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IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA

HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.


29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
A RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DE CANUDOS
NO ROMANCE REALISTA -FANTÁSTICO

Joaquim Antonio de Novais Filho


Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
E-mail: novaisfilho@yahoo.com.br

Palavras-chave: Guerra de Canudos . Literatura. Memória. Os Sertões.

Consagrado pela história literária , Os Sertões foi considerado durante décadas – a


partir da sua publicação em 1902 – o livro definitivo sobre a campanha de Canudos.
Reconhecendo no conflito o momento fundamental na consolidação da identidade nacional,
Euclides da Cunha soube expressar os horrores da guerra e a dose de barbárie empregada
pelos agentes civilizadores. Entretanto, influenciado pelas teorias científicas em voga no seu
tempo, se empenhou em explicar o movimento histórico a partir de esquemas raciais. É
inegável, porém, que sua obra colaborou para imortalizar a guerra ocorrida no sertão baiano
no final do século XIX. Além de influir na interpretação histórica, geográfica, sociológica,
etnológica, etc, o livro vingador também motivou e scritores de ficção. Dois exemplos disso
são os romances: A guerra do fim do mundo , do peruano Mario Vargas Llosa e A casca da
serpente, de José Jacinto Veiga. Pretendo aqui abordar a releitura da guerra de Canudos a
partir d’Os Sertões promovida por essas obras, observando o seu potencial subversivo .
A obra-prima de Euclides é marcante para ambos os romances. Seja nas referências ao
fanatismo religioso e na fidelidade a seqüência dos fatos históricos em Llosa ou nas citações
literais na obra de Veiga. Out ra característica comum entre as obras de Llosa e Veiga é a
manipulação de elementos fantásticos. Nesse caso, os autores exploram habilmente as
fronteiras do insólito e do absurdo. A proliferação de pontos de vista diversos e a dimensão
utópica dão aos rom ances um aspecto contestador, polifônico e subversivo. Sendo assim, a
fantástica aventura desenvolvida em A Guerra do Fim do Mundo e A Casca da Serpente , se
inserem numa tradição literária marcada por uma prática discursiva onde as referências
textuais são apresentadas a partir de uma rasura do texto original (KRISTEVA, 1974, p. 63).
Publicado em 1981, o romance de Llosa reconta os acontecimentos de Canudos a
partir de vários pontos de vista. Os sertanejos, os militares, os políticos, o jornalista míope, o
anarquista e frenólogo escocês Galileu Gall apresentam as dificuldades tanto do lado dos
conselheiristas quanto das forças oficiais. Com base em Os Sertões e informações colhidas em
visita ao sertão baiano, o escritor peruano desenvolve no romance uma ric a trama sobre o
conflito entre os canudenses e o exército. Entretanto, a breve descrição de Antonio
Conselheiro no início do romance não traz detalhes de sua vida antes de se tornar peregrino e
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sugere o caráter fanático do líder sertanejo. Em contrapartida , a descrição da conjuntura


política da Bahia pós -proclamação da república é habilmente referida por Llosa. A mesquinha
disputa pelo poder entre as facções da oligarquia baiana e sua influência no desdobramento da
guerra é um dos destaques do seu romance.
A Casca da Serpente , publicado em 1989, explora, em uma narrativa breve, a possível
continuação da história de Antônio Conselheiro e seu séquito. Veiga narra a trajetória de um
grupo de sertanejos que conseguem enganar o exército e f ugir com o seu líder, fundando outra
comunidade, a Concorrência de Itatimundé . A partir daí a narrativa potencializa o tom
insólito. Outras personagens aparecem no arraial. Primeiro, é o fotógrafo Militão, que
encontra os irlandeses Pião Dó e Cotenille – que haviam se juntado a o grupo inicial –, e se
interessa em registrar o arraial. Depois, surgem a musicista D . Chiquinha e o cientista Dr.
Orville. E por fim, temos o príncipe russo: Pedro. Chama atenção aqui, o fato de esses
personagens corresponderem a personalidades histórica s do final do século XIX. Militão de
Azevedo ficou conhecido por ser o primeiro fotógrafo a retratar a evolução urbana de uma
cidade brasileira: São Paulo. D . Chiquinha é referência à Chiquinha Gonzaga, famosa
compositora que desafiou a sociedade machista da época. O Dr. Orville Derby, destacado
geólogo que percorreu o território brasileiro entre o final do século XIX e in ício do XX,
inclusive citado em Os Sertões. E com a personagem Pedro, uma referência ao anarquista
russo Pietr Kropotkin, são apresentada s algumas idéias libertárias.
Enquanto na obra de Euclides o sertão do norte é descrito como uma terra ignota, em
A Casca da Serpente essa região convive e acolhe pessoas de diferentes origens. Entretanto o
destino da Concorrência de Itatimundé seria igual ao de Canudos. Assim, algum tempo após a
fundação a comunidade é destruída. Os invasores dinamitam a estátua em homenagem ao
fundador do arraial levantada na praça principal. E, d a mesma forma que ocorrera em 1897,
num dos momentos mais trágicos de nossa história, em 1965, a cidadela é incendiada pelos
invasores. Data sugestiva, pois um ano antes os militares se instalaram no comando do país,
perseguindo qualquer experiência que fosse considerada subversiva e colocasse em risco o
futuro da nação. A diferença em relação a Canudos, que fora inundada por uma barragem na
década de 1960, é que o destino do arraial foi transformar -se num “depósito de lixo atômico
administrado por uma indústria química com sede fictícia no Principado de Mônaco”
(VEIGA, 2003, p. 159).
O romance de Veiga encontra-se repleto de referências intertextuais evidentes. Seja na
fala peculiar dos jagunços, na presença insólita de personagens históricos que não estiveram
no sertão de Canudos , nas citações bíblicas ou alusões a teorias científ icas. No entanto, é Os
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Sertões de Euclides da Cunha que ocupa lugar privilegiado na narrativa de Veiga. Passagens
literais do texto de Euclides aparecem na obra. No entanto, seu sentido é distorcido,
questionado, contraposto.
Considerando então que Os Sertões é texto original para ambos os romances, cabem
algumas questões. Qual o grau de relação com o texto Euclidiano e as possíveis confluências
de discursos? Qual o nível de subversão e as estratégias de apropriação da obra original? E,
por fim: como o elem ento utópico é inserido nos romances de Veiga e Llosa?
O romance de Llosa preserva o esquema temporal presente em Os sertões. Os sucessos
das expedições militares são narrados com certa fidelidade ao relato de Euclides. É a inclusão
de personagens fictício s e a troca de nomes de alguns personagens históricos – como o barão
de Canabrava, protótipo do barão de Jeremoabo – que demonstram a operação de
desconstrução do livro vingador. Já em A Casca da Serpente , Veiga (2003) opera uma insólita
transgressão do te xto de Euclides, apesar de trechos de Os Sertões e o próprio escritor
jornalista aparecerem na obra. Sua narrativa começa a partir dos momentos finais descritos
por Euclides. Dá continuidade aos acontecimentos encerrados no livro vingador, explorando
as possibilidades que não foram realizadas.
Em Llosa, no entanto, a descrição do Conselheiro continua tributária da imagem
legada por Euclides da Cunha. Apesar de não se referir, literalmente, a episódio relatado em
Os Sertões, Llosa expõe o peregrino como um f anático. Em passagem do romance onde
Antonio Beatinho decide entrar para o séquito de Antonio Conselheiro é legível a
confirmação do fanatismo religioso:

[...] O Beatinho chorou amargamente, ajoelhado junto ao Conselheiro. [...] O


Conselheiro deixou -o chorar, permitiu que lhe beijasse a roda da túnica e
não se alterou quando o Beatinho lhe suplicou novamente que o deixasse
segui-lo, pois seu coração dizia que assim serviria melhor ao Bom Jesus. O
menino abraçou-se a seus tornozelos e ficou beijando seus pé s calejados.
Quando o notou exausto, o Conselheiro pegou sua cabeça com as duas mãos
e o obrigou a olhá -lo. Aproximando seu rosto do dele, solene, perguntou se
amava tanto a Deus a ponto de lhe sacrificar a dor. O Beatinho fez que sim
com a cabeça, várias vezes. O Conselheiro levantou a túnica e o menino
pôde vê-lo, na luz incipiente, tirar um arame que, na cintura, lacerava sua
carne. “Agora, leva-o tu”, ouviu-o dizer. E ele mesmo ajudou o Beatinho a
abrir suas roupas, a apertar o cilício em seu corpo, e a amarrá-lo (LLOSA,
2001, p. 24).

Sendo assim, a representação do líder religioso em A Guerra do Fim do Mundo


perpetua a imagem desenvolvida em Os Sertões. Imagem que promove uma compreensão
enviesada da religiosidade sertaneja. A incompreensão da mensagem religiosa do Conselheiro
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no livro de Euclides ecoa no romance de Llosa. Acerca da religiosidade do Conselheiro, José


Augusto Cabral Barreto Bastos faz a seguinte consideração em seu livro Incompreensível e
Bárbaro Inimigo :

[...] Euclides da Cunha não con signava a evidência de que, conquanto


impregnado dos paradigmas cristãos da Salvação e da Redenção, o que lhe
retirava o estatuto de regressivo, o messianismo conselheirista rompia, por
outro lado, com um passado de resignação e fatalismo que o discurso da
religião oficial prescrevia, sacralizando e perenizando as relações de poder.
(BASTOS, 1995 , p. 23, grifo meu).

A consideração do elemento religioso como regressivo parece ressoar na descrição do


Conselheiro em A Guerra do Fim do Mundo . Observar a recorr ência desse elemento, não é
desconsiderar o valor da obra. Entretanto, chama atenção para a permanência das
considerações desenvolvidas em Os Sertões. Tem que se levar em conta que a obra literária
encerra uma ambigüidade que deve ser observada pelo histor iador. Nesse sentido, Walter
Benjamin em suas Teses sobre o conceito d a história reflete sobre os bens culturais, que ao
mesmo tempo em que relata a vitória dos poderosos, fornece dados valiosos sobre os
oprimidos. Os Sertões é caso exemplar desse duplo ca ráter dos bens culturais:

[...] nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um


documento de barbárie. E assim como ele não está livre da barbárie, também
não está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de
um vencedor a outro (BENJAMIN, 2005 , p. 70).

É quando demonstra a manipulação das notícias na formação de uma opinião pública


favorável ao massacre dos conselheiristas que o romance de Llosa ilumina o processo de
legitimação promovido pel as classes dominantes . Em Canudos: História e Literatura , Garcia
(2002, p. 94) observa que Llosa:

[...] consegue demonstrar os interesses políticos que estavam por trás, não só
dessa conspiração, como das várias que foram engendradas no país, e que os
jornais publicavam de acordo com os seus interesses, ou melhor, o interesse
de seus proprietários. Tecendo, assim, a teia de intrigas que mobilizou toda
uma nação contra “aqueles fanáticos” .

A difusão de boatos era intensa: conspiração monárquica; ajuda de estrangeiros;


existência de armamento sofisticado. A imprensa desempenhava sua função na peleja. Justiça
seja feita aos poucos que examinaram o desenrolar dos acontecimentos com lucidez. Entre
esses, o correspondente do Jornal do Comércio , que também era militar, Manoel Benício. As
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duras críticas dirigidas ao comandante da IV expedição, o Gal. Artur Oscar, fizeram com que
fosse convidado a se retirar do sertão baiano. Na capital federal, um dos poucos intelectuais
da época a evidenciar a manipulação dessas informações foi Machado de Assis. Em crônica
do dia 6 de dezembro de 1896, ele comenta as notícias vind as da Bahia. Após a derrota da
Expedição Pires Ferreira, o escritor carioca ironiza a imagem que se faz do Conselheiro:

Há um ponto novo nesta aventura baiana; está nos telegrama s publicados


anteontem. Dizem êstes que Antônio Conselheiro bate -se para destruir as
instituições republicanas. Neste caso, estamos diante de um general
Boulanger, adaptado ao meio, i.e, operando no sertão, em vez de o fazer na
capital da república e na câ mara dos deputados, com eleições sucessivas e
simultâneas (ASSIS , 1953, p. 348).

Em A Guerra do Fim do Mundo a personagem Epaminondas Gonçalves – político


influente e dono de jornal – arquiteta um plano para forjar provas que indicassem que o arraial
sertanejo tinha contatos com agentes monarquistas. Nesse intuito, o escocês Galileu Gall é
usado para levar ao sertão um carregamento de armas. O plano de Epaminondas era alimentar
a idéia de uma ligação entre o governador da Bahia, Luis Viana, e os monarquist as reforçando
a suspeita de conspiração. Após a derrota da Expedição do Major Febrônio de Brito o jornal
traz uma longa notícia sobre a descoberta dos armamentos e do “agente inglês” no sertão:

Os Republicanos Progressistas recordaram que duas semanas já se passaram


da derrota da Expedição Febrônio de Brito, por rebeldes muito superiores em
número e em armas, e apesar disso, e da descoberta de um carregamento de
fuzis ingleses destinado a Canudos e do cadáver do agente inglês Galileu
Gall na localidade de Ipupiara, as autoridades do Estado, a começar pelo
Exmo. Sr. Governador Luis Viana, tem demonstrado uma passividade e
apatia suspeitas, por não haver solicitado imediatamente, como o reclamam
os patriotas da Bahia, a intervenção do Exército Nacional para e smagar a
conjura que ameaça a própria essência da nacionalidade brasileira (LLOSA,
2001, p. 168).

No romance de Veiga (2003) podemos observar uma mudança na descrição do


Conselheiro. Em clara referência ao texto de Euclides da Cunha, vemos uma significati va
diferença em relação à descrição do Conselheiro. Em Os Sertões, o aparecimento do peregrino
no sertão baiano é assim descrito:

[...] E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos


ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante;
monstruoso dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao
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clássico bastão, em que se apóia o passo tardo dos peregrinos (CUNHA,


2002, p.154-155).

No romance de Veiga (2003, p. 57) é relatado assim :

[...] Ele vagava pelos sertões, e vitando lugares freqüentados, para esconder a
vergonha de um desastre pessoal , quando no norte da Bahia, mal passava a
divisa de Pernambuco, de onde descia, avistou a serra de Ariranga, nas
nascentes do rio Gravatá. [...] A certa altura, num patamar amplo e abrigado
dos ventos, encontrou umas pessoas morando. A recepção foi fria, mas não
hostil. Aquele homem sem enfeites, descalço, vestindo camisolão de asilo,
cabelo e barba compridos, podia inc omodar, mas não podia fazer mal.

Temos aqui a reescritura da trajetória do Conselheiro em contraste com Os Sertões,


onde o Conselheiro surge como um lunático. Na descrição presente em A casca da serpente o
conselheiro aparece de forma menos desabonadora. Porém, a referência ao desastre pessoal,
deixa margem para a lenda arrepiadora relatada por Euclides da Cunha. A lenda indicava o
Conselheiro como assassino da mãe e da própria esposa. Crime desmentido, pois o
Conselheiro tinha ficado órfão de mãe aos seis anos.
No que diz respeito à relação intertextual entre os roma nces em questão e Os Sertões
vejamos algumas estratégias de apropriação e subversão. A relação entre o romance de Llosa
e Os Sertões não ocorre como uma referência textual. Llosa se apropria do texto euclidiano,
mas não deixa vestígios evidentes dessa oper ação. É possível observar, no entanto, em
algumas personagens de A Guerra do Fim do Mundo , reminiscências do livro vingador e seu
autor.
As personagens Galileu Gall e o jornalista míope apresentam curiosas ligações com
Euclides. Em carta de Gall ao jornal francês L’Étincelle de la Révolte observa-se uma série de
elementos que indica a referência a Os Sertões. Ao comparar o arraial sertanejo com a
Vendéia, identificando -o com a monarquia, o revolucionário escocês cita uma referência
comum na época do confli to, mas que é desenvolvida por Euclides em dois artigos publicados
após a derrota da Expedição Moreira César.

Imagino a decepção de muitos leitores e suas suspeitas, ao ler o que está


escrito acima, de que Canudos, como a Vendéia durante a Revolução, é u m
movimento retrógado, inspirado pelos curas. Não é tão simples,
companheiros. Já sabeis, por minha última carta, que a Igreja condena o
Conselheiro e Canudos e que os jagunços arrebataram as terras de um Barão
(LLOSA, 2001, p. 111-112).
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A referência a lo calidade conhecida pelo seu caráter anti -republicano durante a


revolução francesa do final do século XVIII aparece também em Os Sertões:

Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. [...] O


mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração po lítica; as mesmas ousadias
servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que
se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha (CUNHA, 2002 , p. 224).

Em outra passagem da correspondência o revolucionário escocês relata uma conversa


com Pajéu. Nela, a referência ao sebastianismo em Canudos é endossada, corroborando a tese
de Euclides da Cunha:

Olhando-me nos olhos, sem pestanejar, o homem me recitou frases absurdas,


das quais vos dou uma amostra: os soldados não são a força, mas a fr aqueza
do governo, quando for necessário as águas do Vaza -Barris se transformarão
em leite e suas barrancas em paçoca de milho, e os jagunços mortos
ressuscitarão para estar vivos quando aparecer o Exército do Rei Dom
Sebastião (LLOSA, 2001, p. 113).

Um paralelo curioso pode ser estabelecido entre o trágico fim de Gall e a morte de
Euclides da Cunha. Da mesma forma que o engenheiro republicano, que, em troca de tiros
com o amante da esposa, acabou sendo morto, o frenológo escocês, após envolver -se com
Jurema, a mulher do rastejador Rufino, tem o mesmo fim.

O Anão continua apertando -lhe a mão e olhando, como ela. Jurema vê que
Gall tem uma faca meio cravada no corpo, à altura das costelas. Ouve, sem
parar, clarins, sinos, apitos. De repente, a luta cessa po rque o escocês,
soltando um rugido, rola a uns metros de Rufino. Jurema o vê pegar o cabo
da faca e arrancá-la, com um novo rugido. Agora ele está olhando para
Rufino, que também o olha, do ba rro, a boca e um olhar sem vida (LLOSA.
2001, p. 387).

O frenológo escocês, entusiasta da ciência, da mesma forma que o escritor caboclo


fora “vítima da passionalidade” criticada no livro vingador (MOREIRA, 2008 , p.10).
Em A casca da serpente ocorre um processo de apropriação e subversão do texto
euclidiano. No roman ce de Veiga o autor de Os Sertões aparece como o jornalista Pimenta da
Cunha. Referência ao sobrenome de Euclides. Citado literalmente, mas também parafraseado,
o texto original é usado como estratégia de alteração do sentido. Já no inicio do romance
ocorre uma referência explícita ao texto original, que anuncia o processo de utilização do
texto de Os Sertões:
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No dia 2 de outubro de 1897 dois jagunços de Canudos, exaustos da guerra e


agitando uma bandeira branca conseguiram chegar ao general Artur Oscar,
comandante da quarta e última expedição federal despachada contra os
rebeldes. Um dos jagunços era Antônio Beatinho, o sacristão de Antônio
Conselheiro; o outro era Bernabé José de carvalho, espécie de secretário para
assuntos políticos. Vinham comunicar ao general comandante que os
derradeiros defensores do arraial queriam se render (VEIGA , 2003, p. 7).

Nessa passagem, Veiga opera mais uma vez uma reescritura do trecho de Os Sertões
onde o Beatinho se entrega aos militares. Anuncia assim o uso do texto de Euclides da Cunha
no decorrer do romance. Eis a passagem original:

[...] Agitara-se pouco depois do meio -dia uma bandeira branca no centro dos
últimos casebres, e os ataques cessaram imediatamente do nosso lado.
Rendiam-se, afinal. Entretanto não soaram o s clarins. Um grande silêncio
avassalou as linhas e o acampamento.
A bandeira, um trapo nervosamente agitado, desapareceu; e, logo depois,
dois sertanejos, saindo de um atravancamento impenetrável, se apresentaram
ao comandante de um dos batalhões. Foram p ara logo conduzidos à presença
do comandante-em-chefe, na comissão de engenharia.
[...]
Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro
(CUNHA, 2002, p. 525).

A estratégia de Veiga em A Casca da Serpente privilegia a presença de Eucli des da


Cunha em referências literais. No entanto, extrapola as impressões da guerra contidas n’Os
Sertões promovendo um rompimento com um referencial histórico -factual. Evidente nesse
caso pela maneira como é inserido o elemento utópico em sua narrativa. N o caso mais
evidente da inclusão da personagem Pedro, referência ao anarquismo.
Por fim, considerando que a presença de personagens anarquistas configure
simultaneamente um elemento insólito – por ser considerado exótico ao sertão – e utópico –
por se referir a uma proposta de transformação da sociedade – vejamos como ele é inserido
nos romances em questão. Em A Guerra do Fim do Mundo , o escocês Galileu Gall –
anarquista e frenólogo – segue para o sertão baiano para se juntar aos canudenses. Em A
Casca da Serpente surge na Concorrência de Itatimundé o anarquista Pedro, numa referência
ao libertário russo: Pietr Kropotkin. Esta personagem mantém diálogos com o Conselheiro e
influi num processo de transformação do líder sertanejo.
Personagem de destino tragicômico, Galileu Gall é descrito pelo jornalista míope
como: “Um escocês que anda pedindo licença aos baianos para tocar na cabeça deles”. Suas
origens são apresentadas pelo narrador de A Guerra do Fim do Mundo da seguinte maneira:
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O pai foi discípulo de um homem a quem considerava um dos sábios


augustos de seu tempo: Franz Joseph Gall, anatomista, físico e fundador da
ciência frenológica. [...] para o pai de Galileu esta disciplina significava a
morte da religião, [...] a prova de que o espírito não era o qu e a feitiçaria
filosófica sustentava, imponderável e impalpável, mas uma dimensão do
corpo [...] e tal como estes capaz de ser estudado e tratado clinicamente. O
escocês incutiu no filho, desde que teve uso da razão, este simples preceito: a
revolução libertará a sociedade de seus flagelos e a ciência, o indivíduo. A
lutar pelas duas dedicara Galileu a sua existência (LLOSA, 2001, p. 26).

Entusiasta do progresso o anarquista do romance de Llosa é também o exemplo do


discurso cientificista, hegemônico no sé culo XIX.
A crítica ao fanatismo em Llosa não se detêm apenas à dimensão religiosa, mas sugere
também uma dimensão política, no caso de Gall, do jornalista míope e do cel. Moreira César.
Político liberal em seu país de origem, Llosa promove em seu romance uma severa
condenação dos diversos fanatismos. Como observa Fernandes (2002, p. 435): “Essa
‘incapacidade de aceitar divergências ’ tendo origem nos ‘fanatismos’ que não chegam a ‘se
comunicar’, parece ser o elemento central que guia o narrador de La Guerra del fin del
mundo”.
A personagem Gall demonstra em várias passagens do romance a sua incompreensão
do fenômeno de Canudos. Encarando o arraial como um reduto socialista, o escocês diminui a
importância do elemento religioso, considerando -o como sinônimo d e atraso. No entanto, é a
pretensa idéia de uma linearidade temporal que impede uma melhor compreensão do arraial
conselheirista. Llosa, também tributário dessa visão considera a guerra de Canudos como um
choque entre vários fanatismos. Temos aqui uma clar a influência da obra de Euclides. Ao
tratar a destruição de Canudos como fruto da incompreensão considera os militares
republicanos também fanáticos, bárbaros. Os Sertões é assim um intenso mea-culpa do crime
da nacionalidade.
Considerar a guerra como resu ltado de um fanatismo mútuo é simplificar a dimensão
subversiva do desenvolvimento do arraial fundado por Antonio Conselheiro. A religião
desempenhava aí o papel de promover uma coesão social que não era absurda no sertão
daquela época. Conselheiro estava inserido em sua sociedade operando ações que supriam
carências espirituais e materiais. É a sua crescente influência e a dimensão prática de suas
obras que passam a incomodar os poderosos. Esse incômodo vinha desde a sua peregrinação
nos anos 1870. Após a proclamação da república e a antipatia do Conselheiro em relação ao
novo regime ocorre um redimensionamento da figura do líder sertanejo. Em 1893, após anos
de peregrinação, ele funda com seus seguidores o arraial do Belo Monte, na fazenda Canudos,
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parte da imensa propriedade dos parentes do barão de Jeremoabo. No romance de Llosa é


curioso notar que a personagem que demonstra maior lucidez e astúcia é o barão de
Canabrava. Após o conflito que arrasara suas propriedades, deixara sua mulher traumatizada e
fizera-o se afastar da vida pública, o barão trava um longo diálogo com o jornalista míope,
que esteve em Canudos. Depois disso reflete em silêncio sobre o fim de Canudos:

Era isso o que o preocupava, angustiava e o mantinha como pisando em


brasas vivas? Esse enxame de aves carnívoras, devorando a podridão
humana, que era tudo o que restava de Canudos “vinte e cinco anos de suja e
sórdida política para salvar a Bahia dos imbecis e dos ineptos aos quais
competia uma responsabilidade que não eram capazes de a ssumir, para que
tudo terminasse em um festim de abutres”, pensou (LLOSA, 2001, p. 665-
666).

Em A Casca da Serpente a dimensão utópica é explorada de outra maneira. O


aparecimento da personagem Pedro indica um momento chave. Apesar de ter aparecido já no
novo arraial, fundado com a ajuda dos irlandeses: Pião Dó e Cotenile, a figura de Pedro trava
inúmeros diálogos com tio Antonio, o antigo líder religioso sertanejo. A ocasião em que ele
aparece é assim descrita:

[...] naqueles dias desencadeou -se uma série de acontecimentos quase que
simultâneos, muita gente chegando de repente, como se tivesse marcado
encontro justamente ali, de todos os lugares do mundo (VEIGA, 2003 , p.
142).

A primeira aparição do príncipe anarquista é narrada assim:

Primeiro foi um senhor alto, magro, olhar sonhador, voz encorpada e


ressoante. Devia ser escritor, ou filósofo. Não largava um livro em francês,
[...] e andava às voltas com um catatau manuscrito, que dizia ser um livro
que vinha escrevendo. O nome do escritor era muito c omplicado para
ouvidos e língua sertanejos, e ele mesmo pediu que deixassem o nome e o
chamassem de Pedro (VEIGA, 2003 , p. 142).

Ao promover uma ligação entre os sobreviventes de Canudos e o anarquista russo,


Veiga narra não só a história do arraial sert anejo, mas sim a historia de resistência de todos os
oprimidos. Batalha que não cessa de ser vencida pelas classes poderosas. Mas que deve ser
contada a partir da valorização dos atributos dos que resistem. Afinal astúcia, humor,
inteligência não são quali dades só dos vencedores (BENJAMIN , 2005, p. 58). Elemento de
destaque no romance de J. J. Veiga é a insistente permanência, na memória de luta, do arraial
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fundado pelo Conselheiro no sertão baiano. Veiga mostra a possibilidade da construção de


uma sociedade libertária e problematiza o processo de produção na sociedade de classes.
Mesmo expondo as dificuldades da edificação do novo arraial, A Casca da Serpente promove
uma crítica à historiografia dos vencedores, presa aos fatos, com uma ilusão de alcançar a
verdade definitiva. Torna -se assim uma historiografia inconsciente ao abordar as
possibilidades perdidas no decorrer da história. Perdidas mas não esquecidas, pois alimentam
o sonho dos que continuam a lutar contra toda a opressão (GARCIA, 2002 , p. 112).
Por fim, deve se levar em conta que em ambos os romances parece haver uma
incompreensão da dimensão religiosa do arraial sertanejo. Em Llosa, é a permanência da
imagem do fanatismo. Em Veiga (2003), é a ultrapassagem da religião como um indicativo de
evolução da comunidade sertaneja. Essas constatações são compreensíveis na medida em que
se observa a forte influência exercida pelo livro de Euclides da Cunha nos dois romances.
Sendo assim ainda está para ser escrito o romance que tragam as feições dos sertane jos.
Rememorar Canudos é reconhecer que em nome do progresso, da ordem, da
consolidação do regime republicano foi construído um discurso que legitimasse o uso da
violência. Tendo como principal argumento o fato de se tratar de uma comunidade religiosa
fanática, a idéia se perpetuou. Num mundo onde a religião passa a ter uma função secundária,
o elemento sagrado aparece como sinal de atavismo. Sendo assim, a modernização do Brasil,
ao se confundir com o processo de consolidação de uma nacionalidade, promoveu uma
desvalorização da dimensão religiosa. A marcha inexorável rumo ao progresso, ao
desenvolvimento, ao crescimento econômico ecoa hoje nas plataformas dos políticos, seja da
direita, da esquerda. Parecem todos concordarem com o que escreveu Cunha (2002, p. 79) em
seu livro vingador, “estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos ”.
Canudos ainda é um exemplo, não o único, de resistência aos desmandos dos poderosos.

Referências

ASSIS, Machado de. A semana, crônica de 6/12/1896. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto
Alegre: Jackson, 1953. v. 3.

BASTOS, José Augusto Cabral Barretto. Incompreensível e bárbaro inimigo: a guerra


simbólica contra Canudos . Salvador: Edufba, 1995.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história . In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin:
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