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LAYON RODRIGUEz
Todos os direitos desta prévia de edição reservados à:
Layon Rodrigues e Thiago Alam da Silva
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que
entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Marcos Martins
Revisão
Nadja Moreno
Diagramação
Layon Rodrigues
Editor
Graci Rocha
ISBN
CDD: 869.9
— Graci Rocha
Escritora e Crítica Literária
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PRÓLOGO
INCURSÃO
Lua Óberon — Setor 9
Colônia Industrial Zartic-2 — Órbita externa de Zeus
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rons, cobertas por uma capa de chuva acinzentada e desgastada. O de aparên-
cia mais velha e menos ferido arrastava o companheiro, coberto de ferimentos
e partes expostas da pele. Esperaram imóveis até que as naves se afastassem e
então depois de ajudá-lo a se sentar, o homem ajustou o respirador de ambos
para se certificar de que estava filtrando o oxigênio e impedindo que a atmos-
fera tóxica os envenenasse.
— Pronto, já passaram. Descanse um pouco — disse enquanto conferia
os sinais vitais do outro.
Os cabelos, também brancos do mais novo, eram só um pouco mais
compridos e estavam tingidos de sangue e suor. Ele respirava com dificuldade,
fazendo com que a armadura estilhaçada rangesse baixo com o movimento
dos pulmões. O sangue escorria em filetes por alguns dos buracos, empapando
a pele já muito machucada.
— Vou ativar o Gerador de Atmosfera Artificial. Teremos alguns mi-
nutos para nos recuperarmos — disse Yori enquanto retirava um cilindro me-
tálico da mochila e o fixava no chão.
Ele apertou alguns botões da interface holográfica do dispositivo, que
soltou um chiado rouco e depois expeliu uma bolha translúcida ao redor de-
les, com cerca de vinte metros de raio. Dentro da bolha o ar aos poucos foi se
tornando limpo, ou pelo menos respirável. Um bip seguido de uma luz verde
indicou que o ambiente já estava filtrado.
— Isso irmão, tire a máscara e respire um pouco — disse Yori.
O mais novo, Kaz, tinha tantos ferimentos por toda a extensão do cor-
po que até para realizar aquele gesto simples ele gemeu. Quando conseguiu,
sangue escorreu pelos cantos da boca. O lado direito do lábio superior estava
partido, seguindo uma ferida de corte que terminava abaixo do olho direito.
— Aproveite para se regenerar. Sem a amônia nos intoxicando, vai ser
mais rápido.
Yori usava um tom paternal para falar com o mais jovem. Olhando ao
redor, em alerta, mas sempre se preocupando em ver como o companheiro
estava. Eles seriam facilmente confundidos porque eram praticamente idênti-
cos. A pele clara e os cabelos brancos, nem muito curtos nem muito longos. A
barba por fazer, os olhos verdes.
— Yori… eu não vou conseguir — disse o homem ferido, tossindo san-
gue.
— Kaz, nós somos genótipos¹ Alfa². Tiros, facadas, estilhaços, nada disso
é o suficiente para nos matar. Nos ferimos, recuamos e nos curamos.
Kaz tentou responder, mas teve uma crise de tosse que se misturou com
o sangue que insistia em sair, projetando-se no ar como esporos.
Yori perscrutava os arredores com olhos atentos. As paredes que de-
veriam estar completamente preenchidas por plasteel ainda estavam esbura-
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cadas e isso os deixava expostos de um jeito que perturbava Yori mais do que
os ferimentos de Kaz. O risco de uma queda livre era assustador. Tudo estava
meio amarelado, devido a exposição prolongada à amônia.
Kaz havia escolhido esse prédio para que se escondessem, por causa das
paredes grossas, pois não seriam facilmente rastreados pelos perseguidores.
— Yori… eu não estou regenerando. Meus ferimentos não estão melho-
rando — disse Kaz, cuspindo sangue no chão e logo em seguida tendo outra
crise de tosse.
— Do que você está falando pequeno irmão? Deixe-me ver esses feri-
mentos.
Yori aproximou bem dos ferimentos e os examinou. Algumas pareciam
bem profundas. Algumas delas já estavam acinzentadas e opacas, com aspecto
turvo nas bordas. Estavam necrosando. Finalmente compreendendo do que
se tratava, Yori franziu os olhos e cerrou os lábios, preocupado.
— Projéteis envenenados, irmão.
— Neurotoxina-D, não é? — Kaz sabia a resposta.
— Vamos… me deixe te colocar mais perto da luz para ver se tem como
desinfetar. — Yori esticou o braço e com uma pressão leve o ajudou a se er-
guer.
Depois o impeliu a andar até a parte mais iluminada da sala. Um bip
alto e crescente, vindo de trás da parede onde estavam se tornou bem rápido
um ruído ensurdecedor.
A explosão que se seguiu transformou a parede de plasteel em uma chu-
va de estilhaços. Partes destes fragmentos afiados se cravaram nas costas de
Kaz e Yori, jogando-os contra o chão.
Soldados de armadura completa, pesada e blindada atravessaram o bu-
raco, surgindo através da fumaça e fuligem.
Depois que o primeiro grupo atravessou a abertura, outro se preparou,
seguindo as ordens de um soldado que estava mais atrás, fazendo gestos fir-
mes e orientando a invasão. As armaduras eram negras e grossas, ameaçado-
ras, com círculos brancos pintados sem muito cuidado nos capacetes. Todos
carregavam rifles compactos Ogre-UC* para ambientes urbanos, mas com
baixa capacidade de perfuração. O homem que dava as ordens carregava uma
machinepistol de calibre pesado.
Kaz estava apagado. Yori não conseguiu impedir que o irmão batesse
com a cabeça contra uma pilha de chapas de plasteel, provocando um novo
ferimento na testa.
Ele rolou e se levantou, colocando-se de pé instintivamente, como se
seus músculos tivessem sido projetados para reagirem daquela forma.
Com um movimento rápido e quase invisível, aproveitando a dose de
adrenalina, ele sacou duas pistolas dos coldres de coxa. Enquanto os soldados
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ainda tentavam fixar mira e se organizar para um disparo sincronizado, Yori
já estava entre eles, dando tiros certeiros a queima roupa. Pedaços da blinda-
gem das armaduras voaram. Ele era apenas um borrão em movimento. Estan-
do em todos os lugares e em lugar nenhum.
Com a confusão e o ataque frenético de Yori, os soldados quebraram a
formação, atirando desesperadamente para todos os lados, acertando os pró-
prios companheiros e, alguns, até a si mesmos.
Aos poucos as baixas começaram. Ainda que a armadura fosse resis-
tente e uma grande maioria delas apenas trincasse, muitos foram derrubados
pela agilidade dele. Yori estava em vantagem tática, causando caos entre seus
agressores, utilizando de velocidade quase sobrenatural que os músculos arti-
ficiais de sua armadura o proporcionavam, e acertando tantos quantos conse-
guisse. Foi então que uma nova explosão o pegou de surpresa.
A janela panorâmica, ainda coberta por uma camada plástica de pro-
teção, explodiu para dentro do andar criando uma camada de poeira e cacos
que desorientou a todos. Através dela um gigantesco drone de combate aéreo
bípede realizou uma dezena de disparos de plasma acelerado que atravessa-
ram o ambiente, destroçando todos que passassem no caminho, inclusive os
soldados. O pânico se espalhou rapidamente em meio a membros decepados
que voavam pelos ares.
Por causa da altura e dos gigantescos propulsores articulados nas costas
do drone, a máquina teve de se esforçar para entrar no andar. As pernas se
regularam para que não precisasse se curvar, tornando-o ainda mais desen-
gonçado.
Assim que conseguiu pousar, o drone recolheu os propulsores, ficando
com a aparência de um réptil pré-histórico. No lugar dos braços haviam rifles
de Plasma Gauss, com tecnologia híbrida capaz de um estrago devastador,
visto só em campos de batalha. Sua cabeça sáuria agregava um ar ainda mais
ameaçador, lembrando as criaturas das terríveis florestas da lua Titã.
A primeira rajada pegou Yori de raspão e abateu meia dúzia de soldados
pelo caminho. Caído entre os cadáveres e feridas que fumegavam um cheiro
nauseante de carne queimada, ele encarou a terrível máquina de matar. Ela
escaneava o ambiente em busca de alvos, soltando um bip ritmado que dispa-
rava sempre que pousava sobre um sobrevivente. O drone de aspecto sáureo
foi, aos poucos, acabando com um por um.
Yori tentou se mexer, mas o corpo estava sob muita pressão e a dor co-
meçava a esticar suas garras por seu corpo. O som seco do indicador de muni-
ção e a pequena luz piscando mau funcionamento anunciaram a aproximação
do drone. Finalmente ele foi identificado. O homem cujos cabelos brancos
estavam empapados de suor, sangue e poeira de plasteel, viu a máquina mirá-
-lo devagar com o cone laser de identificação, não demorou para que a peça
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estivesse voltada direto para o rosto dele.
Yori baixou os olhos e expirou. Já havia aceitado que morreria naquela
missão e, mais do que aceitado, ele ansiava por morrer protegendo a Divisão
Zero e seu irmão. Meu irmão, Yori lembrou, arregalando os olhos.
O flash veio do nada. Tão rápido quanto um tiro, o clarão em forma de
arco deixou Yori cego e confuso. O som esperado do disparo que colocaria fim
à sua vida não veio. O drone permaneceu imóvel, mas havia algo de errado no
que ele via. Como uma foto cortada na transversal, o drone se dividia lenta-
mente em duas partes, soltando faíscas, descargas elétricas e fumaça.
Foi um grito abafado no fundo da cena aterrorizante que fez com que
Yori percebesse que estava quase surdo. Era um grito intenso, de fúria, fami-
liar. Quando o drone finalmente se desmontou, uma parte caindo para cada
lado, Yori pôde ver Kaz de pé, atrás da fera mecânica. A espada com lâmi-
na incandescente em punho, respirando pesado, com uma expressão de fúria
congelada no rosto. Sangue escorria pela boca e ferimentos de Kaz.
Yori sorriu orgulhoso ao ver o irmão de pé, reagindo.
— Muito bem, garoto! — disse, quase não ouvindo a própria voz.
Mal conseguiu respirar aliviado, a luz vinda de trás de Kaz foi inter-
rompida. Outro drone vinha com tudo pela janela panorâmica destruída.
Kaz deu um salto mortal para trás, se esquivando do encontrão do dro-
ne e caindo em cima dele. Ambos passaram perigosamente próximos de onde
o mais velho estava caído.
Yori tentou se levantar, mas percebeu o porquê de não ter consegui-
do reagir. Sua espinha estava partida. Arriscou alguns movimentos, mas seus
nervos não reagiam. Logo o rangido dos ossos deram sinal de que seu corpo
estava começando a curar-se.
Forçando ao máximo para girar o pescoço, ele conseguiu ver Kaz mon-
tado no drone, com a espada cravada nas costas da criatura mecânica, entre
os foguetes flutuadores que ainda não tinham se recolhido. Os dois irmãos
fizeram contato visual por um segundo, enquanto o drone acertava a parede
do outro lado da sala.
Uma lágrima correu pelo rosto de Kaz e um sorriso triste se formou
em seguida. Os lábios do mais jovem se moveram sem emitir som, mas Yori
conseguiu entender o que o irmão tinha dito.
— Cumpra a sua missão, encontre Marcus!
Tentando se equilibrar sobre o drone, Kaz se apoiou com os pés nas
laterais internas dos dois propulsores que o cercavam. Segurou com firmeza o
cabo da espada, apertou alguns botões ocultos nela e um pequeno holograma
projetou-se.
O drone se debatia, indo contra os pilares e pilhas de materiais de cons-
trução. Kaz lutou com bravura para conseguir manusear a interface holográfi-
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ca no cabo da espada. Finalmente, após algum esforço, uma palavra apareceu,
projetada a partir do cabo:
DETONAR.
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Ran.ger (Ran.ger): Do inglês patrulheiro, aquele que guarda a fronteira.
Protetores da fronteira civil contra invasores selvagens.
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CApítulo Ø
RESGATE
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região proporcionava.
Marcus avançou devagar, olhando para os lados e fazendo o mínimo de
barulho possível. Desligou o comunicador, não podia arriscar responder ao
comando naquele instante. Ele seguiu por um corredor que se alongava em
um declive suave até desembocar em outro corredor, cheio de portas de aço
que reluziam a pouca luz da antena dele.
Um som quase imperceptível chamou a sua atenção, o barulho cons-
tante de um líquido fluído que se arrastava pelo chão, não muito longe dali.
Com passos cuidadosos ele seguiu pelo corredor e parou diante de uma outra
porta de correr que estava entreaberta. Era comum que portas antigas como
aquelas travassem.
Ainda em alerta Marcus se apoiou no pouco espaço que havia entre a
parede e a porta. Verificou rapidamente o interior da sala. O primeiro corpo
estava sentado numa cadeira, como se tivesse caído no sono durante o lanche.
Ele teria acreditado nisso, não fosse o rasgo no peito de onde um filete de
sangue escorria, criando uma grande poça ao redor do morto. Outros dois
estavam caídos perto da pequena área de alimentação com poças igualmente
escuras ao redor.
— Três soldados abatidos. Foram pegos de surpresa no meio do lanche
— reportou e verificou mais uma vez a sala através do vão, então se esguei-
rou pela porta, verificando mais uma vez a pequena antessala de controle do
bunker imperial.
Marcus ativou o recolhimento do capacete preto com marca da caveira
dos Rangers e respirou fundo o ar gelado e úmido da sala, sentindo o cheiro
de kahvi, uma bebida estimulante sintetizada artesanalmente pelos imperiais.
Ele se aproximou do homem largado na cadeira e tocou seu rosto. Os
sensores do traje identificaram que aquele soldado não estava mais vivo. Po-
rém, parecia que um dos soldados caídos na área de alimentação ainda tinha
sinais vitais. O Ranger seguiu até o soldado, ainda mantendo a arma prepa-
rada para qualquer surpresa. Como se tentasse respirar dentro de um grande
rio, o soldado soltou um espasmo ruidoso. Marcus o virou para que não se
afogasse no próprio sangue. Fazendo a verificação dos sinais vitais através dos
sensores da luva, constatou que o homem estava em seus últimos suspiros. O
soldado arregalou os olhos e segurou a mão de Marcus. Sua tentativa de falar
foi em vão, fazendo-o golfar mais sangue.
— Não se esforce — Marcus murmurou enquanto observava a caixa
torácica exposta.
Um corte profundo havia exposto todos os órgãos do soldado, ultra-
passando, aparentemente sem problemas, o peitoral da armadura. Quando
olhou novamente para o rosto do rapaz, já não havia mais vida ali. Ele ergueu
o rosto do corpo e fixou os olhos em uma torneira que os soldados geralmente
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pouco usavam. Era dali que o barulho que lhe chamara atenção vinha. Fosse
quem quer que fosse que tivesse realizado o ataque, tinha aberto a torneira e
trancado a saída de água, para que em pouco tempo ela fluísse pela sala e lim-
passe qualquer marca de sua passagem, espalhando sangue e fluídos por todo
o refeitório. Quem em sã consciência pensaria em algo tão doente assim? Ele
desligou a torneira com uma pancada no sensor, depois virou-se e religou o
comunicador.
— Nenhum sobrevivente, confirmado. Ferimentos fatais de lâminas
longas — informou no comunicador, que demorou a responder.
— Caçadores não usam lâminas longas — comentou uma voz grossa no
comunicador.
— Como está aí fora, Scorpio?
— Tem uma tempestade vindo… ou alguma avalanche se soltando da
montanha.
— Comando, ordens? — Marcus se levantou e fechou o capacete.
— Perdemos contato com a Patrulha 2, preciso que verifiquem a última
posição deles.
— Patrulha 1 e Patrulha 2 sem responder… Certo, tenho as coordena-
das, vamos seguir.
— Possível perda de sinal montanha acima — Scorpio acrescentou.
— Ciente Patrulha 3, Hunters* autônomos de patrulha os acompanharão
pelo percurso — respondeu o comando, desconectando em seguida com um
chiado.
Marcus fez o caminho de volta, encontrando seu parceiro Scorpio do
lado de fora. Um homem grande com cabelos raspados nos lados e barba
cheia loira, que podia facilmente ser confundido com um armário. Ele carre-
gava um rifle de caça pesado e um machado de combate nas costas. A neve já
estava se acumulando em seus ombros.
— Acha que os drones aguentam cem metros acima, Scorpio? — Marcus
perguntou dando uma risada.
— Se aguentarem chegar até aqui, será uma novidade. Quem pode ser
imbecil o suficiente pra fazer uma merda dessas numa zona de Preservação
Imperial?
— Não sei, mas não parece coisa de caçadores. — Marcus desacoplou a
pequena antena de transmissão da parede, que havia deixado para conseguir
se comunicar do lado de dentro do bunker sem perda de sinal. Estavam uti-
lizando o canal de comunicação dos Rangers, que por si só já era de péssima
qualidade, apesar do grande alcance. Ele colocou a antena em um bolso que
se projetou da armadura, fechando-se imediatamente depois de o objeto ser
guardado.
— Entraram lá pra quê? — Scorpio quis saber enquanto começavam a
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subir pela trilha cavada entre enormes rochas.
— Desativar a cerca sônica talvez. Eu não entendo nada dos sistemas
Imperiais e… — Marcus gesticulou com as mãos.
— Sim, seria uma infração mexer na parafernália deles — Scorpio com-
pletou, entendendo a situação. — Quando será que vão enviar uma Unidade
Imperial de Resposta Rápida?
— Com a confirmação das baixas, logo, mas não logo o suficiente.
Último reporte da Patrulha 1 foi de que os invasores de perímetro estavam
bem armados e levando duas crianças à força montanha acima.
— Que tipo de freaks são esses?! — Scorpio parecia indignado.
Trezentos metros montanha acima, chegaram no último ponto de loca-
lização da Patrulha 2, duzentos e cinquenta metros antes, os drones de emer-
gência já tinham sido destruídos pelas correntes de vento. Vários corpos de
Samátrias* estavam espalhados pelo chão, mortos por tiros.
— Foram cercados pelas rastejadoras… — Marcus disse se abaixando ao
lado de uma das criaturas mortas. A pele cinza opaca e fibrosa parecia gruden-
ta, mesmo sob todo aquele frio. — Mas deram conta delas.
— Saíram andado daqui sim. Rastros em direção à Zona de Restrição
Imperial. — Scorpio apontou com a cabeça em direção à trilha secundária,
cercada de pedras afiadas.
— Os laboratórios imperiais desativados? É dia de cinetrash. — Marcus
suspirou e avançou em direção à trilha.
— Hey! — Scorpio barrou Marcus com um braço impedindo-o de avan-
çar. — Tá maluco?! A ZRI é proibida pra nós.
— É proibida desde que tenha corpo de segurança imperial apto a pro-
teger o local. Não é o caso né? Vamos, não seja um schrat!
— Não é essa a questão… desde que deixaram o complexo aquilo ficou
tomado de Samátrias.
— É só evitar elas — Marcus gesticulou apontando para as rochas.
— Da mesma maneira que evitam você? — o companheiro caçoou.
— A natureza não me evita, apenas nos mantemos cada um em seu lu-
gar — Marcus retrucou com uma careta irônica.
— Quando você invade o ninho de uma colônia de predadores, acho
que você não está se mantendo no lugar, não é?
Marcus virou o rosto para encará-lo e soltou:
— Pra começar, eles invadiram Norridge primeiro, eu só respondi ao
ataque. E em segundo lugar, vai se foder, você nem estava aqui naquela época,
Scorpio — disse rindo.
O vento frio descia pela trilha trazendo uma névoa gelada consigo, in-
vadindo até mesmo as armaduras preparadas para climas extremos dos dois
Rangers. Por vários momentos, Marcus achava ter visto algum vulto acima
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deles, sobre o paredão de pedras pontiagudas, mas nunca conseguia registrar
nada, provavelmente graças à neve que vivia cobrindo os sensores de imagem
do capacete. A uma certa altura, o próprio sinal de vídeo direto que transmitia
imagens do arredor para dentro do capacete, estava comprometido, perdendo
sinal e com dezenas de glitches.
— Essa montanha de minério lunar é um inferno pra qualquer coisa que
tenha sensor. — Scorpio reclamou, abrindo o capacete e cobrindo o rosto com
uma balaclava preta com óculos de proteção embutido, Marcus fez o mesmo.
— É… mas não é a montanha que tá causando isso — disse, tocando sem
paciência a interface holográfica do comunicador no pulso. — A única coisa
que causa interferência no PCA* por esses lados são Samátrias caçadoras.
— Merda… — Scorpio levantou o rifle na altura da visão e começou a
mirar ao redor com cuidado e então ouviram tiros, gralhas-da-neve voaram
assustadas.
— Calibre A7? Eles querem causar uma avalanche?! — Marcus apertou
os olhos, tentando enxergar através do vento e da neblina gelada. — Scorpio,
temos que cortar caminho. O que quer que esteja acontecendo lá em cima, não
podemos perder tempo fazendo todo ziguezague dessa bosta de trilha.
— Cortar como? Não tá querendo subir pelo paredão né? — apontou o
paredão acima, depois baixou o rosto na altura do de Marcus e soltou um sus-
piro pesado. — O terreno não aguenta meu peso, mesmo com ajuda dos jatos
da armadura, além do mais toda vez que alguém tentou, deu merda.
— No tempo que chegarmos no final da trilha, pode ter dado uma mer-
da violenta lá em cima… e ficar nessa vala que chamam de trilha é pedir pra
ser devorado por um bando de Samátrias!
— Tá… — Scorpio respirou fundo, vencido. — Você escala a encosta, eu
vou passar o cabo com o minidrone e te encontro lá em cima.
— Cara, isso vai demorar quase uma hora pra você fazer…
— Eu não vou me arriscar de novo a subir sem apoio por aquele lado.
Você sabe quantas centenas de metros eu caí rolando da última vez que fize-
mos uma coisa dessas.
— É, eu lembro, de vez em quando o pessoal da muralha coloca pra
assistir o registro. Foi épico, quase ganhamos um prêmio de tantas visualiza-
ções — disse, rindo.
— Vai se ferrar! Quase morri…
— Eu subo e amarro o cabo pra te trazer. — Marcus se aproximou do
paredão. — Trouxe aquela roldana a gás, você chega lá em cima em um mi-
nuto.
Marcus tencionou as pernas e correu os últimos três passos dando im-
pulso para um salto enorme, em direção ao paredão de rocha afiadas como
navalhas. Ele teria facilmente sido empalado se os jatos de propulsão da ar-
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madura não tivessem ligado e feito seu serviço. Se segurando precariamente
nas rochas, começou a escalar, com ajuda da força extra que o exoesqueleto da
armadura proporcionava. Mesmo com seu peso, as rochas lunares eram re-
sistentes o suficiente para um homem normal de armadura completa subirem
através delas. Scorpio não se encaixava em homem normal. Seus mais de dois
metros de altura e 150 quilos somados ao peso da armadura, quase chegavam
a um quarto de tonelada.
Após quinze minutos de subida, Marcus chegou à parte irregular do
topo do paredão. Dali já podia ver o fim da trilha em que estavam, e duzentos
metros acima ficavam as instalações imperais desativadas.
Marcus se virou para procurar um local seguro para amarrar a corda,
mas deu de cara com uma Samátria preparada para dar um bote. Sua pele havia
assumido a aparência e a cor de neve, como um camaleão faria, dificultando a
percepção de seus contornos. Os dentes eram finos e afiados como navalhas
e estavam à mostra, pingando uma baba venenosa púrpura. Ele ficou imóvel.
Normalmente seria o fim de qualquer um estar cara a cara com uma
criatura como aquela, mas havia algo de estranho ali. Marcus percebeu que a
fera estava ferida na pata traseira. O que era muito incomum já que só aconte-
ceria se ela tivesse tentado fugir de algum predador, Samátrias não possuíam
muitos predadores.
Marcus percebeu quando a criatura tencionou os músculos para dar o
bote, mas ela não teve tempo pra isso. De uma rocha fora do campo de visão
de Marcus, uma enorme criatura saltou e rolou na neve, quase derrubando o
Ranger junto. Era como se um boi tivesse sido arremessado do céu. Marcus
aproveitou a confusão para puxar o revólver, mas a Samátria em si não era
mais uma ameaça. Em cima dela estava um enorme warg, os lobos atrozes das
montanhas, comuns em regiões de climas extremos como aquele.
Seu enorme focinho já tinha partido o corpo esquelético da Samátria
em dois e agora estava mastigando as entranhas da criatura. O sangue roxo
espalhado pela neve tinha um contraste forte, especialmente para lembrar o
quão nojenta aquela coisa podia ser.
Marcus manteve o warg sob a mira, esperando que ele reagisse. Ran-
gers sabiam lidar com Samátrias até em combates corporais, com o apoio de
machetes de caça ou outras lâminas, mas um warg, era algo que nenhum ho-
mem normal podia lidar, nem os extremamente fortes genótipos Deltas, nem
qualquer outro abaixo do nível genético Tri.
Lentamente o warg se virou, encarando Marcus. Seus olhos amarelos
profundos refletiam a luz do sol, então Marcus notou a cicatriz. Aquele warg
cego de um olho já o havia salvo antes, durante seu ataque suicida num dos
ninhos das Samátrias.
— Eu lembro de você… já nos cruzamos antes, não? — Marcus falou.
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O warg respondeu com um grunhido e se aproximou. Ele era tão alto
que o focinho chegava à altura da cabeça de Marcus sem precisar se levan-
tar. Com o nariz úmido quase tocando o rosto do Ranger, o warg o farejou
e bufou, então ambos ouviram uma série de tiros, dessa vez mais próximos
que antes. O warg baixou a cabeça, se afastou de Marcus e saltou através das
rochas de navalha.
Após conseguir trazer Scorpio para a parte mais alta e explicar o que
tinha acontecido, os dois Rangers seguiram a passos rápidos na direção de
onde vieram os tiros, supunham que fosse a instalação abandonada de Pesqui-
sa Imperial. Ao se aproximarem do pequeno prédio arredondado, avistaram
alguns corpos na neve. Com armas em punhos, Marcus e Scorpio avançaram,
preparados para disparar.
— Armaduras cinzas? — disse Scorpio virando um dos corpos com o pé.
— Eu ia chutar que eles são mercenários apenas, mas são armaduras
militares pesadas. — Marcus se abaixou procurando o ferimento em outro dos
quatro soldados mortos. — Tiro de rifle de caça… parece que um dos nossos
abateu esse aqui.
— Olha esses rastros — Scorpio apontou, pois não era perito em ras-
treamento na neve.
— Vejamos… quatro soldados… duas pessoas pequenas, provavelmente
as crianças que a central reportou. Foram pegos de surpresa… as crianças fu-
giram em direção à instalação — apontou com o polegar.
— Dois dos nossos passaram aqui, um ferido. — Dessa vez Marcus
apontou uma marca na neve com sangue, como se alguém estivesse arrastan-
do o pé. — Outro rastro… não consigo definir… talvez uma mulher, não sei.
Alguém leve passou aqui agora pouco.
— Esses dois eram a Patrulha 2?
— Como é que eu vou saber?! — Marcus gesticulou sem paciência.
Scorpio avançou alguns passos até a larga escada que descia até a entra-
da da pequena instalação. As portas blindadas de duas folhas estavam abertas,
apesar de cobertas por musgo-da-neve.
— Não sabia que plasteel pegava musgo — Scorpio comentou baixo.
— Não é plasteel… acho que é aço mesmo, olha a ferrugem amarelada. —
Marcus apontou e em seguida colocou seu rifle de precisão nas costas, sacando
um revólver mecânico.
— Tá… — Respirou fundo. — Vamos!
Os Rangers desceram os degraus de pedra com cuidado, tentando não
escorregar na camada fina de gelo que cobria partes do percurso. Ao entra-
rem, deram de cara com um hall amplo. Havia uma abertura circular com
cerca de dez metros de diâmetro que ocupava quase todo o chão.
— Mas que merda é essa?! — Scorpio arriscou espiar, mas Marcus o
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puxou de volta.
— Veja… — Apontou pras luzes no teto, quase invisíveis à luz do dia. —
Tem energia, vamos tentar ser espertos dessa vez.
— Do que você tá falando? — Scorpio sussurrou.
— Todos os sistemas de iluminação desses prédios de pesquisa são equi-
pados com câmeras, ouvi isso da Lana.
— Acessar isso é crime imperial, tá maluco?!
— Lá no banker era, porque tinha como se comunicar com o comando.
Aqui podemos dar a desculpa de uma comunicação de emergência e… afinal,
já entramos em Zona de Restrição.
— Você sabe que esse seu argumento é uma merda, né? — Scorpio soou
irritado, mas não havia outra opção segura.
Marcus contornou o buraco e foi até o balcão da recepção, encontrou
um dos sistemas holográficos de controle em standby.
— Alguém usou isso aqui recentemente — comentou.
— Como é que você sabe acessar o sistema de monitoramento? Isso aí
não tem senha, não? — Scorpio se aproximou de Marcus devagar, cuidando
para se manter longe o bastante da fenda no chão.
— Err… alguém fez isso por nós — Marcus gesticulou como se não ti-
vesse tocado em nada. A tela holográfica tinha saído de standby quando ele
chegou mais perto, mostrando várias pequenas telas de câmeras de toda a ins-
talação.
— Olha o campo de busca — Scorpio apontou.
— ACO-T? Vamos ver que merda estavam procurando. — Marcus ati-
vou a pesquisa, mas as câmeras mostravam apenas imagens completamente
negras. — Nada.
— Se é um sistema de vigilância ativo, vê se consegue filtrar o streaming
por movimento ativo.
Marcus selecionou alguns menus e três conjuntos de streaming se des-
tacaram, as telas pretas sem imagem e outros dois conjuntos mostrando Ran-
gers em um corredor fechado. Marcus selecionou a tela e puderam ver a cena.
Dois Rangers e duas meninas estavam trancados num corredor. Num
dos lados alguém estava tentando cortar a tranca da porta com um tipo de
maçarico. Os Rangers e as meninas pareciam aterrorizados com a outra porta,
no lado oposto do corredor. Eles mantinham os braços sobre as garotas, tiran-
do-as da linha de alcance do que quer que estivesse prestes a sair. Tentavam
proteger as meninas, que usavam alguma espécie de tiara tecnológica presa à
cabeça.
As luzes do corredor piscaram e então tudo virou escuridão. Algum
tempo depois flashes começaram a iluminar o corredor, eram os disparos das
armas dos Rangers que clareavam o breu. Scorpio e Marcus mal podiam ver
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o que estava acontecendo e então os disparos pararam novamente. Alguém
acendeu uma lanterna da arma. Havia uma figura no corredor, imóvel. Seu
rosto branco refletia a luz projetada diretamente para ele, deixando-o com
uma aparência sinistra. A armadura preta que vestia era brilhante como um
vidro negro polido e em sua mão direita estava uma espada fina e de metal
escuro.
Marcus arfou com a cena a seguir, em um breve momento viam o ho-
mem, corpo, arma, tudo, e em menos de um segundo depois havia apenas
borrões. A arma com lanterna que iluminava o corredor caiu no chão. Silên-
cio. Após mais alguns segundos, luzes de emergência vermelha acenderam e o
corredor ficou parcialmente iluminado. A figura agora estava de pé na frente
das meninas. Os Rangers estavam no chão mortos, um com os braços decepa-
dos e outro segurando as próprias entranhas.
— Temos que ir lá! — Scorpio mal conseguiu articular tamanho horror
e revolta a cena provocava nele. Marcus apontou um código no alto da tela:
S7C2.
— Subsolo, sétimo andar, corredor dois. Precisaremos descer.
— Como tá a carga dos teus propulsores? — Scorpio foi até a beirada
do buraco.
— Não sei, nunca verifico. — Marcus respondeu e pulou.
O dois desceram com a ajuda dos propulsores que diminuíam a velo-
cidade de queda. Seguiram até avistar um enorme número sete pintado na
parede, então se jogaram contra o passadiço que circulava o interior do túnel
vertical. Scorpio quase não conseguiu se agarrar ao parapeito, Marcus preci-
sou puxá-lo.
Recompondo-se da queda, que apesar ter sido desacelerada ainda era
um choque e tanto, os dois encontraram uma porta com uma placa que dizia
C1. Atravessaram o corredor com rapidez e armas em punho, ainda tomados
pela energia da adrenalina provocada pelo que tinham acabado de assistir.
Chegaram a uma sala cheia de tubos com animais em estado de preservação
flutuando. No outro lado da sala, uma porta de metal cortada em pedaços. A
iluminação avermelhada da luz de emergência do corredor tornava o ambien-
te ainda mais medonho.
Scorpio foi pela esquerda com o rifle em posição de tiro, enquanto
Marcus se aproximou com cuidado pela direita. Os dois pararam nas laterais
da porta antes de entrar, trocando olhares de quem já estava acostumado a
lidar com entradas de risco em ambientes desconhecidos.
Marcus avançou de revólver em punho com o corpo abaixado, en-
quanto Scorpio foi logo atrás com o rifle apontado para o centro do corre-
dor. Quando chegaram na extremidade em que a cena do massacre tinha sido
gravada por uma das câmeras de segurança não encontraram nenhum sinal
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das garotas ou do misterioso homem cuja espada tinha provocado tanto estra-
go. Marcus reconheceu os dois Rangers e Scorpio soltou vários xingamentos
quando também percebeu quem eram. Os membros da patrulha dois não
estavam mortos, mas faltava bem pouco para isso.
— Monstro filho duma… é a Patrulha 2. — Scorpio reconheceu. — Per-
deram muito sangue, me passa sua blacktape* Marcus.
— Aqui… — Marcus entregou o rolo de fita de sutura e se aproximou
do outro Ranger caído.
— Protej-argh… — o Ranger estava com os olhos vidrados e com difi-
culdade para falar.
— Calma Joe, vamos pedir evacuação médica, você vai sobreviver. —
Marcus tentou consolá-lo enquanto aplicava um spray médico nas pernas de-
cepadas dele.
— Mar-arh-cus! Você te-e-em que impedir… — Joe pareceu voltar a si,
mas seus olhos ainda estavam estranhos e arregalados.
— Calma parceiro, calma.
— Eles vão… você não pode deixar que as levem até a prisão. — Joe in-
sistiu, segurando com força o rosto de Marcus entre as mãos.
— Que prisão Joe? Você tá delirando?
— Marcus, tem algo de errado com esse aqui também. — Scorpio avi-
sou, indo até Joe e começando a aplicação da fita nas pernas decepadas, ten-
tando parar o sangramento.
— Ele tá em choque — disse Marcus segurando Joe com cuidado en-
quanto Scorpio terminava a aplicação.
— Tem algo de errado, olha a borda do ferimento.
— Necrosando?! Isso é algum tipo de veneno pesado.
— Eles não vão aguentar muito tempo se isso se espalhar. O Woldo
também tá delirando, sussurrando coisas sem sentido.
Scorpio mal terminou de falar e Woldo começou a se contorcer e a
gemer, babando espuma escura. Seus olhos haviam derretido e estavam es-
correndo pelas órbitas.
— Mas que merda é essa?! — Marcus se levantou assustado, se aproxi-
mando do Ranger em choque, mas sem saber o que fazer.
— Cara… veneno nenhum faz isso… olha as orelhas dele, tem coisa
escorrendo por lá. — Scorpio apontou para a gosma branca misturada com
sangue.
Uma mão puxou a perna de Marcus, o fazendo pular em reflexo. Joe
estava com olhar vidrado tentando alcançá-lo.
— Rangers! — a voz de Joe estava alterada, seus olhos ficavam cada vez
mais brancos enquanto falava. — Nos tirem daqui, nos tirem daqui antes que
eles nos obriguem a abrir a prisão.
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Marcus curvou o corpo e comprimiu os ouvidos com os braços. A dor e
o zunido eram tão fortes que ele caiu de joelhos. Scorpio começou a tremer e
a babar. Marcus não pensou duas vezes, ativando o modo de contusão elétrica
da manopla de sua armadura, eletrocutando a si mesmo e a Scorpio.
Os olhos de Joe agora também estavam derretendo e escorrendo pelas
órbitas, seu corpo tremia e convulsionava até que finalmente espasmou e caiu
sem vida no chão. Scorpio voltou a si aos poucos, limpou o rosto com seu she-
magh, enquanto o zumbido no ouvido de Marcus finalmente diminuía.
— Tinha… algo na minha cabeça! — Scorpio estava ofegante.
— Achei que ia enlouquecer com esse zumbido — disse Marcus, cuspin-
do um início de vômito.
— Zumbido? Cacete, eu tava ouvindo um monte de vozes gritando pra
eu correr… Que porcaria foi essa… o Joe?! Merda!
— Algo fritou o cérebro deles e acho que quase fritou os nossos.
— Eu… eu vi alguma coisa cara. Parecia que eu tava alucinando. — Scor-
pio balançou a cabeça e passou a mão no rosto, secando o suor frio. — Acho
que vi as garotas sendo levadas pelos soldados de cinza. Parecia que a alucina-
ção tava me mostrando o caminho por onde elas estavam sendo levadas.
— Cacete, é sério isso?
— Cara… essa parada na minha cabeça… parece que eu tô sentindo a
angústia delas.
— Psicos?! — Marcus arriscou um palpite.
— Eu não sei… mas bate com o que contam das Guerras de Karnac*.
— Bom… não temos mais como salvar os nossos e já estamos aqui… —
Marcus apertou os lábios.
— É… vamos salvar essas garotas. Aquele filho duma schorg vai pagar
pelo que fez!
Marcus sacou a pistola e parou ao lado da porta no fundo do corredor.
— Eles não sabem que estamos atrás deles… — verificou seu revólver
mecânico e em seguida a pistola, colocando ambos em modo de supressão. —
Você era Mariner, não?
— Calamari Vermelho, divisão de assalto de superfície… nós lidávamos
com clãs rebeldes e criaturas…
— Ok! Só… vamos devagar, em silêncio até ser tarde demais pra eles
reagirem. Coloca o rifle em single e mira nas articulações e pescoço — Marcus
instruiu.
Os dois passaram por cima da porta blindada, que agora estava no chão
e seguiram devagar pelo corredor até uma larga escada de rocha polida. Avan-
çaram até chegar no andar abaixo, cinco lances de escada depois então Marcus
fez um sinal com o punho fechado levantado e Scorpio parou imediatamente
atrás dele. O Ranger tocou o ouvido duas vezes com dois dedos esticados e
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Scorpio confirmou, prestando atenção.
— O squad 2 não conseguiu recuperar a nave de apoio — disse uma voz
ecoando pelo corredor.
— Nossas informações eram que as turretas de artilharia de perímetro
estariam em manutenção, não sei o que aconteceu, mas o comandante não vai
gostar disso — respondeu outro soldado de voz mais fina.
— O comandante não será problema, aquele monstro que enviaram
junto é que vai ser. Tenho pena do que ele vai fazer com o squad 2 quando
forem reportar.
Marcus se abaixou, assumindo uma postura tática e Scorpio se posicio-
nou logo atrás, com sua linha de tiro ajustada acima do corpo do parceiro, en-
tão avançaram. O primeiro disparo do revólver de caça MAUSS-5 de Marcus
atingiu em cheio o pescoço do primeiro soldado à esquerda do corredor. por
causa do calibre, a proteção do pescoço da armadura do alvo explodiu. Os esti-
lhaços voaram e o pescoço dele, apesar de não ter sido perfurado pelo projétil,
foi amassado profundamente, fazendo-o cair sem vida. Scorpio acertou um
agrupamento de três tiros, dois atingindo a articulação perto da axila esquerda
e o terceiro perfurando um ponto só um pouco acima, já enfraquecido pelos
impactos anteriores. O soldado ainda caiu com vida, desequilibrando-se pelo
ataque surpresa.
— Onde está a garota? — Scorpio deu uma coronhada no capacete do
soldado. O impacto rachou o visor e expôs parte do rosto.
— Não reconhece a armadura deles Scorpio? — Marcus chutou o ombro
ferido.
— Merda… Shadow Moon! O que essa corja tá fazendo aqui? — Scorpio
se abaixou apoiando todo o peso do joelho em cima do braço ferido do ho-
mem. — Começa a falar seu schorg de merda.
O soldado se debateu, mas Marcus impediu que usasse o outro braço
para se mover, firmando o pé em cima do antebraço. Ele grunhiu, mas estava
imobilizado e machucado demais para reagir.
— Você ouviu o grandão, fala ou ele vai fazer questão de explodir sua
cabeça a soco… pra avisar, ele era um Calamari Vermelho sabe, aquela unida-
de do seu planeta que lidava com insurgentes que nem vocês!
O homem virou o rosto pra Scorpio e começou a falar gaguejando.
— E-eu… eu sou só contratado cara, eu nem sou de Ares. Só vim aqui
pela grana do contrato.
— Que contrato? Desembucha xará! — Scorpio estava prestes a perder
a paciência.
— O contrato era pra escoltar duas garotas e equipamento até aqui. Nós
perdemos os equipamentos na chegada… as garotas tentaram escapar… e…
— E o quê?! — Scorpio deu outra coronhada.
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— Outro ativo regional da Shadow foi enviado pra recuperar a garota…
Marcus e Scorpio se entreolharam.
— Pra onde levaram a menina? E por que vieram nessa merda de lugar
abandonado? — Marcus apontou a pistola para o rosto do mercenário que
suava visivelmente.
— Eu-eu não tenho os detalhes… eles não nos dizem essas coisas quan-
do nos contratam… as-as garotas são Psy… tentaram dominar a mente do
nosso piloto, nós quase caímos… fomos atingidos.
— É eu sei essa parte… fomos nós que encontramos os equipamen-
tos perdidos de vocês, seu merda. — Scorpio o interrompeu e depois deu um
olhar significativo para Marcus que atirou no mercenário.
— MAS QUE SCHORG VOCÊ FEZ?! — Scorpio gritou assustado se
afastando.
— Ué?! Você fez aquela cara — ele respondeu, levantando as mãos con-
fuso.
— Que cara?! Você tá maluco?! Eu… eu olhei porque ele confirmou que
elas eram Psys. Não olhei pra você matar o cara!
— Como é que eu ia adivinhar a diferença? O cara ia morrer de qual-
quer jeito, já tinha perdido muito sangue, olha a poça de sangue que você tá
pisando, seu maluco.
Scorpio olhou para baixo e percebeu a enorme poça de sangue que ha-
via se formado.
— Vamos seguir… e esperar que o resto desses mercenários não tenham
te ouvido dando faniquito. — Marcus suspirou com exagero e balançou a ca-
beça, seguiu pisando forte enquanto Scorpio olhava pela última vez para o
corpo agora sem vida do mercenário.
— “Aquela cara”… que cara?! — Scorpio resmungou, avançando atrás do
parceiro de trabalho. — Nós somos Rangers, não executores Marcus!
— Autorização para uso de força letal em caso de violação dos limites do
Santuário de Reserva Imperial — citou mecanicamente.
— Autorização não significa matar todo mundo — Scorpio rebateu em
voz baixa.
— Eu matei UM mercenário, schorg do cacete!
— Dois! — Scorpio corrigiu. — E se me chamar de schorg mais uma
vez…
— Shhh! — Marcus parou e fechou o punho levantado. Scorpio estacou
e bem devagar levou o rifle à posição de tiro.
Nada aconteceu.
— O que foi? O que você percebeu? — Scorpio murmurou.
— Que silêncio maravilhoso que fica quando você cala a boca.
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Desceram mais alguns andares e chegaram a uma passarela lateral aber-
ta para uma área cavada diretamente na rocha. Um salão de paredes de rocha
com mais de vinte metros de diâmetro, o ar gélido os acertou e Marcus res-
pirou fundo a frieza do ambiente. O lugar estava quase completamente vazio,
a não ser pela enorme porta dupla de metal no chão, que ocupava por si só
quase todo o piso da caverna.
— Outro subsolo? — Marcus sussurrou, espiando por cima da amurada.
— Lá… eles estão colocando uns cabos nas cabeças das garotas, olha. —
Scorpio apontou com a cabeça, tentando não fazer barulho.
Vinte e seis mercenários de armaduras cinzas estavam dispostos ao re-
dor do salão de rocha, todos com armas pesadas em punho e concentrados.
Próximo à saída da escadaria que dava acesso ao salão havia mais dois sol-
dados, usando capas de ombro, comuns entre oficiais de Ares*, e perto das
meninas uma espécie de caixa com cabos grossos metálicos saindo das laterais.
Um dos oficiais estava acoplando a ponta do cabo no dispositivo preso à ca-
beça da menina, que por sua vez não parava de se debater; enquanto o outro
oficial interagia com uma interface holográfica projetada na superfície do dis-
positivo digitando e fazendo gestos.
— Quanto tempo demorou pai? Finalmente encontramos sua preciosa
prisão… — disse uma voz grave e distorcida, falando em direção ao nada. Das
sombras do canto mal iluminado do salão, emergiu o mesmo homem que ha-
via matado os Rangers no corredor, andares acima.
— Quantos filhos seus tivemos que caçar e interrogar para juntar as pe-
ças dessa localização. Quantos agentes tivemos que perseguir e arrancar suas
mentes até não sobrar nada, pra poder chegar aqui?! — continuou falando so-
zinho, com braços abertos andando sobre a enorme comporta de metal como
se estivesse dançando.
A pele acinzentada do rosto refletia a luz fraca vinda dos mezaninos ao
redor. Sua armadura negra era fina, delineando quão magra e estranha era sua
silhueta.
— Se você acha que vamos abrir essa coisa, você está mais maluco do
que parece, seu monstro! — gritou a menina mais alta.
O oficial que ainda mexia no cabo acertou um tapa na menina, ela cam-
baleou, mas o fio acoplado na sua cabeça impediu que ela caísse.
A outra garota continuava quieta, com os olhos voltados para o chão.
Metade de sua cabeça estava raspada, expondo uma coleção de tatuagens em
ângulos retos e cicatrizes cirúrgicas. Ela não reagia, esperando sua vez de ter
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o bizarro cabo instalado.
—Vocês não têm escolha — respondeu o homem, encarando-a com um
sorriso vitorioso. — Não vim tão longe para ficar à mercê de suas vontades.
Oficial?
— A instalação do conector tem que ser precisa, preciso de mais alguns
minutos para calibrar, senhor — o oficial que operava a interface holográfica
respondeu. — Se permitisse tirar o inibidor… a conexão seria mais rápida…
— Nem pense nisso… vocês viram o que a interferência no inibidor fez
com essas pestes. Se eu não tivesse vindo fazer o trabalho de vocês, todos os
Rangers e Imperiais estariam aqui agora! — Cortou com raiva na voz.
Marcus olhou para Scorpio com o rosto pálido.
— O que foi? — Scorpio sussurrou.
— Você tem que voltar, rápido e ativar o Protocolo de Emergência 1! —
Marcus falou quase não conseguindo controlar a angústia.
— Do que você tá falando?
— Scorpio, suba o mais rápido que você puder e ative o protocolo, fale
com a base, você tem que ir rápido!
— Eu não vou te deixar sozinho aqui… nem aquelas garotas e seja-lá-o-
-que-eles-estão-fazendo!
— Esses caras são mercenários que trabalham pra Shadow Moon, Scor-
pio e aquele cara… ele é genótipo Nuit! — dessa vez Marcus segurou Scorpio
pelos ombros, fazendo-o prestar atenção na situação.
— Cacete… certo… certo… Nuit… aqui em Gaia… — Scorpio parecia
perdido. Marcus quase conseguia enxergar as engrenagens de sua mente tra-
balhando. — Eu vou… você fica escondido aqui… eu vou o mais rápido que
conseguir. Não sai daqui!
Marcus concordou com a cabeça e ficou esperando. Scorpio saiu abai-
xado tentando não fazer barulho e após alguns metros, sumiu na escada que
utilizaram para chegar ali.
Com cuidado, Marcus puxou o rifle das costas e o segurou com as duas
mãos. Fazendo um pouco de força, desprendeu uma parte do cano, o esten-
deu, e colou o seletor em HDSM* (High Density Shooting Mode). De um
compartimento camuflado na bota da armadura, retirou um pequeno retân-
gulo preto com uma faixa vermelha na lateral e o inseriu no alimentador de
munição do rifle. Com cuidado, abraçou o rifle cobrindo o corpo da arma e
apertou um botão próximo ao cabo. Os mecanismos internos do rifle come-
çaram a trabalhar, fazendo som de correias e molas, que o Ranger tentou ao
máximo abafar.
Depois de alguns segundos, respirou fundo agradecendo a si mesmo
por ninguém ter ouvido, então limpou o suor e colocou o rifle em posição de
tiro.
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— Senhor, não estamos conseguindo contatar a unidade 7 que já devia
estar de volta — informou um dos mercenários.
— Arrr… leve outros três e vá ver o que aconteceu. A comunicação aqui
dentro é horrível, de qualquer modo… veja porque estão demorando. Preciso
daquelas armaduras… — O homem de pele cinza parecia genuinamente preo-
cupado…
Marcus procurou um canto próximo a um pilar, apoiou o cano do rifle
e mirou sem se expor. Com o olho no scope*, o Ranger acessou o menu de
seleção de munição e organizou a ordem de disparos: Munição Perfurante 1 e 2,
Munição Explosiva de Alta Densidade 3, 4 e 5.
Do bolso de trás da armadura ergonômica de carapaça rígida, Marcus
pegou uma pequena bola metálica escura, apertou–a e acendeu a faixa de led
azul que a circulava, em seguida repetiu o gesto e a encostou numa área macia
ao lado do rifle. A superfície se iluminou e mostrou uma sequência de núme-
ros e letras. Colocou o olho no rifle e apontou para um canto da escada que
dava acesso ao salão abaixo. Marcus respirou devagar, tateou com o indicador
e apertou um botão ao lado do gatilho, quase imediatamente a superfície ficou
marcada digitalmente com uma pequena seta azul que podia ser vista apenas
pelo scope.
Então, Marcus lançou a esfera na direção do corredor. Ela rolou por
alguns metros e então parou, piscou algumas vezes e a faixa de led azul mudou
para cor laranja, depois começou a rolar por conta própria, indo direto para
a escada, quicando de degrau em degrau até parar no local exato que Marcus
marcou no scope.
— Certo… aqui vamos nós — sussurrou e então apertou o botão ao lado
do gatilho.
A esfera tremeu e o led piscou, partindo do laranja para o vermelho, em
seguida toda a esfera brilhou. Uma explosão eletromagnética apagou todas as
luzes do local e causou interferência intensa nos os equipamentos desprote-
gidos. Os mercenários, pegos de surpresa, arrancaram os capacetes, desespe-
rados por causa do ruído alto causado pela interferência. Alguns tiveram seus
ouvidos e cartilagem da orelha feridos devido à explosão dos transmissores,
normalmente sensíveis.
No meio daquele caos, os dois oficiais deixaram as garotas sozinhas,
tentando colocar ordem entre seus soldados. Nesse momento de descuido,
Marcus, que já tinha os dispositivos presos às cabeças das garotas sob a mira,
deu dois disparos rápidos de munição perfurante.
Os projéteis atravessaram o ar em alta velocidade e com precisão, atin-
gindo em cheio a base dos cabos e liberando os dispositivos. As meninas se
abaixaram assustadas, arrancando os dispositivos no susto.
— Disparos, peguem cobertura! — gritou um oficial.
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Vários soldados tentaram procurar um abrigo, mas o salão era qua-
se completamente vazio. Sem ter para onde escapar começaram a responder
com fogo em todas as direções, sem saber exatamente de onde os tiros tinham
vindo.
— Idiotas, nos mezaninos, naquela direção! — gritou o homem de pele
cinza, furioso. Com um gesto rápido fez seu capacete fechar em uma superfí-
cie preta brilhante.
Os tiros demoliram a amurada de onde Marcus fizera os disparos, mas
ele já não estava mais ali.
Do outro lado do mezanino, Marcus emergiu realizando três disparos
rápidos, sem tomar tempo para mirar, acertando na direção de onde havia
ouvido o homem de pele cinza dar as ordens. Os projéteis rasgaram o ar com
violência, aquelas munições eram diferentes das utilizadas pelos Rangers e
caçadores, eram munições explosivas de alta densidade, normalmente usadas
para abater pequenas naves. Os tiros estavam perfeitamente alinhados com
o local provável onde estaria o alvo, mas foram impedidos por um obstáculo
inesperado.
Na mesma fração de segundo que Marcus tinha se levantado para rea-
lizar os disparos, o homem de pele cinza com agilidade e força brutal, puxou
dois de seus próprios soldados e os utilizou como escudo humano. Mesmo
com toda a resistência de suas armaduras e densidade de seus corpos, os dois
foram pulverizados, deixando o real alvo ileso, segurando dois pedaços de
armadura do que tinha sobrado dos mercenários.
Marcus teve menos de um segundo para esboçar surpresa e decepção.
Antes mesmo que ele fosse capaz de formular algum pensamento uma chuva
de disparos destruiu o pilar que tinha usado como cobertura. Ele rolou para
outra proteção.
Mal encostou contra a parede e viu quatro mercenários emergindo pelo
vão da escada, largou o rifle e puxou a pistola, disparando rapidamente e mer-
gulhando no ar em busca de nova cobertura atrás de outro pilar de sustenta-
ção. Se continuasse assim, logo tudo ali não passaria de ruínas.
Fumaça e partículas subiam pelo ar formando uma cobertura insípida
de destroços e poeira. Os mercenários continuaram atirando através da nu-
vem por mais algum tempo. Depois, sem perceber qualquer indício de que
Marcus continuava ali, cessaram fogo. Neste mesmo momento Marcus emer-
giu em meio à fumaça com a pistola e o revólver em punho atirando repetida-
mente, derrubando um por um dos mercenários.
— Mataram ele? — perguntou um oficial gritando.
Em resposta, um corpo foi arremessado por cima da amurada. O oficial
mal teve tempo de perceber uma pequena esfera piscando num bolso da ar-
madura do mercenário morto aos seus pés. Uma explosão de ar pressurizado
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arremessou ele e outros soldados próximos contra as paredes de rochas.
— Vão atrás deles seus imbecis, todos vocês, vão! — gritou o homem de
armadura negra em meio ao caos. — E quanto a vocês duas, eu já perdi mais do
que a paciência, ative a sequência da fechadura neural dessa comporta agora
ou arranco o pescoço de sua irmãzinha!
Marcus ouviu um grito abafado de uma das garotas seguido do som
característico de uma lâmina cortando o ar. Ao mesmo tempo, passos pesados
dos soldados subindo as escadas em sua direção o impediram de intervir.
Em uma massa confusa de corpos esbarrando-se uns nos outros, os sol-
dados saíram da escada e deram de cara direto com Marcus. Vários deles se
olharam confusos vendo só um homem parado ali adiante.
— É só um? — alguém perguntou.
— É só um, filho duma schorg! — Marcus respondeu e correu em direção
a eles, os deixando ainda mais confusos.
O Ranger saltou no ar com ajuda do impulso de seus microjatos de
apoio nas costas da armadura e das pernas, fazendo-o mergulhar com violên-
cia contra a massa de soldados. O caos gerado permitiu que ele se levantasse e
descarregasse o revólver e a pistola a queima-roupa.
Com as armas vazias, Marcus as segurou pelo cano e começou a golpeá-
-los como se fossem martelos. Dentes, sangue e suor voaram pelo ar, juntan-
do-se à poeira dos escombros.
Alguns soldados tentavam reagir à fúria caótica de coronhadas, chutes
e cabeçadas do Ranger, acertando-o poucas vezes de forma efetiva. No meio
da briga, um soldado teve o sucesso parcial e inesperado de acertar um tiro
de raspão na lateral da testa de Marcus, rasgando a touca de proteção que
utilizava.
Um pouco desorientado pelo impacto da bala, Marcus deu alguns pas-
sos para trás, com a vista turva e perdendo o foco.
— Acertei? Acertei! — comemorou o mercenário e continuou a atirar,
descarregando toda a munição do rifle contra o Ranger.
Mesmo as armaduras de Rangers mais avançadas não são preparadas
para aguentar disparos diretos aquela distância, a de Marcus era ainda menos
por ser uma armadura leve para caçador-rastreador. Os disparos acertaram
seu corpo um a um, fazendo-o perder o equilíbrio e cair contra a parede ao
lado.
— Schorg sortudo! — Marcus murmurou cuspindo sangue.
Com esforço, se apoiou contra a parede e firmou o pé, impulsionando
o corpo aos poucos. O mercenário estava atônito e de boca aberta. O Ranger
ainda continuava de pé depois de ser alvejado tantas vezes. Sangue escorria
por todos os ferimentos do tórax e membros. Com uma cusparada no chão,
Marcus jogou o corpo para frente e saltou contra o soldado sem reação, ru-
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gindo como uma fera.
O Ranger montado no soldado desferia um soco atrás do outro, sem
parar, urrando e gritando de forma ininteligível, até o mercenário perder a
consciência. Quando finalmente se acalmou, olhou para frente percebendo o
oficial ali parado alguns degraus da escada abaixo, horrorizado.
Marcus riu e se levantou. Vários de seus ferimentos já estavam fechan-
do, expelindo os projéteis através da carne.
— É… — disse, dando de ombros. — O problema de ser um geno-alfa* é
que não adianta o quanto você atira na gente, o que importa é onde!
O oficial tentou falar alguma coisa, mas foi interrompido pela lâmina
do machete* que o Ranger sacou e usou para atravessar sua garganta. Sem
mais soldados para impedir seu caminho, Marcus finalmente desceu as esca-
das encarou o último agressor vivo, parado no outro lado da sala com uma das
garotas sob sua lâmina.
— Ah… um Alfa… — disse o homem de armadura negra. — Vou adorar
beber sua medula!
— Vai sonhando, aberração. Solta a garota! — ameaçou apontando o
machete, mas vacilando na precisão porque o corpo já estava sobrecarregado
em acelerado processo de regeneração e lidando com a perda significativa de
sangue.
— Você não está em… — ele começou a dizer, mas foi interrompido por
um empurrão invisível, que o jogou contra a parede.
A menina permaneceu no mesmo lugar, imóvel.
Um pequeno led na lateral de um dispositivo preso à cabeça da garota
finalmente havia apagado e de alguma forma, aquilo havia permitido reagir.
Marcus sorriu e caiu de joelhos, sem energia.
— Veja só… uma Sigma e uma Psy juntas… não é todo dia que se vê uma
coisa dessas — Marcus falou com a voz falhando.
— Vagabunda! — o homem urrou, com esforço apoiou os braços no
chão e se levantou. — Como se atreve a usar seus poderes contra mim?!
— Mana! — gritou a menina mais velha e com um movimento de cabeça
a garota fez com que um dispositivo semelhante na lateral da cabeça da outra
apagasse também. — É, agora você vai ver, seu monstro maldito.
— Você não vai entrar na minha cabeça, sua vagabunda! — ele retrucou,
já atravessando a barriga da garota mais velha com a espada.
— Não… NÃO, NÃO! — a mais nova caiu de joelhos e gritou ao ver a
irmã sendo empalada.
Ela soluçou, firmou as mãozinhas pequenas no chão e se levantou, ain-
da chorando. Limpou o joelho e olhou com raiva para o captor. Ela começou
a respirar com dificuldade, ofegante e então Marcus percebeu que uma lufada
de ar vinda de alguma parte do corpo pequeno começou a varrer tudo ao re-
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dor dela. Afastou a poeira, os escombros e os corpos. Alguns pedaços de rocha
solta acabaram acertando a boca do Ranger, ele voou de costas pelo mezanino
e se chocou contra a escada.
— Nathy… — A garota estava fora de si, em choque. Lágrimas escorriam
pelo seu rosto, fazendo caminho através da poeira acumulada.
— E essa é a lição de hoje criança. Eu avisei que se não se comportas-
se, faria da sua irmãzinha um exemplo! — o homem cuspiu as palavras com
repúdio, depois empurrou o corpo mole da garota mais velha contra a irmã.
— Agora abra essa merd…
A menina abraçou o corpo e urrou. Marcus ainda sentia os músculos
rangendo quando viu o que estava acontecendo com o homem da armadura
negra. Primeiro o corpo dele começou a se contorcer, a espada caiu pesada,
estalando com o baque no chão, então o capacete negro reluziu e abriu sozi-
nho, expondo os músculos do rosto contraídos, as veias estavam inchadas e
pulsando.
— Sai… da… minha… cabe… — Tentou falar, mas parecia prestes a se
afogar na própria saliva.
— Nathy, não… não faz isso… não força seus poderes — a garota supli-
cou forçando os braços ao redor da outra.
— Ele… vai pagar pelo que fez conosco e com a mamãe! — Nathy res-
pondeu em um crescente de choro, até sua voz virar um grito de fúria ensur-
decedor.
O ouvido de Marcus voltou a zunir até estourar seus tímpanos, o dei-
xando completamente desorientado. Ao mesmo tempo a garota mais nova
começou a gritar junto, fazendo ar, poeira, pedras e até algumas armas flutua-
rem e girarem ao seu redor. Então finalmente o corpo de Nathy ficou mole e
baixou o braço esticado na direção do que a tinha ferido.
O grito que veio a seguir e a violência em que tudo na sala começou a
girar fez parecer que um furacão havia invadido o salão de pedra no subsolo
da instalação de pesquisa desativada do Império.
Tudo lá, a não ser as duas garotas, começou a ser pulverizado. Parte da
armadura negra do assassino de Nathy foi arrancada e pulverizada em pleno
ar.
Então Marcus apagou.
/. FIM DO EVENTO
/. CALIBRAGEM PRIMÁRIA COMPLETA_
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CApítulo 1
FRAGMENTADO
Lua Gládio — Complexo de Inteligência da Marinha Real
Mega-Cidade Militar Crona — Órbita de Ares
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LAYON RODRIGUEz
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não autorizada contra o Império Unificado de Gaia, a antiga Terra.
A guerra iniciada pelo ato estava dentro das leis interplanetárias fiscalizadas
pela Ordem Solar das Centúrias, seguindo o Acordo Solar. Se não fosse pela invasão
terrestre não autorizada, Ares teria seguido com perfeição e polidez o protocolo de
guerra.
Havia aguardado por doze anos-padrão para realizar o ataque. Doze anos
necessários de uma investigação que não levou a nenhuma conclusão quanto a Gaia
ser ou não culpada pela morte do chanceler de Ares durante a missão diplomática
Harmony. Centenas de vidas importantes foram perdidas durante aquela missão de
paz, incluindo minha sobrinha — Taurus lembrou.
Ainda assim, sem conclusão das investigações, Gaia foi considerada culpada
de esconder informações importantes que comprometeram a segurança do encontro de
paz e isso, aos olhos do povo de Ares, era o suficiente para explodir a guerra de vin-
gança, a tantos anos esperada. Ainda assim, uma invasão ia contra o Acordo Solar,
e o Parlamento areano jamais aprovaria isso. Porém, contra toda a lógica, a invasão
aconteceu e uma cidade foi totalmente varrida do mapa, pensou consigo, intrigado.
As Centúrias, como regulamentadoras e guardiãs da coexistência solar
paralisaram a guerra, através do Ato de Congelamento de Sistemas, bloquean-
do o acesso a todos os sistemas de armamentos na região do conflito e inicia-
ram sua própria investigação emergencial, sabendo que era apenas questão de
tempo até que o bloqueio eletrônico fosse superado.
A liderança de Ares afirmou que a invasão não foi sancionada pelo comando
naval ou pelo conselho de guerra, portanto, não deveria representar um ato de Ares,
por isso a investigação e a paralização teve apoio do próprio parlamento, que estava
passando por severa pressão interna para aproveitar o momento e realizar um ataque
total contra Gaia — mas Taurus sabia que não fariam isso, ainda.
Nos escombros da cidade arcológica de Norridge, — Taurus continuou re-
capitulando consigo — palco da invasão, as Centúrias encontraram 3 sobreviventes.
O primeiro era um arremedo de restos quase irreconhecíveis que agora flutua dentro
de um enorme vidro, com todo tipo de equipamento de análise conectado; o segundo
era uma mulher que, sozinha, colocou um pelotão inteiro de segurança para dormir
e bem próximo a ela, em uma nave totalmente destruída, um homem em coma que,
contrariando todos os limites orgânicos, persistia vivo mesmo tendo uma espada atra-
vessada no coração e os membros superiores dilacerados.
Devido à gravidade da situação, as Centúrias fizeram um acordo com
Gládio e passaram a usar a Embaixada no planeta como ponto de partida para
a investigação.
Lorde Taurus foi chamado e realocado diretamente para o Anexo-J do
Complexo de Inteligência da Marinha Real, no qual uma força tarefa foi mon-
tada com os melhores especialistas a disposição. Seu trabalho seria liderar um
grupo específico, responsável por extrair informações utilizando um método
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LAYON RODRIGUEz
experimental.
Os restos vivos no tubo foram identificados, graças a uma tatuagem
eletrônica de marcação, como pertencente a um Ranger de Norridge. E gra-
ças ao fato dos Rangers serem uma Ordem irmã das Centúrias, tiveram acesso
total para extração de informações, independente de método empregado.
Os restos mortais foram colocados em êxtase, em um tubo preenchido
com um composto gelatinoso de nutrientes e minerais, além de regeneradores
experimentais. Os especialistas constataram que o Indivíduo Zero — nome dado
por ter sido encontrado no ponto zero da zona de destruição — possuía capa-
cidades regenerativas superiores à dos genótipos Alfa. Mesmo para um Alfa
da classe Prime, se regenerar a partir daquilo era inconcebível.
Os outros dois sobreviventes encontrados em Norridge ainda estavam
em recuperação. Um ainda em coma, em tratamento intensivo, enquanto a
outra estava causando uma série de problemas de logística e segurança, visto
que não estava inclinada a cooperar.
Taurus lidaria com ela no momento certo. Por enquanto havia outro
grupo responsável por interrogá-la e, como já esperava, assim que se mostras-
se incapaz de conseguir algo, as próprias Centúria pediriam por seu auxílio.
Os restos mortais do Indivíduo Zero flutuavam na mistura de líqui-
dos. Sua carne não era orgânica, mas também não era totalmente artificial.
As células artificiais imitavam o comportamento natural e ao mesmo tempo
interagiam normalmente com células orgânicas. Ele era uma mistura dos dois,
orgânico e artificial. Não era possível saber onde começava um e terminava o
outro, e isto estava deixando os especialistas agitados.
— Ainda voto que isso é uma tecnologia mímica — resmungou o espe-
cialista em tecnorgânica, que mais lembrava um sapo coaxando.
— Na verdade… isso não importa aqui hoje — retrucou outra especia-
lista, cortando o assunto.
Quando alguém da equipe recebeu a análise prévia do Indivíduo, falou
em voz alta que seria mais fácil ligar os restos a um módulo IA utilizado em
mechas, e deixar que essa IA fizesse o trabalho de conversação. Foi uma piada
de técnico, irônica. Como a comitiva das Centúrias não entendia piadas fize-
ram o que o técnico disse. E funcionou. Por alguns minutos.
A IA que haviam utilizado era simples, padrão de mercado. Não era po-
tente o bastante para lidar com aquele cérebro complexo e com todas aquelas
misteriosas ligações celulares. Mas o Reino Unido de Gládio tinha uma solu-
ção mais apropriada para aquilo.
A tecnologia era chamada ALMA, Artificial Lightning Medullary Accom-
plisher, uma IA criada por outra IA Matriarca, individualmente. Cada uma
era única por conceito, necessitando de sincronia empática com o piloto para
funcionar perfeitamente. A UKGMT, indústria de tecnologia militar de Glá-
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dio, testou mais de 100 ALMAs conectando-as ao cérebro do Indivíduo Zero,
foram horas exaustivas mesmo para Taurus que acompanhara de perto cada
etapa desde a chegada dos restos até encontrarem uma compatível o suficien-
te.
Os últimos ajustes tinham sido finalizados. A ALMA estava calibrada e
pronta para interpretar e transmitir as memórias do Indivíduo. A tela negra se
acendeu com enormes letras brancas.
/.Local: DESCONHECIDO
A memória iniciou com Marcus rastejando pelos escombros de uma
instalação espacial, com dificuldade a imagem foi estabilizando. Os braços
e pernas dele estavam como galhos de árvores destroçados e chamuscados.
Olhando para trás viu que seu corpo deixava marcas negras no chão, como
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LAYON RODRIGUEz
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de pedaços. Os estilhaços choveram sobre ele, que protegeu o rosto com as
mãos recém regeneradas. Quando conseguiu abrir os olhos novamente viu
uma nave de transporte de tropas sobrevoando o buraco no teto. Pouco tem-
po depois uma luz forte deixou tudo branco.
Os oficiais que assistiam a tudo arfaram quando outra vez ficaram sem
visão das memórias do Indivíduo Zero. Aguçando os ouvidos, Taurus percebeu
que o som de fundo era de uma espécie de motor que iniciava a partida. Aque-
le som era inconfundível. A sala de comando onde executavam a extração das
memórias ficou em silêncio, esperando o que viria a seguir, como se todos ali
estivessem com a respiração em suspenso. Tiros ecoavam perto dos ouvidos
de Marcus. Ele gemeu e então escutou, como um último adeus, o estranho
gritar lá de baixo:
— Viva irmão. Viva! E seja livre.
A nave ganhou velocidade.
O vulto de olhos incandescentes apareceu novamente, eclipsando a luz
da nave. Os tiros pareciam acertá-lo, mas sem causar nenhum dano. Ele se
abaixou novamente em um joelho, logo abaixo do buraco e deu um salto de-
sumano em direção da nave, envolvendo ambos em uma enorme explosão.
A imagem escureceu rapidamente, até apagar por completo. Antes da
memória se encerrar completamente, uma voz fraca e rouca disse:
— O que foi que fizemos?!
O silêncio ainda pairava no ar quando a IA Alma anunciou:
/. Fim do Evento
— Consegue definir em que momento cronológico da invasão foi isso?
— a pergunta de Taurus quebrou o silêncio.
— Senhor… — disse outro operador. — Esta memória não é de nenhum
período da invasão. Isto era… a primeira memória não fragmentada disponí-
vel do Indivíduo Zero.
Músculos faciais esticados e tensos, olhos levemente arregalados. Ele não tem
certeza. — Taurus percebeu.
Taurus fechou os olhos por um minuto completo, respirou devagar
como fazia sempre que estava pensando, então abriu os olhos e se virou,
olhando diretamente para a sala que ficava em um mezanino acima deles. Do
alto da janela escura havia uma silhueta os observando. Um movimento de
mão na direção de Lorde Taurus parecia convidá-lo para ir até lá. Ele final-
mente se encontraria com a única pessoa capaz de paralisar uma guerra em
nome de uma investigação.
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LAYON RODRIGUEz
Illa estaria tremendo e suando frio não fosse o implante que Kássio lhe
deu. Ela era apenas uma analista e havia encontrado por acaso uma trilha de
dados que se expandia em uma teia de acontecimentos sinistros. Tinha come-
çado a trabalhar no departamento de inteligência de Gládio fazia menos de 3
meses, pelo calendário Byron. O trabalho em si era simples, mas ser aprovada
para um cargo real de alto acesso de segurança era mais do que ela podia espe-
rar. Emprego novo, residência nova e… namorado novo. Viver qualquer tipo
de romance naqueles dias estava ficando cada vez mais difícil. Em Gládio os
relacionamentos ocorriam por conveniência genética, e não por sentimentos.
Illa queria isso, mas também queria uma união, como a que seus pais tinham.
Ela conheceu Kássio por acaso em uma conferência presencial sobre a refor-
ma política de Gládio em relação à transição de Monarquia Parlamentar para
República Genocrata.
Kássio estava perdido na entrada do centro de conferências, procuran-
do por um colega que o tinha convidado para a conferência. O coitado não
sabia, não tinha recebido a notícia de que a nave de transporte que trazia a
comitiva de convidados da colônia lunar Hipólito tinha se chocado com um
cargueiro de lixo tóxico, graças a um piloto sob forte influência de drogas.
Illa que também tinha uma amiga no cargueiro entrou em choque ao receber
a notícia. Ele acabou convidando-a para sentar ao seu lado quando mais pa-
recia perdida. Foi assim que se conheceram, ajudando-se a processar a perda
de amigos próximos. Illa e Kássio se encontraram várias vezes depois e uma
relação romântica se desenrolou. Ela nem imaginava quem ele realmente era,
ou no que estava envolvido. Quando percebeu, também fazia parte daquilo.
O rastro que encontrou era a linha solta na teia de acontecimentos que Kássio
estava investigando.
Agora ela estava ali, na mesma sala que o lendário Lorde Taurus. Seu
trabalho oficialmente seria analisar dados desconexos, ou sujeira, que sobrava
do fluxo de dados entre o Indivíduo Zero e a interface ALMA. Extraoficialmen-
te, Kássio lhe deu a tarefa de passar uma série de informações e instruções
diretamente para uma interface ‘failsafe’ oculta no córtex de Marcus.
O implante de controle de ansiedade estava funcionando perfeitamente
e por isso ela parecia fria e indiferente, como era esperado de uma analista da
inteligência de Gládio.
Ela só não sabia até quando conseguiria manter essa pose.
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CApítulo 2
DADOS BRUTOS
Lua Gládio — Complexo de Inteligência da Marinha Real
Mega-Cidade Militar Crona — Órbita de Ares
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Illa respirou fundo e disse:
— Há 76% de chance de que ele seja um genótipo Nuit, senhor.
Nuit, sim. Eles ainda estão lá fora, escondidos, agindo através das sombras.
Para a maioria não passam de lendas para assustar crianças, e os governos preferem
que sejam vistos desta forma. Porém, para os povos além do cinturão, eles são um ter-
ror real. Apesar de suas crenças fanáticas e insanas, esperava que em algum momento
acabassem agindo como terroristas. Nuit e Shadow Moon no mesmo lugar.
— Certo. — Taurus limpou a garganta. — Vamos dar um pequeno in-
tervalo. Preparem a próxima cadeia de eventos, pois obviamente nosso Indi-
víduo Zero sobreviveu.
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LAYON RODRIGUEz
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acordada. — Taurus finalizou e seguiu seu caminho pelo corredor, de volta à
sala da Força Tarefa.
Taurus se questionava sobre o motivo de trazerem alguém de fora para
participar da investigação, já que toda Gládio estava mobilizada para isso. As
Centúrias tinham acesso a todo o contingente de especialistas que quisessem.
Chegou a inquerir sobre isso, mas a única resposta que obteve foi que haviam
algumas exigências do Consórcio das Exocolônias para sancionar aquele ato
inédito. O Conselho Solar, apesar de administrador e liderado pelas Centú-
rias, era uma trama política perigosa para se ignorar.
Apesar de a Ordem das Centúrias ter poder independente ainda preci-
savam de apoio político dos grandes poderes da órbita exterior para interferir
na guerra dos dois deuses da órbita interior. Ares e Gaia.
Taurus entendeu, mas não concordou com aquilo. Como se dizia: Gaia
tem tecnologia de agricultura, Ares tem tecnologia militar, mas somente Glá-
dio tem a melhor tecnologia em inteligência. Não é à toa que por quinhentos
anos foram responsáveis pela segurança de dados da SolarNet* e todas as tran-
sações bancárias dos grandes poderes.
De volta à sala da Força Tarefa, todos estavam em suas devidas po-
sições, trabalharam a manhã toda e, ao invés de encontrar as respostas que
buscavam, a lista de perguntas estava crescendo exponencialmente.
A regeneração do corpo do Indivíduo Zero, Marcus, já estava em 30%.
Taurus não queria avançar dois dias além do cronograma naquele método
de extração de informações, que ele considerava lento e perigoso. Não havia
outra opção por enquanto.
— Prontos para continuarmos, cavalheiros?
A tela preta correu com alguns dados de inicialização.
— Temos algumas atualizações de dados senhor. — Illa levantou a mão.
— Prossiga.
— As duas crianças, Mika e Nathy, foram identificadas com 78% de con-
firmação como genótipos Omicron e Psy. Intensidade de gene do indivíduo
Omicron, Mika, é compatível com Prime, atingindo 98% de confirmação. Já
quanto ao indivíduo Psy, Nathy, não temos parâmetro de comparação para
avaliar — relatou.
Toda a equipe estava digerindo as informações. Genótipos, ou subes-
pécies com habilidades psíquicas não eram vistos há quase 100 anos. Aquela
subespécie estava quase extinta por causa do psicovírus Karnac, uma bioarma
criada por um grupo terrorista até então desconhecido.
Não havia cura para aquela bioarma. Quem contraísse logo desenvolvia
demência avançada, descontrole total e psicopatia agressiva, por fim, depois
de alguns dias, morte cerebral. Na época do surto, tudo o que se podia fazer
era colocar os infectados em quarentena, quando não era preciso abatê-los
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LAYON RODRIGUEz
para evitar que causassem mais vítimas. O vírus levou a óbito, direta e indi-
retamente, mais de um bilhão de habitantes de diversas colônias do sistema
solar. Três subespécies já tinham sido extintas. A de Mika e Nathy estavam
entre elas.
— Quanto às armaduras, os dados indicam 62% de confirmação de per-
tencerem à Unidade de Forças Clandestinas Eclipse — continuou Illa.
— Eclipse… faz sessenta anos que não ouço essa palavra — disse Taurus,
mais para si do que para os que o ouviam. — Se temos a Eclipse envolvida,
temos o clã Augustus de Ares envolvido. Repasse o relatório para o Anexo
A, eles darão continuidade a essa investigação. Mais algum ponto prioritário?
— Senhor — interrompeu o analista do setor de Conexão Neural —,
temos um bloco de memórias completamente corrompido no período de qua-
tro meses após os eventos mostrados. O departamento de recuperação está
trabalhando nisso já.
— Certo, continuamos de onde podemos então. Não deixaremos que
nada nos atrase mais. Temos uma guerra para impedir aqui, senhores! — au-
mentou a voz, para que todos na sala entendessem bem a situação.
— Ativar modo de imersão. Iniciar sequência de eventos. — E dessa vez,
toda a sala se acendeu em realidade aumentada. Eles não estavam só vendo as
memórias em um telão, agora, estavam imersos nelas.
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CApítulo 3
DADOS BRUTOS
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LAYON RODRIGUEz
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um barulho a pegou de surpresa. O sistema de resfriamento da sala tinha
acabado de religar, e o susto a fez derrubar o bastonete. Por poucos milíme-
tros o dispositivo não caiu pela lateral da plataforma, sendo impedido apenas
pelo reflexo do pé da analista.
Após recuperar o dispositivo com as mãos vacilantes, ela percebeu
que metade de sua capa de proteção estava se soltando, revelando um núcleo
branco, semitransparente.
O que é isso?
Kassio tinha dito que tudo que ela precisava para a missão estaria
naquele dispositivo, e realmente parecia que ele não estava brincando, pensou.
Ao remover a capa, notou que no conteúdo havia uma estrutura octogonal
comprida com a mesma aparência do cristal do servidor, mas em uma fração
de sua escala. Illa apalpou todas as partes do dispositivo até achar um botão
oculto na extremidade inferior. Ao apertá-lo o cristal interno se iluminou,
como se houvesse uma fonte de luz própria.
Certo, acho que você está ligado… mas o que eu faço…
Sua dúvida foi respondida antes que a concluísse mentalmente. No
canto de uma das telas havia uma pequena janela sobreposta piscando com
um texto: Conexão Ultrasônica de Ponte.
Isso não estava aí antes. Illa abriu a janela e se deparou com a opção de
Conexão Remota Ultrassônica com Dispositivo Cristalino disponível. Illa escolheu
conectar e o cristal em sua mão mudou a cor para um verde pálido e começou
a vibrar.
Mesmo com a refrigeração da sala ativada, ela estava suando. Aquilo
certamente lhe daria a pena máxima: execução sumária. Mas não importava,
não estava fazendo por si, era por um bem maior, repetiu várias vezes. Por
um bem maior.
Respirando fundo para controlar a ansiedade, Illa iniciou um processo
de backup das memórias de Marcus, que, segundo o mostrador de tempo,
levaria cerca de vinte e sete minutos. Espero que dê tempo. Então outra tela se
abriu.
Iniciando selamento de memórias classe Fantasma.
Um mostrador exibiu uma linha de tempo indicando que uma grande
porção das memórias de Marcus estavam em processo de bloqueamento.
Acho que era com isso que Kassio estava preocupado… que tivessem acesso o
passado de Marcus, antes de se tornar um Ranger.
Sem ter muita opção a não ser esperar, Illa se sentou na cadeira na
frente do console e começou a mexer no seu comunicador de pulso, que
estava sem sinal de conexão. Navegando pelos seus arquivos pessoais, en-
controu o livro digital que sua mãe tinha lhe dado quando era criança, As
Crônicas das Centúrias. Era a única coisa que ela tinha para passar o tempo,
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LAYON RODRIGUEz
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nascerá Ômega, ao contrário dos outros genótipos, todos carregam o gene
Ômega, mas para se tornar um, precisam despertá-lo’.
Então outro Fundador que foi presenteado com parte deste conhecimento ex-
plicou: ‘Evoluindo. Vocês precisarão evoluir. O nosso DNA possui 5 conjun-
tos de hélices. O primeiro conjunto é a base da vida, nos outros 4 conjuntos,
dormentes, recessivos, é onde está o verdadeiro potencial. Só então depois
de despertar esses genes, será possível acessar a primeira parte do gene Ôme-
ga latente’, explicou.
Muitos ainda se perguntam porque esse Ômega deveria ser a pessoa a liderar
a humanidade e não os fundadores. Somando seus conhecimentos, os fundadores
explicaram: ‘Nós não carregamos o gene Ômega, nem podemos evoluir ge-
neticamente. Somos o que somos e sempre seremos assim até morrermos.
Não temos a capacidade necessária para manejar ou nos conectarmos com
os Pilares, como um Ômega terá. O gene Ômega ativo, desperto, permitirá a
conexão de forma estável. E com o conhecimento ilimitado do Pilar, cresce-
remos e evoluiremos colonizando todo o Sistema Solar e talvez além’.
Os 23 mil entenderam, mas nem todos aceitaram. Achavam injusto. Não
queriam esperar. Centenas de anos se passaram até o primeiro Ômega despertar.
E mesmo assim, ele não durou tanto quanto imaginavam. Os Pilares iam matando
aos poucos o Ômega que os utilizasse.”
— Crônicas das Centúrias, Gênese da Nova Aurora
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LAYON RODRIGUEz
Tarefa.
— Bom… memórias basicamente são experiências emocionais ou
sensoriais. Elas não são lineares nem precisas. A maior parte de tudo que a
ALMA nos mostra, são representações com lacunas preenchidas pela própria
mente do Indivíduo.
— Pule para a parte que eu não sei, analista. — Taurus interrompeu,
sério.
— Sim, desculpe. A memória de Marcus não se comporta em nada
como uma memória normal. Ela é organizada em bolsões de linha de tempo.
Taurus reagiu a encarando diretamente com uma sobrancelha levan-
tada.
— A maioria desses bolsões de memória estão completamente selados,
biologicamente selados, como se houvesse uma cicatriz isolando-os de todo
o resto.
— Dano cerebral. — Taurus respondeu categórico.
— Como dano cerebral, mas intencional, acredito.
— Os neurologistas já haviam identificado isso. Eles acreditavam que o
dano provinha do evento de destruição ao que ele sobreviveu em Norridge.
— Mesmo ele sendo um Alfa, eles acreditavam nisso senhor? — Illa
questionou.
— Sim, também questionei isto. Esses… esse relatório veio diretamen-
te dos especialistas das Centúrias. Alfas podem regenerar a maior parte do
dano biológico sofrido, mas, ao que os estudos indicam, dano causado por
fonte externa psíquica pode demorar muito a ser recuperado.
— Psíquica…
Olhos perdidos fitando o nada. Mandíbulas tensionadas.
— Era essa a sua teoria, analista Illa?
— Ah… não. Os técnicos tinham identificado um implante na nuca de
Marcus. Uma Interface J. É raro conseguir implantar qualquer melhoria não
biológica em um Alfa, e essa é incrivelmente avançada…
— Sim, o departamento de Análise de Tecnologia está trabalhando no
estudo disto, à parte. — Taurus usou uma entonação peculiar na última pala-
vra.
— Entendo… quando isso foi confirmado, eu fiquei bastante curiosa
em ver esta leitura da ALMA em macro, sem interpretações ou preenchi-
mentos de lacuna, pois uma Interface J desse tipo também pode ser sinônimo
de outra coisa.
Taurus a fitou esperando a conclusão.
— Sua mente pode ter sido sobreposta digitalmente.
Desta vez, Taurus parou de andar. Os guardas que os acompanhavam
pararam assustados, levando as mãos até as armas. Taurus fez um sinal, le-
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vantando a mão aberta, para que relaxassem.
— Transdigitalização? Normalmente isto se aplica quando uma mente é
digitalizada e transplantada para um servidor, através de uma Interface J.
— Normalmente, sim. Mas não estamos lidando com uma situação con-
vencional, não concorda, senhor?
Taurus fez um gesto com a cabeça, voltando a cruzar os braços atrás
da cintura e a continuar o caminho até a sala da Força Tarefa.
— Prossiga.
— O fato que realmente apoia essa ideia é que… e outros técnicos irão
confirmar, as memórias de Marcus em sua maior parte estão criptografadas.
Taurus olhou de canto para Illa, em silêncio.
— Ao mesmo tempo, parece que a mente dele está lutando contra esse
padrão, tentando se reorganizar enquanto regenera. — Illa concluiu.
— Entendo. Mas isto não é uma verdadeira surpresa.
Desta vez, Illa que foi pega de surpresa.
— Ioths, quando atingem o nível Prime em seus genes, conseguem
reorganizar sua forma de pensar a um nível próximo de uma criptografia.
Isto não é de conhecimento comum hoje em dia, pois não é mais necessário.
— Taurus acrescentou.
— Durante a guerra Karnac?
— Sim. Agentes de genótipo Ioth criptografavam os próprios pensa-
mentos para não serem lidos pelos agentes opositores Sigma*.
Illa ficou aturdida, em silêncio. Taurus quebrou o silêncio quando
viraram à direita no corredor, tendo agora a porta da Força Tarefa a poucos
passos de distância.
— Alguma solução para lidar com esta situação?
— Ah.. bom… há muitos fragmentos que… se regeneraram e perderam
essa criptografia… mas estão embaralhados. Se conseguirmos organizá-los
numa linha de tempo correta, podemos utilizar isso como ponto de partida
para quebrar a criptografia, pelo menos desta cadeia de eventos.
— Investigação forense de memórias. Talvez você tenha criado uma nova
especialização aqui, analista. — Taurus comentou, dando um breve sorriso.
— Leve isso aos outros técnicos e inicie o processo. Se estiver correta, pelo
menos teremos encontrado um método.
Illa sorriu e agradeceu pelo consentimento de Taurus.
Agora resta saber quando terei uma janela para enviar estes dados para o
Kassio.
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LAYON RODRIGUEz
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preto. — Esse é o período total das memórias do Indivíduo Marcus, desde o
ponto que recuperamos, do evento nas montanhas da Reserva Imperial, até
sua última memória, provavelmente o momento da destruição de Norridge.
— Sim, as áreas verdes são onde temos leitura, a maioria fragmentos.
Nós justamente estamos tentando compilar as partes que faltam — explicou o
analista Thy Anderson.
— O problema Thy, é que estamos tentando compilar como se isso fos-
se uma linha de tempo. Memórias não são lineares, não é o que vocês vivem
repetindo? — Illa esticou uma mão aberta na direção dos neurocientistas, que
concordaram. — Mesmo esses fragmentos legíveis que temos acesso, não es-
tão necessariamente na ordem certa. Lembrem-se que quando tentamos com-
pilar a primeira vez, no modo de leitura superficial, conseguimos acesso a vá-
rios desses fragmentos, não porque eles estavam disponíveis, mas sim porque
estavam coerentes e tanto o cérebro de Marcus quanto a ALMA conseguiram
interpretar como algo com sentido.
— Certo… eu, e outros colegas aqui, acredito que já estamos seguindo
seu raciocínio. — Thy deu um passo à frente em direção à tela holográfica. —
Quando os fragmentos que temos estão na ordem certa, as lacunas são compi-
ladas automaticamente e, arrisco, destravadas.
— Então realmente essa criptografia funciona como uma chave-viva
mutável — concluiu Merik, o analista sênior de inteligência. — Mesmo que
usássemos todo o poder de processamento de Gládio, seria impossível que-
brar essa chave-viva em dois dias. Porém… se ajudarmos o próprio cérebro
do Indivíduo a fazer isso… hum… organizando esses fragmentos isoladamente e
deixando que ele mesmo complete as lacunas…
— Sim Merik, é como montar um cristal quebrado. — Illa mordeu os
lábios se punindo pela analogia. — Temos que montar as partes que conse-
guirmos para que o resto possa se encaixar.
Agora todos na sala estavam comentando, contentes por acharem uma
saída daquela situação de atrito. Illa olhou para trás buscando a aprovação
de Taurus, que balançou a cabeça positivamente, mas sem esboçar qualquer
expressão no rosto.
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LAYON RODRIGUEz
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O evento foi reportado como um “ataque inesperado de bestas selva-
gens devido ao mal funcionamento de cercas sônicas da região sul”. Cópias
de reportes recuperados do escritório interorbital dos Rangers corroboram
com esta versão, citando a perda de duas unidades de patrulha (quatro Ran-
gers) e ferimentos severos no Ranger Caçador Marcus.
Ressalto: em momento algum houve qualquer referência a outro so-
brevivente ou a confronto com invasores.
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LAYON RODRIGUEz
ANEXO 01
Durante os meses de diadran e faian foi assinado um acordo de
fornecimento de equipamentos de defesa avançada entre o Consórcio das
Exocolônias, Olympus e a Ordem Solar dos Rangers. Este acordo, san-
cionado pela Ordem das Centúrias e o Comitê Solar, visou a atualização
dos trajes de sobrevivência e combate dos Rangers.
Neste mesmo período, Norridge recebeu uma atualização geral dos
equipamentos de segurança da Força Pacificadora Colonial. Todos os
equipamentos descartados foram realocados para o subsolo do DMN1, até
seu recolhimento pela Força Imperial. O transporte dos equipamentos fi-
cou sob responsabilidade dos Rangers de Norridge.
Este evento foi finalizado poucas horas antes da invasão (ver memória
recuperada).
Autenticado por:
ILLA DUR’VERMILLION
— Analista Sênior de Dados de Inteligência
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maioria ainda não ter se mudado das torres para ali.
Marcus estava de pé em um rochedo próximo, acompanhando todo
o processo de descarga, como uma águia em seu ninho. Dezenas de Rangers
escoltavam de volta para Norridge as balsas, junto dos equipamentos recém
entregues da Força de Pacificação Colonial, deixando o Drive quase comple-
tamente vazio.
Durante algumas horas, o único movimento ali seria o de uma menina
com as laterais da cabeça raspadas brincando com um enorme warg. Marcus
observava a garota arremessar um galho, muito maior do que alguém da-
quela idade conseguiria levantar. Mika ainda não controlava muito bem suas
habilidades telecinéticas, e se sentia pouco à vontade em utilizá-las na frente
das pessoas, mas não pensava duas vezes em aproveitar-se delas para fazer o
warg correr pelo campo verdejante, satisfeito por recuperar o galho.
— Eu juro pra você que dá pra sentir a terra tremendo lá na cidadela
toda vez que o pulguento pula — disse Marcus, se aproximando com um
embrulho pendurado no ombro; a garota riu tímida ao percebê-lo entrando
pelo portão.
Ela passou as mãos no rosto tentando limpá-lo, mas só acabou en-
chendo-o de seiva grudenta de cedro-de-mel. Cumprimentou Marcus como
Scorpio a ensinara: punho fechado sobre o peito e reverência com a parte de
cima do corpo, o cumprimento Ranger padrão. Marcus respondeu fazendo
um floreio maior.
— Ramza — disse para o warg que mastigava o galho sem ligar muito
para a presença do estranho conhecido. Dera o nome para o warg por causa
do som característico que fazia quando via a garota correr na direção dele.
Marcus não achava que fazia muito sentido, de qualquer forma, nos últimos
meses, o lobo gigante era tratado mais como um deles do que como uma fera
atroz.
Mika se aproximou de cabeça baixa, ela respeitava Marcus como uma
menina tribal respeita o líder da tribo. Desde o evento em que se conheceram,
ele nunca mais ouvira a voz da garota.
— Trouxe uns doces pra você pequena, mas não vou te dar enquanto
você parecer um galho de cedro-de-mel toda ensebada.
A menina saiu correndo para se lavar. O warg cuspiu os restos do galho
em um canto, veio até Marcus e cheirou sua bolsa.
— Esses não são pra você grandão — disse, mas Ramza não pareceu gos-
tar da resposta e encostou o focinho no rosto de Marcus e bufou. — Se você tá
tentando me intimidar com esse cheiro de cachorro molhado e essas pulgas,
rapaz, você quase conseguiu — disse tossindo e se afastando.
Ramza bufou e olhou para o céu. Havia um som de uma tempestade que
não estava ali e os dois estranharam.
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LAYON RODRIGUEz
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Marcus e a projeção da memória ficaram turvas e estavam falhando enquanto
o capacete se recolhia automaticamente para a nuca.
Ele caiu de joelhos e largou Mika. Ramza a segurou com a boca pelo
colarinho do macacão e parou ao lado do Ranger, olhando para o céu e ros-
nando.
Marcus não conseguia se mexer, seu corpo estava mole.
Antes de apagar viu vários escapepods militares cortando o céu e atin-
gindo a encosta do vale.
Era uma invasão.
/. FALHA NA SINCRONIZAÇÃO
/. TENTANDO REESTABELECER CONEXÃO
/. EFEITO EM CADEIA DE TRAUMA EMOCIONAL DETECTADO
A simulação tinha congelado. O técnicos e especialistas na sala da For-
ça Tarefa movimentavam os braços freneticamente, utilizando as interfaces
holográficas do sistema ALMA para tentar recuperar a memória. Várias ima-
gens corrompidas apareciam na tela enquanto o sistema tentava reiniciar após
a falha.
Taurus olhava a situação temendo que aquela parte específica da inves-
tigação fosse demorar mais do que apenas os dois dias que ele planejara.
— Illa, tem uma série de pacotes de memórias não-rotulados indo para
o seu terminal, veja o que consegue recuperar disso por favor — disse um téc-
nico sênior próximo de Taurus.
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LAYON RODRIGUEz
possível?
— Eu não… parece que há algum tipo de firewall oculto — Illa respon-
deu. — Isso não estava lá. Aqui no log… assim que ele regenerou alguma
parte do cérebro… essa proteção foi ativada.
Illa apontou para uma tela holográfica contendo todos últimos even-
tos biológicos e digitais com uma área destacada.
— Alguém sabe… — O técnico Thy não conseguiu terminar a per-
gunta. A tela antes preta do sistema de conexão ALMA agora estava branca.
Uma mensagem apareceu em vermelho.
/. PROPRIEDADE DØ
/. VIOLAÇÃO DE SEGURANÇA
/. PROTOCOLO DE RETOMADA DE CONTROLE INICIADO
— Senhor, estamos sendo desconectados. Estamos sendo DESLIGADOS
DO SISTEMA. — O técnico sênior de segurança de dados se desesperou.
— Não Thy, ele está tomando controle da ALMA. —Illa interrompeu
calmamente.
Em outra tela os logs indicavam a perda total de controle dos operado-
res sobre o sistema de conexão ALMA. Tudo estava virando um caos então a
tela ficou vermelha.
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— Desculpe a intromissão, Lorde Taurus – ela disse e parou ao lado do
homem que escolheu para gerenciar aquela bagunça.
— Esta operação é sua, Lady Solaris. — Taurus baixou a cabeça.
Todos olhavam atônitos. Taurus tinha quase dois metros de altura e
ainda assim, ao lado daquela mulher, era pequeno.
— De volta ao trabalho, recuperem a conexão e recalibrem a ALMA
para continuar a reconstrução das memórias de onde paramos — disse Taurus
com voz firme e alta, o suficiente para tirar todos do transe causado pela pre-
sença da Madre Solar.
— Lady, a senhora sabe com o que estamos lidando aqui? — disse Tau-
rus temendo estar ultrapassando sua própria autoridade com aquela pergunta.
— Lorde Taurus, acabamos de encontrar uma obra única, projetada por
um alguém muito mais antigo do que eu, um dos primogênitos — ela disse
com tranquilidade.
Há algo de estranho nos músculos faciais dela. Um sorriso ocultado?
— Esse… firewall, foi desenvolvido dentro do Departamento Zero —
murmurou próximo do ouvido de Taurus.
Antes das Centúrias e os Rangers, existia o Departamento Zero, a or-
dem que sustentava o sistema solar como colunas sustentam o teto de uma
residência. Atualmente o DZ não passava de uma lenda, pois o último Im-
perador Ômega desativou a ordem pessoalmente. As Centúrias e os Rangers
foram escolhidos para substituir o Departamento Zero operacionalmente.
Apesar de tudo nem Rangers nem Centúrias tiveram acesso às instalações,
tecnologia ou inteligência. Nunca.
A madre solar conduziu Taurus até os fundos da sala de comando.
— Taurus… — disse quase sussurrando. — Você entende que se este
homem, que de alguma forma têm tecnologia do Departamento Zero fundida
ao seu cérebro, estava em Norridge, não foi por acaso. Talvez ele mesmo nem
soubesse que possuía isto na cabeça… — Pausou olhando para o telão. Seus
olhos brilhavam incandescentes. — Essa guerra… essa invasão…
— As meninas… — acrescentou Taurus acompanhando o tom baixo da
Madre.
— Sim… isto tudo foi planejado por alguém.
Não há dúvida na voz dela.
—… Norridge foi sanitarizada para não deixar vestígios — disse acom-
panhando a grande Centúria em direção à saída da sala.
— Temos mais jogadores nesse tabuleiro de guerra do que imagináva-
mos, Taurus — disse a Madre Solar dando as costas e saindo da sala.
Taurus ficou ali em silêncio por um bom tempo depois que ela saiu,
olhando para a porta pela qual havia saído. Ele temia que outras lendas viras-
sem realidade durante as horas que se seguiriam.
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CApítulo 4
SANTUÁRIO EM
CHAMAS
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— Na verdade, senhor, não fizemos nada. Nem a nossa ALMA fez…
parece que a ALMA ´pré-existente no Indivíduo Zero está… dando suporte
ao nosso sistema.
Ela quer ajudar? Pensou incrédulo.
— Estamos prontos para continuar?
— Aparentemente… como nunca estivemos, senhor — concluiu o ope-
rador, olhando atônito para seu terminal holográfico.
Illa está tentando esconder um sorriso.
— Então… iniciar reconstrução da próxima sequência de eventos.
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que Marcus a soltasse.
— Mas que… o que foi garota? Eu sei que é perigoso, eu sei que tá com
medo. Olha o Scorpio, ele também tá com medo. Mas temos que ir. Ficar aqui
é pedir para sermos pegos pelo próximo droppod deles.
— Cara, ela tem pernas! — Scorpio ralhou.
Mika puxou sua mão com força o trazendo para perto de Ramza, obri-
gando-o a se abaixar.
— O que foi? O que você… — Antes de terminar a pergunta, Mika colou
o polegar com força na testa de Marcus e com a outra mão fez o mesmo com
Ramza. Tudo ficou branco.
Toda aquela região que Marcus patrulhava por anos estava completa-
mente branca, como se fosse feita de plástico. Sua mente percorrendo todo
o caminho até o que ele reconheceu como sendo a Torre Sul, também total-
mente branca.
Conforme a visão se aproximava, formas humanoides vermelhas se
tornavam nítidas, saindo da torre e a cercando.
A visão mudou abruptamente para o interior da torre, onde haviam
duas formas humanoides verdes ajoelhadas, estavam com as mãos na cabeça.
Atrás delas, homens vermelhos com armas em punho, apontando para a nuca
deles.
Então todo o caminho de volta foi percorrido até o focinho de Ramza.
E Marcus despertou ao cair sentado na neve.
— Mas que ca…
— Schrat! O que foi isso?! —Scorpio o interrompeu tentando ajudá-lo a
ficar de pé.
— Eu… eu vi a torre — disse ofegante e rindo surpreso ao mesmo tem-
po. — Mas não era a minha visão…
Mika apontava para os olhos de Marcus e para o nariz do warg. Ramza
balançava e grunhia.
— Eu estava vendo… — disse sacudindo a cabeça — pelo faro dele?!
Mika balançava a cabeça enquanto fazia gesto de positivo com as duas
mãos.
— Okey-e! Você me fez ver pela visão olfativa de lobo gigante! Igual os
malucos dos Telfires* fazem — disse passando a mão no rosto incrédulo.
— Do que schorg você tá falando? — explodiu Scorpio, impaciente com
a situação.
— Cara… a Mika, de alguma forma me fez ver através do faro do pul-
guento, igual àquela habilidade de caça dos Telfires, lembra? — Ramza reagiu
dando um latido.
— Hun… é… eles caçavam desse jeito — ponderou Scorpio durante al-
guns segundos. — Mas o que você viu afinal?
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— Ah, er… eles já estão na torre. Estão rendendo dois dos nossos.
— Droga, foram pegos de surpresa.
O Ranger grandalhão ficou em silêncio por um tempo, depois coçou o
queixo e disse:
— Que furada!
Marcus olhou-o como se um grande ponto de interrogação fosse dese-
nhado em seu rosto.
Scorpio virou os olhos por ter que explicar.
—Se um oficial for esperto consegue usar os protocolos da torre pra
interferir nos nossos equipamentos… até desativar através do sinal de pulso.
— E nos deixar indefesos?! — Marcus estava indignado.
— Irmão, aquela antena de pulso é pra atualização de firmware. Os caras
não tão nem aí se vamos ficar na merda.
— Se formos lá então estaremos indo para uma armadilha, é isso?! —
Ramza latiu três vezes. — As nossas armas ainda funcionam pelo visto. — Dis-
se destravando o revólver.
— Sim, acho que sim. Devíamos estar bem longe da área de alcance do
sinal de pulso — Respondeu enquanto tentava racionalizar a situação.
— Precisamos de um plano cara. Se fizeram isso na torre sul, já devem
ter feito nas outras e provavelmente cortaram acesso direto da comunicação
com a central… merda de tecnologia ultrapassada. Atualizam as armaduras,
mas não atualizam o lixo do transmissor de pulso!
Marcus olhava pra Ramza, tentando pensar em algo. Seus colegas esta-
vam presos na torre, sem qualquer chance de defesa.
— São de Ares mesmo? — disse Marcus olhando na direção da cidade
de Norridge.
— Sim… — respondeu Scorpio depois de quase um minuto de silêncio.
— … eu sinceramente não sei como conseguiram aprovar essa invasão.
— Ares sempre quis e sempre teve motivos para uma guerra com Gaia,
Marcus… mas sempre soubemos pesar o que era melhor para o povo. No fim,
o povo caía na pilha de alguns extremistas de cabeça quente, pra terem uma
chance de subir dentro das castas sociais — disse olhando para o céu. — Só que
não era essa a solução certa. Vermillion lutou para resolver isso internamen-
te… E ainda assim… isso tem cara de ser coisa de algum maluco isolado. Tem
uma dezena de clãs que não levaram as frotas para a inspeção, fiquei sabendo
esses tempos. Deram as naves como perdidas em combate contra piratas.
Scorpio era de Ares, Marcus sabia sua história, um expatriado da última
guerra civil. Seu pai era um Lorde da Guerra que apoiou o grande General
Vermillion, o único líder areano disposto a lutar por uma reforma política
interna antes de sair atacando outras soberanias.
Todos que o apoiaram, e suas famílias, foram exilados de Ares. Como
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Scorpio foi o último membro vivo da família Wulfgard, teve que escolher
entre se tornar um mercenário, se vender para alguma corporação ou entrar
para os Rangers Solares, optou pela última. Era a única maneira de não cruzar
armas com seus irmãos novamente, ele pensava.
Marcus colocou a mão no ombro do amigo.
— Irmão, não é a primeira vez que uns malucos sem freio fazem merda.
Você lembra do bombardeio em Hoplita melhor do que eu.
Scorpio olhou para Marcus franzindo o canto da boca.
— É… eu lembro daquela merda… o que me preocupa é que dessa vez
Gládio tá longe demais pra interceder — lamentou.
— Espero que as Centúrias estejam fazendo algo a respeito… e que pelo
menos tenham um bom motivo pra não terem dado um jeito de nos avisar!
Enquanto pensavam no que fazer, no alto da atmosfera, naves de com-
bate explodiam. A sombra colossal sob o céu azul se tornava mais visível, co-
brindo parte da despedaçada Luna, a lua terrestre já fragmentada há milénios.
— O que acontece se o perímetro da torre for violado por ameaças na-
turais? — perguntou Marcus olhando para Ramza.
— Se for uma ameaça natural, o sistema da torre envia um pulso de
emergência automático… que serve como reboot para religar qualquer ar-
madura desativada ou em repouso… hum… — Scorpio olhava para Marcus
esperando o resto do plano.
— E esse pulso fica só na área ou ativa as comunicações de emergência?
— Hum… normalmente em área… mas pode ser ativado manualmente
para avisar todas as torres… — Scorpio levantou uma sobrancelha juntando as
peças do plano de Marcus. — Quero saber é onde você vai encontrar wargs, no
plural, pra fazer essa encenação funcionar.
— Ah rapaz, mas temos aqui o líder capa-branca desse vale — explicou
Marcus dando tapas de apoio no ombro de Ramza, que por sua vez soltou um
grunhido baixo e girou a cabeça de lado.
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olhos. Parte superior dos lábios contraídos nos cantos. Sinal de repulsa. Está à vontade
presa.
— Liberem as travas de segurança e a porta da cela.
Os soldados arregalaram os olhos, assustados.
— Protocolo de sobreposição de autorização 1889.
As travas que prendiam Sanae se abriram e a porta foi destrancada.
Taurus entrou na cela, deu um comando para a cadeira dela ficar na
posição sentada. Sanae estava livre, apertando os pulsos, feridos pelas travas
de imobilização.
Olhos arregalados no primeiro segundo. Um breve momento de medo e incer-
teza. Ombros se encolheram sutilmente.
— Eu não sei se você é louco ou o tem algum fetiche bem estranho —
disse a mulher recém libertada.
Peito estufado novamente. Recuperou a postura desafiadora.
— Ao contrário dos soldados que você… que tentaram interrogá-la, eu
não tenho pretensões de feri-la ou de me ferir para obter resultados.
Sanae ficou olhando para Taurus tentando compreender a situação.
Olhos com movimentos rápidos. Está calculando se sou uma ameaça física.
— Você andava com um Oficial de Engenharia, Robb Kovac, não é?
— …Estava na minha ficha. O que tem ele?
Surpresa ao ouvir o nome.
Taurus coçou a barba, se sentou num banco lateral embutido na parede
e cruzou as pernas.
— Eu tenho algumas informações que você quer e você tem algumas
informações que eu quero. Talvez não tenham realmente lhe explicado de
forma adequada o que estamos fazendo aqui senhorita Sanae.
— Vocês são da Inteligência de Gládio, é o que sei e eu não colaboro
com vermelhos.
Ser chamado de vermelho quase mudou o humor de Taurus, mas ele
não deixou se influenciar, respirou com calma, mantendo o foco nos movi-
mentos a seguir.
— Eu não sou um… areano, senhorita Sanae. Você está certa quanto
sermos da Inteligência de Gládio, mas só porque somos uma lua na órbita
Ares, não significa que fazemos parte do governo deles ou que concordamos
com seus atos. Já somos independentes há mais de 300 anos. Agora, hoje em
específico, não somos apenas a Inteligência de Gládio, somos também eleitos
pela Ordem das Centúrias como responsáveis pela investigação dos possíveis
crimes de guerra e pela autenticidade do conflito entre Ares e Gaia. Você, por
acaso ou não, foi pega no meio dessa situação — disse apoiando as mãos so-
bre o joelho. — Temos em nossas mãos uma cidade obliterada. Norridge não
existe mais. Por algum motivo a destruíram até arrancar suas fundações. Não
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encontramos nenhum sinal de… quase dois terços dos habitantes de Norridge.
Sanae caçoava do falatório de Taurus imitando uma boca falante com a
mão e encenando um bocejo.
— No ponto zero de tudo aquilo, encontramos restos mortais irreco-
nhecíveis de um… ao que tudo indica, Ranger; encontramos uma nave en-
terrada na neve com você dentro semiconsciente e encontramos um homem
totalmente retalhado com um pedaço considerável de lâmina atravessado no
peito, a alguns metros da nave.
Sanae se projetou para frente com as mãos entrelaçadas.
— Que homem?
— Você tem perguntas, eu tenho perguntas. Esta primeira eu vou res-
ponder como gesto de boa vontade, mas para a próxima, você terá de respon-
der as minhas também.
Músculos tensos. Rápido contorcer do rosto. Dor? Preocupação talvez.
Sanae apoiou os braços nas laterais do assento. Nada naquele rosto,
naquele momento, indicava que ela era capaz de destruir algumas dúzias de
soldados com chutes e socos.
— O homem encontrado tinha os cabelos brancos como neve, mas era
jovem como você. Confirmado como genótipo Alfa, mas ao que tudo indica
foi alterado geneticamente.
— Ele está vivo?
— Minha pergunta primeiro, senhorita. O que você estava fazendo na-
quela região?
Sanae se acomodou novamente na cadeira, fechou a cara e franziu os
lábios.
Mandíbula mordendo os cantos internos na boca. Controle consciente da res-
piração.
— A equipe médica está mantendo o outro sobrevivente em coma para
se recuperar em segurança, mas parece que você vai me forçar a colocá-lo em
risco para obter algumas respostar úteis.
Olhos arregalados. Lampejo de pânico. Boca aberta paralisada. Mudança de
postura.
— Eu não sei a história toda — começou. — Você tem um cigarro? Mi-
nhas nanomáquinas estão me matando de dor de cabeça.
Taurus fez um sinal para o guarda arranjar o que ela pediu.
— Eu sou apenas uma piloto. Meu capitão é dos detalhes. Temos um co-
municador único, de pulso concentrado, criptografado. Eu sinceramente não
sei como funciona, mas meu capitão usa ele pra se comunicar com poucas pes-
soas. Recebemos um chamado… — o guarda lhe ofereceu o cigarro e acendeu
—, …um chamado de socorro de um amigo antigo do capitão, alguém a quem
ele devia um favor importante… eu acho. As comunicações daquela região de
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Gaia estavam bloqueadas e os Rangers em Norridge não tiveram tempo de
contatar o Controle Operacional ou sequer as Centúrias para pedir extração.
Lábios franzidos. Mandíbula tensionada. Desaprovação.
— Sabe, equipamento de comunicação não é o forte dos Rangers…
Taurus concordou com a cabeça.
— Lá na montanha de Norrige tem uma Catapulta Eletromagnética de-
sativada… aquele Driver de Massa antigo. — Fez o gesto de uma pistola com a
mão. — O capitão mandou a gente descer lá. Meu companheiro, Robb Kovac,
que também é engenheiro espacial, pra ativar aquele treco e tirar eles de lá.
Taurus passava os dedos na barba enquanto ouvia.
— Entendo.
— Sua vez! — ela reclinou o corpo levemente para trás.
Taurus compreendeu o gesto e então concordou com um meneio.
— O homem de quem falamos está se recuperando de um escaneamen-
to neural profundo. Apesar de ser um Alfa e da capacidade de regeneração
até mesmo do braço perdido, ele está infectado com algum veneno classe S,
normalmente, mataria qualquer um de nós, mas o corpo dele está lutando
bravamente para mantê-lo vivo.
Saliva engolida com dificuldade. Lábios apertados. Músculos do pescoço e om-
bros tensos.
— Assim que terminamos essa conversa, se você continuar a cooperar,
posso te levar até ele por alguns minutos.
Ela assentiu e ficou um pouco mais à vontade, tragou o cigarro.
— Quando ele acordar… eu quero vê-lo.
— O que aconteceu quando chegaram lá? — continuou Taurus.
Sanae virou os olhos.
— Ah… deu tudo errado. Minha nave é uma obra de arte. Camuflagem
reativa preparada contra tudo que é tipo de radar e mesmo assim nos acerta-
ram. Caímos nas montanhas, eu quebrei a perna e perdi um braço num tiro
de um maluco que apareceu do nada. — Taurus olhou para os braços dela.
Na ficha constava que ela estava utilizando alguma prótese dos Rangers. — A
ideia… era que depois de consertar a Catapulta, meu capitão lançasse uma
dezena de escapepods de transporte de containers vazios, só com propulsores
de pouso, enchesse de pessoas e catapultasse de volta em órbita para pegarem
a nossa nave principal.
Um soldado se aproximou, mas sem intenção de entrar.
— Lord Taurus, senhor — interrompeu gaguejando.
Taurus virou-se para o soldado.
— Há uma emergência na sala da Força Tarefa — disse limpando a gar-
ganta.
— Por que não fui informado no meu comunicador ocular?
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leitura, mas muito se perde na conversão. Se o Indivíduo realmente se lem-
brasse… teríamos mais informações… — Ficou em silêncio, tentado decidir o
que dizer a seguir.
Movimento sutil do corpo para frente e para trás. Está mordendo os lábios.
Impaciência.
— Seja direta, especialista Illa. — Taurus interrompeu o silêncio.
— Eu posso estar ultrapassando minha função senhor… mas o Indiví-
duo Zero não é mais apenas um log de eventos a ser lido. Parece que estamos
passando por muitas portas sem realmente abri-las, muitas memórias estão
presas atrás de paredes emocionais que a ALMA não tem acesso na leitura
passiva.
Taurus levantou uma sobrancelha.
— Alguns dos fragmentos senhor… são relevantes à catástrofe da Mis-
são Harmony — disse engolindo seco. Os técnicos ao redor pareciam se ar-
repiar ao mesmo tempo pela citação. Taurus apenas trocou o peso do corpo
para outra perna.
Durante vários segundos ele ficou olhando para o tubo com o corpo de
Marcus, que a cada segundo se regenerava mais.
Depois de alguns momentos Taurus olhou para cima, na direção da sala
no mezanino atrás deles. A silhueta oculta nas sombras era da Madre Solar.
Lorde Taurus percebeu o movimento positivo de cabeça dela.
— Illa, você sugere que desativemos os protocolos de segurança de lei-
tura do sistema ALMA e… realizemos a leitura diretamente no cérebro do
indivíduo permitindo que mais memórias irrompam a superfície?
Illa confirmou com a cabeça, franzindo os lábios.
Taurus se virou para o nicho dos especialistas em neurociência.
— Quais as previsões de danos se fizermos isso, senhores?
Aquela pergunta gerou um caos inesperado. A equipe técnica acredita-
va que os danos eram irrelevantes, enquanto os especialistas em ciências bio-
lógicas defendiam que poderiam corromper ainda mais a leitura das memórias
e até comprometer a recuperação do Indivíduo.
Illa se preparou para intervir, mas Taurus a impediu, tocando-a no om-
bro.
— Com sua licença então, senhor. — Illa pediu, se afastando em direção
à saída da sala.
Taurus consentiu, analisando pela postura de Illa, que ela precisava ir
ao banheiro. Após ela sair, Taurus se afastou do caos de discussões entre os
analistas e técnicos, analisando cada um. Suas musculaturas, micro-expressões
faciais, tom de voz. Havia um padrão no meio daquele caos.
Após vários minutos, a discussão não diminuiu e Taurus percebeu que
havia algo de errado. Era natural que discordassem, devido às suas especiali-
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LAYON RODRIGUEz
zações, posições sociais e ideologias, e também era natural que após expres-
sassem isso, se acalmassem e lembrassem o que era mais importante naquele
momento, mesmo que não chegassem a um consenso do método, a investiga-
ção não podia parar.
Narinas dilatadas, suor, lábios superiores contraídos. Raiva, ojeriza. Pupilar
dilatas, respiração curta e rápida.
Taurus virou o rosto abruptamente na direção do seu segurança pes-
soal, que sempre se mantinha numa distância segura e sem chamar atenção.
— Senhor — disse ao se aproximar.
— Minos, ative uma renovação total do ar desta sala, por favor.
Minos ativou seu comunicador holográfico de pulso e executou alguns
comandos rápidos. O sistema de reciclagem de ar da sala se ativou em capa-
cidade máxima, com seu barulho abafando o caos da discussão que estava à
beira de colapsar.
Depois de alguns segundos o debate entre eles diminuiu e finalmente se
silenciou. Alguns secavam o suor da testa, um pouco envergonhados. Outros
pediam desculpas por se exaltar. E finalmente, após um minuto completo,
todos estavam em silêncio.
Illa chegou no momento exato em que o silêncio se tornou total na sala.
— Então, senhores, quais as previsões de danos se desativarmos os pro-
tocolos de segurança empática?
Os técnicos se entreolharam, assentindo entre si.
— Mínimos — respondeu o especialista em neurobiologia. — A capa-
cidade regenerativa dele é superior a tudo que já vimos. O próprio corpo já
recuperou quase 30% da massa desde que chegou aqui, senhor.
— Antes deste… firewall… desta ALMA ser ativada, nós não aconselha-
ríamos esta leitura direta por causa da sincronização empática instável… mas
agora. A sincronização supera tudo que já vimos — disse Illa. — Principalmen-
te porque tivemos alguma experiência com as memórias que irromperam a
conexão e vieram à tona por conta própria.
Lorde Taurus assentiu. Todos o observavam tensos enquanto cami-
nhava até o centro da Força Tarefa.
— Desativar protocolos de segurança empática de leitura. Preparar ca-
deia de fragmentos de memórias. Leitura direta.
De um segundo para o outro, a sala mudou de um silêncio tenso, para
dezenas de pessoas se comunicando, coordenando, cronometrando e sincro-
nizando esforços para realizar as ordens de Lorde Taurus.
— Minos, reúna sua equipe na sala de operações. — Taurus ordenou,
sussurrando para seu oficial de segurança pessoal. — Alerta Sombra.
***
Da sala acima da Força Tarefa, Madre Solar assistia atentamente o que
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se desenrolava. Outras duas Centúrias a acompanhavam em silêncio quando
a porta se abriu. Ninguém pareceu entrar. As três mulheres na sala colocaram
as mãos em suas armas.
— Minha senhora — disse uma forma semitransparente que aparecia,
como vindo do nada, de joelhos em frente a Madre Solar.
— Minha filha. — Colocou a mão sobre a cabeça da mulher de joelhos.
— Confirmamos que há uma infiltração nesta instalação. Existem dados
saindo sem permissão. Criptografia de nível acima do militar.
— Então há um deles aqui — disse com raiva controlada. Os olhos da
Madre Solar brilhavam com aquela luz dourada, vazando por baixo do capuz.
— Continue a rastrear. Quando identificar a fonte, me envie a confirmação,
mas não perca o rastro.
A mulher apenas confirmou com a cabeça, deu dois passos para trás e
ficou invisível novamente.
— Minhas filhas… poucos nesta instalação verão o fim desse dia. Faça-
mos com que nossos sacrifícios valham a pena.
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LAYON RODRIGUEz
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aparentes. Por cima de tudo uma espécie de domo de vidro avermelhado fazia
papel de capacete.
— Você ainda é fraco para realizar seu papel. Eu… nós não podíamos
esperar que você amadurecesse para isso, irmão — disse com nojo. — Se apai-
xonar por uma política… ela agora está morta por sua causa. — O tom mudou
para escárnio. — Nós somos deuses… DEUSES! — um soco provindo do bru-
tamonte o fez voar.
Ele aterrissou com força no chão, cuspindo sangue e saliva. Sua visão
girava.
— Você terá que morrer e renascer para aprender a fazer o que precisa
ser feito. Eu vou te encontrar. Você vai sobreviver a tudo isso. Eu te farei
forte, por bem ou por mal. Destruirei tudo que ama até que não tenha nada e
finalmente assuma quem você nasceu para ser!
Um pé descomunal cresceu no campo de visão e esmagou o rosto de
Marcus, ou seja lá como se chamava naquela lembrança.
/. FIM DA TRANSMISSÃO
Vários sinais de emergência gritavam nas telas holográficas do suporte
de vida do tubo em que se encontrava o Indivíduo Zero. Os técnicos e especia-
listas médicos corriam de um lado para o outro trocando ordens e realizando
comandos no painel de controle.
Taurus ainda olhava para o painel, agora preto, mas ainda com as letras
brancas.
Quem é aquele homem? — Se perguntava.
A metade da equipe que não estava ajudando com o suporte de vida,
estava em choque. Alguns olhavam para suas estações voltando frames da me-
mória, outros vasculhavam a lista de log bruto de eventos.
A mente de Taurus trabalhava a uma velocidade infinitamente maior
do que todas as mentes daquela sala somadas. Todas as possibilidades eram
previstas, analisadas e categorizadas. Nem sequer percebia a sala se movendo
freneticamente ao redor. Sua mente reproduzia cada informação relevante
dos acontecimentos.
É claro que ele havia reconhecido a mulher da memória, antes mesmo
do reconhecimento facial do sistema principal terminar a pesquisa. Iellena
Benson Tarkian, a embaixadora da paz solar. Morta durante os catastróficos
eventos da missão Harmony, e sua sobrinha.
Taurus lembrava de um comentário dela referente a ter conhecido al-
guém. Mais nada. Ela era a garota de ouro da família. Idealista, generosa e
com um coração único. Havia negado três convites para entrar para Ordem
das Centúrias Solares, pois queria estar presente realmente, sem ser obrigada
a seguir protocolos.
— Temos três confirmações de identificação, senhor — disse Illa, tra-
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é que ficaram em silêncio em relação aos governos, ao público em geral. O
jogo havia ficado menos… simples e não podiam mais se expor.
Seus lábios se mexem… estranho.
— Vamos com calma. — Pediu Taurus com as mãos estendidas em sinal
de pare. — Você disse que Aedro era um potencial… para Ômega?
— Sim… e não deveria ser, pois havia outro potencial — respondeu bai-
xando o capuz e revelando o rosto moreno, de aparência jovial e cabelos pra-
teados com pontas douradas. — Nós tivemos um impasse único. Um Ômega
por si só, até unificar e consolidar o poder, gera caos para todos os governos
do Sistema Solar. Dois gerariam guerra — disse enquanto alcançava uma xí-
cara de chá na mesa. — Pior ainda é o fato que de que eram irmãos… gêmeos.
Taurus se encostou completamente no sofá diante do peso daquelas
informações.
— Eles trabalhavam como agentes para a Divisão Zero. Realizando in-
diretamente todo tipo de serviço de infiltração. Eles eram especialistas em
desmantelar células terroristas. — Ela fez uma pausa para beber o chá. — Seu
último trabalho diretamente para a DZ foi, o que nós consideramos, o mais
impossível de todos. Se infiltrar e gerar o máximo de caos possível dentro da
Shadow Moon.
— A Shadow Moon? Você quer dizer realmente a Shadow Moon, não
células que usam a bandeira, mas nem sabem realmente quem são?
Há algo de errado.
— Sim, a sombra que caiu sobre este sistema solar e nunca foi embora.
O motivo real pelo qual a DZ também foi para as sombras.
— Não foi o último Ômega que ordenou esse afastamento da DZ? —
questionou incrédulo.
— O último Ômega… foi um erro. Seria melhor se tivéssemos esperado
outro aparecer. Consolidar o poder de todo o Sistema Solar na mão dele foi…
um ato de desespero.
Taurus estava com as duas sobrancelhas levantadas.
— Isso não vem ao caso agora. Aedro foi indicado pela DZ para ser um
dos nossos após o início da infiltração na Shadow Moon.
Taurus resolveu pegar um chá, sua garganta e boca já não produziam
mais saliva.
Amargo.
— O irmão de Aedro passou para o outro lado, alguém conseguiu con-
vertê-lo. Em contrapartida a própria DZ descobriu o quão comprometido es-
tavam. A missão Harmony foi o ponto final.
— Você quer dizer…
— Foram traídos, internamente. Aquela missão foi o palco para a reve-
lação do potencial e o retorno da DZ…
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assim, nem mesmo eu sabia que essas memórias viriam à tona dessa maneira…
Taurus ergueu o olhar para a Madre, mas não disse nada.
— Tentamos evitar que ela se envolvesse nisso tudo, mas mesmo a DZ
não foi capaz de impedir — disse a Madre Solar como se pudesse ler sua men-
te. — Nós tentamos evitar que ela se relacionasse com ele, mas recebemos
ordens diretas da DZ pra não interferir nisso.
— Eles precisavam dela… para ele ter a influência necessária para entrar
despercebido naquela missão.
— Ela teria sido a primeira dama, Taurus. A porta voz de um Ômega…
— Se tudo não tivesse dado errado. — Ele retrucou amargurado.
Ele caminhou até a janela panorâmica que dava para a sala da Força
Tarefa. Se sentia num aquário. Sua equipe continuava lá, correndo, cruzando
dados, calibrando dispositivos. Nem imaginavam a profundidade das águas
em que tinham mergulhado.
— O que devo fazer? —Taurus virou-se para a Madre.
— Continue a investigação. Gostaria que pudéssemos esperar ele termi-
nar de se regenerar, mas temos uma situação delicada e o tempo está se esgo-
tando. — Ela se levantou e parou ao lado de Taurus. — Gaia está reativando os
dreadnoughts classe Leviathan nesse momento. A nova arma de cerco espacial,
Galatéia, se ativada, vai devastar Ares.
A destruidora de mundos, pensou Taurus. Já sabiam dela fazia alguns
anos. Construída em segredo na Doca Espacial na órbita de Hermes. Um úni-
co disparo era o suficiente para colapsar toda a atmosfera de Ares.
— Então temos de parar de perder tempo. Dê à minha equipe as infor-
mações que eles precisam para que possamos colocar um fim nisso de uma vez
por todas!
A Madre Solar baixou a cabeça concordando, respeitando as palavras
de Taurus. Finalmente ela desativou o dispositivo que os protegia de qualquer
tentativa de espionagem. Só não sabiam o quão comprometidos já estavam.
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CApítulo 5
GUARDIÕES DA
FRONTEIRA
/. Sincronização Empática 113%
/. Conexão com piloto: Marcus Britains / Indivíduo Zero
/. Ranger Caçador de Segunda Classe / Base em COLÔNIA NORRIDGE
/. PLANETA GAIA
/. Contrato #N9133 — Setor Classe Selvagem 7 — Ordem dos Rangers
Solares
/. Dia 21 de Hermetian - Ano 2118 — Calendário Byron.
/. Continuando cadeia de eventos em êxtase…
/. Modo: Protocolos de Segurança Empática Desligado.
/. Bypass ativado.
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— Isso… isso vai dar um tiroteio. Eu não me alistei como Ranger pra
sair em um tiroteio com meus compatriotas. E… nossas armas, cara? Eles
usam armaduras de classe militar. Porra, nós aprendemos a usar armadura
desde pequenos pra não ter desgaste ou deformidade por causa da gravidade
baixa de Ares… armaduras mais pesadas do que essas militares. Num piscar de
olhos eles vão sacar a gente e estaremos ferrados.
— Scorpio… para-para-para! Podemos usar o modo atordoante das ar-
mas. Ninguém vai ferir seus… irmãos!
Scorpio apertou a mão contra o rosto.
— Seu imbecil, eu não tô preocupado com isso. A questão é que no pri-
meiro segundo que atirarmos, mesmo que seja com munição de espuma, eles
vão atirar de volta, e armas areanas só tem um modo de tiro: LETAL! Acha
que nossas armaduras vão dar conta?
Marcus levantou as mãos em sinal de paz.
— E o que você sugere? Tem algum plano melhor nessa cabeça de jar-
ro?!
Scorpio deu um soco com força na rocha atrás da cabeça de Marcus e
chegou com o rosto perto do dele bufando.
— Você é um imbecil! Sabia disso?
— Mas um imbecil com um plano! — respondeu com um sorriso ama-
relo.
Mika encostou a mão na cabeça de Ramza por alguns segundos. Depois
de se afastar, o warg subiu numa rocha próxima e uivou, alto. O uivo ecoou
por todo o vale. Pássaros levantaram voo em várias árvores congeladas. De-
pois de algum tempo, outros uivos pareceram responder ao lobo atroz.
— O que diabos ele… Mika você…? — perguntou Marcus deduzindo
o que ela teria feito. Em resposta ela deu de ombros com as mãos abertas,
sorrindo.
— Ela pediu para ele chamar os outros, é? — Scorpio assoviou perple-
xo. — Agora temos uma menina que fala com os animais! Ou pior, animais
falantes! — resmungou com os braços para o alto.
— É… essa garota é o diferencial dessa incrível equipe — Marcus disse
forçando uma imitação de narrador de propagandas. — Mika… você conse-
gue ligar minha mente à do Ramza pra eu explicar o plano pra ele… tradu-
zir?! …traduzir para os outros wargs?
Mika respondeu com um gesto positivo de cabeça.
Com a adrenalina se dissipando, o grupo começou a sentir o açoite dos
10 graus negativos que faziam naquela manhã. Marcus ativou a capa retrátil
no macacão térmico de Mika, para que ela não sofresse com o frio.
— Ok… — Marcus se abaixou ao lado dela e chamou Ramza. — Faça sua
mágica, pequena.
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Mika estendeu os braços, tocando as testas de Marcus e Ramza. Uma
dor aguda atravessou a cabeça de ambos. Algo diferente tinha acontecido des-
sa vez na conexão mental.
Ao abrir os olhos, Marcus estava em um local totalmente escuro. Das
sombras, uma mão agarrou seu pescoço e o levantou no ar. Os dedos longos e
finos quase davam uma volta completa em sua garganta. O braço feminino se
estendeu anormalmente até um corpo branco, sujo de sangue.
Havia uma mulher à sua frente, os cabelos brancos e curtos se moviam
como tentáculos, os olhos selvagens eram negros e tinham pequenas pupilas
violetas, sua boca era coberta por uma espécie de máscara de contenção. Ape-
sar de aterradora, sua aparência era familiar a Marcus.
Parece…. Mika?! — Pensou em pânico.
— Eu… — disse com esforço devido ao aperto no pescoço. — …eu sei
que é você!
A criatura pareceu entender; virou a cabeça de lado e depois de um se-
gundo reconheceu Marcus e começou a gritar descontroladamente.
O corpo de Marcus estava turvo. Uma fumaça esbranquiçada borrava o
ar conforme ele se mexia. Sua audição ora ficava com um zumbido forte, ora
ficava completamente em silêncio, como se estivesse surdo.
Então Marcus viu novamente a criatura e em desespero, tentou alcan-
çar o rosto dela em busca de obstruir seu grito.
No último segundo, quando a visão já estava ficando completamente
tomada por sombras, sua mão alcançou o queixo dela, conseguindo arrancar
sua máscara, revelando um rosto, desta vez idêntico ao de Mika, só que mais
velha, então as sombras tomaram tudo ao redor, transformando tudo em um
vazio completo de ausência de som e imagem.
Quando abriu os olhos, Marcus estava deitado no chão com Ramza ao
lado, balançando a cabeça, confuso. Quando tentou levantar foi impedido.
— Vai com calma cara! Você… eu… eu nem sei te dizer o que aconteceu
— disse Scorpio mantendo o parceiro deitado. — Ela começou a gritar e… você
e o Ramza começaram a se debater… Parecia que estavam sufocando.
— Aaahg…. — Marcus teve de se esforçar para falar. — Água!
Scorpio lhe deu uma espécie de bastão transparente de água gelatinosa.
Após beber, Marcus respirou fundo e se sentou.
— Eu tive que…. desacordar ela. O grito ia chamar atenção indesejada se
continuasse assim.
Mika estava desmaiada, deitada contra as rochas.
— Eu vi… arg… eu vi a irmã dela, eu acho. — A garganta de Marcus
ainda falhava.
— Aquela que… — Não continuou.
Marcus fez que sim com a cabeça.
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— Aquela era a Nathy, eu acho — disse segurando a ânsia de vômito.
— A irmã… como assim?! — Scorpio colocou Marcus encostado contra
as pedras da vala em que estavam. — Ela não morreu desintegrada naquela
loucura que aconteceu nas montanhas?
— É… a mente dela. Eu… eu sei que a vi ela várias vezes nesses últimos
meses. Aqueles pesadelos… eram manifestações dela — disse com esforço. —
Eu não consigo lembrar direito. De alguma forma as mentes das duas estão
dividindo o mesmo corpo.
— Como assim?! — Scorpio estava com os olhos arregalados. — Que
merda, precisava atirar na cabeça dela?
— Foi instintivo… se eu não fizesse, ela ia apagar nossa memória… de
novo!
— Cara… o que tá acontecendo? Eu… eu nem sei descrever o que é essa
coisa toda.
— Anormal? — disse Marcus tentando um tom de piada. — Eu tenho al-
guns fragmentos. Alguma coisa aconteceu quando ela tentou apagar a minha
da primeira vez…
Scorpio examinava Ramza que também tinha vomitado. Tirou outro
tubo gelatinoso de água do compartimento da armadura e lhe deu.
— Elas estão dividindo o mesmo corpo. A irmã está tentando tomar o
controle. Por isso Ramza não a deixa sozinha.
— Como assim?
— A primeira vez que isso aconteceu foi nos primeiros dias dela co-
nosco. Ramza apareceu latindo atrás de mim, quase me arrastando. Eu estava
quase chegando no bunker e… quando entrei, estavam todos desmaiados e ela
deitada encolhida, chorando e tremendo. Quando me aproximei, acho que se
assustou e a irmã tomou controle. Ela… — Se esforçou para lembrar. — …ela
tentou… entrar na minha mente… Mas alguma coisa aconteceu. Ela foi recha-
çada… com força. Acho que aquilo a enfraqueceu.
— Ela é só uma criança, Marcus.
— Ela é… uma criança que foi transformada em arma. — Fez uma pausa
respirando fundo. — Algumas memórias dela ficaram na minha mente. Elas…
foram modificadas para serem armas. Eles as fizeram sofrer… muito. — En-
costou a cabeça contra a rocha, olhando de canto para o corpo desmaiado
de Mika. — Os pesadelos que tenho… são as coisas que ela sofreu… que elas
sofreram.
Ramza começou a grunhir, novamente em posição de ataque, mas dessa
vez farejando o ar. Scorpio sacou o revólver e puxou o escudo rapidamente.
Marcus tentou reagir, mas estava fraco.
— <Larguem as armas e cooperem!> — disse uma voz áspera em dialeto
areano. — Eu disse: larguem as armas e cooperem, Rangers! — repetiu em
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linguagem solar.
Sete soldados de armadura cor de chumbo com detalhes vermelhos es-
tavam em pé, acima deles na beirada da vala, com rifles pesados apontados
direto para a cabeça deles. Todos usavam um capacete triangular, parecido
com a cabeça de um tubarão; um deles, porém, estavam com o capacete aberto
e tinha um olhar soberbo.
Scorpio levantou a arma de lado com os dedos abertos em sinal de ren-
dição. Marcus apenas levantou as mãos e disse para Ramza ficar calmo.
— <Senhor, eles domesticaram um lobo-atroz?> — um dos soldados mur-
murou.
— <Improvável, mas não impossível, cabo> — respondeu o soldado de capa-
cete aberto, o líder.
— <Não há necessidade de apontar as armas para nós. Somos Rangers. Não
fomos informados sobre esta guerra. Estávamos resgatando aquela menina que se
envenenou com alguma planta selvagem, só por isso ainda não nos apresentamos no
escritório da embaixada Ranger> — disse Scorpio em areano fluente.
O soldado líder se surpreendeu, mas rapidamente reassumiu a postura
arrogante.
— <Então quem assassinou nossos colegas?> — respondeu apontando para
os corpos de quatro soldados seguindo a vala a uns cem metros deles.
Scorpio olhou para os corpos.
— <Sinceramente, quando chegamos eles já estavam assim.>
O soldado rolou os olhos como quem ouve uma mentira óbvia.
— <E você quer que eu acredite nisso. Claro!> — respondeu e deu um passo
para trás. — <Executem esses vermes! >
Scorpio mal teve tempo de agarrar seu escudo e pular na frente de Mar-
cus. Ramza por sua vez saltou para cima dos soldados sem medo de ser alve-
jado. Os disparos acertaram sua pele grossa, mas mal o arranharam. Munição
de baixa velocidade não era suficiente para parar um warg.
Dois soldados já estavam no chão, debaixo das patas de Ramza. Outro
estava com o braço imobilizado entre as presas do lupino.
— <Parem! Todos vocês!> — gritou o líder da unidade. Ele havia se esqui-
vado habilmente do bote de Ramza e agora estava com uma pistola esticada e
apontada diretamente na cabeça do warg.
— <Seu lobo pode ter aguentado os disparos dos rifles de meus homens,
mas não vai aguentar um tiro direto de minha arma.>
Scorpio largou o revólver que tinha acabado de pegar e baixou o escudo
lentamente.
— Eu diria pra vocês largarem as armas, afinal são vocês que estão cer-
cados! — disse Marcus se levantando e, contrariando a situação, apontando o
revólver para o líder do esquadrão areano.
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— Você deve ter batido a cabeça com muita força, Ranger gaian! — res-
pondeu o soldado no idioma solar.
Scorpio olhava arregalado tentando entender o parceiro.
— Não, é sério. Vocês estão cercados. Ferrados pra ser mais exatos. Eu
posso permitir que saiam daqui vivos… ou em pedaços! — e engatilhou a arma
com o polegar.
Os soldados estavam completamente confusos se aquilo era um blefe
proposital ou se o Ranger que os afrontava era doido.
— Você é ins… — Tentou falar o líder dos soldados areanos, mas foi
interrompido por Marcus.
— Ataquem! — gritou.
Todos ficaram em silêncio, esperando algum ataque. Nada aconteceu.
Os soldados areanos começaram a rir, Ramza largou o braço do soldado que
segurava e latiu.
— Você já teve atenção demais para o seu blef… — Dessa vez foi inter-
rompido de surpresa por uma chuva de wargs pulando e atravessando o ar,
vindo por trás das rochas que cercavam o local.
As matilhas que responderam ao chamado de Ramza finalmente ti-
nham chegado e estavam fazendo uma chacina. Pedaços de soldados areanos
voavam para todos os lados. Eles já estavam por ali fazia alguns minutos, mas
aguardaram o comando de Ramza, que teve de largar o braço do soldado para
dar o latido de ataque.
Scorpio puxou Marcus para trás do escudo e o arrastou até onde Mika
estava desacordada, protegendo os três.
O caos durou poucos minutos até finalmente não haver mais soldado
vivo.
— Minha mãe! — Scorpio olhou por cima do escudo quando os sons de
morte silenciaram.
A vala estava cheia de sangue e pedaços humanos. Dois wargs apenas
tinham se ferido, os demais saltavam de um canto a outro, ganindo como se
comemorassem uma vitória contra inimigos. Nem mesmo as armaduras de
grade militar dos areanos foram capazes de suportar as mordidas dos ferozes
wargs.
— Eu avisei que eles estavam cercados — disse Marcus aéreo.
— Você… como você viu eles cercarem?
— Ramza moveu as orelhas… alguma coisa chamou a atenção dele…
uh… — Marcus realmente parecia chapado.
— Quanto soro de suporte de vida você tomou?! —Scorpio perguntou
irritado.
— Tomei até minha enxaqueca parar — disse com o pescoço mole como
um bêbado.
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sentou no warg como se montasse um cavalo.
— Eu não sei… estou seguindo o grupo. Acho que Ramza sabe o que
tem que fazer.
Marcus notou dois rifles MAG nas costas de Scorpio.
— Quando você pegou isso?
— Enquanto você tava chapado de CSV! — exclamou aumentando o
tom, se referindo ao coquetel de suporte de vida que Marcus havia abusado.
Marcus apenas coçou o nariz com o dedo do meio em resposta.
Todos os wargs pararam ao mesmo tempo como se estivessem ouvindo
um comando silencioso. Scorpio se apoiou no joelho e fechou o capacete para
observar os arredores usando o zoom dos sensores.
— Nada — sussurrou.
Marcus desmontou do warg gordo, tentando não fazer barulho, mas
acabou caindo estatelado na neve. Alguns wargs olharam de canto de olho e
mostraram os caninos.
Uma warg magra vinha na contramão da longa fileira, trazendo na boca
um seixo de ervas. Ela o soltou na frente de Marcus e deu um latido quase
inaudível.
— O quê…
— Parca-dourada e noz-do-campo — disse Scorpio separando-as com
os dedos. — Acho que a parca é pra você mastigar… acham que você está in-
toxicado. — Deu uma risada nasal.
— A o broto de noz é energético, não? — arriscou Marcus, tentando
lembrar as aulas de botânica dos Rangers.
Scorpio confirmou com a cabeça.
— É pra dar pra Mika, eu acho. Melhor fazer chá das duas… Pega nas mi-
nhas costas o Chaynik — disse se referindo a um equipamento comum entre
os Rangers Guardiões, utilizado para fazer chás em menos de vinte segundos.
Marcus pegou o equipamento, um tubo pequeno com uma entrada de
cada lado.
Em um lado colocou as ervas e fechou, do outro colocou um tubo de
água gelatinosa e apertou o único botão no meio do equipamento. Uma linha
digital verde holográfica acendeu no meio do tubo, informando que o primei-
ro chá estava pronto.
A água gelatinosa ficou totalmente esverdeada, soltando vapor. Marcus
a colocou direto na boca e sugou de uma vez. Depois repetiu o mesmo pro-
cesso de produção do chá com a outra erva, dessa vez, quando ficou pronto,
colocou na boca desacordada de Mika e forçou-a a beber.
Marcus e Scorpio olhavam ansiosos para a menina. Queriam que acor-
dasse, mas temiam o que aconteceria depois disso. Os detectores da armadura
de Marcus mostravam uma melhora nos sinais vitais de Mika. Aquela erva
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LAYON RODRIGUEz
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Não parecem drones de vigilância comuns.
Marcus os acompanhou com o scope analógico do rifle, temendo que
percebessem qualquer espectro de laser apontado direto para eles.
— Reavens?! — murmurou surpreso. Ramza mostrava os dentes cerra-
dos em silêncio.
Os drones se aproximaram da torre e pararam flutuando a alguns me-
tros do chão, em modo de escaneamento. Lasers verdes foram projetados em
forma de cone da parte inferior de suas carcaças, iniciando uma varredura no
local. Os soldados areanos começaram a balançar os braços, fazendo sinal. Um
deles com uma mochila tecnológica que parecia pesada, cheia de pequenas
antenas, digitava rapidamente alguma coisa num teclado invisível no pulso.
Outro soldado que parecia ser o oficial do pelotão, devido às marcações
no ombro da armadura, saiu da torre e começou a gesticular com os outros.
Os drones viraram ao mesmo tempo na direção do oficial e travaram os lasers
nele.
Após alguns segundos scaneando, ganharam altitude e abriram a pro-
teção metálica inferior, expondo uma esfera metálica escura cheia de furos.
Marcus já tinha entendido o que aconteceria a seguir e pensou em dar
um tiro de aviso, mas já era tarde demais. Dezenas de pequenos ferrões metá-
licos foram lançados dos furos nas estruturas esféricas dos drones.
— Micro-mísseis Stinger-6! — ele sussurrou, identificando o armamento.
Os ferrões metálicos voaram para todos os lados, lançando-se direta-
mente para todos os soldados. Seus corpos se explodiram como bolhas de san-
gue ao contato com os pequenos projéteis inteligentes. Não tiveram tempo
de reagir.
Sem esperar que todos os projéteis encontrassem os alvos, os drones
entraram na torre. O som de duas pequenas explosões fez com que Marcus e
Ramza tivessem certeza do que os drones estavam fazendo lá dentro. Os Ran-
gers, antes rendidos, agora estavam mortos e irreconhecíveis.
Marcus e Ramza voltaram rapidamente para as fileiras de wargs. Mar-
cus se jogou contra uma árvore próxima de Scorpio e caiu sentado. Ramza
soltou alguns grunhidos baixos e de repente todos os wargs estavam com as
orelhas levantadas, em prontidão.
— O que houve? — sussurrou Scorpio, se jogando ao lado de Marcus.
— Já eram… — disse ofegando. — Todos eles. Os soldados areanos…
nossos companheiros. Todos!
— O quê? Como?! — Scorpio puxou o rifle olhando ao redor.
— Você lembra dos Reavens? Aqueles drones ilegais que o Consórcio
Olympus jura que não criou?! Lembra?
Scorpio fez que sim com os olhos arregalados. Todo areano na faixa de
idade dele lembrava. Durante a última Guerra Civil de Ares, aqueles drones
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LAYON RODRIGUEz
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corpo rente ao de Mika, enquanto ela era carregada nas costas do warg obeso,
pelo menos agora, consciente.
Pequena, queria ter tempo pra cuidar apropriadamente de você. Mas primei-
ro precisamos ir para um lugar seguro e garantir nossa sobrevivência.
— Como vocês lidavam com eles em Ares? — perguntou a Scorpio, ten-
do cuidado com o assunto delicado.
— Aprendemos que as armas de redes elétricas de caçar calamares causa-
vam travamento temporário dos sistemas autônomos de voo e daí… aprovei-
távamos pra meter tiro nos propulsores — respondeu Scorpio olhando paras
copas das árvores com a visão periférica. — Nem sempre funcionava… e quan-
do funcionava, ainda tinha o problema da explosão dos núcleos de alimenta-
ção de energia.
— Eles não usam núcleo de zillium estabilizado, né? Por isso são tão
leves — Marcus perguntou já sabendo a resposta.
— É… sem blindagem de segurança ou estabilizador de fissão de núcleo.
Qualquer dano naquela merda, a transforma numa bomba de fragmentos fla-
mejantes.
Marcus sentia o gosto amargo das palavras do amigo.
Andaram mais alguns quilômetros pela neve fofa entre as enormes ár-
vores da colina em direção ao sul quando sons de trovão voltaram a ecoar
pelos céus.
Um ponto preto acabara de cortar uma nuvem, perseguido por deze-
nas de outros pontos maiores que disparavam ininterruptamente contra ele.
Marcus e Scorpio fecharam os capacetes e ativaram o zoom digital do equi-
pamento.
O que ziguezagueava no céu tentando escapar, era uma nave triangular
pontuda como um fragmento de cristal. Não era possível ver detalhes, mesmo
com o máximo de zoom. As naves que a perseguiam eram corvetas areanas de
ataque, parecidas com pássaros mecânicos. Dezenas delas.
A nave negra era incrivelmente ágil. Poucos dos tiros a acertavam ou
mesmo passavam perto da fuselagem.
Durante quase cinco minutos assistiram à perseguição, que se aproxi-
mava mais e mais da superfície do vale, até algo mudar o jogo.
Um disparo de terra vindo do norte do vale acertou em cheio a nave
negra, fazendo-a soltar fumaça e entrar em chamas. A nave caiu descontrola-
damente. Sua trajetória a fez quicar contra a superfície do domo de proteção
de Norridge e se arrebentar contra o platô ao oeste de onde estavam.
Marcus e Scorpio ainda observavam o céu quando viram outros mó-
dulos de aterrissagem descendo. Estes eram quase vinte vezes maiores que os
utilizados por soldados.
Não tinha o que ser dito ou feito naquele momento, em relação a nave,
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aparentemente ‘não-inimiga’.
Aceleraram o passo e logo chegaram a uma distância segura da torre.
De um terreno mais elevado. Os corpos dos soldados eram manchas verme-
lhas em uma tela branca.
Os wargs farejaram o ar e seguiram. Próximos da torre, as armaduras
de Marcus e Scorpio receberam um sinal sonoro. Estavam conectados à rede
interna dos Rangers com 100% de sinal. Havia uma única mensagem que não
era automática. Uma mensagem criptografada do próprio Comandante Ran-
gers da região.
“Estamos sem sinal de comunicação global desde as 2h30am. Seguimos os pro-
tocolos, informando a Força de Pacificação Colonial de Norridge. Um grupo dos en-
genheiros foi despachado para ativar a torre de transmissão de emergência no monte
Zao, às 7h00am, junto de quatro Rangers de escolta. Às 8h25am tivemos resposta
de apenas um Ranger, reportando que foram atacados por uma força desconhecida,
restando apenas ele como sobrevivente.”
Dizia a primeira parte da mensagem que seguia com outra atualização
bem recente.
“Precisamos de todo o suporte disponível em Norridge. As forças de invasão
não estão respeitando os protocolos e estão levando os Rangers sob custódia, os que
resistem são imediatamente abatidos e acredito que os demais também estejam rece-
bendo o mesmo fim. Não tivemos sucesso em conectar o Comando Ranger Global, nem
qualquer outro comando das Centúrias. Norridge está sitiada, resistindo à invasão
precariamente.
A Força de Pacificação Colonial foi abatida logo nos primeiros minutos da
invasão e os drones de policiamento foram desativados por ordem equivocada do
administrador da cidadela. A ordem do administrador foi de entregar Norridge sem
resistência para evitar danos e baixas civis.
Diante das circunstâncias apresentadas, eu, Ranger Chefe em Comando, Na-
than Arkos, Coronel aposentado das Forças Armadas Gaians, estou evocando meu
direito de patente e tomando controle situacional da defesa e segurança de Norridge.
Todos os Rangers que não concordarem com minha ação, podem e devem se entregar
diretamente às forças invasoras, pois não teremos extração tão cedo.
Se você está recebendo esta mensagem fora dos muros de Norridge, precisamos
de você. As linhas de comunicação analógicas das torres ainda estão em funcionamen-
to. Conecte seu módulo de comunicação a um dos consoles das torres avançadas e entre
em contato através do protocolo Prometeus-5.
Eu tenho um plano para nos tirar daqui, só preciso de alguém aí fora para
fazer funcionar.”
Ao fim da mensagem, Marcus e Scorpio abriram os capacetes e troca-
ram olhares que iam muito além da surpresa.
— O velho tomou controle da cidade?! Isso… tem algum precedente? —
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Marcus arregalou os olhos e apoiou o rifle nas costas.
— Acho que ele acabou de criar um. Que aquele imbecil do Adminis-
trador era um covarde eu já sabia, mas declarar rendição assim?! — Scorpio
odiava líderes sem coragem.
Dentro da torre avançada dos Rangers, Marcus e Scorpio seguiram o
plano inicial, sobrepondo o protocolo de guerra com o protocolo de ataque
selvagem. Os sensores leram a enorme quantidade de resíduos orgânicos de
wargs dentro da área da torre e automaticamente conectaram-se às outras tor-
res, forçando atualização de status de todos os Rangers na região, através do
sinal analógico.
Marcus conectou sua armadura ao console da torre por uma porta de
acesso analógica, customizada pelos técnicos Rangers, na base da coluna da
armadura.
Os painéis nas paredes acenderam e ele iniciou a ligação utilizando o
protocolo de segurança que estava anexado na mensagem de seu comandante.
Depois de alguns segundos uma vídeo-chamada se abriu.
— De todos os cães bêbados desse vale, ver você vivo, era a última coisa que
eu pensava que ia me fazer sentir um pingo de alívio, filho — disse uma voz rouca
vinda do telão.
O rosto do Comandante Nathan Arkos preenchia toda a tela. Seu ca-
belo grisalho, quase totalmente branco, estava desgrenhado e sujo. A própria
barba, normalmente imaculada, estava suja de sangue.
Marcus se apoiou na parede com um sorriso cínico.
— Velhote, não durmo em serviço!
Apesar de nem passar do meio dia, os olhos do Comandante Ranger,
Nathan, estavam fundos e com olheiras azuladas.
— Comandante — respondeu Scorpio, batendo o punho cerrado no
peito em respeito à patente superior.
Marcus por sua vez o cumprimentou de qualquer jeito.
— Vou deixar vocês reportarem primeiro, depois eu os atualizo — dis-
se Nathan limpando a garganta com uma bisnaga de energético gelatinoso.
Marcus gesticulou com a mão dando a palavra a Scorpio, que fez uma
careta para ele, pela preguiça de seguir os protocolos.
— Senhor… eu nem sei exatamente por onde começar.
— De preferência, pelas partes importantes, filho.
O reporte detalhado levou vários minutos e Marcus aproveitou que
os outros dois estavam entretidos pela narrativa de Scorpio e foi ver como
Mika estava.
Ramza parecia estar liberando as matilhas de wargs, pois quase todos
estavam abandonando o local. Os únicos a ficarem foi o warg obeso, que por
algum motivo Marcus o estava chamando de Bob, e a warg fêmea e magra,
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LAYON RODRIGUEz
que acabou sendo apelidada de Katia, e parecia ter idade bem avançada, além
do próprio Ramza.
Mika estava sentada num canto dentro da torre, comendo um bolinho
em forma de bicho de um desenho animado que Marcus tinha comprado
mais cedo. Ele nem lembrava se havia dado para ela ou não.
— Gostou dos bolinhos? — disse se aproximando enquanto apoiava o
rifle na parede. Ela fez que sim com a cabeça, com a boca toda suja de açúcar
colorido.
Marcus sentou ao lado da menina e a puxou contra o peito. Ela não
resistiu e afundou no reconfortante abraço.
A luz que entrava pelas janelas panorâmicas do andar térreo parecia
dançar nas paredes cinzas de plasteel. As sombras curtas que se formavam no
chão fizeram Marcus lembrar que era próximo do meio dia. Eles não tinham
parado para se alimentar direito desde cedo.
Ele pegou alguns pacotes de comida desidratada em um dos bolsos da
armadura. Normalmente só utilizavam aquilo quando saíam para caçar, mas
era o que tinham para o momento. Deixou que Mika escolhesse o sabor e
adicionou água quente em gel para fazer uma espécie de massa colorida.
Levando em conta a situação, aquela comida era melhor do que muita
coisa que comiam nos andares mais baixos e mais pobres de Norridge.
— Folgado… — disse Scorpio em voz baixa ao encontrar Marcus e
Mika sentados comendo. — O comandante nos passou uma missão. — In-
formou enquanto se sentava contra a parede, abaixo da linha das janelas.
— Parece que ele conseguiu se comunicar rapidamente, logo cedo, com um
conhecido que trabalha com transportes de risco.
— Conseguiu?! — Marcus levantou uma sobrancelha de desconfiança.
— Esses veteranos de guerra sempre têm algum comunicador cripto-
grafado que se conecta via StingNet, então não estranhe. — Deu de ombros e
prosseguiu. — O negócio é que eles enviaram uma nave com um supertécnico
para reativar a Catapulta Eletromagnética e nos tirar desse buraco gelado.
— Montados no quê? Numa tora?!
— Vou ignorar… depois de consertar, o contato do comandante vai
enviar várias balsas sem propulsão de voo para utilizarmos para entrar em
órbita — continuou a explicação. — Assim, tanto no pouso quanto nos lan-
çamentos atmosféricos, ficaríamos fora dos radares de calor das naves e, na
teoria, seguros.
— Me parece um plano… quando o técnico chega?
— Esse é o problema. Ele já chegou. Era aquela nave que foi abatida
antes de chegarmos aqui.
Marcus franziu os cantos da boca e virou os olhos.
— E eu achando que alguma coisa nesse caos poderia ser simples…
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— Tem mais problema aí… — Scorpion continuou. — Precisaremos
utilizar os magtrucks de transporte pesado da cidade pra locomover as balsas
espaciais. Para mover isso tudo, seguros, vamos precisar de todos os pilotos
de mechanoides disponíveis.
— Espera ae… BalsAS? No plural? Todos nós devemos caber em uma
única balsa!
— Pra isso funcionar, precisaremos dos mechanoides. Os das fábricas…
as fábricas administradas pelos administradores locais. Tem um monte de
gente que não quer ficar na cidade no meio dessa confusão, sem contar que
depois de tudo, pode ser um erro deixar alguém aqui.
— Mas… isso não faz sentido Scorpio! Ninguém sabe se Gaia está
realmente sendo invadida… isso aqui deve ser um caso isolado! Nunca vi o
Império ser incompetente desse jeito pra resolver problema de comunicação,
a não ser… que seja proposital…
— Então… esse é o ponto. Esses filhos da mãe sabem de algo e não
estão desembuchando. Tem algum papo rolando sobre um suposto motivo
bem específico para estarem invadindo Norridge. Parece que no primeiro
momento que pintou uma nave areana no céu, já tinha burocrata fazendo as
malas pra cair fora.
— Uma coisa seria sairmos daqui por ordem de evacuação do Coman-
do Solar. Outra coisa é levar seletivamente uma centena de administradores
burocratas de merda!
Scorpio deu de ombros e continuou:
— AS ORDENS são de irmos até o local de queda da nave, resgatar o
engenheiro e o piloto, levá-los até a Catapulta Eletromagnética para que eles
ativem aquela coisa e então o tal piloto vai poder se comunicar de alguma
forma com a nave deles para que enviem as balsas de resgate.
Marcus estava olhando para cima com a boca aberta, fazendo cara de
desagrado e tédio, como uma criança que ouvia uma lista de tarefas dos pais.
— …depois disso, temos que nos encontrar com o comando e nos pre-
parar para furar o sítio; pegar os transportes pesados, e também os mecha-
noides, sair da cidade, guinchar as balsas até a Catapulta, buscar quem vai
cair fora e entrar em órbita.
— Claro… fácil! Tudo isso sem levar em conta os drones assassinos que
mataram os próprios soldados, e não vamos esquecer de uma possível névoa
ácida vindo dos pântanos efervescentes! Lindo!
— Você tem um plano melhor?! O comandante está tentando fazer o
que pode e está contando com a gente. Logo haverá soldados de Gaia aqui
para lidar com a retomada da cidadela.
— Exato! Então por que não esperamos? — Marcus bateu com as mãos
nos joelhos, revoltado.
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LAYON RODRIGUEz
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— Ei, essa não era a torre onde o Comandante mantinha as acomo-
dações pessoais dele? — Scorpio voltou para a porta do depósito. — Cara…
ONDE você leu depósito?
Marcus se aproximou da porta blindada junto a Scorpio.
— Depósito… privado, Comandante… Nathan Arkos! — Leu surpreso.
— Eu não sabia que ele era um colecionador.
— Vai me desculpar, mas isso não parece item de coleção, do jeito que
tá preparado, me parece é item de segurança — disse Marcus desconfiado.
— Pode ser… mas a minha pergunta realmente é: Como schorgs você
entrou no depósito privado do Comandante?!
— A porta estava aberta quando desci. — Marcus deu de ombros.
— O protocolo de invasão pode ter ativado alguma configuração de
emergência e liberado as portas internas da torre… talvez essa… mudança de
depósito geral pra privado não tenha sido atualizada no sistema. — Racioci-
nou.
— Importa? A porta estava aberta. Estamos no meio do caos. Tem essas
belas obras de arte aí paradas empoeirando… o mínimo que podemos fazer é
vesti-las e aproveitar o poder de fogo pra chutar a bunda de quem se meter no
nosso caminho, não?!
— Odeio concordar com você, mas eu nunca nego um poder de fogo
extra.
Marcus foi até o expositor e ativou a armadura que abriu, parecendo
feita de borracha inteligente.
— Neoaço inteligente?
Marcus cutucou o material com a mão nua.
— Neotiranium inteligente e regenerativo! — disse quase emocionado.
Eles quase se estapearam para se livrar da própria armadura e vestir a
do expositor.
A partir do momento em que colocaram os pés dentro das novas ar-
maduras, elas começaram a se ajustar, alargar e a se mover ao redor de seus
corpos como uma borracha fluída, se adaptando e reconfigurando.
Após alguns minutos, estavam completamente vestidos. A interface
parecia ter sido adaptada para o OS* dos Rangers, permitindo que a mane-
jassem facilmente. Da cor preta opaca, mudaram para o verde opaco carac-
terístico dos Rangers e em seu capacete se moldou uma espécie de caveira
estilizada cromada, representando o símbolo clássico dos Rangers. Agora
eles carregavam nas costas, além dos drones de reconhecimento, suas Armas
de Escolha, aquelas das quais jamais se separavam, desde sua formação como
Rangers. Quando Marcus puxou o cabo, o machete foi liberado, tendo sua
indução magnética desativada. O machado-marreta de Scorpio se fixou fa-
cilmente às costas, semelhante ao das tropas dos Centuriões dos Calamares
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LAYON RODRIGUEz
Vermelhos de Ares.
Eles saíram dos expositores fazendo movimentos de calibragem e tes-
tando o tempo de resposta, que para sua surpresa, era instantâneo.
— Realmente, se move como uma Havoc V deveria na teoria… mas
parece ainda mais suave — disse Scorpio ativando alguns mecanismos no
braço da armadura, que ficou com a superfície áspera e enrugada e uma das
manoplas se reconfigurou em um escudo pequeno.
— Isso é modo de absorção de impacto, não? — Marcus arriscou.
— É… dá pra sair na porrada com um urso-do-lago tranquilo nesse
modo hein?!
Marcus ativou alguns comandos e seu braço se reconfigurou, mas ao
invés da arma esperada, tinha acesso a um lançador de arpões e um lançador
de arpéu em forma de lança-e-gancho.
— A minha é modelo tático, acho — disse com desânimo.
— Aqui diz modelo de cerco!
Eles nem tinham notado Mika parada os observando com uma so-
brancelha levantada. Sua cara dizia: Meninos com brinquedos novos.
— Ah… Mika… então… achamos umas armaduras aqui… — Marcus
não sabia o que dizer, estava um pouco envergonhado.
— Marcus… — Scorpio ativou a chamada direta para o capacete do
colega, fazendo com que somente eles se ouvissem. — O que vamos fazer
com ela?
— Não vamos deixar ela sozinha, nem pra trás.
— Eu sei que é perigoso… mas o que vamos fazer?
Marcus ficou em silêncio pensando.
— Se tirarmos todos os equipamentos pesados de uma dessas armadu-
ras, acho que dá pra vestir nela.
— Acha mesmo que a armadura vai se adaptar pra ficar tão pequena?
— Ela vai parecer um anão musculoso, mas acho que vai sim. — Mar-
cus abriu novamente o áudio externo.
Mika estava fuçando na sala.
Scorpio foi até o expositor para tentar destravá-lo, enquanto Marcus
retirava os equipamentos adicionais de uma armadura. Depois de depenada,
ele ajudou Mika a vestir a armadura, que se adaptou facilmente ao pequeno
corpo magro da garota.
Marcus ensinou o básico de como utilizar a armadura, mas antes de
terminar a menina já estava descobrindo por conta própria recursos que
nem ele nem Scorpio sabiam que existiam.
O som de metal sendo arrebentado pegou Marcus e Mika de surpresa.
Scorpio estava com um pé contra a parede, segurando o machado com
as duas mãos, arrancando-o da lateral do expositor de armas onde atingira
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em cheio com aquela que era sua arma favorita.
— Achou a chave então… — Ironizou Marcus se juntando a ele.
— Tem uma Hydra-HMG ali dentro… um areano daria um braço pra
ter uma dessas.
Scorpio se referia a uma metralhadora magnética tripla, era quase do
tamanho deles.
— Scorpio… — Marcus chamou a atenção do colega, colocando a mão
em seu ombro. — Não é querer dizer nada, mas são réplicas.
— Como assim?! — Scorpio arrancou o machado da porta de aço.
— Ativa a realidade aumentada que você vai ver.
Ao ativar, várias informações sobre as réplicas sobrepuseram sobre o
vidro do expositor.
— Ninguém pode ser feliz hoje em dia. Vamos parar de perder tempo e
dar o fora daqui… — Scorpio parou por um segundo ao ver Mika de armadu-
ra. — Não parece um anão musculoso… mas parece um filho de urso-do-lago!
— Ursos-do-lago são quadrupedes… e depois ainda dizem que fui eu
quem fugiu das aulas de fauna. — Corrigiu Marcus, tentando defender Mika,
que por sua vez, mudou a cor da armadura para verde. — É querida, fica difí-
cil te defender assim, até a cor ficou igual.
***
Com ajuda dos drones das novas armaduras, conseguiram rapidamen-
te identificar com exatidão onde a nave negra com o engenheiro realizara o
pouso forçado. Os sensores dos drones indicaram um sinal de vida no local
da queda.
— Pelo menos um sobreviveu… — Scorpio lamentou. — Espero que
seja o Engenheiro.
Marcus olhou através das câmeras de um dos drones que ainda man-
tinha observando a região.
— Tem alguma coisa errada — disse. — É normal os animais se afas-
tarem com um barulhão daquele… mas tem uma área enorme próxima dali,
quase sem animais.
Scorpio se conectou a feed de imagem do drone de Marcus para en-
tender melhor o que o Ranger queria dizer.
— Tem uma pedra se movendo pela planície? — Scorpio destacou ao
marcar um local no mapa em realidade aumentada. — Ou é uma nave?
— Nave não se move assim dentro da atmosfera. Será que é um blin-
dado?
— Tá se movendo de um jeito estranho pra ser um blindado e… não tá
deixando rastros de esteira. — Scorpio rebateu.
— Talvez seja um flutuador. — Marcus arriscou dando zoom.
— Flutuador deixa rastros de empuxo e… não tem sinal orgânico de
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LAYON RODRIGUEz
tripulação nele.
— Se for um drone, é o maior que já vi — disse estranhando o objeto
que se movia organicamente.
— Onde eu já vi algo assim…? — Scorpio murmurou. — Consegue
aproximar o drone ou ficar abaixo do nível do objeto pelo menos, pra pegar
outro ângulo?
— Vamos tentar. — Dando uma série de comandos, gesticulando no
ar com as mãos em algum controle invisível, Marcus movimentou o drone
até colocá-lo em um ângulo abaixo do nível do objeto que rastreavam. Um
ângulo que os fez congelar.
O drone conseguiu enquadrar o que parecia um colossal calamari an-
dando sobre a neve. Não era um calamari comumente encontrado nos mares
do subsolo de Ares, era uma espécie de lula gigante de metal, artificial. Ela
andava apoiada em vários tentáculos longos, com cerca de vinte metros de
altura. O corpo da criatura tinha um formato híbrido de uma arraia e cabeça
de lula. Dezenas de tentáculos menores tinham armas, apêndices e sensores
direcionais. Um dos apêndices abriu em uma forma de guarda-chuva e apon-
tou para o drone. Um segundo depois, tinham perdido contato total com o
pequeno drone tático.
— Um… Era um Kraken! —Scorpio estava de queixo caído, sem ar.
— O Kraken? Aquele que quase derrubou uma das Skyhooks de Ares?
— Esse! — Marcus sabia essa parte da história de Ares.
Uma máquina de guerra imitando um calamari, a lula gigante de Ares,
quase destruiu uma das torres de sustentação do Anel Planetário dos area-
nos. Foi utilizado o cérebro de um calamari como modelo para inteligência
artificial do drone-lula que acabou saindo do controle e causando uma das
maiores catástrofes conhecidas pelos areanos. Dezenas de bombas de PEM
foram necessárias para desativar a criatura artificial. O responsável pelo
ocorrido jamais foi descoberto.
— Qual o percurso que a… aquilo estava fazendo? — Marcus engolindo
em seco.
— O mesmo que o… nosso.
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CApítulo 6
ZONA DE POUSO
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LAYON RODRIGUEz
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— Para as Centúrias… — Taurus franziu o cenho confuso. — As verda-
deiras Centúrias, senhor.
— Como…? Não estou dizendo que você não está falando a verdade,
mas como posso acreditar nisso, sendo que a manhã toda estivemos na
presença da Madre Solar?
— A Madre Solar está desaparecida ou… morta, senhor. Desde antes da in-
vasão. Essa é a informação que tenho. Mas não posso provar.
— Se… se as Centúrias sabem, por que não interviram nisso?
— Apenas uma Centúria sabe e contatou uma pessoa de confiança, que é
meu contato intermediário.
— E é para elas ou para este contato que você está vazado as informações
adquiridas aqui?
— As informações que a Força Tarefa está gerando, não estão chegan-
do na íntegra ao comando central das Centúrias. Estão sendo manipuladas e
servindo como armadilha para atrasá-las ainda mais.
— Certo… quem é seu intermediário?
— Kassio-Moto Hattori, senhor.
Taurus levantou uma sobrancelha de questionamento. O nome ‘Moto
Hattori’ que ele conhecia estava na ala de recuperação, em coma, com uma
série de ferimentos letais e era o terceiro sobrevivente de Norridge.
— Isso é improvável, Illa. Temos um Moto Hattori em coma, resgatado de
Norridge!
— Aquele é Yori, senhor. — Falou baixando a cabeça. — Assim como o
senhor, também fiquei surpresa ao saber de meu contato ter um possível parente
justamente envolvido nisso.
Lorde Taurus ficou em silêncio. Para quem estivesse observando de
fora, estavam apenas se olhando.
— Então quem seriam as mulheres que se dizem Centúrias o que nos obser-
vam nesse momento?
— Agentes de alto escalão da Shadow Moon que substituíram a Madre Solar
assim que ela desapareceu, senhor.
— Como você pode provar o que está falando, Illa?
— No meu bolso esquerdo. Tem um iDrop* com uma série de informações e
protocolos oficiais internos das Centúrias e a autenticação da própria Centúria que
sancionou individualmente esta operação.
Taurus colocou uma mão no ombro de Illa e a outra levou rapidamen-
te ao bolso indicado e pegou o colírio de dados sinápticos.
— Você devia ter vindo falar direto comigo, Illa… deveria ter ao menos ten-
tado. Não fale mais uma palavra em voz alta desse ponto em diante. Infelizmente…
elas sabem que você está vazando informação.
Illa quase entrou em pânico, sua testa escorria suor frio.
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Taurus se afastou e enviou uma série de mensagens curtas, codificadas através
de uma interface holográfica em seu braço. Após alguns minutos de silêncio, recebeu
uma mensagem de resposta.
— A guarda de segurança está esperando do lado de fora da porta. Preciso que
você vá com eles — disse em voz alta e então reativou a comunicação direta. — Eles
pedirão que você entregue todos os pertences que carrega consigo, entregue todos menos o plug
auricular, eles não a revistarão. Você será levada para uma cela e será interrogada. Apenas
se mantenha em silêncio. Continuaremos a conversar por essa via. Coloquei minha unidade
pessoal de segurança para garantir sua proteção, caso a Shadow Moon tente alguma coisa.
A porta atrás de Illa abriu antes que ela pudesse abrir a boca. Os soldados a
renderam e coletaram seus pertences, seguindo a orientação de Taurus e por fim, a
escoltaram rumo o setor de confinamento emergencial.
— Uma pena perdermos um operativo tão promissor — disse a Madre Solar
enquanto se aproximava pelo corredor.
Taurus respondeu apenas com um movimento de cabeça.
Sua mente trabalhava cem vezes mais rápido que a de um humano de outra
raça e mesmo assim ele ainda não entendia como podia ter deixado passar tantos de-
talhes importantes.
Elas me alimentaram com informações sigilosas por toda a manhã… algumas in-
formações que eu dificilmente teria acesso de outro modo e jamais poderia confirmar sem
quebrar a própria cadeia de comando delas. A não ser que… estavam me preparando para ser
recrutado. É a única opção plausível. Elas realmente estavam interessadas nas memórias de
Marcus, mas por algum outro motivo específico. Estavam dando todo o suporte para chegar-
mos até o que procuravam… mas o que seria?
Esse é o jogo, pensou com a face coberta em sombras.
Os guardas e a Madre Solar se afastaram pelo corredor da instalação. Taurus
podia perceber quando alguém mentia ou estava escondendo alguma coisa. Illa não
estava mentindo. Ela acreditava no que dizia. Porém, ele não tinha certeza de nada
relacionado a Madre Solar. Sua presença causava uma sutil sensação de medo, algo
que só tinha sentido uma única vez na vida, e isso embaralhava sua percepção.
Moto… esse nome aparece nas lendas dos clones: Um dos Pais Fundadores, conseguiu
clonar a si mesmo, criando um exército de agentes leais. Ele os espalhou pelo sistema solar
para representá-lo. Essa história batia com a teoria de que a Divisão Zero era coordenada por
um progenitor.
A questão ainda não respondida era como essas falsas Centúrias sabiam tanto sobre
esses segredos, aparentemente guardado com tanto cuidado pela ordem…
Lorde Taurus caminhou de volta pela sala da Força Tarefa, parou bem perto
do tubo onde se encontrava o corpo de Marcus. Naquele momento, ossos, ligamentos
e músculos já estavam terminando de se regenerar, ainda negros e opacos. Seu rosto
já era mais do que um crânio destruído, como quando chegou ali.
— Você tem as respostas de tudo isso em sua mente, não? — murmurou.
Os olhos de Marcus se abriram arregalados. Seu corpo começou a sofrer espas-
mos e a convulsionar, então parou e os olhos se fecharam outra vez.
O enorme telão da sala da Força Tarefa piscou e acendeu. Todos os consoles se
ativarem sem que ninguém os estivesse controlando.
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— Estamos aqui pra resgatar o técnico que vai consertar a Catapulta Eletro-
magnética — disse balançando a cabeça desorientado.
A fumaça agora soprava para longe, permitindo que se vissem com mais clare-
za. A mulher, extremamente forte para seu tamanho, utilizava uma armadura leve de
piloto e seu capacete pendia despedaçado ao redor do pescoço. O cabelo preto e curto
estava revirado e se resumia a uma mistura de suor e gelo. O rosto era parte sangue,
parte fuligem.
— Como vou ter certeza que não estão me enrolando? — ela gritou, piscando
os olhos verdes e azuis. Seu braço começava a tremer, perdendo estabilidade e mira
da arma veicular desproporcional para o seu tamanho, sangue escorria pelo lado do
seu rosto.
— É só largar isso aí antes que todos nós sejamos pulverizados. — Marcus arris-
cou se aproximar mais um pouco dela.
— O Comandante Nathan nos mandou. Mandou agradecer ao Capitão
Phoenyx por arriscar seus melhores homens… nisso! — Scorpio disse, finalmente se
lembrando do que deveria falar.
A jovem apontou a arma incerta por mais alguns segundos, então largou-a e o
impacto no chão levantou uma quantidade considerada de neve.
— Piloto Sanae Tsugami, frota Phoenyx! — se apresentou forçando a voz em
meio ao barulho da nave queimando e o vento cortando.
— Eu sou Marcus, Ranger de Segunda Classe de Norridge, aquele pássaro aba-
tido ali é o Scorpio, Ranger de Primeira Classe — respondeu abrindo o capacete e
estendendo a mão para cumprimentá-la.
A garota não pôde responder o cumprimento adequadamente, pois seu braço
na verdade estava fraturado.
— Você tem bastante força na mão para alguém tão… magra — disse Marcus
levantando uma sobrancelha.
— Desculpe pular as apresentações, mas temos um cronograma apertado aqui
— Scorpio interrompeu. — Não é que não estejamos felizes com o fato de que você
está viva, mas nos prometeram um Técnico e já que você é o piloto, acho que está
faltando alguém nas contas.
— Quantos braços você acha que eu tenho pra segurar essa arma e ainda con-
seguir jogar uma pedra em você? Ali em cima das rochas, o técnico que pediram. —
Apontou.
Um homem barbudo e cabelo curto raspado nos lados aterrissou próximo do
grupo. Sua roupa estava bem queimada e a parte de cima do traje de voo estava des-
truída, deixando o tórax todo exposto ao clima severo da Sibéria.
— Robb Kovac, técnico especialista em tudo que não for software! — Se apre-
sentou com um forte sotaque da orla exterior. — E não, não estou com frio.
— Errr… não querendo ser insistente, mas temos que dar o fora daqui! — Scor-
pio relembrou.
— Mesmo sendo um técnico, preciso de ferramentas… no caso do problema de
vocês, bem específicas. E… bom… o módulo de carga da nossa nave está em algum
lugar entre aqui e uns 30 clicks naquela direção. — Apontou.
Marcus expeliu ar quente dos pulmões formando uma pequena nuvem
de gás carbônico na frente do rosto.
— Hoje realmente é um daqueles dias onde tudo sai errado. Vamos ter
que passar em Norridge antes.
— Estamos muito longe da Catapulta Espacial? — Sanae olhou ao re-
dor. — Nem imagino onde estamos na verdade.
— Bem longe querida, na verdade, no outro lado do vale. A Catapulta
fica no Norte. Estamos no sul. — Ninguém gostou de ouvir aquela informa-
ção. — E temos que sair daqui agora. Sei que vocês estão feridos e cansados,
mas… logo todos estaremos mortos e vaporizados se continuarmos parados.
Scorpio ofereceu um kit selador de ferimentos para a piloto enquanto
Marcus entregava uma capa térmica verde para o engenheiro especialista.
— Você já disse isso três vezes… têm muitos problemas pela região?
— Pior que problemas… tem um Kraken vindo pra cá!
— Kraken? O Kraken?!
— Nem pergunte… só sinta medo e se apresse. — Scorpio cortou
dando um tapinha no ombro de Sanae. — Ele deve estar cerca de 20 minutos
daqui.
— E… como você quer dar o fora tão rápido? — ela soou alterada.
— Assim! — Marcus assobiou. Da mata, três wargs aterrissaram perto
deles. Piloto e Engenheiro caíram sentados no chão. — Não é hora de des-
cansar! Subam neles e vamos embora.
Mika colocou a mão na cabeça de Ramza por um segundo, depois
apontou para os outros dois wargs e em seguida para os dois novos membros
do grupo. Ramza deu um latido curto. Tanto o warg obeso quanto a warg
fêmea se abaixaram, para que pudessem ser montados.
— É sério isso? — a piloto estava incrédula.
— Não enrola. Sobe e vamos dar o fora! — Marcus estava impaciente.
Relutantes, os dois montaram nos wargs com dificuldades.
— Mika, parra Norridge pela colina! — Marcus deu a ordem através do
comunicador do capacete. A garota fez o mesmo processo de antes, se comu-
nicando telepaticamente com Ramza, que por sua vez grunhiu para os outros
dois lobos.
Desceram com cuidado os primeiros cem metros da ravina. As pedras
e destroços soltos da nave tornavam o caminho perigoso e bastante doloroso.
Sanae estava montada em Kassia, carregando uma pistola e uma espécie de
cilindro de metal pesado nas costas. O engenheiro Kovac, sem suas ferramen-
tas, ia mais atrás, tomando cuidado devido ao peso de Bob. Marcus empare-
lhou ao lado de Sanae.
— O que é esse negócio emitindo um monte de leituras de radiação
fraca?
- 121 -
— Meu módulo ALMA da nave. Consegui recuperar intacto, por sorte.
— Não sabia que já estavam usando em naves.
— Cara… tem algo pra beber aí? — ela perguntou cortando o assunto.
Marcus esticou um tubo de água em gel. Antes que pudesse alcançar, um es-
tampido ensurdeceu a todos, pegando-os de surpresa.
O braço de Sanae fora arremessado e girava no ar solto. Tinha sido decepado.
O disparo atravessou dezenas de árvores, derrubando-as em sincronia, depois
foi parar bem no meio do peito de Marcus, que agora estava enterrado na neve, de
costas contra o chão.
A loba gigante tinha se desiquilibrado assim que o tiro arrancou o braço de
Sanae. Elas caíram rolando na neve até chocarem-se contra as árvores.
Scorpio derrapou e só parou quando se chocou contra algumas rochas, apro-
veitou para usá-las como cobertura. Por sua vez, Kovac e seu warg pesado não tive-
ram problemas para parar, conseguindo buscar cobertura entre destroços da nave que
estavam cravados no solo.
Aquele tiro provavelmente teria dilacerado o tórax dele não fosse pela
armadura. O local de impacto do projétil tinha uma espécie de ferimento em forma
de vulcão. Graças ao neotiranium inteligente de que a armadura era feita, impedindo
que alcançasse o corpo de Marcus. Mesmo sem atravessar, o impacto arrebentou suas
costelas.
Ramza deixou Mika em um buraco, protegida por um carvalho tombado e su-
biu a colina, correu até Marcus
— Marcus, responde cara! — Scorpio gritou pelo rádio.
— Ahg… — O som de respiração funda e cortada foi a resposta imediata. — Eu
tô… vivo, eu acho.
Ramza chegou o mais perto de Marcus que conseguiu sem deixar a cobertura
das árvores. O Ranger esticou o braço direto, oposto ao lado do impacto, esperando
que Ramza entendesse. Depois de um segundo encarando-o, Ramza o puxou pelo
braço para trás de algumas rochas.
— Tá conseguindo se mexer? — Scorpio perguntou pelo comunicador.
— Mexer… Eu vou sobreviver, mas, esse filho de uma…
Outro disparo passou a poucos centímetros de Marcus, arrebentando pedras,
destroços e árvores no caminho. Mesmo com a proteção do capacete, o estampido do
tiro quase o deixou surdo.
— Pakchindae! Que arma é essa? — Sanae gritou enquanto fazia um torniquete
no braço amputado, utilizando o resto do kit médico.
— Parece um SX-Zeus, mas nunca vi alguém atirar com ele tão de perto! — res-
pondeu Kovac.
— Perto quanto? — Scorpio interrompeu.
— Ele não deve estar mais do que uns 300 micro-clicks à frente… em algum
lugar naquelas cavernas do paredão oeste.
— Ouviu? — Scorpio perguntou via comunicador para Marcus.
— Sim… sabe que esse rifle é raro né?
— Sim…
— E sabe que eu já vi ele antes, aqui nesse mesmo vale né?
— No dia da…
— …da Mika! — complementou com raiva. — Coloca todos os drones
no ar. Não quero acreditar que possa ser o mesmo filho dum rato-gritador
daquele dia, mesmo assim não vou dar mole aqui!
Os sete pequenos drones se espalharam no ar, partindo na direção
identificada por Kovac.
— Estou vendo as cavernas, mas… — Scorpio olhava atentamente
quando outro som o interrompeu. Apesar de estar usando uma armadura
diferente do padrão Ranger, aquela também possuía os mesmos sistemas e
sensores de sobrevivência. Um bipe seguido da abertura de uma janela em
realidade aumentada informou:
CATÁSTROFE NATURAL EMINENTE NA REGIÃO.
— Merda! Marcus, recebeu o aviso? — Scorpio chamou pelo comuni-
cador.
— Sim… neblina ácida… o choque deve ter estremecido tudo na re-
gião.
— Com esse vento forte, temos menos de 15 minutos pra sair daqui.
— Sniper, Kraken ou névoa ácida? Pode escolher? — Marcus ironi-
zou. — Tô vendo o infeliz. O atirador abandonou o ninho e tá vindo pra cá…
SCHORG! Camuflagem reativa!
O drone que havia conseguido detectar o atirador tinha perdido foco
em questão de segundos, o alvo parecia ter sumido do nada.
— Temos que sair daqui! Não temos tempo de enfrentá-lo… e daqui a
pouco…
— Eu sei, eu sei! — Marcus estava irritado. — Vocês vão… eu pego esse
filhote de rato-gritador!
— Bateu a cabeça?! Deixa ele aparecer… eu volto, pego aquele canhão
da nave e…
— Não percebeu o nosso quarto problema? — os comunicadores esta-
vam começando a falhar.
Scorpio entendeu a pergunta e ficou em silêncio.
— Vai na frente, leva eles em segurança. Esse cara tava mirando em
mim, mas… pode ser que esteja aqui pela Mika. Cuide dela! — a qualidade da
comunicação caía a cada segundo. — Não discute… a piloto vai entrar em
choque logo se não tratar aquele braço!
— Não vou te deixar pra trás seu imbecil! — Scorpio estava totalmente
contrariado.
— Eu sou o mais indicado pra lidar com essa situação… sou atirador
treinado… especialista em Samátrias e desastres naturais. Você é um Ranger
Protector, foi treinado pra proteger o grupo, eu não. Faça seu trabalho!
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— Você é parte do grupo, cacete!
— E além do mais, eu não vou ficar sozinho… o Ramza tá com cara de que não
quer dar o fora dessa briga.
Depois de alguns segundos de um silêncio desconfortável e muito ruído dentro
dos capacetes, Scorpio respondeu.
— Você é um infeliz filho dum wargoat do deserto! Vê se acaba com ele… se for
ele…
Scorpio fez sinal para Kovac e Sanae, que rastejaram até os wargs e subiram a
ladeira até Mika.
Marcus fez um sinal para o grupo.
— Cuida bem da garota!
Mika estava olhando sem entender, com capacete aberto, uma linha tensa na
testa. Assustada… Marcus fez um gesto com a mão imitando um revólver atirando
nela, que respondeu da mesma forma antes de ser agarrada pela cintura por Scorpio.
— Você não precisa se mostrar, cara! — Sanae gritou.
— Não… isso aqui é por vingança. — Marcus respondeu antes do grupo sumir
entre as árvores.
— É, parceiro, agora somos nós contra ele!
Ramza que parecia entender, balançou a cabeça com dentes cerrados à mostra,
depois baixou a cabeça para farejar.
Em menos de um piscar de olhos, Ramza virou o focinho e grunhiu.
Marcus mal teve tempo de puxar o machete das costas e defender o ataque de
uma lâmina que acabara de cortar o ar. O impacto do ataque foi tão grande que seus
pés afundaram, deslocando um pouco da neve ao redor.
O agressor ainda estava pousando os pés no chão quando Ramza saltou em
um bote, utilizando toda a força que um warg pode ter. Marcus se abaixou, servindo
como apoio para lupino alçar seu corpo pesado no ar e alcançar o alvo. O inimigo des-
viou e o lobo não conseguiu acertá-lo.
Rapidamente o atirador rolou para trás e tomou uma distância segura.
Sua armadura era negra opaca e possuía uma espécie de camada de gás ou né-
voa na superfície, tornando quase impossível distinguir contornos ou detalhes. Ele
era uma mancha negra que se mexia com agilidade. O capacete lembrava brevemente
uma caveira humana, mas nada além disso era possível distinguir.
— Você é um filho duma samatria difícil de matar hein?! — Marcus urrou ao
abrir o capacete.
— Posso dizer o mesmo, Ranger! — ele respondeu com nojo, abrindo seu capa-
cete.
O rosto revelado era acinzentado, cheio de cicatrizes no queixo, a pele da parte
superior da cabeça parecia artificial, implantada. Os olhos eram muito escuros a não
ser pelo círculo vermelho incandescente das pupilas que brilhava como neon.
— Um Nuit… — o Ranger reconheceu e cuspiu com nojo. — Pensei que vocês
tivessem sido expulsos do paraíso!
Ele estava citando as lendas de que logo nos primeiros anos da Nova Aurora da
Humanidade, a raça Nuit tinha sido exilada por conta do canibalismo.
— Fomos… e voltamos! — o outro sorriu mostrando uma coleção de
dentes pontiagudos completamente negros.
Uma fração de segundo depois ele foi para cima de Marcus, descendo
a lâmina negra contra o ombro do Ranger que mal teve tempo de se mexer.
Uma fatia fina de neotiranium inteligente caiu no chão, deixando seu ombro
exposto.
Marcus tentou contra-atacar em um golpe rápido, girando o corpo e
descendo o peso do machete contra o do Nuit, mas ele já tinha ultrapassado
sua guarda e acertado em cheio seu queixo com o cabo da espada.
O Ranger deu vários passos para trás perdendo o equilíbrio. Ramza
aproveitou para dar outro bote. Suas presas agarraram com força a lâmina
afiada do nuit, sem medo de ferir o focinho.
Sem força para competir com o warg, ele largou a espada e saltou para
trás. Ramza cuspiu a espada para longe, com um pouco de sangue escorren-
do por entre os dentes. Ainda grunhindo, começou a farejar no ar.
Marcus sorriu e cuspiu sangue na neve.
— Parece que você está sem tempo.
— Acho que é você que está sem tempo, Ranger. Ou não viu a máquina
de guerra que se aproxima enquanto lutamos?! — o nuit respondeu moven-
do-se como um felino.
— Ah… eu queria que aquele fosse o único problema do dia. Mas… se
você olhar na direção das montanhas, verá uma neblina amarela descendo
bem devagar.
O nuit moveu os olhos para a direção que Marcus citou.
— Você não deve estar familiarizado, mas aquilo é a Névoa do Pântano
Efervescente, ou simplesmente, Névoa Ácida! — Marcus deu de ombros.
Seu oponente cerrou os dentes percebendo a situação.
— E… é, sim… temos menos do que um par de minutos para ela nos
alcançar!
E seu capacete se fechou. Uma voz na armadura anunciou:
INICIANDO SELAMENTO ESTRUTURAL. BRECHA FRONTAL EM RE-
CUPERAÇÃO. PORTA DE CONEXÃO-J DETECTADA. DESEJA INICIAR INTE-
GRAÇÃO?
Marcus estranhou. Uma imagem holográfica em realidade aumentada
mostrou uma versão transparente do seu corpo com várias ligações artificiais
realçadas, mas não teve tempo para se preocupar com isso. Seu oponente
havia recuado para o caminho de onde tinha vindo, Marcus o seguiu.
— Você não vai fugir! — gritou enquanto corria colina acima.
A mensagem da armadura reapareceu agora de forma escrita. Marcus
não sabia o que exatamente resultaria se respondesse positivamente.
— Por que não mandou aqueles drones assassinos acabarem comigo?
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Seria mais fácil do que vir aqui tomar uma surra! — disse enquanto o perdia de vista.
Tinha certeza que ele havia ativado o sistema de camuflagem.
— Acha mesmo que vim aqui para te matar? — o nuit respondeu com a voz
vindo de todos os lados e de lado nenhum. — Minha vontade realmente é fazer você
pagar… mas minhas ordens são bem menos interessantes…
A espada! — Pensou, mas já era tarde. O homem já tinha recuado para recupe-
rar a espada que Ramza arremessou.
O warg os seguiu por entre as árvores, só esperando pelo momento certo para
atacar.
Um movimento violento cortou o ar a meio palmo do rosto de Marcus, dando
tempo apenas para ele levantar o braço e se defender. A manopla de sua armadura
agora tinha um enorme corte, por onde escorria seu sangue.
Após terminar o ataque, a camuflagem da armadura do oponente desligou, re-
velando-o novamente. Daquele ângulo, Marcus notou que ele também estava ferido,
mas debaixo do braço direito, onde nem ele nem Ramza tinham atacado.
— O que você veio fazer aqui? — disse levantando a guarda, com seu braço ar-
dendo.
— Separar você do grupo! — urrou e atacou, dessa vez mais rápido do que
Marcus poderia reagir. A espada fez um arco no ar, executando uma finta elaborada
que finalmente encontrou o peito, onde a armadura de Marcus tinha recebido o tiro
do poderoso rifle momentos antes.
O som da carne sendo atravessada foi abafado pelo barulho da parte de trás da
armadura estourando, tamanho foi o impacto da lâmina.
O sangue subiu pela garganta de Marcus e escorreu pelos cantos da boca den-
tro do capacete. O espadachim nuit estava em posição perfeita, segurando a espada
com as duas mãos e a mantendo firme no local do ferimento.
— Isso não vai te matar… — sussurrou enquanto seu capacete se abria, bem
próximo ao rosto de Marcus. — …mas vai fazer você se arrepender de ter me atra-
palhado naquela montanha! — seus pulsos e antebraços giraram, fazendo com que a
lâmina também girasse.
Marcus grunhiu, quase se afogando no próprio sangue.
Ramza atacou, surpreendendo o agressor nuit.
Os dois rolaram na neve, Ramza travava o braço dele entre as mandíbulas.
Marcus continuou mais alguns segundos de pé antes de cair de joelhos na neve. O
impacto da queda sobre o corpo fez o sangue jorrar e manchar a neve ao redor. A
lâmina foi removida com a ajuda do lobo.
DESEJA INICIAR INTEGRAÇÃO-J?
A mensagem do assistente da armadura se repetiu.
A visão de Marcus estava ficando coberta de pontos brancos de luz. Sangue su-
bia pela sua garganta e escorria. Ele foi obrigado a abrir o capacete para não se afogar.
DANO CRÍTICO DETECTADO. DESEJA INICIAR INTEGRAÇÃO-J?
Insistiu o assistente virtual.
— S… si… im!
Um choque violento em seu peito o fez balançar para frente e para trás. A feri-
da começou a borbulhar com um líquido negro como petróleo fervendo. Vá-
rias fisgadas na coluna o fizeram se curvar, em um ângulo quase impossível.
EXAURINDO RESERVAS DE BIOMASSA.
Durante algum tempo Marcus ficou apagado. Um novo choque o des-
pertou.
INTEGRAÇÃO CONCLUÍDA.
Foi a primeira coisa que ouviu ao voltar a si.
DANOS ESTRUTURAIS CONTIDOS.
MÚLTIPLOS SINAIS DE VIDA ANIMAL SELVAGEM AGRESSIVA CON-
VERGINDO PARA O LOCAL.
COMUNICAÇÃO DE CURTO ALCANCE BLOQUEADA POR INTERFE-
RÊNCIA EXTERNA
EVASÃO ACONSELHADA.
Marcus teve de se esforçar para fazer o primeiro movimento, com
intuito de se levantar.
CALIBRANDO AUXILIAR DE SISTEMA MOTOR.
O segundo movimento estava mais leve e mais rápido.
CALIBRAGEM COMPLETA.
Finalmente conseguiu ficar de pé.
Mesmo com o capacete aberto, a realidade aumentada da armadura
continuava a funcionar, sobrepondo sua visão com a interface holográfica.
Os detectores de movimento mostravam em um mini-radar vários pontos
vermelhos se aproximando.
— Samátrias! — sussurrou e começou a correr para onde Ramza rolou
engalfinhado ao nuit.
Após descer, escorregar e saltar ladeira abaixo, chegou à beirada de
um rio congelado. Ramza estava caído contra o gelo grosso que cobria a cor-
redeira. Sua respiração era pesada e lenta. A espada que quase matou Marcus
estava cravada na lateral da barriga do warg. Ele não via sinal do assassino
nuit.
Um detector de ondas sísmicas se abriu no canto do campo de visão
da interface holográfica da armadura de Marcus. Uma série de sons rítmicos
intercalados indicavam algo grande se aproximando.
Do alto de uma árvore próxima à margem veio um disparo que passou
raspando pelas costas dele. O estampido era característico.
Numa reação imediata e automática, a armadura impulsionou o corpo
de Marcus para frente.
SISTEMA REATIVO DE REFLEXOS ATIVADO.
Um novo mostrador semelhante a um radar exibiu ondas contínuas
sendo emitidas pela armadura, detectando todo tipo de movimento ao redor.
RESERVAS DE ENERGIA DE SUBSISTEMAS EM 16%.
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Após falhar o tiro, o assassino nuit pulou sobre o gelo.
— Belo rifle, pena que você não sabe que ele é feito para ser usado ACIMA de 1
click de distância do alvo! — Marcus disse rindo.
— Seria tão ineficiente como foi agora. Ainda não sei como você tomou o pri-
meiro tiro. — O nuit respondeu enquanto guardava o rifle, que assumia uma forma
compacta enquanto se prendia às costas surpreendendo Marcus.
Ele sabe da armadura? — Pensou intrigado.
— Sua carona já está chegando. Não tem como fugir! — avisou, enquanto o
rodeava devagar, como um felino e sua presa. — Seu cachorro deu trabalho, tenho que
admitir.
— Aquele warg tem muito mais valor que você!
INIBIDORES EMPÁTICOS DESABILITADOS. DESEJA REATIVAR?
Disse a voz do assistente virtual, que somente Marcus podia ouvir. Não, foi a
resposta. Ele queria sentir a raiva, o ódio.
— Quem é você afinal?
— Eu sou uma arma, assim como você. Fomos criados pelo mesmo monstro…
eu encontrei meu lugar!
— Eu não sei do que você tá falando, ratazana… eu só sei que você está cercado!
— Marcus disse, se aproximando de Ramza.
O radar da armadura mostrava vários pontos em ambas as margens do rio.
De entre as árvores e arbustos cobertos de neve, várias criaturas parecidas com
panteras sem pele, mas de estrutura insectóide, cercaram a passagem do rio, tomando
cuidado para não subir na área congelada. O som que emitiam era semelhante ao de
asas de besouro batendo.
O nuit foi pego de surpresa, deu alguns passos para dentro da área congelada do
rio.
— A única coisa que estava afastando elas de nós era um warg sadio. Você o
incapacitou, agora elas não têm mais medo de se aproximar — Marcus falou rindo
descaradamente da situação. — Só não atacaram ainda porque sabem que seu peso em
conjunto com o nosso quebraria o gelo e Samátrias da Montanha não gostam de água
— completou.
Marcus aproveitou que o nuit estava preocupado com as criaturas que os cer-
cavam e se abaixou para ver como Ramza estava. A espada parecia não ter perfurado
nenhum órgão, segundo a imagem sobreposta da realidade aumentada da armadura
declarava, num de seus letreiros piscantes. Mas mesmo assim era um ferimento pro-
fundo.
— Amigão… isso vai doer mais em você do que em mim… mas eu tenho que
fazer — sussurrou e arrancou a espada do ferimento, sempre mantendo o oponente
dentro do campo de visão. — Vou ficar com esse suvenir para recordar o dia que você
morreu derretido!
— Derreter… — o nuit arregalou os olhos.
A névoa ácida já estava a cem metros, descendo pelo rio e ainda com grande
parte oculta pela floresta congelada.
Marcus aproveitou o segundo em que oponente se distraiu para bater toda a
força dos seus punhos contra o gelo, explodindo a crosta que cobria o rio.
O burst de força gerado pela armadura permitiu que o golpe causasse ainda
mais dano que o esperado, arrebentando e soltando toda aquela parte da
crosta de gelo.
Marcus e Ramza afundaram na água fria e a correnteza começou a
arrastá-los em direção à cachoeira. O Ranger agarrou Ramza com esforço
e conseguiu colocar sua cabeça para fora da água. Sem muito efeito, o warg
batia as patas, agoniado pelo perigo eminente de se afogar.
ATIVANDO INFLAGEM EMERGENCIAL.
A armadura de Marcus inchou como uma dezena de balões de ar,
fazendo ele e Ramza boiar, e dando um momento curto de alívio, quando
finalmente chegaram à cachoeira.
Segundos antes de caírem cachoeira abaixo, puderam ouvir o som de
dezenas de samátrias atacando o nuit se misturando ao ruído ensurdecedor da
correnteza. As samátrias sobreviveriam à névoa ácida graças a sua carapaça
alcalina, já a armadura do assassino nuit, Marcus não tinha certeza se aguen-
taria. Esperava que ele morresse mordido e derretido.
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LAYON RODRIGUEz
OFICIAL DA ECLIPSE
KASSANDRA
KAJI
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CApítulo 7
MORTE
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LAYON RODRIGUEz
- 132 -
militares havia pelo menos uma matéria inteira dedicada aos seus métodos de
tática de combate. A Formação Taurus era utilizada como chave para resolu-
ção dos confrontos mais importantes de Gládio, visando a não necessidade de
um único disparo.
Conforme se aproximava do jardim, cruzava com estátuas de dezenas
de lordes e cavaleiros que morreram em batalha durante a Guerra Pirata. Tau-
rus quase fora um destes a cair, seu maxilar era prova disto, sob uma barba
respeitosa escondia-se uma marca que o faria se lembrar para sempre daquela
batalha.
As portas de bronze do Jardim Interior estavam abertas, trazendo para
os corredores fragrâncias das mais raras flores vindas de Gaia. Uma luz artifi-
cial que descia do teto do jardim emulava artificialmente com perfeição o sol
filtrado, numa réplica quase perfeita da atmosfera de Gaia, fazendo qualquer
um se sentir confortável.As paredes brancas entalhadas com motivos milita-
res refletiam suavemente os raios de luz artificial, criando padrões nas pedras
de granito marrom e verde. Um caminho ladeado por arbustos e flores bran-
cas levava até uma pequena praça circular no centro do jardim. Lá, destacan-
do-se acima de tudo, estava uma estátua em homenagem ao último Imperador
Solar, um Ômega Duo. De todas as estátuas espalhadas pelos impérios e colô-
nias, aquela era a única a retratar de forma apurada as feições dele. Ostentava
um corpo largo e forte, mas com traços suaves no rosto que contrariavam as
impressões de quem o visse de longe. Tinha um olhar triste, retrato de um
homem que já teve o peso de todo o sistema solar sobre os ombros.
Sentado em um banco de mármore branco que ladeava a estátua estava
um homem que perecia não ter mais que quarenta anos. Os cabelos tinham
cor de bronze, metálico, levemente grisalhos acima das orelhas. Vestindo um
longo traje real preto e dourado, contrastava com toda a beleza de aparência
natural que o rodeava. Em seu colo estava um pequeno réptil de pele cristali-
na, verde como o mármore da lua Hoplita, refletindo uma luz estroboscópica
em todas as direções. Era um pequeno wargoat, uma espécie que parecia mis-
turar características de bode e lagarto. Muito raro e extremamente perigoso,
capaz de viver por séculos em seu habitat natural. Ali parecia inofensivo, dor-
mindo como bicho de estimação.
— Faz décadas que não nos vemos pessoalmente, Valerio, não? — disse
o homem de voz rouca.
— Sim, minha majestade — respondeu Lorde Valerio Taurus se apoian-
do em um joelho, fazendo uma reverência formal completa.
— Ah Valerio, sempre formal. Por favor, sente-se comigo — o rei disse
apontando para o espaço no banco à sua esquerda.
— Perdoe-me por solicitar esta audiência tão abrupta.
— Como se eu não tivesse lhe dito que estaria à disposição se preci-
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LAYON RODRIGUEz
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apesar de sua posição de prestígio aquela era uma conversa delicada demais
para ser apressada.
— Eles violaram o cessar fogo, meu senhor?
— Horas depois de você ser chamado e iniciar sua missão, uma bomba
explodiu em um dos transportes de tropas de Ares, na órbita de Gaia que, apa-
rentemente, nem deveria estar ali. — O rei limpou a garganta. — Essa guerra
precisa terminar, mas temo que só chegará ao fim quando um dos dois lados
sofrer perdas irrecuperáveis.
— E o que faremos, majestade?
— Você deve prosseguir com sua missão, nossa Comissão diplomática e
o Primeiro Ministro continuarão tentando os meios menos violentos. É tudo
o que podemos fazer por enquanto.
Taurus concordou com um meneio.
— Talvez surja um salvador em meio a isso tudo, meu senhor.
O rei coçou o queixo, assimilando o que seu homem de confiança aca-
bava de revelar, se fosse verdade, talvez então houvesse uma esperança.
— Você diz... um Ômega?
— Talvez mais de um — Taurus disse, olhando para baixo. — Hoje foi
um dia de ver lendas e mitos se provando realidade.
O rei o olhava sem piscar, perplexo. Taurus prosseguiu.
— Há grande chance do homem que recuperamos... ser pelo menos um
potencial Ômega. Ele está se restaurando a partir de pedaços. Quando o trou-
xemos, era apenas um crânio com uma meia coluna, coberto por alguma car-
ne. Seus órgãos estavam praticamente destruídos, fragmentos presos à caixa
torácica. E agora... ele já abriu os olhos. Seu corpo está regenerando como
nenhum Alfa seria capaz.
O rei cerrou os lábios e sorriu.
— Então é por isso que a guerra esperou por todos esses anos para eclo-
dir. Ele precisava de um catalizador poderoso para nascer — disse mais para
si mesmo do que para sua companhia, olhando para baixo enquanto dava um
tapa na própria coxa. O wargoat continuou a dormir.
Os dois ficaram novamente em silêncio, cada um absorvendo à sua ma-
neira aquela conversa. O rei então deu um tapinha de leve no joelho do lorde,
despertando-o do transe.
— Eu o conheço desde que nasceu. Quando o vi, sabia que cresceria
como uma das maiores mentes deste reino e de todo o sistema solar. Muitos
acham que você é frio, desprovido de sentimentos como aço lunar, mas eu
conheço seu âmago, Taurus. Eu percebo seus sentimentos, por mais ocultos
que você tente mantê-los.
Taurus baixou a cabeça em resposta. O rei prosseguiu.
— Essa guerra tem mais de dois lados e você se deparou com algo oculto
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LAYON RODRIGUEz
nas trevas. Não são Ares e Gaia que estão realmente em guerra, correto? —
perguntou sabendo a resposta. Taurus apenas o encarou. — Shadow Moon e
Divisão Zero se fizeram presentes em sua investigação, não é?
Taurus não precisou responder. O rei o lia como letras negras impres-
sas em papel branco.
— Ambos estão entre nós? — o rei o mirou direto nos olhos.
Taurus afirmou com um movimento quase imperceptível de cabeça.
— Acredito que pelo menos um dos lados esteja se preparando para me
abordar.
— Nós conhecemos a fama da SM, geralmente é a primeira a sair das
sombras, mas só depois de envolver seu alvo em uma série de tramas. Eu lutei
toda a minha vida para mantê-la longe da órbita de Gládio, mas vejo que final-
mente conseguiram colocar os pés aqui. — O semblante do rei estava obscuro,
como se sombras crescessem sobre sua face.
— Minha majestade, seria possível que minha percepção e meu racio-
cínio estivessem sendo interferidos por eles? Aqui, em sua presença, minha
mente parece mais clara como não esteve desde que pisei naquele complexo.
O rei apertou os olhos, parecendo ver algo além do perceptível. Afas-
tando as mãos do wargoat, retirou uma das luvas e levou dois dedos até a
jugular de Taurus. O genótipo do Rei Darius era de conhecimento de poucos.
Como Xyar, era capaz de controlar os próprios anticorpos para identificar e
até combater contaminações nos corpos de outras pessoas, enquanto em con-
tato direto com elas. Naquele momento ele utilizava uma pequena fração de
sua habilidade genética.
— Você entrou aqui coberto de feromônios de um genótipo Sigma. Por
isso suas capacidades de racionalização estavam... alteradas. — Quando termi-
nou de falar, uma fina torrente de sangue negro migrou do pescoço de Taurus
até os dedos do rei Darius. Ele não teve tempo de afastar a mão, levantando-se
assustado, e deixando o pequeno réptil chifrudo cair alvoroçado.
— Meu rei, o que houve? — Taurus se levantou sobressaltado, tentando
aparar o rei, que segurava o próprio pulso com força. Faixas negras se proli-
feravam como raízes por baixo da pele da mão do rei. Um sensor de análise
de saúde presente debaixo da pele do pescoço do rei ativou a emergência real.
Vários soldados e médicos entraram pelas laterais do jardim como se já esti-
vessem aguardando ocultos.
— Eles.... eles sabiam que você viria a mim Taurus. — O rei tinha a voz
falha, como se estivesse se afogando. Estava de joelhos no chão, apoiando-se
nos ombros de Taurus. — Eles te infectaram com um veneno-seletivo. — To-
mou um fôlego profundo e disse alto, com toda a força que tinha. — Escutem
todos, minha morte não é culpa de Lorde Taurus. Façam com que ele seja
nomeado rei interino até que a guerra de Ares termine.
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Médicos, soldados e o próprio Taurus estavam perplexos com a decla-
ração. O rei vomitou um líquido verde escuro que produzia fumaça ao entrar
em contato com o ar. Os médicos o tomaram dos braços de Taurus, aplicando
injeções e fazendo leituras rápidas com aparelhos de pulso.
Ele puxou de leve a roupa de Taurus, que baixou-se perto do rosto
manchado, sussurrou:
—Confio nossa nação a você!
Após alguns segundos, um silêncio profundo tomou conta do lindo jar-
dim.— Óbito confirmado — disse o médico com a voz embargada. — O rei
está morto.
— O chá... — Murmurou, percebendo como aquele veneno chegara ao
rei. O chá que havia bebido em companhia da Madre Solar estava envene-
nado. O veneno em si não era endereçado a ele, mas ao rei. Veneno-seletivo
de Haznal, a arma mais desonrosa já criada em toda história da Nova Aurora
Humana.
O corpo do rei já estava numa maca. Um grupo de soldados vestindo
armaduras azul celeste entraram no jardim e cercaram Taurus. Era a guarda
da Sucessão, pela primeira vez sendo vista em ação. Apenas um deles não
cercou Taurus, em vez disso, foi até o grupo de médicos e soldados que já
preparavam o corpo do rei para ser levado dali. Ele ativou alguns comandos
em sua manopla celeste, vários pequenos hologramas ligaram nos braços de
todos ali, incluindo câmeras e equipamentos de vigilância.
Uma reprodução holográfica do rei apareceu, exatamente onde ele es-
tava minutos atrás, antes de ser envenenado. A cena foi adiantada até o mo-
mento de sua declaração:
“Minha morte não é culpa de Lorde Taurus. Façam com que ele seja nomeado
rei interino até que a guerra de Ares termine.”
Todos ouviram a mensagem com atenção desta vez. A guarda de Suces-
são se alinhou na frente de Taurus, quatro soldados vestidos com armaduras
completamente azuis. Atrás deles, o capitão da guarda declarou:
— Que a última vontade do Rei Ozwal Dárius, primeiro rei de Gládio
livre, seja ouvida e cumprida imediatamente.
Todos que não estavam carregando o corpo do rei recém-falecido se
ajoelharam, curvando a cabeça e reconhecendo seu o rei sucessor. O capitão
da guarda foi o único, além do próprio Taurus, a não se ajoelhar, ao invés dis-
so, esticou a mão aberta com a palma para cima. Com sua outra mão, o guarda
puxou uma manopla de debaixo da capa.
Taurus entregou o braço direto, apoiando-o na mão do capitão. A ma-
nopla foi vestida com delicadeza, se ajustando com perfeição na mão e ante-
braço de Lorde. Ela era composta de metal negro com ornamentos dourados
brilhantes, que refletiam a luz artificial provinda das células no alto do teto
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