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(Texto adaptado de minha dissertação de mestrado para a disciplina

Métodos e Técnicas de Pesquisa Social I, ministrada no Curso de


Ciências Sociais em 2006 e 2007, e Metodologia da Pesquisa,
ministrada no Curso de Especialização em Segurança Pública e
Cidadania, em 2007 e 2008)

O MÉTODO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS


Aécio Cândido

Uma das maiores dificuldades metodológicas da pesquisa social reside na situação artificial
em que se dá o encontro do pesquisador com o pesquisado. Esta observação não é original, e tanto
já foi repetida nos cursos de ciências sociais que ganhou um sabor de lugar-comum. Embora um
lugar-comum, tal observação não perdeu a veracidade, pelo simples fato de que a situação a que
ela se refere em nada foi modificada em sua singularidade. De fato, o encontro entre pesquisador e
pesquisado significa a intervenção de uma pessoa estranha na rotina de um dado indivíduo,
desejosa de estabelecer a verdade objetiva em relação a um dado fenômeno presente nessa rotina,
de captá-lo em sua pureza de fenômeno singular. Neste caso, o comportamento natural cede, em
geral, a um comportamento cerimonioso, no qual a linguagem usada, seja a verbal seja as outras
linguagens das quais o corpo participa, perde a sua espontaneidade, isto é, a desejada aproximação
da pureza do fato é nublada pela cerimoniosidade da situação e pela representação que se tem dela
e de seus atores, rondando aí o risco da idealização e da irrealidade. Entre camponeses e outros
grupos de cultura subalterna, o pesquisador é representado quase sempre como alguém detentor de
poder, que pode trazer alguma ajuda para a comunidade. Sobre ele se depositam muitas esperanças.
Tratar com indiferença esta expectativa, ignorá-la ou, cinicamente, tirar partido dela é um dilema
com o qual o pesquisador se depara. Se há previamente um envolvimento maior do pesquisador
com a comunidade, essa situação constrange, seja porque em geral o pesquisador é tão impotente
quanto o informante, seja porque qualquer relação de assimetria, quando enfatizada entre duas
pessoas, é de fato incômoda.

Embora amplamente conhecida, trata-se de uma questão recorrente, sendo, portanto, de


interesse científico a observação da forma como ela se manifesta em contextos específicos. Entre
agricultores pobres, por exemplo, colonos de um projeto estatal de desenvolvimento agrário. Como
neutralizar a artificialidade da situação, é esta a questão prática com a qual se depara o pesquisador
em trabalho de campo. Confiar que situações espontâneas gerem uma maior riqueza de
informações é ingenuidade ou desconhecimento do que seja o dado científico. Uma pesquisa
científica dá-se submetida a um foco e é sob esse foco que as informações serão levantadas. Numa
situação de conversa espontânea é muito pouco provável que as informações desejadas aflorem. É
distas dificuldades e das estratégias para superálas que trata o presente artigo.
Em pesquisa realizada na Serra do Mel, em finais dos anos 1980, sobre a mobilização
política daqueles colonos, buscamos relativizar esse problema pedindo a ajuda de algumas pessoas
das próprias vilas constituintes da amostra, com quem privávamos de amizade e intimidade maior.
Essas pessoas, por serem indiferenciadas da comunidade, podiam, em qualquer eventualidade,
escutar e participar de conversas, sem alterar seu rumo ou a postura daqueles com quem
conversavam. Pedimos a essas pessoas para anotarem relatos dessas conversas. Interessava-nos ver
os assuntos mais conversados, os temas que mais insistentemente e espontaneamente apareciam.
Conseguimos que esse trabalho fosse feito, com notável sucesso, em duas vilas, a Vila Piauí e a
Vila Goiás.
As conversas de boca de noite, que podem se dar no alpendre da casa de alguém mais
sociável ou numa bodega da vila, considerada um espaço mais livre, principalmente quando o dono
não mora com a família no mesmo ambiente, são marcadas pelo tom desabusado e pela
informalidade. Nesses momentos, todos se expressam e com alto grau de liberdade. Mas a presença
de qualquer elemento estranho ao grupo, principalmente a de um elemento diferenciado pelo grau
de doutor ou por qualquer outro status superior iria corromper aquela informalidade e liberdade. As
conversas foram anotadas e forneceram algumas informações que, quando nada, serviram para
corroborar algumas suposições. É evidente que o que se aproveitou dessas anotações foram aqueles
dados situados nos limites do “foco” da pesquisa.
O apelo a “pesquisadores locais” foi o instrumento metodológico utilizado para fazer
frente à “invasão do pesquisador” e a conseqüente artificialidade da interação. Se este é um
problema, digamos, físico, há um outro relacionado à compreensão do discurso, freqüentemente
interpretado como ambíguo e mesmo incoerente. Este é um problema que pode ser enfrentado com
a análise do discurso.
A pesquisa, como qualquer outro tipo de interação social, é um ato de comunicação. E
esta não é fácil entre duas pessoas. Para que a comunicação seja tentada é necessário que um
sentimento maior os aproxime. Ainda assim, a existência de qualquer sentimento, amizade, simpatia
ou amor, não é garantia suficiente de que ela será conseguida. Como também não é garantia o uso
exclusivo da razão, se tal é possível numa relação de comunicação. Há nesse processo coisas que
escapam à razão como há coisas que escapam ao sentimento. No entanto, uma dose, não muito
pequena, de simpatia é condição "sine qua non" para que a comunicação seja tentada. Porque são
muitos os ardis da fala. Para enredá-los é necessário tanto a racionalidade acurada do discurso como
a disposição afetuosa em proceder ao enredamento.
Por exemplo: com muita facilidade se diz que a fala camponesa é pontilhada por
incoerências. É claro que elas existem, se a gente se guia por uma teoria social que pretende
organizar o real a partir de uma espinha dorsal explicativa em que todas as particularidades se
acoplam e se justificam. Ainda assim, muitas das ditas incoerências não passam de impedimentos
comunicativos interpostos entre o pesquisador e o camponês pesquisado. A mesma situação, em
contextos semânticos diferentes, às vezes não percebidos pelo pesquisador, gera respostas
facilmente traduzidas como incoerentes. Na pesquisa citada, perguntando sobre os órgãos que os
ajudavam e citando-se cada órgão para que o informante opinasse a respeito, a resposta de um
colono de 68 anos foi que "O sindicato também não deu ajuda nenhuma; até aqui eu nunca achei
nada [realizado por ele na vila]. Eles já ofereceram até aqui pra gente fazer um São Vicente, por
parte dele, da Igreja, fazer uma cisterna ali no meio, naquelas época, pra botar água pra todo
mundo, pra comunidade toda, né? Mas ficou nisso”. Um pouco mais à frente na entrevista, instado
a dizer se dava atenção ao que o sindicato e a associação diziam, responde que sim e faz uma
avaliação muito positiva da atuação do sindicato: " Eu dou porque tenho visto muita coisa pelo
sindicato, né? Aí mesmo tem esse terreno [refere-se a uma área de reforma agrária diante da sua
vila, Vila Acre], que até um menino meu e um genro meu pegou, cada um, um pedacinho de terra.
Já fizemos uma casa, já tão armando toda, lá [casa de taipa, feita de armação de varas e barro].
Isso é coisa pelo sindicato. Quer dizer que já é uma grande coisa, pro povo que tá desamparado.
O sindicato é um órgão, um grande órgão. Eu já sou aposentado por ele também. "
O que ocorre, então? Ocorre que o termo sindicato aparece em dois contextos semânticos
diferentes. No contexto de ajuda, onde esta é entendida como ajuda monetária, sempre, é dito que o
sindicato nada fez; no contexto de dar atenção, que significa também ter consideração, respeitar,
levar em conta, ao se propor avaliar a existência do órgão enquanto possuidor de uma serventia, a
resposta é largamente positiva. E aí aparece uma avaliação também do trabalho reivindicativo do
sindicato.
O mesmo deslocamento de contexto é observado durante entrevista com um colono de
46 anos, da vila Piauí. Instado a falar sobre sua vida, ele diz: “A vida no lugar que eu nasci é a
mesma daqui, a mesma coisinha. Sendo melhor do que aqui. Aqui a gente só tem a safra do
cajueiro, e no inverno coisinha muito pouca. E lá onde eu nasci e me criei nós tem a safra de
arisco, no terreno de planta de inverno, e temos a safra de alagadiço, no paul, plantando. Eu acho
que lá é melhor do que aqui". Mais à frente, perguntado sobre o que não gosta na Serra do Mel,
responde: "Aqui tudo é bom, não tem nada ruim. Se eu tivesse achando ruim, já tinha feito como os
outros: tinha entregado pra outro [seu lote de terra] e ido embora".
As respostas parecem se contradizer. Mas apenas parecem. Na primeira resposta, a
fertilidade do solo e a prodigalidade das safras são os elementos comparativos que se sobrepõem, ou
seja, a terra é visualizada em si, em seu valor natural, dado pela adequação à agricultura. Terra
privilegiada que fornece inclusive duas safras. O que aparece aí é a terra idealizada como mãe
extremada, que dá sem que lhe seja pedido, isto é, terra livre da dominação do homem.
A segunda resposta se coloca num contexto em que uma seqüência de diferenciações
vinha sendo tecida. Os elementos comparativos que aí aparecem são a casa e o terreno, que agora
ele tem, e a liberdade daí advinda, sobremaneira realçada porque lhe permite uma vida próxima
da condição de natureza, onde o tempo lhe pertence e o disciplinamento como resultado da
imposição, da vontade de um patrão não existe. A liberdade é o elemento comparativo que se
sobrepõe no confronto entre as duas situações, a anterior e a posterior à Serra. "Minha vida
mudou, porque eu tô dentro do que é meu", diz ele num trecho anterior. Desse modo, o elemento
sobreposto na segunda resposta não é a terra em si, ente físico com características de textura (terra
boa de se trabalhar, macia, sem pedregulhos) e de fertilidade (terra rica, de boa produtividade),
mas a terra como propriedade e a situação conseqüente de tal apropriação.
Essas trocas de contexto são ardis perigosos.
Outro ardil: não é raro que o informante encare a entrevista como uma "prova"
estudantil. Neste caso, ele avalia que há respostas certas e respostas erradas. Ora, o não-saber é uma
despossessão dificilmente confessada. A ignorância é uma vergonha tão grande quanto a pobreza.
Diante de um doutor que o interroga, que lhe pede opiniões e que sonda a história do lugar,
confessar que não sabe ou incorrer numa resposta "errada" é uma vergonha lamentável. Daí ser
comum o final de uma resposta vir acompanhado de um pedido de confirmação ("né?", "é isso ou
não é?", "né assim mesmo?",etc.), como a querer que se diga que aquela é mesmo a resposta certa.
"É o sindicato, é, que tá do lado do colono?", pergunta um colono de 56 anos, da Vila Bahia,
respondendo à indagação "quem é que está a favor dos colonos?". Diante do nosso dar-de-ombros e
do riso compreensivo que mais assentia do que dizia "não sei", ele introduz segurança na resposta e
afirma categoricamente: "O sindicato é quem trabalha mais a favor do colono".
Perguntado se conhecia o jornal A Vez da Serra, informativo que circulou durante um
ano, ligado a um grupo de educação política, um colono da Vila Acre, respondeu um tanto
evasivamente: "Parece que lá em casa tinha um". No entanto, perguntado sobre o que achava desse
jornal, diz que "o Jornal era uma coisa boa, porque tava dando boas explicações pra quem tem
entendimento. Não era mau não", o que é uma resposta categórica, embora genérica. Entre outras
possibilidades, esta pode ser apenas uma forma de não demonstrar desconhecimento, de não
confessar ignorância e por outro lado corresponder às expectativas do pesquisador, que ele associa
"ao pessoal que mexe com essas coisas". Ou seja, é uma resposta tida por ele como bem educada,
que não fala mal, e na cara, de algo que tem a ver com a pessoa que pergunta.
No trabalho de campo, o pesquisador depara-se com um informante e estabelece com
ele uma relação de comunicação, que não se limita nem se esgota na linguagem verbal usada para
comunicar perguntas e respostas. Estabelece-se uma interação entre eles, onde cada um mede o
outro, avalia-o e o representa. O pesquisador, assim como o informante, carrega consigo uma série
de pressupostos e pré-conceitos. Tanto do lado de um como do outro, a representação do real pode
não corresponder efetivamente ao real, mas em grande parte dos casos o real finda por ser
compreendido nos limites daquela representação. É comum que o pesquisador iniciante, que se
propõe a uma pesquisa-ação, vibre feliz quando obtém de um informante trabalhador uma resposta
que para ele, pesquisador, é a resposta desejada, porque acha "justo" ouvi-la da boca daquele
interlocutor. Isso o leva a desprezar outras respostas "menos coerentes". Mas acontece que o
informante/trabalhador também avalia o pesquisador e muitas vezes começa a perceber, através
daqueles indicativos incontroláveis da linguagem (seja a formulação interessada das perguntas seja
alguns gestos ou sons interjeitivos de aprovação a certas respostas ou prenúcios delas), o que soa
agradável ao pesquisador. Matreirice? Não deixa de ser um certo senso de oportunidade, que está
tanto em agradar alguém que ele supõe com o poder de lhe trazer algumas melhorias, pessoalmente,
ou porque o trabalho que esse alguém realiza, de tomar informações, tem o poder de fazer ciente
às autoridades o que elas não sabem ou então por pura cortesia, uma vez que não é louvável que se
desagrade uma pessoa dizendo coisas que ela não gostaria de ouvir.
Esta ultima hipótese está muito próxima daquela atitude que o camponês traduz pela
expressão "não gosto de agravar ninguém", que se explica pela fragilidade com que ele se
representa. Não há muita segurança, pelo menos num primeiro momento, de saber diante de quem
ele está, se de um aliado ou de um inimigo, se de alguém de confiança, na sua perspectiva, ou de
alguém a quem ele pode agravar com o que disser. No que toca às forças situadas dentro da vila,
esse "mimetismo" se explica racionalmente pelo tamanho do espaço da vila, que transforma em
intranqüilidade qualquer situação de inimizade. A vila, pequena, resumida a duas ruas apenas,
obriga os inimigos a, diariamente, cruzar o terreiro um do outro, o que é um risco porque pode ser
tomado como desfeita. Tal atitude reflete-se metodologicamente no trabalho de campo, podendo
nublar respostas se o pesquisador se der por satisfeito com a informação que o entrevistado não
gosta de agravar ninguém e, portanto, não vai emitir nenhuma opinião. Se há uma certa insistência
ou mesmo se o pesquisador se cala e demonstra estar à espera de uma resposta mais consistente, o
informante naturalmente avança na sua resposta.
Dizer também que não gosta de agravar ninguém já é, em certa medida, uma declaração
de que o que está sendo alvo de avaliação é medido com certa negatividade. Se assim não fosse,
não haveria razão para a cautela. Ela é comumente a expressão usada para opinar sobre questões
polêmicas. Mas há também uma outra para a mesma situação: é dizer que não vai falar e, ao final,
falar, ou seja, ao final ter emitido uma opinião. Por exemplo: "Todo mundo blasfema a cooperativa.
Também não vou falar contra ela". E depois de uma série de considerações onde ele,
individualmente, mostra que não sofreu prejuízos com ela, porque levava as contas feitas de casa, o
informante, colono da Vila Goiás, arremata: "Agora ela vem assim desmantelada, não sei por que
nunca deu certo. Mas um dia ela dá certo. Porque tem que ter uma cooperativa dentro do Projeto
[de Colonização]".
As palavras podem ser incorporadas ao discurso sem consciência expressa da sua
significação, às vezes é uma expressão vocabular que é incorporada, com um sentido geral difuso,
sem que o sentido particular dos termos que a compõem seja compreendido. Certas palavras
funcionam como chave para entrada no contexto da expressão. Quando o pesquisador as usa, a
resposta coloca-se perfeitamente na lógica esperada. Na verdade, não significa que houve
apreensão, mas apenas que a expressão foi reconhecida e encaixada numa estrutura mecanizada pré-
existente, que já faz parte do seu repertório, pela repetição e não pela apreensão. Isso se dá, em
parte, porque se trata de realidades criadas por sujeitos diferenciados, embora enquadrados numa
mesma realidade social mais ampla. O caso de que vimos tratando é exemplar e na nossa pesquisa
ocorreu com uma freqüência notável.
Damos como exemplo duas respostas, de dois colonos diferentes. O primeiro, de 57
anos, ao ver pedida sua opinião sobre a Igreja, na seqüência de um conjunto de outros órgãos,
responde que não é rezador, mas que não é contra a Igreja. "Eu nasci foi nessa lei, tenho que me
criar nela", diz. Somente quando a pergunta traz em sua estrutura as palavras direitos e luta, o
sentido de reivindicação é despertado. Desse modo, dependendo do contexto da pergunta , a Igreja
é compreendida como espaço físico ou como instituição. Num contexto de luta por direitos, ela
é entendida como instituição onde o seu caráter religioso praticamente passa sem realce e o que
aparece é que ela está ao lado da "pobreza", lutando pelos direitos desta, etc. Fora disso, a palavra
Igreja é associada unicamente a espaço físico-arquitetônico (capela, etc.) ou a ofício religioso.
O termo direitos, na experiência de campo desta pesquisa, só se torna alvo de
considerações quando associado aos termos luta, igreja ou sindicato. A palavra direitos,
isoladamente, dificilmente despertava algum tipo de consideração.
O segundo exemplo é dado por algumas respostas de um colono de 70 anos, da Vila
Paraná. Depois de dizer, em momentos diferentes, que nunca precisou do sindicato, senão para
pagar as contribuições, e de confessar que não sabe dizer os direitos que tem, ele assegura que "o
sindicato é que luta mais pelos direitos. A Igreja também luta muito pelos direitos". A estrutura da
pergunta - "quais os órgãos que lutam pelos direitos dos trabalhadores?" -, de tão repetida pelos
mediadores, institui uma realidade, em certa medida presente apenas no plano da linguagem verbal.
Mas os problemas com relação à fala não se situam apenas do lado do informante. Em
última análise, esses problemas são todos da alçada do pesquisador, que, diante da natureza do seu
trabalho, precisa conhecer a fundo a linguagem e todo o universo simbólico que envolve os
indivíduos do seu campo de pesquisa, assim como precisa se fazer entendido, o que implica em
dizer que, na formulação da sua mensagem, esse universo precisa ser levado em conta. O
pesquisador não pode esquecer, e portanto precisa controlar, que a representação sobre sua pessoa é
uma representação intimidativa, advinda de alguns componentes de sua fala e de sua postura. A
pronúncia sibilante e articulada, a emissão torrencial, o vocabulário variado e a urbanidade na
postura são alguns elementos caracterizadores de uma segurança verbal notável, que interfere nessa
comunicação e pode construir, como resultado, a intimidação do informante. É difícil, e quase
impossível, que o pesquisador se livre dessa aura. Não adianta, também, para se furtar a essa
realidade, querer negar a diferenciação e macaquear a linguagem e postura dos camponeses. O que
é necessário é que o pesquisador tenha presente, sempre, que o problema existe e que ele precisa ser
levado em consideração.
Por fim, no aspecto metodológico do trabalho de campo, um outro ponto se apresenta a
todo momento: a percepção de uma realidade como questão.
Podemos dizer que muitas noções apresentam-se difusas na mentalidade camponesa e
não assomam, ou não assomaram ainda e podem não assomar nunca, à condição de questão. Elas
jazem naturalizadas como uma realidade morta, amalgamadas a uma massa de noções indistintas
umas das outras, ou seja, sem singularidade, produzidas pela percepção mais chã. Para captá-las,
uma vez que o portador não tem delas uma consciência particular, uma pergunta que a ela
diretamente se dirija com o fim de captá-la não logra êxito: nada obtém como resposta, ou o que
obtém é uma dessas "saídas" matreiras que a rigor nada respondem com relação ao sentido. Mas, às
vezes, elas podem aflorar nos interstícios do discurso.
De fato, as questões não existem apenas porque estejam perto. Como construção
cultural, elas são "descobertas" por um e outro, mas não por todos e ao mesmo tempo. Não há
sincronia na percepção. Dez por cento dos camponeses da Serra do Mel, no momento da pesquisa,
apesar de viverem a situação de exploração no preço da castanha e de serem, potencialmente,
interessados em se livrar dessa exploração, não sabem o que pode ser feito para melhorar o seu
preço. Esta não é, evidentemente, uma percentagem tão representativa. Mas chega a ser, se
pensarmos a partir da perspectiva de que uma situação enfrentada cotidianamente tenda a se
apresentar para a percepção de modo consciente, ou seja, como questão, e que, a partir do status de
questão, ganha corpo a percepção da necessidade de se construir uma resposta para ela . E tal não se
dá. Há sempre uma margem de envolvidos para quem a questão não é questão, e há sempre
também uma margem para aqueles que mesmo percebendo a situação como questão não atinam
com a construção de uma resposta. Além de que, o fato de alguém apontar uma saída, uma resposta
para uma dada situação, não quer dizer que esta, a resposta, seja a melhor ou a mais eficaz. Quer
dizer, apenas, que aquela questão existe para aquele sujeito como uma questão posta, com cuja
elucidação ele se preocupa. Apenas isto, o que não é pouco. Também o discurso da ciência e as
respostas que ela constrói não significam sempre um ponto final conclusivo. Significam, sim, a
particularização daquele objeto e a possibilidade de sua decomposição em unidades de
conhecimento.

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