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O passado é um país
O orgulho daqueles textos era dividido como se fossem meus também. E, como depois,
dividiu comigo a vaidade de ver o meu nome impresso no jornal.
MARTA CAIRES / 02 ABR 2017 / 02:00 H.

Somos de uma geração como de um país, somos da nossa infância, da adolescência e daqueles primeiros anos da maioridade,
quando já se pode votar e conduzir. Eu sou e não estou só, partilho esse passado com o meu irmão a quem ainda vejo como o
miúdo que sobe às árvores e o adolescente que escreve versos. A memória devolve-me sempre o rebelde vestido de preto, de
cabelo revolto tal e qual um poeta dos filmes. O mano como o guardo, como o vejo desde o fim da adolescência.

Lembro-me do o ver chegar de Mafra, feito soldado, o cabelo a pente dois e cheio de saudades que não confessava. Nunca
falámos muito de saudades, mas fomos ao cinema e ao café. Quando penso nos meus 17 anos lembro-me que nunca mais
fomos ver filmes juntos. E depois fico a matutar, ando para o convidar para ir ao cinema há anos, mas fica sempre para outro
dia. Amanhã, na próxima folga, quando calhar e der jeito.

É o meu irmão, conheço-o desde sempre e há aquela ideia que temos tempo, mesmo quando dou conta que já não somos
novos, os 17 anos estão lá trás, as férias da Páscoa dos tempos da faculdade também. Eu já não herdo as calças de ganga,
nem a camisas, nem ele me dá dinheiro no regresso a Lisboa. E não tenho aquele monte de jornais velhos com reportagens
assinadas Duarte Caires para ler. A minha mãe guardava todos os exemplares na prateleira de baixo do móvel da televisão.

O orgulho daqueles textos era dividido como se fossem meus também. E, como depois, dividiu comigo a vaidade de ver o
meu nome impresso no jornal. Tínhamos sonhado e partilhado esperanças de viver assim, a escrever. Podia ser uma
reportagem, uma conferência de imprensa, quem sabe um romance, mas era escrever e era bom. E não tinha explicação que
fosse assim, que dois miúdos do Laranjal, criados entre a fazenda e os desenhos animados da televisão, lhes desse para
sonhar com livros e histórias.

Às vezes penso que foi por isso mesmo, por não haver nada entre nós e o mundo, além de tudo o que podíamos imaginar. E
nós inventámos muito: o teatro de marionetas na cozinha velha, a nave do Caminho das Estrelas no lagar, fizemos de Errol
Flyn e brincámos aos índios e aos cowboys. Havia os bons e os maus, piratas e barcos no quintal, castelos e diligências a
fugir a toda a pressa dos índios, munidos de lanças e tampas de panelas a fazer de escudos.

Somos de uma geração como de um país, o nosso é este feito de histórias em cima do terraço, a imaginar o fundo do mar
debaixo da mesa do quarto de televisão nos dias de chuva ou a apostar quantas estrelas se podiam contar. E a amuar também,
a discutir e a puxar o cabelo e a esquecer tudo e começar de novo. O mano como eu ainda o guardo, o miúdo que sobe às
árvores, o poeta adolescente, o jornalista que sonha escrever um romance e com quem partilho muito mesmo quando não
quero. E a quem estou para convidar para ir ao cinema.

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