficar tão invisíveis o único de seu diário, a letra firme: “Que-
quanto as mulheres que escreveram no rido Diário. Aqui termina meu ANTIGO
século XIX?3 TESTAMENTO e começa meu NOVO
Alio o meu olhar crítico sobre esta TESTAMENTO. Fernanda.”
escrita mais canônica, mais editorial, Fernanda, influenciada pelo seu novo
com as escritas de si de pessoas comuns, colégio religioso, escreveu uma bíblia sem
ou melhor: as escritas de si e o lugar das palavras. A lápis. Não quis ser sujeito. O
memórias de mulheres que escrevem texto foi o sujeito: o meu Novo testamen-
em outros espaços. Como a escrita de to começa... Todo o resto, silêncio. Um
cada uma ou de cada um de vocês que ato político de não querer mais escrever
está aqui. Quando, para minha tese de um livro de leitura proibida. Foi a sua
doutorado, pesquisei textos memoria- geração na década de 1980 que começou
lísticos na história da cultura brasileira a escrever lembretes, citações, poemas,

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fazer colagens, espécies de videoclipes, livro aberto e não mais terá de procurar
nas agendas anuais.4 abrigo para a sua escrita na solidão do
Quando examinei as agendas de quarto.
adolescentes constatei a possibilidade A leitura das agendas, feita por mim,
de ouvir uma fala fragmentada que saía foram todas autorizadas pelas autoras.
desse lugar tenso da contemporaneidade: Isso equivale a dizer que, ao me trans-
uma nova versão dos diários ou cadernos, formar em leitora desses textos da inti-
que em tempos passados abrigavam a midade, ocupei um lugar que parecia já
intimidade inenarrável de jovens a ponto estar previsto, porque as agendas não
de procurarem registrar a descoberta contêm, como os diários, um texto pes-
dos primeiros amores ou a angústia da soal, íntimo e indevassável. Em outras
solidão. Nas agendas modernas estavam palavras quero dizer que, ao transgredir
as excentricidades nem sempre repro- através da leitura dessas intimidades,
duzíveis nas (im)possíveis memórias oferecidas para a minha pesquisa com
registradas nos diários, gênero frequente muita tranquilidade pelas jovens adoles-
na tradição histórico-literária. centes, pela interrupção do silêncio a que
O que eram (e ainda são) essas agen- esses textos eram submetidos ao término
das? Um peculiar espaço textual, um ob- de cada ano, descobri um viés bastante
jeto do desejo, o mesmo desejo que fazia fecundo para compreender uma escrita
as garotas consumirem jeans, camisetas, que se faz à parte da instituição literária
tênis e mochilas, que explicitava o status, e que se quer à margem da instituição
perante o grupo social, do uso de certas familiar. A obrigatoriedade da escrita
grifes da moda. Colorida, capa plastifi- da agenda não vem da família nem da
cada, emborrachada, de couro, da tribo, escola.
ao mesmo tempo em que assumia uma As agendas selecionadas na pesquisa
função social e econômica, esse nem tão foram escritas por garotas na faixa dos
obscuro objeto passava a ser extensão do 13 aos 17 anos, de diferentes contextos
corpo num ir e vir diário, em espaços pú- econômicos. Mais do que descobrir seus
blicos e privados, transformando-se num mecanismos de produção, o que seria a
depósito de recados, adesivos, recortes, leitura ideal, procurei sistematizar algu-
clips coloridos, papéis de bala, ingressos mas ideias que reforçassem a seguinte
para shows, desenhos cuidadosamente hipótese: as agendas fornecem um im-
elaborados, palavras e frases multicores portante material para o conhecimento
numa exposição de criatividade em torno de fragmentos de uma história de forma-
de nomes e especificações aparente- ção da nova mulher, até porque os limi-
mente inúteis. Na ocasião eu afirmava: tes desse gênero são tão fluidos quanto
finalmente, a mulher encontra a pos- necessários para incluir textos como
sibilidade de escrever sua vida em um essas anotações de meninas, produzidas

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em diferentes circunstâncias históricas Na ludicidade, no prazer de pintar,
e sociais: “Diário é coisa muito chata. recortar, colar e desenhar e na conquista
Tem que colocar tudo o que aconteceu e de uma forma de expressão sobre a qual
nem dá para colar nada. Agenda é mais só a escrita feminina tem controle, as
moderno”, escreve uma das autoras. agendas legitimaram-se como o texto da
Outro aspecto constatado é que as diferença: “Agenda de garota é a coisa
agendas revelavam uma necessidade mais inútil que existe. Elas colocam pa-
de se pensar a vida não na forma de um pel de chocolate, de bala, contam todos
contínuo cronológico e progressivo como os detalhes da vida amorosa. Ridículo!”
os diários, mas de modo fragmentário e Nessa fala autoritária de um garoto
disperso. Parece que tudo se torna puro de 15 anos aparece a rediscussão das
registro, e como uma gaveta desarruma- relações entre o masculino e o feminino,
da, repleta de recordações e fragmentos, vistos como lugares textuais tensos, e
a história de vida fica ali para que um a impossibilidade da leitura e da inter-
dia alguém jogue fora. Não mais o texto pretação de certos códigos, que delibe-
estruturado enquanto narrativa, mas radamente marcam a diferença. É uma
muito papel de bala, de chiclete, muita diferença, aliás, que não é apenas sexual
entrada de show, de cinema, papel de e que não se dá de maneira assimétrica
chocolate, muita comida, muita dieta: ou contrastante, mas que se processa
“comi lazanha, almoçamos na tia Li”, por um tom, uma cor, uma dicção e um
“almoço no Diego e eu não vou!!!”, “49 kg. ritmo próprios. Sei que estou caindo na
Estou me sentindo uma baleia”, “Comi armadilha da oposição binária, homem e
cinco Sonhos de Valsa. Vou colar aqui mulher, mas não há como não ler aí um
todos os papéis para sentir remorso!!!” sujeito que cria a si mesmo enquanto
(...e cola as cinco embalagens dos Sonhos fala, enquanto texto, à procura de uma
de Valsa). linguagem peculiar que marque seu lu-
No campo do literário uma obra pode gar no mundo.5
ser considerada romântica quando valo- Meninos escrevem agenda? Surpreen-
riza a subjetividade e a imaginação nos dentemente, durante a minha pesquisa
modos de expressão. Mas vai além: um recebi uma carta de um menino e uma
modo de ser romântico está muito mais agenda para examinar. A carta foi re-
relacionado à fragmentação do indivíduo sultante de uma crônica que meu orien-
e às formas de expressão. As agendas tador, Affonso Romano de Sant’Anna,
são feitas desses textos, mas, mais do escreveu, intitulada “Agenda de meni-
que isso, elas parecem querer revelar na”, quando leu meu texto “Meninas
a impotência das palavras. Daí o jogo atrevidas, o que é que não vão dizer?”
quase infantil de formas e cores para Eu trouxe a carta na íntegra, mas vou
preencher vazios. ler umas passagens.

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Caro Sr. Affonso: Fiquei um pouco magoado adulta ela recupera a forma diário e a
ao ler no domingo, 7 de agosto, sua crônica.
correspondência para falar de si.
Menino tem agenda, sim. O senhor não está
bem informado ou é uma idéia pré fabricada. No programa de Serginho Groiss-
Se o senhor for no meu colégio vai ver mui- mann, nas altas horas do sábado para
tos meninos com agenda. Na agenda de um
domingo, surpreendo-me com a inclusão
menino tem assuntos diversos, tem endere-
ços, tem fotos de revistas masculinas, tem inesperada do tema diário, a partir da
recortes, tem letras de música. É claro que resposta dada pela jovem da plateia ao
a gente não escuta: Escreva seus segredos.
ser entrevistada: “O que mais gosto de
Isso é ridículo!!! Sabe que no meu colégio
Santo Inácio é capaz de ter mais agendas de fazer? Escrever o meu diário, respondeu
meninos do que de meninas? Outra coisa: eu ela.” O entrevistador foi tomado de sur-
e meus amigos temos caderno de composi-
presa, pois pensava, por certo, que em
ções e eu tenho um caderno com 9 histórias
que eu mesmo escrevi. A sério. Tenho 13 2005 uma jovem de 17 anos jamais escre-
anos, estou na 7ª Série e meu nome é Jardel vesse um diário tradicional. Então, ele
Sebba Filho. leva adiante o tema e pergunta: “Como
O protesto de Jardel me levou a você começa seu diário, todos os dias?”
querer ler a agenda de João Guilherme, E ela, sorrindo: “Querido diário.” Ele
também de 13 anos, trazida para mim lança, então, a pergunta, para a plateia
pela sua mãe, com o seu consentimento. (e muitas mãos levantam) e para as três
Na agenda do João descobri que, mais artistas que estavam sendo entrevista-
do que uma agenda, João escrevia lite- das, coincidentemente mulheres. Com
ralmente um diário: exceção de Alcione, Débora Falabela
Hoje aconteceu uma coisa muito triste. Meu e Elba Ramalho, vindas de diferentes
pai, minha mãe, minha irmã e eu íamos pas- contextos, afirmaram que escreveram
sar o dia no Parque Beto Carreiro. Estava
tudo organizado. Só que a minha tia, irmã
diário por muitos anos.
do meu pai, morreu e tivemos que ir para o Convivendo com Júlia, que sempre
enterro. Nunca mais meu pai vai querer ir usou sua agenda para narrar o que fez
para o Beto Carreiro com a família. Tia, eu
gostava muito de você, gostava de quando durante o dia (e não seus segredos ínti-
vinha na minha casa e eu ia na tua, mas mos), e com minhas bolsistas de iniciação
não foi uma boa você morrer hoje. Seu EX-
científica, alunas da graduação, que nas
sobrinho João.
descobertas de seus 17, 18, 19, 20 anos,
Que outras narrativas de si escrevem geração do computador, têm me acom-
os meninos? Esta é uma pesquisa ainda panhado nos segredos da cibernética, eu
por fazer. João e Jardel me deram as não poderia deixar de falar no que hoje
pistas. Precisamos também saber o que parece ser outro desejo de muitos adoles-
eles dizem... Meu texto poderia terminar centes iniciados e com acesso à internet:
aqui, mas descubro que está havendo a ter seu blog, ter seu flog, ter amigos no
revitalização de diários. Se a adolescente Orkut. Seus diários na internet vão além
ainda gosta de ganhar agenda, descubro dos diários íntimos ou da ludicidade das
que no rito de passagem para a vida agendas.

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A internet ofereceu uma nova ma- bolsistas de iniciação cientítica e alunos
nia chamada blog. É possível, então, de graduação, porque eles fazem parte
um diário absolutamente aberto? Esta deste universo e dominam essa nova
página virtual e interativa tem muitas linguagem, comunidades de leituras no
vezes conteúdo de diário, e pode-se ler Orkut. O que objetiva o Orkut? Formar
de tudo num blog. De política ao fim de uma rede social onde você possa ampliar
um relacionamento. Do primeiro beijo e recuperar amigos, fazer o seu perfil,
à descrição de um filme clássico. Não dizer quem é você, seus gostos, suas
vou poder me deter em nenhum deles, preferências, para receber depoimentos,
embora sejam muito interessantes, ter fãs, mandar mensagem, colocar fotos.
mas quero contrapor uma observação. A Uma parte da tua intimidade em um site
maior parte dos pesquisadores que têm que te exibe para aqueles que fazem par-
estudado a intimidade dos blogs, espe- te desta intimidade. A base do Orkut é:
cialmente os femininos, tem os lido pelo Só entra quem é convidado. O criador do
viés do exibicionismo. Eu, ao contrário, programa, quando perguntado em uma
leio como mais um sintoma da solidão recente entrevista, se entendia a razão
contemporânea. de o Orkut ter tido tanta receptividade
O diário tradicional não queria ser no Brasil, disse que não sabia a resposta,
lido, a agenda não visava a um inter- mas acreditava que a razão era a perso-
locutor imediato; o diário na internet nalidade amigável dos brasileiros.
almeja não só à leitura, mas a um post, Quero registrar que no próprio Orkut
um comentário. Um registro formal há comunidades que se dedicam a falar
de quem o leu e não apenas o visitou. de seus diários na internet. A comuni-
Alguns leitores de blogs acompanham dade “Ninguém comenta o meu blog, o
esses diários virtuais como capítulos de meu flog” tinha 1.009 participantes. O
uma novela. Os próprios blogueiros, na mais interessante é que o apelo para você
maioria das vezes, são leitores uns dos participar desta comunidade é: “Se você
outros. É por isso que são chamados “vi- acha que tem talento, mas ninguém o
zinhos” na rede. A explosão dos escritos valoriza, se você é um ser humano, esta
íntimos na internet leva, então, a uma é a sua comunidade. Vamos nos juntar
questão interessante: é possível voltar para formar um oligopólio de comentá-
aos seus escritos e refazê-los a cada dia, rios para satisfazer o nosso ego”. Há uma
a cada hora. O blogueiro parece ter um outra comunidade, com 481 membros,
prazer inconfessável de passar a sua que é “Eu odeio blog, flog e fotolog, essas
vida a limpo. coisas inúteis”. Com 330 membros você
Nessa trajetória que fiz sobre narra- encontra “Eu tenho um blog”. Com mais
tivas de intimidade, o meu texto chega de 2.294 membros: “Eu amo meu blog”
a 2.008. Atualmente eu pesquiso com e, com 955 membros, “Eu tenho blog,
flog, MSN.

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Uma rede de escritor@s ansiosos por um escritor podem figurar como objeto
leitores... Uma comunidade de destinos. de fruição estética, no qual literário e ex-
Este meu texto, que começou pela escrita traliterário se alternam, embora admita
feminina no século XIX da intimidade, que, de modo geral, as missivas nascidas
parece encontrar nessas formas de inti- das mãos das mulheres “constituem
midades públicas veiculadas pela inter- fragmentos valiosos que refletem a per-
net a superação dessa interdição entre as sonalidade do sua autora, o seu ambiente
escritas masculinas e femininas. O sexo e as circunstâncias que envolveram seu
dos textos parece aqui ser superado. Ou trabalho criativo”.7 Poderíamos daí en-
ainda mantém a diferença? tender que escrever cartas é, assim, um
Mas eu quero retomar o início de mi- pequeno ofício “literário” no sentido mais
nha escrita, quando falava das cartas e restritivo e convencional desse termo,
do que elas significaram para a história pois ao escrever uma carta não se pode
das mulheres, enquanto narrativa de si e fugir a um código que modela e altera o
lugar da memória. E aqui eu recupero o que tão simplesmente queremos e gos-
lugar teórico desta minha reflexão. Para taríamos de dizer.
mim, nessa trajetória que procurei tratar Olhar semelhante é apresentado
entre a ficção doméstica, como costuma- por Walnice Nogueira Galvão e Nádia
vam chamar a escrita das mulheres do Battella Gotlib, ao mencionarem, na
século XIX, e os e-mails trocados no sé- coletânea Prezado Senhor, Prezada
culo XXI, nas tratativas de nossa vinda, Senhora, que as correspondências – ou
quero privilegiar a correspondência. Por a literatura epistolar, como preferem
essa razão, é para a correspondência que nomear –, apesar de ocupar uma zona
reservo o espaço teórico de uma reflexão intermediária entre o ficcional e o his-
mais profunda. Trago para dentro deste tórico, a ficção e o documento, podem
texto as mulheres que pensam a carta ser tomadas como fonte privilegiada ao
como o lugar privilegiado das narrativas desvendamento dos universos público
de si e do lugar da memória. A carta, a e privado, pois também figuram como
correspondência, é ainda o que nos res- autorretratos e decalques de relações
ta de privado neste milênio em que nos pessoais e sociais. Para Nádia Battella
sentimos como se estivéssemos expostos Gotlib, a epistolografia, como gênero hí-
em vitrinas. brido, constitui campo fértil às diferentes
Käte Hamburger entende que a cor- instâncias das experiências do relato e
respondência é sempre um documento se presta ao cumprimento da tarefa de
histórico que abriga testemunhos pesso- aproximar remetente e destinatário,
ais, sendo igualmente histórico o sujeito “tendo em vista, fundamentalmente, a
dessa enunciação.6 Sophia Angelides, incontrolável necessidade de contato e de
mais cautelosa, pondera que as cartas de mútua aproximação, durante a ausência
do outro”.8

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Oi, Tânia, que escreveu agendas durante muito,
Fiquei com vontade de te contar algumas mas muito tempo, surpreendentemente
coisas. Tive agenda por muito tempo. Muito
tempo mesmo. Só que as rasguei e queimei ela me aponta a escrita feminina para
quando descobri que minha mãe as lia outra direção: a da correspondência,
também há muito tempo, há muito tempo espaço que merece o destaque merecido.
mesmo (rsrsrs...). Depois disso comecei a
escrever cartas. Escrevia, escrevia, escrevia Para mim escrever cartas é a grande
quase como um diário. Um dia resolvia colo- vitória das narrativas de si: os textos
car um ponto final, colocava em um envelope escritos para um determinado destina-
e mandava para minhas amigas. Poderia
tário; um texto explicitamente desejando
usar o telefone para dizer a elas um monte
de coisa mas não dava o mesmo prazer, eu a leitura; um texto perverso, porque a
penso. As cartas continuam coloridas como correspondência para existir precisa de
sempre. Cheias de coisinhas. Eu queria que distância e ausência, e a privacidade, a
alguém lesse e preferia que fossem minhas
melhores amigas. intimidade, só podem ser invadidas se
Escrevi também muito para um namorado fôssemos como antigamente para o bico
que eu tive há uns dois anos. A gente se via da chaleira, tentar, sem deixar pistas,
sempre, mas mesmo assim eu o enchia de
cartas, bilhetinhos, recados. A recíproca
abrir o envelope...
não era a mesma, é claro. Homens não Mas isso seria uma outra pesquisa. O
conseguem transformar o que sentem em que eu quis registrar foi este potencial
palavras. Ah, minha canetas não são mais
feminino para a palavra escrita. As 108
florescentes. Mas os lápis de cor e as caneti-
nhas ainda fazem parte do ritual. escritoras do século XIX nos dois volu-
Tenho vontade de ter aqueles diários antigos mes organizados por Zahidé Muzart (um
com chave, mas não sei se eu conseguiria es- terceiro volume está no prelo), as duas
crever uma coisa que ninguém pode ler. Não
tenho flog, nem blog. Visito flogs e blogs de antologias organizadas por Luiz Rufatto,9
meus amigos, deixo uma foto, uma palavra as agendas, os blogs, os fotologs, as co-
e deu. Não tenho muita paciência para ler munidades no Orkut,10 as professoras,
tudo o que escrevem. Não acredito que os
as secretárias, as revisoras de textos, as
blogs substituam as agendas, os diários e as
cartas... E os segredos mais íntimos como é jornalistas, as poetas, as romancistas, as
que ficam? Curto o Orkut. Acho, porém, que estudantes de letras, predominantemen-
ele é um pouco viciante... Mas como pode ver te femininas, são as mulheres que fazem
o que eu gosto mesmo é de uma carta. Não
sei se sou a única... Sei que você gosta. Sem da palavra a sua arma, que fazem das
querer te escrevi uma, mesmo mandando 23 letras do alfabeto o seu potencial...
por e-mail. Beijos Cristina. Sim, nós escrevemos... Ou como diria a
Recuperei o e-mail que Cristina, mi- poeta Cláudia Roquete Pinto nesta mi-
nha aluna de graduação em Letras, me nha experiência de leitura desta escrita
escreveu recentemente, para terminar feminina: “ESCRITA / é sempre você /
este artigo. Se fui prolixa parece que quem me resgata / do limiar do iminente
Cristina conseguiu a síntese. Nos seus nada.”11
19 anos e hiperbolicamente me dizendo

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Narratives of self: the Notas
places of memory 1
Sobre Júlia Lopes de Almeida e a escrita feminina
recomendo o importante estudo de Nadilza Morei-
Abstract ra. A condição feminina revisitada. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2003.
A short history of female writing as 2
MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras
brasileiras do século XIX. Florianópolis: Mulheres;
an attempt to show that invisibility can Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999 e 2004. v. I e II.
be brought about by a patriarchal his- 3
RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Talentos e
formosuras. Cerrados – Revista do Curso de Pós-
tory and by power relations. However, Graduação em Literatura, Brasília: UnB, v. 11,
from travel literature to the age of cy- n. 12, p. 101-111, 2002.
5
bernetics, a lot has happened along the Desenvolvi esta pesquisa sobre agendas e a pu-
bliquei com mais detalhes no ensaio publicado no
literary history written by women. livro Refúgios do eu, organizado por Maria Teresa
Santos Cunha, Ana Cristina Mignot e Maria He-
lena Bastos, publicado pela Editora Mulheres em
Key words: Literature. Female writing. 2000.
6
Cybernetics. HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária.
São Paulo: Perspectiva, 1983. (Col. Debates).
7
ANGELIDES, Sophia. Carta e literatura: corres-
pondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo:
Edusp, 2004.
8
GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia.
Prezado Senhor, Prezada Senhora. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
9
RUFATTO Luiz (Org.). 25 mulheres que estão fazen-
do a nova literatura brasileira. São Paulo: Record,
2004; RUFATTO Luiz (Org.). + 30 mulheres que
estão fazendo a nova literatura brasileira. São
Paulo: Record, 2005.
10
Jurema Chagas defendeu em 2007, na UFSC, no
Programa de Pós-Graduação em Literatura, a
dissertação Blogs pessoais. A representação do eu
na era cibernética, e dá com a sua pesquisa uma
boa contribuição ao assunto. Disponível em: http://
www.tede.ufsc.br/teses/PLIT0274-D.pdf. Acesso
em: 6 jun. 2009.
11
ROQUETE-PINTO, Cláudia. (dia das mães). In:
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas brasi-
leiros do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
p. 331.

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