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MEMORIAS

Revista digital de Historia y Arqueología desde el Caribe colombiano

Entre as FARC o MST, entre a violência no campo o Estado policial na América


Latina: Aspectos distintos de conflitos agrários históricos no Brasil e Colômbia

Entre las FARC y MST, entre la violencia en el campo y la policía del Estado en
América Latina: diferentes aspectos de la historia del conflicto agrario en Brasil y
Colombia

Between FARC and MST, between the violence in the field and the state police in
Latin America: different aspects of historical agrarian conflict in Brazil and Colombia

Fernando Antonio Alves

Resumo

Este estudo pretende traçar um panorama das principais lutas sociais desenvolvidas na
América Latina nos últimos anos, em especial em relação aos conflitos agrários, resultando
no surgimento de dois movimentos rurais históricos e distintos: o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST no Brasil e as FARC – Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia. Pretende-se estabelecer até que ponto tais movimentos
surgiram dentro do contexto de segmentos sociais excluídos, que buscaram no campo, por
meio da luta campesina, diversas formas de reivindicação de direitos que, em realidades
sociais diversas, resultaram em formas distintas e graus diferenciados de emprego da força
e violência no campo. Assim, discute-se até que ponto os conflitos sociais agrários
resultaram numa reação por parte dos poderes constituídos, dentro de uma realidade de
classe, a ponto de se estatuir em pleno período de redemocratização das nações latino-
americanas, na perspectiva de regimes constitucionais, assentados num Estado Democrático
de Direito, um anômalo Estado Policial, em detrimento do exercício de direitos
fundamentais, como a liberdade de reunião e associação. Além disso, um processo de
criminalização crescente do MST no Brasil, a exemplo do que ocorre nos embates entre o
Estado e as FARC na Colômbia, contribui para um processo de militarização do aparato
repressivo do Estado, que nada contribui para a manutenção da paz e promoção da inclusão
social no continente latino-americano.

Palavras-chave: Conflitos agrários, movimentos sociais no campo, violência, estado


policial, democratização.

Resumen

Este estudio tiene como objetivo dar una visión general de las principales luchas sociales en
América Latina desarrolladas en los últimos años, particularmente en relación con disputas
por la tierra, dando como resultado la aparición de dos movimientos históricos en las zonas
rurales: el Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra - MST en Brasil y las FARC -
Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia. El objetivo del trabajo es establecer en qué
medida estos movimientos surgieron en el contexto de los grupos sociales excluidos, que
buscaban en el campo, a través de la lucha campesina, diversas formas de reivindicación de
los derechos en diversas situaciones sociales, dando lugar a diferentes formas y diferentes

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grados de uso de la fuerza y la violencia en el campo. Por lo tanto, se discute hasta qué
punto el conflicto social agrario dio lugar a una reacción de los poderes dentro de una
realidad de clase durante un período de democratización de las naciones latinoamericanas,
desde la perspectiva de los regímenes constitucionales, sentado en un Estado democrático,
un policía del Estado anómalo, más que el ejercicio de los derechos fundamentales como la
libertad de reunión y de asociación. Por otra parte, un proceso de creciente criminalización
del MST en Brasil, como ocurre en los enfrentamientos entre el gobierno y las FARC en
Colombia, contribuyendo a un proceso de militarización del aparato represivo del Estado,
que no contribuye en nada al mantenimiento de la paz y la promover la inclusión social en
América Latina.

Palabras clave: Los conflictos agrarios, movimientos sociales en el campo, violencia,


policía estatal, democratización.

Abstract

This study aims to give an overview of major social struggles in Latin America developed
in recent years, particularly in relation to land disputes, resulting in the emergence of two
distinct historical and rural movements: the Movement of Landless Rural Workers - MST
in Brazil and FARC - Revolutionary Armed Forces of Colombia. It’s intended to establish
to what extent these movements emerged within the context of excluded social groups, who
sought in the field and through the peasant struggle, various forms of claims of rights in
various social situations, resulting in diverse ways and different degrees of the use of force
and violence in the countryside. Thus, we discuss to what extent the agrarian social conflict
resulted in a reaction by the powers that, within a class reality, during the period of
democratization of Latin American nations, from the perspective of constitutional regimes
seated in a democratic state, an anomalous state police, rather than the exercise of
fundamental rights such as freedom of assembly and association. Furthermore, a process of
increasing criminalization of the MST in Brazil, as occurs in clashes between the
government and the FARC in Colombia, contributed to a process of militarization of the
repressive apparatus of the state, which doesn’t contribute to the maintenance of peace and
the promotion of social inclusion in Latin America.

Keywords: Agrarian conflicts, social movements in the field, violence, state police,
democratization.

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Introdução latino-americano, cujas cicatrizes podem


ser facilmente encontradas na repercussão
Após sua independência do jugo colonial de casos, noticiados pelos meios de
nos últimos séculos, as nações latino- comunicação, que noticiam a ação de
americanas presenciaram o predomínio de grupos armados paramilitares ou
um processo de concentração progressiva confrontos bélicos do exército com
da riqueza que levou a níveis acentuados guerrilheiros, na floresta colombiana,
de exclusão social. Nessa realidade, é como também nas zonas rurais de
tocante o quanto dessa crescente exclusão diversas regiões de países com dimensões
levou não apenas à desagregação social e continentais, como o Brasil.
ausência de integração formal de cidadãos
ao mercado de trabalho, como também Este estudo propõe-se a realizar uma
gerou sucessivos conflitos em áreas pequena observação comparativa entre
campesinas, resultando em inúmeros dois grandes movimentos, com
casos de violência, onde a repressão características e facetas distintas que
estatal encontrava-se presente. surgiram historicamente entre os povos
latino-americanos, durante o século XXI,
Tidos mais como um caso de polícia, de e que, igualmente originados no campo,
ocorrências criminais que necessitavam tiveram trajetórias distintas, caminhando
da intervenção do sistema penal, diversos à beira da legalidade ou revestidos de
governos de viés autoritário se valeram completa ilegalidade, mas com um
do discurso da criminalização para lançar cotidiano próprio de violência e
na clandestinidade uma série de repressão: as Forças Armadas
movimentos sociais e seus militantes, ou Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o
de organizações que acabaram por se Movimento dos Trabalhadores Rurais
valer da luta armada como forma de Sem-Terra (MST) no Brasil. A análise
confronto social contra o poder político e crítica da história e desenvolvimento
econômico dominante. Isto gerou desses movimentos, como parte da
sensíveis sequelas na preservação da história das lutas do povo latino-
democracia e fundação do Estado americano, é fundamental para que se
Democrático de Direito no continente entenda até que ponto existem hoje

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tratamentos legais diferenciados para duas da violência, inclusive por obra da reação
significativas siglas que englobam estatal à eclosão de movimentos
movimentos maciços de trabalhadores associados com terra, trabalho e reforma
alijados do mercado, onde a participação agrária, percebe-se que o fechamento de
popular desses setores excluídos da terras em torno de latifúndios, dificultou
sociedade, transformam-se em lutas sobremaneira a inclusão social do
sociais revestidas de polêmica, violência trabalhador do campo, permanecendo o
e criticas ideologicamente extremadas. camponês como um ser desenraizado,
Um pouco das lições que podem ser migrante, numa trajetória de vida
obtidas através do histórico de repressão itinerante à procura de trabalho, num
as FARC e, em alguma medida contra o processo de proletarização em que as
MST (principalmente em períodos opções legais ou à margem da legalidade
autoritários), podem levar a uma passam a competir em grau de igualdade
constatação dos fracassos do modelo de nas alternativas a serem fornecidas para
Estado liberal implantado no continente esses indivíduos, carecedores de trabalho,
latino-americano, revelando até que ponto sujeitos à superexploração ou até mesmo
as consequências das opções tomadas ao trabalho escravo, principalmente em
pelo modelo liberal de gestão da reforma algumas regiões do Brasil, como
agrária levaram ao nascimento desses Pernambuco, Bahia, Pará e Mato Grosso 1.
dois movimentos que serão analisados a
partir de agora. A luta dos excluídos pode
ser inglória, mas a perseverança para
1
permanecer lutando parece constante. Nesse sentido, em seu estudo sobre a sociologia
do narcotráfico na América Latina, a socióloga
Ana Maria Ribeiro, do departamento de
Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da
Um cotidiano de violência e repressão UFF, publicou relevante estudo sobre narcotráfico
estatal nos conflitos agrários latino- e questão camponesa, fazendo referência aos
estudos anteriores de José de Souza Martins,
americanos indicando até que ponto a degradação das
condições sociais do camponês brasileiro o força a
buscar opções de trabalho no campo fora dos
meandros da legalidade. RIBEIRO, Ana Maria.
Em primeiro lugar, ao se efetuar uma Sociologia do narcotráfico na América Latina e a
questão camponesa. IN: RIBEIRO, ANA MARIA
análise do advento e crescimento dos MOTTA; IULIANELLI, Jorge Atílio.
conflitos agrários associados ao aumento Narcotráfico e violência no campo. Rio de
Janeiro: DP&A, 2000, p. 25.

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Região e Nome do Data da Trabalhadores Trabalhadores


Nome do Imóvel
Municípios Proprietário denúncia Explorados Libertados
Bahia
Barreiras Fazenda São José Sem informação 14/04/2011 14 14
Comunidade
Oliveira dos Comunidade de
tradicional de 18/03/2011 3
Brejinhos Várzea Grande
Fundo de Pasto
Mato Grosso
Parque Chapada Empreiteira
Várzea Grande 28/07/2011 9
dos Guimarães Antoniel Ferreira
Pará
Rondon do Fazenda Marcos ou Alberto
26/01/2011 4
Pará Itajubá Nogueira
São Félix do Fazenda Boa
Flávio e Dona Ìris 16/01/2011 7
Xingu Esperança
São Félix do
Fazenda Rabelo Francisco Rabelo 31/01/2011 2
Xingu
Pernambuco
Engenho do
Instituto do
Instituto do
Carpina Açúcar e do 28/09/2011 40
Açúcar e do
Álcool
Álcool
Engenho Barra
Palmares Usina Norte Sul 21/06/2011 80
do Dia
José Bartolomeu
Palmares Engenho Viola 21/06/2011 50
de Almeida Neto
Trabalhadores rurais em situação de superexploração ou trabalho escravo no brasil em 2011 (Bahia, Mato
Grosso, Pará e Pernambuco)
Fonte: Dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra - CPT. Em http://www.cptnacional.org.br/.

Soma-se a isso o fato de que a própria legislação civil como baluarte dos direitos
legalidade contribuiu para a de propriedade, entendendo que a
marginalização crescente do camponês, principal forma de sua aquisição, nos
pelos difíceis requisitos legais para a moldes de uma sociedade de mercado,
ocupação legal de terras e pela visão ainda seria pela acumulação de riquezas.
predominantemente liberal-burguesa do Se a lei civil entendia que somente os
exercício do direito de propriedade. A
ortodoxia jurídica dos tribunais e de and Development Journal, onde o autor critica o
pensamento jurídico tradicional, predominante no
muitos legisladores, acentuadamente Brasil antes do governo Lula (2003-2010),
revelando até que ponto a visão privatista do
vinculada a um paradigma liberal e direito levou a se entender o direito de
propriedade como quase absoluto, sem observar a
positivista do Direito2, tendia a ver a necessidade de sua função social. MESZAROS,
George. O MST e o estado de direito no Brasil.
IN: CARTER, Miguel. Combatendo a
2
Vide o estudo efetuado por Meszáros, em texto desigualdade:o MST e a reforma agrária no
originalmente apresentado na Law, Social Justice Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.441.

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grandes proprietários rurais, detentores de concentração de terras sob a forma de


capital face à acumulação de riquezas, latifúndios, dentro do esquema legal de
teriam direito à terra, para os legitimação do direito de propriedade
trabalhadores excluídos do direito de burguês e por consequência uma rebeldia
propriedade só caberiam as leis penais, campesina contra essa forma de
caso desafiassem o direito dos monopólio da terra e a exploração dela
proprietários, por meio das ocupações decorrente, mobilizando-se através da luta
ilegais, tendo em vista que suas condutas armada ou de ligas camponesas
passariam a se constituir em crimes. instituídas para resistir a esta forma de
exploração.
Em toda a América Latina, do México,
passando pela Argentina e Colômbia, e Não demorou para que o Estado, por
chegando ao Brasil, uma legislação meio de seu aparato repressivo, apressa-se
oriunda do período colonial levou a uma em intervir sobre esses movimentos,
maior concentração de terras, levando ao carregando-lhes a pecha de organizações
surgimento de baldios, estâncias e criminosas. Tal atuação repressiva estatal
mayoragos, como modelos exitosos de tornou-se acentuada após ser feita a
exploração agropecuária nos moldes de associação entre movimentos rurais e
um Estado liberal-burguês, narcotráfico, conforme a manutenção de
paulatinamente consolidado dentro de um padrões históricos de pobreza e
sistema econômico ainda longe da distribuição desigual da riqueza entre
industrialização, mas que já se baseava na países do hemisfério norte e hemisfério
forte produção fundiária como forma de sul, formando-se uma categoria de
acumulação de capital 3. Na Colômbia, a produtores e consumidores de drogas 4. A
formação de seu segmento camponês em campanha de “Guerra às Drogas”,
sua história agrária revela bem o modelo
4
herdado de uma estrutura colonial de Sobre isso, relata-se a Geopolítica do Narco
desenvolvida durante o século XX, onde países
distribuição da terra que passou a ser como a Colômbia tornaram-se grandes produtores
de maconha e cocaína, assim como a Bolívia e o
gerida por uma nascente, mas Brasil passaram a figurar como produtores
potenciais. Nesse sentido, os Estados Unidos
disfuncional economia capitalista: a ainda é o maior consumidor de cocaína no globo
terrestre, seguido de outros países do hemisfério
3
RIBEIRO, Op. cit.,p.29. norte. RIBEIRO, Ibid., p.34.

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desenvolvida no último quarto do século inaugurada no discurso punitivo dos


passado, e que envolveu relações governantes norte-americanos, ganhando
internacionais entre os Estados Unidos e respaldo na doutrina jurídica a partir de
países latino-americanos como Colômbia conceitos como “Direito Penal do
5
e México apenas traduzem um Inimigo” , desenvolvidos por teóricos
componente de criminalização que veio como Günther Jakobs, que merecerão
acirrar os conflitos existentes no campo, maior destaque no decorrer deste estudo.
figurando agora milhares de produtores
rurais de plantas de maconha ou folhas de Entretanto, no que tange à produção da
coca como supostos criminosos, folha da coca, aos camponeses de origem
integrantes do crime organizado. Por indígena, situados principalmente na
detrás de uma comoção nacional sobre os Bolívia, Peru e Colômbia, fazem uso
gravíssimos problemas de saúde regular da folha, tendo em vista a
relacionados com o uso indiscriminado de agricultura tradicional que já surgiu em
drogas, o governo dos Estados Unidos torno deste produto, e diante de uma crise
desde a década de setenta do século global estimulada pelo colapso cíclico da
passado, vem empreendendo uma solução economia capitalista, como o vivenciado
bélica para os problemas relacionados às nos últimos dois anos no hemisfério
drogas, que mobilizam o aparato norte, não resta outra alternativa a esses
repressivo de uma série de nações. No trabalhadores do que se valer da produção
Brasil, as intervenções constantes do da coca para aliviar suas condições de
exército em apoio às ações da polícia, no miséria6. Assim, o movimento dos
combate ao narcotráfico e na perseguição cocaleros na Bolívia e a eleição para a
de traficantes, centradas na ocupação de presidência da Bolívia, do ex-líder de
morros e favelas da periferia de grandes movimentos de trabalhadores rurais, Evo
centros urbanos como o Rio de Janeiro, Morales, levou a se estabelecer um
são um exemplo emblemático disso. As projeto latino-americano de protesto
atuais políticas de pacificação, apoiadas legítimo contra as políticas repressivas
na instalação das chamadas Unidades de
Polícia Pacificadora-UPPs, na realidade 5
JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo.
carioca, não escapam da lógica belicista Rio de Janeiro: 2009, p.52.
6
RIBEIRO, Op. cit.,p.51.

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que atinjam os direitos dos trabalhadores obstante a América Latina vivenciar um


envolvidos no plantio da coca e toda a atual e permanentemente desejado
cultura estabelecida há séculos em relação momento inédito de predomínio de
a planta. No Brasil, a repressão estatal aos experiências políticas democráticas, com
trabalhadores rurais, com a associação a a eleição de representantes eleitos pelo
grupos criminosos voltados para o tráfico povo, ao invés de modelo autoritário de
de drogas é percebida na repressão às regimes ditatórias tão presentes no
plantações de maconha no Nordeste continente, durante décadas do século
brasileiro, não obstante haver grandes passado. Apesar de ser fonte de
movimentos e protestos realizados no inspiração para muitas outras
ambiente urbano por estudantes organizações de trabalhadores rurais no
universitários, contando com o apoio de Brasil e na América Latina, o MST
intelectuais, defendendo a legalização da enfrenta até hoje dificuldades por conta
maconha, tendo como expoentes, de tentativas de criminalização do
inclusive, o ex-presidente da república movimento por parte de setores da
7
brasileiro, Fernando Henrique Cardoso . imprensa brasileira, bem como por
autoridades policiais, do Judiciário ou do
Observa-se um contexto ainda muito Ministério Público.
difícil para os movimentos sociais
centrados nas lutas agrárias na América As reações violentas contra movimentos
Latina, seja pela manutenção das como MST partem, até mesmo, de setores
desigualdades, seja pelo contínuo da intelectualidade brasileira, como o
emprego da violência por parte dos filósofo Denis Rosenfield, professor da
latifundiários ou de agentes estatais na Universidade Federal do Rio Grande do
repressão a esses movimentos, não Sul, que trata o MST, em seus escritos
7 publicados na mídia nacional, como uma
No documentário Quebrando o tabu, do cineasta
e documentarista Fernando Andrade, o ex- organização criminosa e revolucionária,
presidente da república do Brasil aparece com
destaque, na discussão da legalização de drogas que sob o pretexto da defesa da reforma
como a maconha, juntamente com outras
personalidades de destaque da política mundial, agrária, promove invasões de
como o ex-presidente norte-americano Bill
Clinton. ANDRADE, Fernando Grostein. propriedade, sequestros, posse ilegal de
Quebrando o tabu. Brasil: Spray Filmes, 2011.
Disponível em www.quebrandootabu.com.br

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armas, desrespeito à lei e depredações8. A trabalhadores rurais, localizados em áreas


reação de tais intelectuais, identificados de suposto plantio de substâncias
com a ideologia liberal-burguesa, além de proibidas, acabam por serem
reforçar os preconceitos de classe, apenas estigmatizados penalmente, sob a
contribuem para a manutenção dos alegação de estarem se associando ao
discursos punitivos e criminalizantes em narcotráfico. Nesse ponto, a repressão
relação a movimentos sociais como o estatal estabelece-se em duas linhas,
MST, comparando-o forçadamente as ambas francamente prejudiciais aos
FARC, com a alegação da prática de atos trabalhadores do campo: a repressão pura
terroristas, a fim de obter junto ao e simples pela ação policial ou pela via
governo a definitiva ilegalidade, e bélica, com a prisão de militantes de
consequente clandestinidade desse movimentos de trabalhadores rurais, e a
movimento. destruição pelo exército e pela polícia
federal de plantações através de
Enquanto isso, no restante da América queimadas; a distribuição de substâncias
Latina, em especial na Colômbia e em herbicidas ou desfolhantes mediante o
países como Bolívia, Equador e Peru, emprego de aviões, com a aniquilação
relatórios, elaborados pelo Departamento não somente de extensas áreas de cultivo
de Estado da Repressão às drogas nos de maconha e folha de coca, mas também
Estados Unidos, acerca do uso toda a fauna e flora local, comprometendo
exacerbado de maconha e cocaína por a preservação no meio ambiente da
cidadãos norte-americanos, são floresta, e o principal sustento de vida de
respaldados pelas Nações Unidas, milhares de trabalhadores na zona rural.
indicando que novas áreas de cultivo
ilícito estão surgindo em países como A partir do próximo capítulo deste estudo,
Equador e o Brasil. 9Isto apenas estimula pretende-se apresentar um breve relato
que o problema social da reforma agrária histórico das lutas de movimentos como o
não seja resolvido, e, ao contrário, os MST, no Brasil, para após ser elaborada
movimentos identificados com uma concisa, porém necessária
comparação do movimento brasileiro com
8
CARTER, Op. cit,. p.499. o surgimento e vicissitudes das FARC na
9
RIBEIRO, Op. cit., p. 54.

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Colômbia, apontando as principais próprias. Além disso, para autores como


reações estatais e as intervenções Tarow10, movimentos sociais ocorrem
repressivas nesses movimentos, a fim de quando oportunidades políticas são
se ter um panorama do quadro político de ampliadas, surgindo e multiplicando
repressão aos movimentos sociais latino- aliados, ao mesmo tempo em que as
americanos, mediante uma observação vulnerabilidades dos oponentes se
crítica dos exemplos analisados. apresentam. Nesse sentido, devido às
relações fundiárias desenvolvidas no
O desenvolvimento das lutas agrárias Brasil nos últimos cinquenta anos,
no Brasil: Um breve relato histórico propiciou-se o nascimento de um
horizonte fértil para a proliferação das
Entende-se inicialmente que, movimentos lutas sociais no campo, consoante o
sociais organizados no Brasil, tais como o desenvolvimento econômico que se deu
MST, podem receber uma abordagem no país e os reflexos históricos da
tanto das teorias histórico-estruturais trajetória da economia global. Quando se
como das teorias culturalistas ou vê, por exemplo, a formação das
organizacionais-comportamentalistas. oligarquias agrárias brasileiras e a forma
Num primeiro momento, o movimento de de distribuição de várias áreas de terra
trabalhadores no campo organiza-se sob a desde o processo de colonização
forma de conflito de classe, como a que portuguesa no século XVI, até o modelo
invocar a aplicação de teorias de de desenvolvimento agrário surgido no
inspiração marxista, tendo em vista a século XX, vê-se que se estabeleceu todo
relação entre despossuídos X um quadro de precedentes para que
proprietários de terras. Entretanto é movimentos como o dos Trabalhadores
possível verificar nos acampamentos de Sem-Terra pudesse existir e questionar as
integrantes do movimento outros relações sociais historicamente
componentes que podem levar em conta a estabelecidas no campo.
afirmação identitária específica de um
determinado segmento social, com
padrões culturais simbolizados em 10
GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos
crenças, práticas e normas de conduta movimentos sociais, São Paulo: Edições Loyola,
2008. p.33.

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Na década de sessenta do século passado, militar, instalou-se no país um forte


as Ligas Camponesas e os sindicatos de regime de exceção, num longo período
trabalhadores rurais tornarem-se os ditatorial em que os movimentos rurais no
principais atores dos conflitos e lutas campo foram praticamente eliminados,
sociais travadas no meio rural, recebendo mediante uma forte e violenta repressão.
grande apoio popular na região Nordeste Na segunda metade da década de setenta,
do Brasil 11. Entretanto, no que tange ao setores progressistas da Igreja Católica
respaldo dessas lutas perante o poder passaram a defender abertamente a
político, a relação foi inicialmente reforma agrária, criando a Comissão
ambígua, tendo em vista que o governo Pastoral da Terra - CPT, culminando, em
liberal do início da década apresentava julho de 1979, com a ocupação de duas
uma plataforma política favorável à fazendas de propriedade do poder público
reforma agrária, mas a dinâmica do federal, contando com a presença de 23
aparato repressivo do Estado era o de famílias, construindo um acampamento12.
prender os líderes dos movimentos rurais, Destacam-se a participação de Padre
sob o argumento ideológico de reprimir Arnildo Fritzen e de um jovem ex-
agentes do comunismo internacional, seminarista gaúcho, João Pedro Stédile,
infiltrados nos sindicatos rurais, que que se tornaria, no futuro, um dos maiores
pretendiam estabelecer uma revolução aos líderes do MST.
moldes da que se estabeleceu em Cuba,
nos anos anteriores. Os acampamentos formados por sem-
terra no final da década de setenta
Com a apresentação do programa de recebiam apoio de grupos religiosos e
Reforma Agrária pelo presidente João comunidades locais, mas eram
Goulart em março de 1964, defendendo a sucessivamente vítimas da ação de
expropriação compulsória de terras, e sua pistoleiros contratados por grandes
conseqüente deposição por um golpe proprietários de terras ou mesmo pela
ação truculenta da polícia ou dos
11
DEW, Edward. Samba revolucionário: a revolta
agrária que quase todo mundo apoia. In: militares. Ocorre que, nesse período, o
PEDLOWSKI, Marcos A. OLIVEIRA, Julio
Cezar, KURY, Karla Aguiar. Descontruindo o país vivenciou a decorrada do modelo
latifúndio: a saga da reforma agrária no norte
12
fluminense. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011, p. 58. Idem, p. 59.

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econômico implantado pelo governo trabalhadores desempregados oriundos


militar no início da década, apelidado de das grandes cidades. Foi nessa época que
“milagre brasileiro”. Com o aumento do adotou-se o slogan oficial do movimento:
desemprego, o surto inflacionário e a “ocupar, resistir e produzir” e foi dado
intensa concentração de renda, as grande respaldo ao movimento por uma
ocupações de terra aumentaram opinião pública ansiosa pelo fim do
progressivamente, resultando na regime militar e surgimento de um
mobilização da opinião pública em prol governo civil, responsável por uma nova
da reforma agrária, driblando a censura aurora de mudanças, tão desejadas pela
estabelecida pelos meios de comunicação sociedade civil e pela grande população,
desde o golpe de 1964. comovida pela malfada campanha
nacional das “Diretas Já”, em torno da
O processo de finalização do período chamada “Emenda Dante de Oliveira”,
militar e restauração da democracia no projeto do parlamentar de mesmo nome,
país, na década de oitenta, coincidiram que previa eleições diretas para presidente
com a criação do MST, fundado em 1984, da república, ao final do ciclo ditatorial.
na cidade de Cascavel, no Paraná, num
encontro promovido por representantes da Com o restabelecimento da democracia
CPT, membros da Igreja Católica, bem em 1985, o novo governo determinou a
como de outras igrejas cristãs, organização de uma Assembleia Nacional
evangélicas ou pentecostais, quando foi Constituinte para redigir uma nova
criada a expressão “sem terra”, para Constituição, que seria promulgada em
definir trabalhadores rurais mobilizados e 1988. O texto constitucional dispunha no
determinados, voltados para um projeto caput de seu artigo 184, sobre a
de reforma agrária para o Brasil. Era uma desapropriação por interesse social, para
organização cujas lideranças foram fins de reforma agrária, de imóveis rurais
egressas do meio religioso, que não estivessem “cumprindo sua
majoritariamente ex-seminaristas, como função social”. Com isso, a luta pela
Stédile, mas com uma base social reforma agrária no país ganhou um
essencialmente laica, formada tanto por fortíssimo respaldo jurídico, ensejando
trabalhadores rurais, como por um número maior de ocupações de terra e

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a legitimidade dos movimentos sociais prefeito, Antony Garotinho, futuro


voltados para os direitos do homem do candidato a governador, interessado no
campo. apoio aos sem-terra por motivos
eleitorais; d) o INCRA (Instituto Nacional
Viveu-se então, no Brasil, o período das de Colonização e Reforma Agrária):
grandes ocupações, de intensas agência federal responsável pela criação
mobilizações e de grande visibilidade do de assentamentos, interessada em resolver
MST enquanto movimento social com rapidez a questão das ocupações de
carregado de forte apoio popular. Em terras; e) sindicatos urbanos e
1997, no Rio de Janeiro, após a exposição universidades, visando a articulação do
de fotos do fotógrafo Sebastião Salgado, MST com outros movimentos sociais, que
no Palácio da Cultura, em 3 de abril, atuavam integradamente, formando uma
denunciando o massacre de trabalhadores rede de apoio a esses movimentos. Além
rurais em confronto com a polícia do disso, na época o MST possuía os
Pará, em Eldorado dos Carajás, no ano seguintes oponentes: a) a TFP (Tradição,
anterior, o MST passou a organizar a Família e Propriedade): grupo religioso
ocupação da Usina São João (que viria a conservador, que defendia a sacralidade
se transformar no assentamento Zumbi do direito de propriedade da terra,
dos Palmares), realizado em 12 de abril, denunciando em suas publicações locais
quando duzentas famílias acamparam no os integrantes do MST como comunistas;
local. Na ocasião, a ocupação das terras b) os usineiros: proprietários de extensas
da Usina São João revelava os seguintes áreas de propriedades situadas no meio
atores sociais, atuantes naquele período rural, em flagrante crise financeira,
enquanto aliados: a) integrantes da CPT: interessados na manutenção de privilégios
em sua maioria clérigos e representantes da oligarquia agrária; c) os bispos que
do meio religioso; b) trabalhadores na representavam a ala conservadora da
monocultura da cana, desempregados Igreja Católica, contrários à reforma
com a crise e péssimas condições de agrária, críticos da Teologia da Libertação
trabalho no setor sucroalcooleiro; c) a (movimento religioso-doutrinário que
Prefeitura do município de Campos dos influenciava o meio católico esquerdista),
Goytacazes, representada pelo então em disputa com seus colegas religiosos,

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no meio progressista; d) partidos e grupos enquanto algumas lideranças


políticos de direita que se opunham ao conservadoras argumentavam que o
MST e aos seus métodos, com especial movimento contribuía para a manutenção
destaque à União Democrática Ruralista – do desemprego, uma vez que continha no
UDR, criada pelos latifundários, na época seu interior uma grande quantidade de
da Assembleia Nacional Constituinte, trabalhadores urbanos desempregados.
para defender os interesses dos grandes Tendo um forte apoio popular revelado
proprietários rurais13. pelos meios de comunicação no período,
alguns opositores do MST alegavam nos
Entre aliados e oponentes, a ocupação da jornais locais que a opinião pública tinha
Usina São João avançou, passando a se sido manipulada pelo movimento. A
chamar as Terras Ocupadas de Zumbi dos UDR e a TFP chegaram a organizar um
Palmares, em homenagem ao célebre líder movimento intitulado “SOS Fazendeiro”,
quilombola. Com o apoio da Prefeitura alertando os proprietários rurais
que distribuiu lonas e cestas básicas para fluminenses da ameaça do MST na
os acampados, além do fornecimento de região. Isso não foi suficiente para
professores para proferir aulas aos filhos impedir o presidente Fernando Henrique
dos acampados, os sindicatos urbanos e de assinar o decreto de desapropriação de
os militantes estudantis oriundos das 12 de outubro de 1997, numa das
universidades também se somaram aos ocupações mais bem sucedidas realizadas
sem-terra, enquanto o Judiciário pelo MST.
apreciava o pedido de desapropriação. As
lideranças do MST conseguiram obter No ano de 2002, o antigo Assentamento
uma audiência com o presidente da Nova Ramada, no município de Júlio de
república na época, Fernando Henrique Castilhos, no Rio Grande do Sul,
Cardoso, que elogiou o caráter pacífico da planejado e organizado pelo MST 14,
ocupação. Enquanto isso, os adversários também relevou o sucesso do emprego da
do movimento, entre eles a UDR, ocupação como meio de exercício do
defendiam a intervenção da Polícia
Militar, para desmontar o acampamento, 14
BUZANELLO, José Carlos. Direito de
resistência constitucional. Rio de Janeiro: Lumen
13
Ibid, p. 65-68. Juris, 2006, p. 315.

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protesto e do direito de resistência, como recorrentes, requerendo a intervenção


forma de atingir suas reivindicações por célere do INCRA, valendo-se das
reforma agrária. Para se ter uma ideia, até invasões como sinal de alerta para o
1989, antes da ocupação, a fazenda Nova início de uma interlocução com o poder
Ramada era considerada improdutiva, político para o problema da reforma
utilizada somente como pasto para agrária. Por outro lado, os proprietários
criação de gado. Com a ocupação e de terras valem-se de três meios para
posterior desapropriação, hoje o recuperar suas terras ocupadas pelos sem-
assentamento produz os mais variados terra: uso da força, negociação ou ações
produtos agrícolas, principalmente soja, judiciais15. A legislação, através do artigo
milho, feijão e frutas, além da criação 184 da Constituição, a Lei nº 8.629/1993,
bovina, suína, aves e laticínios. Cerca de que dispõe sobre a função social da
cem famílias cuidam da produção, cada propriedade e a Lei Complementar nº
uma possuindo renda própria, além das 76/1993, que trata do procedimento
escolas instaladas acolherem 125 crianças especial de desapropriação de imóvel
que têm aulas em salas bem equipadas e rural para fins de reforma agrária, é
em boas condições de uso. As famílias de utilizada pelos principais atores sociais
agricultores residem em moradias com envolvidos nos conflitos fundiários no
água, luz, antenas parabólicas e carros em Brasil: o poder Executivo, o Judiciário,
suas garagens e são organizadas proprietários de terras e os sem-terra.
politicamente em torno de assembleias,
com coordenações eleitas periodicamente O Judiciário é o espaço privilegiado, no
em sistema de rodízio. âmbito do sistema jurídico, onde se
debruçam nos tribunais os principais
O que interessa nesse mosaico de lutas conflitos e tensões oriundos das relações
que representa as ações do MST é que, de agrárias, quando se buscam soluções
um lado, esse movimento social atua normativas, no âmbito do ordenamento,
conforme táticas e mecanismos próprios, para situações como as ocupações de
privilegiando as ocupações de terra como terra. Em alguns casos, são concedidas
forma de alertar o poder público para liminares para reintegração de posse aos
problemas sociais emergenciais e 15
BUZANELLO, Op. cit., p. 316.

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seus proprietários, como também órgãos competentes para que aconteça,


reconhecem os tribunais as ocupações de manifeste-se historicamente.
terra como justas e legítimas, como na
decisão do Superior Tribunal de Justiça Reivindicar por reivindicar, insista-se, é
em habeas corpus favorável aos líderes direito. O Estado não pode impedi-lo. O
dos sem-terra no Pontal do modus faciendi, sem dúvida, também é
Paranapanema, em São Paulo, conforme relevante. Urge, contudo, não olvidar o
se vê em parte do voto proferido pelo princípio da proporcionalidade, tão ao
ministro Luiz Vicente Cernicchiaro: gosto dos doutrinadores alemães.

A Constituição da República dedica o A postulação da reforma agrária,


Capítulo III do Título VII à Política manifestei em Habeas Corpus anterior,
Agrícola e Fundiária e à Reforma não pode ser confundida, identificada
Agrária. Configura, portanto, obrigação com esbulho possessório, ou a alteração
do Estado. Correspondentemente, direito de limites. Não se volta para usurpar a
público, subjetivo de exigência de sua propriedade alheia. A finalidade é outra.
concretização. Ajusta-se ao direito. Sabido, dispensa
prova, por notório, o Estado vem retendo
Na ampla arca do direito de cidadania, a implantação da reforma agrária.
situa-se o direito de reivindicar a
realização dos princípios e normas Os conflitos resultantes, evidente,
constitucionais. precisam ser dimensionados na devida
expressão.Insista-se. Não se está diante de
A Carta Política não é mero conjunto de crimes contra o patrimônio. Indispensável
intenções. De um lado, expressa o poder a sensibilidade do magistrado para não
político da sociedade, de outro, gera colocar, no mesmo diapasão, situações
direitos. jurídicas distintas16.

É, pois, direito reclamar a implantação da


reforma agrária. Legitima a pressão aos 16
Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº
5.574/SP. Relator: Ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro.

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Ora, como pode se observar em MST como meras ações delituosas,


determinados julgados, a questão da plenamente tipificáveis entre as situações
reforma agrária é o grande vetor das penais, como se reivindicações sociais se
ocupações de terra no país, promovidas transformasse em caso de polícia. Em
pelo MST, constituído num legítimo certas situações de ocupações de terras,
movimento social por excelência, dotado mormente em ações penais movidas pelo
de legalidade na sua criação, organização Ministério Público contra representantes
e funcionamento, e se tornando um desse movimento social, as atividades dos
movimento que se vale da liberdade de sem-terra são descritas como práticas
expressão, constitucionalmente delituosas, inseridas no rol de riscos não
assegurada, para defender as ocupações permitidos pelo subsistema penal. Muitas
de terra, tidas por seus adversários como dessas atividades constituem-se em
meras invasões, como forma de exercer legítimos atos de resistência, que incluem
uma bandeira de resistência e de luta, na paralisações, protestos e bloqueio de ruas
busca de reconhecimento de direitos. Os e estradas, muitas vezes brutalmente
oponentes do movimento insistem em reprimidos pela polícia, ou considerações
classificar as condutas dos integrantes do ilegais pelos órgãos estatais.

Forma de Mobilização Nº de Tipos de Tipo de


Municípios Data
dos Trabalhadores Pessoas Trabalho Reivindicação
Bloqueio da BR.316-Usina Cultivo de 13º salário
Atalaia 22/12/2011 1.000
Uruba cana-de-açúcar atrasado
Bloqueio BR 101 e BR
Col ônia Cultivo de Pagamento de
416-Destilaria Po rto 07/11/2011 200
Leolpodina cana-de-açúcar salários
Alegre
Direitos de FGTS
Bloqueio BR 101 na Usina Cultivo de
Coruripe 08/02/2011 1.000 e seguro
Guaxuma cana-de-açúcar
desemprego
Bloqueio AL 116-Usina Cultivo de Contra o Contrato
Penedo 17/02/2011 2.000
Paisa cana-de-açúcar Safra
Protesto na Usina Santa Cultivo de Atualização
Rio Largo 14/03/2011 500
Clotilde cana-de-açúcar salarial
Teotônio Bloqueio da BR 101 Usina Cultivo de Questões salariais
05/01/2011 1.000
Vilela Seresta cana-de-açúcar e adicionais
União dos Bloqueio BR 104 Usina Cultivo de Direitos salariais
04/04/2011 100
Palmares Laginha cana-de-açúcar atrasados
União dos Bloqueio BR 101 Usina Cultivo de Direitos salariais
02/06/2011 100
Palmares Laginha cana-de-açúcar atrasados
Paralisações e movimentos de protesto organizados por trabalhadores rurais em mun icíp ios de alagoas,
região nordeste do brasil, no ano de 2011 Fonte: idem.

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No decorrer deste estudo, o que parece serem resolvidos; o que torna bastante
ficar demonstrado é que nunca antes a problemática a questão da manutenção do
racionalidade do direito penal ficou tão princípio da democracia, num Estado
comprometida diante de um avanço Constitucional de Direito, como se vive
punitivo, no que tange às soluções hoje na realidade brasileira.
jurídicas empregadas para problemas
sociais pendentes na realidade brasileira, O modelo de segurança colombiano
como a questão da reforma agrária e a diante das FARC e a repressão aos
desigualdade social no meio rural. Não movimentos sociais no Brasil
obstante a previsão constitucional acerca
da função social da propriedade, desde a O modelo de segurança adotado pela
promulgação da Constituição de 1988 até Colômbia a partir de 2002 revelou uma
hoje, a utilização de táticas que levam em aliança implícita entre os setores
conta a ocupação de terras como meio de paramilitares da sociedade colombiana e
protesto e exercício da reivindicação seu corpo político, numa plena
social como direito de resistência, tem materialização do conceito de inimigo
sido mal entendida por juristas e trazido por Jakobs, agora traduzido na
aplicadores do direito, uma vez que as forma da figura do terrorista, e o
pressões exercidas pelo sistema reconhecimento como tal de integrantes
econômico e pelo sistema político, ainda da organização guerrilheira intitulada
comprometem por demais as decisões FARC (Forças Armadas Revolucionárias
havidas no interior do sistema do direito. da Colômbia). Independente do quão
Importante notar como as rebeliões vago e aberto seja o tipo penal que defina
populares, capitaneadas por movimentos o que é terrorismo, Jakobs defende que a
organizados, mesmo numa sociedade pena, num Estado de Direito, não se
democrática, no atual estágio de aplica ao terrorista, ao comentar o Código
desenvolvimento das relações sociais no Penal Alemão:
Brasil, ainda são vistas como fator de
alarma e, para alguns, como momento “embora a perturbação da segurança
fomentador de perigos, que necessitam da pública somente possa ser distinguida de
intervenção repressiva do Estado para forma relativamente difusa, fazem-se

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necessárias cominações penais mais acerca da fidelidade à norma, ele defende


severas, para evitar ações mais agressivas, a tese de que o terrorista, por sua recusa
pois somente o Direito Penal – mas não o em adotar um comportamento fiel ao
Direito Policial, competente para repulsa direito, viola todas as expectativas acerca
de perigos propriamente ditos – pode de qual deveria ser a conduta correta, e
estilizar os responsáveis pela associação desta feita, prejudica uma eficácia jurídica
perigosa em agentes, mais precisamente que tem que ser necessariamente efetiva,
agentes nos termos do art. 129ª do Código a fim de não atingir a segurança do
Penal, congelando-os por longo tempo sistema do direito. Em outras palavras:
com a prisão preventiva e a prisão para o terrorista, a exclusão definitiva.
permanente” 17.
Se for procurado um conceito de
Jakobs entende que a contaminação do terrorismo ou terrorista, Hobsbawn define
direito penal por um direito policial está o terror como uma faceta típica da
sujeita a críticas, mas nem por isso ele sociedade e do Estado modernos, surgido
descarta essa contaminação. Pelo no processo histórico de construção da
contrário, por entender que a finalidade democracia no Estado liberal, em
do Estado de Direito não é o de contraposição ao autoritarismo vigente
possibilitar a maior segurança possível de em Estados ditatoriais, a partir da
bens (a norma penal tutela pessoas e não transformação de uma generalizada
bens), mas sim o de providenciar a violência social em violência
18
eficácia efetiva de um direito, onde a política. Assim, movimentos sociais
figura do terrorista é vista como aquele cujas atividades são postas na
que não oferece um alicerce cognitivo clandestinidade, que se valem da
para sustentar uma expectativa normativa, violência na prática de seus atos, podem
e, por isso, deve ser punido de forma ser classificados como terroristas e
diferenciada. Como Jakobs opera seu ensejar medidas punitivas de natureza
conceito de direito e sociedade dentro de bélica, da mesma forma como são
um quadro geral de expectativas sociais
18
HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia
17
JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo. e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.54. 2007, p.124.

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tratados os inimigos de Estado. Para o vidas, atingidas no fogo cruzado entre


Estado o terrorista é, sobretudo, um militares, paramilitares e guerrilheiros.
inimigo, um estranho não convidado ou
não integrado ao pacto social, a quem, Atenta-se para o fato de que o Plano
conforme desejam autores como Jakobs, Colômbia foi criado sob o pretexto de se
deve ser destinada uma medida de estabelecer uma política criminal para
segurança para que seja excluído do combate ao narcotráfico que envolvesse a
convívio social e assim não afete a participação de efetivo bélico não só do
estabilidade do sistema. próprio país, mas também com a
colaboração militar dos Estados Unidos,
É sob a lógica de se punir o terrorista, tendo em vista as enormes toneladas de
colocado como alvo de uma ação bélica, droga que após seu refino, eram enviadas
que no ano 2000 adotou-se o Plano para a América do Norte, um dos
Colômbia, graças a uma aliança principais consumidores globais de
financeira e militar entre a Colômbia e os cocaína. Sob o revestimento desse
19
Estados Unidos. A partir desse acordo modelo de intervenção penal, sobretudo
entre nações, em cinco anos, a Colômbia com a “doutrina Bush” e a ascensão ao
recebeu uma ajuda financeira de cinco poder do presidente Álvaro Uribe, dobra-
bilhões de dólares, tornando-se o país se o orçamento militar do Estado policial
colombiano o terceiro beneficiário do colombiano, além de se propiciar uma
mundo dos EUA no fornecimento de proliferação dos grupos paramilitares,
recursos para o armamentismo de um responsáveis por uma política de
Estado policial, após Israel e o Egito. Sob extermínio e violação de inúmeros
o pretexto de se sofisticar uma política direitos fundamentais, com a prática de
criminal de “guerra às drogas”, iniciou-se torturas e execuções sumárias.
um périplo de caçada a terroristas com
objetivos militares de se eliminar a O paramilitarismo com a formação de
guerrilha, sob o custo de milhares de milícias armadas, como produto típico de
uma sociedade de risco e de uma cultura
penal de emergência, tendo em vista que
19
PÉCAULT, Daniel. As FARC: uma guerrilha o emprego da força e violência contra
sem fins? São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 95.

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inimigos são vistos como uma combater o domínio das FARC, em parte
necessidade, vê seus correlatos não do território sujeito a sua intervenção.
apenas na experiência colombiana, mas Atualmente essas organizações se
muito na formação de milícias formadas constituem de formas diversas, desde
por policiais ou ex-policias no Brasil, no milícias rurais ou empresas de segurança,
exemplo do Rio de Janeiro, como também até a formação de pequenos grupos de
na formação de exércitos particulares, mercenários, contratados a soldo da
mercenários pagos por empresas privadas, iniciativa privada 20. Assim como na
como é o caso da norte-americana Colômbia, nas regiões ocupadas pela
Blackwater, em plena atividade num FARC, houve um incentivo do governo à
Iraque ocupado militarmente. Não formação desses grupos na resistência
obstante a existência de efetivos policiais contra a guerrilha, que acabaram por se
uniformizados, responsáveis pelo constituir em organizações criminosas, no
patrulhamento e policiamento ostensivo, Brasil, em capitais como o Rio de Janeiro
em todas essas regiões o que se percebe é houve certa tolerância do governo local
o advento de um novo modelo de fluminense quanto ao surgimento e
segurança, alicerçado em diretrizes desenvolvimento das milícias privadas,
políticas de um Estado comprometido formadas em sua maioria por integrantes
com soluções imediatistas acerca da nova das polícias, residentes nas comunidades,
criminalidade global, como o no combate a traficantes, que acabaram
narcotráfico, o crime organizado e o por se transformar em quadrilhas e
terrorismo, mesmo que à revelia dos bandos de criminosos que vivem graças à
dispositivos constitucionais garantidores prática de venda de proteção, controle de
de direitos. sinais de televisão a cabo e no
fornecimento de abastecimento de água e
O paramilitarismo colombiano é um gás. Tanto os paramilitares colombianos
fenômeno social que surgiu na Colômbia como os brasileiros possuem braços nos
desde a década de oitenta do século poderes institucionalizados, com
passado, e tem suas raízes na formação de representantes clandestinos no Poder
organizações de autodefesa, autorizadas Legislativo, e sob a lógica da autotutela
pelo governo colombiano, a fim de 20
PÉCAULT, Daniel. Op.cit.p.97.

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violenta, contribuem ainda mais para as Salienta-se que a forma de criminalidade


irritações do sistema jurídico-penal, a exposta hoje com o novo período de
partir de uma intervenção bélica em globalização, tal como o crime
problemas criminais (sobretudo o organizado, tem seu pressuposto histórico
narcotráfico). no desenvolvimento do fordismo como
forma de regulação de indivíduos por seu
O modelo colombiano, exortado nas aproveitamento produtivo na atividade
políticas nacionais punitivas pelos estados econômica, transformando-se num
da federação, a partir de suas secretarias instrumento de controle social com
de segurança, tomando como referência a repercussões na seara penal. Se o
bem sucedida experiência da cidade de fenômeno da expansão punitiva e
Bogotá no controle da criminalidade e da separação entre cidadãos e inimigos pode
violência, não revela em suas linhas ser recorrente na América Latina tanto no
iniciais o verdadeiro propósito do sistema ambiente urbano onde prosperam grupos
penal na repressão daqueles indivíduos paramilitares ou milícias como no Rio de
tidos como indesejáveis, mas sim se Janeiro e paramilitares nas cidades
apresenta como estratégias cientificistas colombianas, também o mesmo ocorre
inovadoras de controle do fenômeno quanto ao emprego de uma severa
criminal, a exemplo do surgimento das intervenção bélica a grupos guerrilheiros
Unidades de Polícia Pacificadora-UPPs, como as FARC na Colômbia e contra
modelo penal experimentado pelo movimentos sociais como o MST, na área
governo do estado do Rio de Janeiro, a rural. Em ambos os casos, graças ao
fim de restabelecer o controle da polícia discurso midiático, tanto integrantes do
sobre os morros cariocas, outrora grupo guerrilheiro colombiano como
ocupados por traficantes21. militantes sem-terra foram estigmatizados
como “terroristas”, por diversos veículos
de comunicação, ensejando a aplicação de
dispositivos penais de natureza bélica,
21
TARDÁGUILA, Cristina. Polícia,câmera e que propunham intervenções severas
ação:como as Unidades de Polícia Pacificadora
ocuparam dez favelas e todo o noticiário do Rio. quanto a supostos inimigos do Estado de
Revista Piauí.Rio de Janeiro: Editora Alvinegra,
nº 47, agosto 2010, p.56.

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Direito vigente e fatores de risco para a brasileira desde a formação das Ligas
segurança nacional. Camponesas até o surgimento do MST.

Entretanto, urge salientar as semelhanças Um diferencial da ação política


quanto à origem e as diferenças quanto as desenvolvida pelas FARC, e que aí
táticas de organizações como as FARC e denota sua diferença abismal com a
movimentos sociais como o MST. Ambos estruturação do MST, é que na Colômbia
tem sua origem no campo, entre o processo político foi mais dramático
trabalhadores da zona rural, pelo trauma com a morte do carismático
inconformados com sua condição social líder político de esquerda, Eliecer Gaitán,
de excluídos do processo de produção em 9 de abril de 1948, e a reação popular
pela ausência de reforma agrária e seu com a formação com o recrudescimento
alijamento da produção agrícola, da violência estatal no governo
orientados por um programa doutrinário colombiano, face o fim prematuro de um
de inspiração marxista-leninista. Em período populista de lideranças históricas
termos de desenvolvimento histórico, as como Gaitán na Colômbia, que viriam a
FARC tiveram seu início nos movimentos surgir e prosperar no cenário político de
agrários de ocupação desordenada de seus países, como Perón na Argentina e
terras, devido ao atraso do Estado em Vargas no Brasil. Foi um conjunto de
estabelecer uma regulamentação do setor fenômenos ocorridos na Colômbia
fundiário.22A formação de latifúndios chamado de La Violencia que
com a dominação expressa de setores proporcionou o surgimento de uma
mais bem aquinhoados da sociedade com organização guerrilheira como as FARC.
a centralização de terras, produziu Tanto conservadores como liberais
conseqüentes conflitos e litígios quanto à passam a resolver suas contendas
posse da terra e a necessidade de uma políticas por meio de atos violentos,
reforma agrária, o que muito se formando grupos armados que disputam a
assemelha, inicialmente, ao processo aquisição do poder, proporcionando o
político de se discutir alternativas para o surgimento de movimentos rebeldes em
campesino, como ocorreu na realidade áreas tradicionamente convulsionadas por
22 conflitos agrários e propensas à difusão
PÉCAULT, Daniel. Op, cit.,p.20.

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da ideologia comunista 23. Durante as estatal para uma transformação das


décadas de cinqüenta e sessenta do século relações sociais no campo e uma
passado esse conturbado período político superação da estrutura agrária existente.
serviu como embrião para a construção No período da ditadura os movimentos
das FARC. Em 1966 o grupo é sociais foram fortemente reprimidos,
oficialmente formado, e sob a liderança contando com o expressivo apoio das
de Manuel Marulanda Vélez e Jacobo elites latifundiárias. Apesar disso, no
Arenas inicia suas ações armadas, que governo militar foi aprovada uma lei de
culminariam com o status que hoje possui reforma agrária destinada à colonização
o movimento, diante do desenvolvimento da região da Amazônia, que, se não
de uma criminalidade voltada para o modificava as relações existentes no
narcotráfico, e que corresponde ao campo, ao menos permitia uma tímida,
período de flexibilização econômica do porém possível, organização dos
capitalismo e surgimento do estado defensores da reforma agrária, como
posterior da modernidade, já comentados integrantes da CONTAG (Confederação
nos capítulos anteriores desta tese. Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura, controlada pelo governo),
No Brasil, movimentos sociais surgidos integrantes da Igreja e membros do
no campo com a defesa da reforma partido de oposição ao regime militar.
agrária aparecem na região nordeste, nos Com a formação de uma rede de
anos cinqüenta 24. Na década seguinte sindicatos de trabalhadores rurais,
esses movimentos foram crescendo, abrigados pela CONTAG na década de
culminando no primeiro decreto nacional setenta, no início da década seguinte
sobre reforma agrária, no governo do presenciou-se um novo ciclo de
presidente João Goulart, que terminou por mobilizações de trabalhadores, agora
ser deposto do poder pelo golpe militar de organizados sob o leque de sindicatos
1964, tornada sem efeito a iniciativa rurais e com apoio de sacerdotes
progressistas encontrados no meio
23
Ibid.,p.24. religioso, que debatiam temas agrários.
24
CARTER, Miguel (org.). Combatendo a
desigualdade social: o MST e a reforma agrária Portanto, já se assinala aqui uma brusca
no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.36- diferença de surgimento, formas de
37.

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organização e estrutura dos movimentos conflitos surgidos com a ocupação de


rurais no Brasil, em comparação com as terras, tendo como adversários principais
lutas campesinas no território os latifundiários e tendo o Estado como
colombiano. No sul do Brasil, onde esses principal destinatário de suas
movimentos emergiram com força, a reivindicações, na qualidade de tutor
degradação do regime militar e o advento institucional do movimento. Envolvidos
da ruptura democrática coincidiram com por uma forte orientação maoísta, com
o fortalecimento das lutas pela reforma bases numa doutrina marxista-leninista
agrária, até que o MST foi instituído adaptada à realidade do campo, os
nacionalmente em 1984. Atualmente, o fundadores das FARC tinham como
movimento possui cerca de 1,14 milhão objetivo à ruptura institucional, com a
de membros, 2000 assentamentos destruição do Estado burguês e sua
agrícolas, uma rede de 1.800 escolas superação pelo Estado socialista,
primárias e secundárias, uma escola de enquanto que os líderes do MST (apesar
nível superior, 161 cooperativas rurais e de muitos apresentarem uma formação
140 agroindustriais, além de vários meios marxista) atêm-se tão somente ao
de comunicação 25. atendimento de reivindicações que não
visam modificar o modelo de sociedade
No espectro ideológico, as diferenças dominante, mas sim adequar seus
entre as FARC e o MST também são integrantes a um novo quadro social de
acentuadas, tendo em vista que o primeiro consumo e inclusão, com a transformação
grupo se estruturou enquanto uma de sem-terras em autênticos proprietários
organização guerrilheira, de caráter rurais, por meio da redistribuição da
clandestino, à revelia da legalidade, renda fundiária. Desta forma, desfaz-se o
dedicada ao combate, tendo como argumento midiático acerca da
adversário principal o Estado; enquanto periculosidade da existência desse
que o segundo surgiu como movimento movimento e elimina-se a distinção entre
social de reivindicação de direitos no cidadãos e inimigos, tendo em vista que a
marco da legalidade, que se armou aplicação de um suposto Direito Penal do
paulatinamente devido aos embates e Inimigo na realidade do MST seria
25 completamente fora de sentido.
CARTER, Ibid.p.38.

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O próprio conceito de terrorista e ou manifestações de rua, quanto na ação


terrorismo, como já foi visto, torna-se do Estado em controlar distúrbios.
emblemático do quanto à aplicação de tal Portanto, o emprego da violência
denominação aos integrantes de um enquanto um critério para se qualificar
movimento social como o MST é uma organização como terrorista é
inoportuna, tendo em vista que a totalmente inócuo e inapropriado para se
violência política no século XX não se discutir um fenômeno que, em termos de
destaca da violência em geral 26. Segundo discurso, merece essa denominação.
Hobsbawn, a relação dicotômica entre
violência e não-violência ganhou maior FARC e MST são muito além de duas
respaldo em Estados fortes e estáveis siglas estatuídas conforme uma espiral da
onde se desenvolveram as democracias violência convulsionada pela
liberais. De lá, onde o monopólio desigualdade e conflitos sociais. Ambas
legítimo da força é concentrado no nascem como produto de revoltas
Estado, é que se pôde ver na camponesas, e essas revoltas não são tão
desproporcionalidade na intervenção do ou mais violentas do que muitas
Estado em desarmar a população e até manifestações sociais onde o exercício do
que ponto nos últimos anos a violência protesto e da resistência leva à prática de
vem aumentando como o atos considerados violentos, mas que nem
desenvolvimento da criminalidade. O que por isso atentam para a desestabilização
Hobsbawn detecta com perfeição é que o de um Estado de Direito ou para a
pensamento liberal foi incapaz de modificação de um regime vigente, como
reconhecer que, em qualquer sociedade, a se o próprio sistema do direito fosse tão
política emprega algum tipo de violência, frágil como uma peça de porcelana ou
e como foi já dito conforme a análise uma bola de cristal.
formulada por Clam, é essa violência que
inaugura o direito. A violência pode se
manifestar desde simples piquetes, greves

26
HOBBSBAWN, Eric. Globalização,
democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 125.

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Atividade da
Municípios Nome do conflito Data Nome da vítima
vítima
Amazonas
Gleba Curuquetê/ Adelino Ramos
Lábrea 27/05/2011 Liderança
Linha 02Km (“Dinho”)
Pará
Fazenda de
Francisco Alves
Breu Branco Mariene Nerys e 03/03/2011 Liderança
Macedo
Darli
Comunidade de João Chupel
Itaituba 22/10/2011 Agente Pastoral
Mirituba Primo
Pedro Oliveira
Acampamento
Itupiranga 29/01/2011 Teixeira (Pedro Sindicalista
Planta Brasil
“Saraca”)
Jurandir Soares
Juruti Gleba Curumucuri 12/01/2011 Assentado
Nunes
Fazenda Valdemar Oliveira
Marabá 25/08/2011 Liderança
Califórnia Barbosa (Piauí)
Assentamento
Maria do Espírito
Nova Ipixuna Praia Alta 24/05/2011 Liderança
Santo da Silva
Pinhareira
Assentamento
José Claúdio
Nova Ipixuna Praia Alta 24/05/2011 Liderança
Ribeiro da Silva
Pinhareira
Assentamento
Herenilson Pereira
Nova Ipixuna Praia Alta 26/05/2011 Assentado
dos Santos
Pinhareira
P.A. Rio
Pacajá 30.04.2011 Nildo Ferreira Assentado
Bandeiras
P.A. Rio
Pacajá 30.04.2011 Adão Ribeiro Assentado
Bandeiras
Acampamento Obede Loyola
Pacajá 09.06.2011 Sem-terra
Esperança Souza
José Ribamar
Acampamento
Rondon do Pará 07.10.2011 Teixeira dos Liderança
Deus é Fiel
Santos (“Riba”)
Maranhão
Criança Awa-
Arame T.I. Arariboia 30.10.2011 Índio
Guajá
Júlio Luna da
Arame Citerna.Temasa 08.12.2011 Assentado
Silva
Centro do
T.A. Alto Turiaçu 31.03.2011 Tazirã Ka’apor Índio
Guilherme
Assentamento João Conceição da
Santa Luzia 24.09.2011 Assentado
Fiechal Silva
Cícero Felipe da
Santa Luzia P.A.Rosa Saraiva 06.02.2011 Silva (Cícero Liderança
“Patácio)
Serrano do Valdenilson Liderança
Quilombo Rosário 02.10.2011
Maranhão Borges quilombola
Serrano do
Povoado Portinho 07.11.2011 Delmir Silva Quilombola
Maranhão
Relação de pessoas assassinadas em conflitos agrários no Amazonas, Maranhão e Pará (região norte e
nordeste do Brasil) no ano de 2011
Fonte: Comissão Pastoral da Terra, em www....

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Para Hobsbawn, é a degeneração da valem do meio violento como forma de


violência política no surgimento do reataurar a integridade do sistema.
Estado moderno até o período atual Emprega-se a violência como resultante
globalizado que gera uma cultura do de um princípio da necessidade, pois sem
medo contra o terror, que acaba por ela a sociedade caminharia para o terror
sufragar a expansão punitiva 27, no da barbárie dos movimentos insurgentes
momento em que tanto grupos que se de rebelião e protesto. Só que o Estado se
insurgem contra o Estado, quanto o reveste do mesmo terror que pretendia
próprio Estado assumem que sua luta é combater.
tão justa que até a violência é legitimada
para se obter a vitória sobre o adversário. No Brasil, não obstante a previsão
Na concepção das tropas de elite dos constitucional da função social da
efetivos estatais o que vale é a tônica de propriedade, as normas que asseguram
combate e vitória sobre inimigos direitos fundamentais como a liberdade
armados, que por sua vez se insurgem de associação e reunião, e o exercício
contra a polícia, também munidos de suas livre do protesto, por meio da liberdade
armas como forma de questionamento do de expressão; percebe-se hoje o quanto
estado social vigente. É a barbárie que numa sociedade pretensamente
convive de mãos dadas com o democrática e com governos nacionais
totalitarismo, deixando rastros desde o comprometidos com o Estado de direito, é
período de ascensão dos nazifascimos e possível ver discursos criminalizantes,
que continua até hoje, em sociedades guiados pela emergencialismo e o alarma
pretensamente democráticas. A violência de um sentimento de insegurança
como necessidade é urdida para dentro do coletiva, e defensores de um rigor
âmbito do sistema jurídico, responsável punitivo quanto a movimentos sociais
pela legitimação de expectativas que se como o MST. A flagrante contestação do
movimento, e a pregação da saída por
27
Para Hobsbawn: “essa degeneração da violência uma via punitiva quanto a sua
política aplica-se tanto as forças insurgentes
quanto às do Estado. Ela resulta tanto da anomia organização chegou a ser defendida pelo
crescente da vida nos centros urbanos,
especialmente entre os jovens, quanto da candidato de oposição à presidência da
disseminação da cultura da droga e da posse república nas eleições de 2010, e pela
privada de armas” . Id,p.126-127.

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coligação que sustentou sua campanha tradicional, que estimula a economia no


política, afirmando que a vitória da meio rural. Outros teóricos, como o
candidata adversária serviria para filósofo Denis Lerrer Rosenfield, cujas
fomentar mais e mais invasões criminosas opiniões já foram citadas aqui neste
no campo, patrocinadas pelos militantes estudo, acirram os ânimos estremados do
do MST.Além disso, existe no país uma debate, pois entendem que organizações
claque intelectual que procura como o MST e as Comissões Pastorais da
desqualificar o movimento, desabonando Terra não passam de organizações
a conduta de seus integrantes, na tentativa criminosas ou revolucionárias, pois as
de esvaziar suas pretensões legítimas, acusa de “promover invasões de
como se fossem precárias ou sujeitas a propriedade, seqüestros, posse ilegal de
expedientes manipuladores. Alguns armas, desrespeito à lei e depredação de
desses autores como os sociólogos José propriedades”, além do “uso generalizado
de Souza Martins e Zander Navarro, no da violência’.
âmbito da sociologia, 28pregam,
respectivamente, que os integrantes do São esses discursos encontrados em
MST são manipulados por interesses setores da intelectualidade nacionais que
ideológicos e partidários de ativistas servem como fomento para o sistema dos
localizados na classe média, e que suas meios de comunicação, e a forma
reivindicações estão muito distantes das agressiva e ruidosa com que a mídia vem
verdadeiras demandas do homem pobre tratando as reivindicações de movimentos
do campo; enquanto que por outro sociais, tendendo a apoiar medidas
argumento, sustenta-se o argumento repressivas e a via da criminalização, num
histórico de que a luta pela reforma franco suporte à expansão punitiva. A
agrária no país já passou, e que o introdução da notícia, subsidiada por
processo de urbanização e o reportagens, entrevistas, ensaios e
desenvolvimento do agronegócio no meio publicações de artigos em jornais e
rural destituíram a razão de ser da revistas, estimulando um olhar mais do
reforma agrária, uma vez que é o que crítico, mas acintoso em relação aos
agronegócio e não a atividade agrária movimentos sociais, acaba por produzir
28 irritações no âmbito do sistema jurídico e
CARTER, Op. Cit., p. 497.

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na via pela qual o Estado canaliza sua possuir traços reaçonários e totalizantes, 29
violência por meio de seu aparato no sentido de que, historicamente, foram
repressivo. Do dia para a noite geram-se se formando novas relações entre os
inimigos, terroristas e indesejáveis a grupos sociais, movidas por
serem combatidos pelo Estado, em prol demonstrações emotivas de medo,
de uma sociedade “livre”, conforme o indignação e hostilidade em relação ao
jargão liberal dos argutos defensores de problema do crime.
um componente ideológico neoliberalista.
Está preparado o cenário para a Garland constata que as classes sociais
propagação da violência. que outrora apoiavam políticas de bem-
estar social, seja por estarem movidas por
Estado policial ao invés de Estado social, interesses próprios ou por uma simples
tratamento de reivindicações sociais solidariedade de classe, passaram a rever
legítimas por terra e trabalho seu apoio a tais políticas, à medida que
considerados como caso de polícia e ação setores da classe média passaram a se
de criminosos que promovem invasões de sentir atingidos pelas mudanças sociais
terra e destruição de propriedades. Nesse ocorridas com as políticas previdenciárias
discurso punitivo de criminalização do destinadas aos pobres. Medidas
MST é possível sinalizar como as assistencialistas e a intensa preocupação
mudanças econômicas trazidas pela pós- com a ressocialização e manutenção das
modernidade e a manutenção de uma garantias de indivíduos das classes mais
estrutura social anacrônica, mantida por baixas envolvidos em práticas delituosas,
um conservadorismo presente no discurso passaram a ser vistas como um luxo
dominante sobre a criminalização, oneroso destinado a quem trabalhou
culminou com a expansão punitiva e a menos, ou se esforçou pouco para obter,
repressão ativa e consciente dos no âmbito da livre concorrência a tão
movimentos sociais. Garland, por sua sonhada aquisição de riquezas, defendida
vez, analisa que a reação ao chamado pela ideologia liberal. As críticas dos
“prevendiciarismo penal” passou a
29
GARLAND, David. A cultura do controle:
crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p.
182.

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componentes desse segmento social vão um fundamentalismo no mercado, na fé


desde o medo de que os antigos excluídos intransigente na livre concorrência, sem
venham a se juntar a eles na mesa de as amarras do Estado, assim como na
jantar, até de que os tributos pagos pela manutenção da desigualdade social como
classe média sirvam apenas para sustentar parte das regras do jogo do livre mercado.
criminosos nas cadeias. O argumento é Concomitantemente com esse aspecto
que o custo dos pobres não inseridos no econômico, no plano político o
mercado torna-se tão caro no Estado de neoconservadorismo introduziu uma
bem-estar, que não é mais compensador visão antimoderna sobre questões
que os contribuintes que trabalham relacionadas a valores apegados à
paguem por esse custo. tradição, ordem, hierarquia e autoridade.
Reinaugura-se um conservadorismo
Percebe-se, portanto, que a expansão moral graças à influência religiosa e ao
punitiva e a criminalização de pensamento de intelectuais
movimentos sociais como o MST segue neoconservadores. São esses pensadores,
uma tendência que acompanha a pós- como Rosenfield, apegados a temas como
modernidade de firmar uma política a responsabilidade individual e a
criminal baseada no neoliberalismo, no disciplina, que estabelecem discursos
aspecto econômico, e no punitivos baseados na ordem e no rígido
neoconservadorismo, no aspecto controle na manutenção da disciplina,
político. 30A atual antipatia com que como forma de se estabelecer a harmonia
setores da sociedade e do poder político e a coesão social. Ocorre que esse
tem em relação ao movimento, controle disciplinar que deve ser exercido
relacionam-se com a tentativa neoliberal pelo Estado acaba se dirigindo contra os
existente desde os anos oitenta do século mais pobres, tolhendo-se qualquer
passado, a partir dos governos norte- movimento de rebeldia ou manifestação
americanos e britânico, de difundir social como um ato criminoso. Com o
globalmente uma política de reversão das neoliberalismo e o neoconservadorismo,
soluções empregadas pelo Estado de bem- alia-se, assim, liberdade econômica com
estar social, no sentido de se estabelecer controle social.
30
GARLAND, Ibid.,p. 216.

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A disciplina moral requerida pelos “cidadãos de bem”), mas, em


neoconservadores, e o apego aos valores contrapartida, fragilizou ainda mais
tradicionais, tais como a ordem (o demais setores mais frágeis da
trabalhador ordeiro é aquele que não comunidade, sujeitos a um desemprego
reclama e que trabalha, esforçando-se crônico, e propensos a estabelecer novas
para sobreviver) a hierarquia e o respeito formas de relação social, seja aderindo
à autoridade (a rebelião e o protesto como propriamente ao crime, seja sendo
exercício da desobediência e não de um taxados de criminosos, ao integrar
direito), são direcionados aos excluídos movimentos de questionamento e
socialmente ou do mercado de trabalho, rebelião, como ocorre no caso dos sem-
às comunidades marginalizadas e não a terra, tidos como principais destinatários
setores inteiros da sociedade. A disciplina da violência institucional através da
está voltada para os inimigos e não para intervenção repressiva do Estado.
os cidadãos, ou, como se aproveitou
Jakobs da distinção formulada por Pergunta-se se existe uma alternativa
Luhmann entre indivíduo e cidadão, o constitucional ao fenômeno da expansão
rígido controle disciplinar está voltado punitiva, propagadora da violência
para os inimigos, e não para os cidadãos institucional do aparelho repressivo do
já disciplinados. O inimigo é o terrorista, Estado, mormente no que tange aos
aquele que não está comprometido com o conflitos no campo. A criminalização dos
pactum societatis e que não desfruta dos movimentos sociais como reação a um
mesmos valores tradicionais e apego à suposto sentimento de insegurança
ordem e a hierarquia como pressupostos coletiva transmutado em terror, sob o
de sua formação moral de cidadão, fundamento da necessidade, pode vir a
segundo a lógica repressiva encontrada na colidir com princípios constitucionais
teoria de Jakobs. O desmanche do como os da liberdade e da dignidade,
31
“Estado babá” pregado pelos neoliberais transversalizados entre o sistema jurídico
deu mais espaço para acumulação de e os demais sistemas sociais, a partir de
riquezas, num mercado desregulamentado aberturas cognitivas e acoplamentos entre
para alguns setores da sociedade (os ditos o político e o jurídico, a partir do texto
31 constitucional.
GARLAND, Ibid.,p.218.

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Ora, se for entendido que o sistema o recrudescimento dos discursos de lei e


jurídico-penal opera com seletividade no ordem e a necessidade de se combater
processo de tipificação de condutas, inimigos, como também pode relevar um
também é possível compreender que essa novo âmbito de eliminação ou redução de
seletividade mantém relação com a tipos penais, e a conclusão de que
abertura cognitiva do sistema jurídico e determinadas situações e casos não
de seus acoplamentos com seu entorno devem mais receber a pesada intervenção
social, a ponto de se discutir, se no punitiva de normas penais, mas sim de
estágio atual da modernidade, dentro do um reconhecimento normativo de direitos
processo recente de globalização, ao e garantias fundamentais, tais como o
mesmo tempo em que o subsistema penal direito ao trabalho, moradia e o exercício
se fecha autopoieticamente em sua do protesto e da rebelião, como
punibilidade, como ele pode se abrir supedâneo de princípios constitucionais
diante dos pluralismos no ambiente social que asseguram a liberdade de reunião e
e no reconhecimento e assimilação da associação.
32
contingência . O resultado disso pode
levar tanto a uma expansão punitiva com Talvez dessa forma seja possível resgatar
o direito penal de um perigo estado de
32
Sobre isso, pronuncia-se Teubner, resgatando irracionalidade no momento em que a
em parte a grande contribuição teórica da
sociologia do direito de Luhmann, focado nos aplicação racional da coerção imediata
sistemas sociais autopoiéticos, em relação com os diante da iminência da violação da norma
demais sistema de seus entorno a partir de
mecanismos de abertura e fechamento e aplicação da sanção, cede lugar a uma
operacionais. Para Teubner, tais fechamentos e
aberturas se dão por meio das chamadas política criminal de busca de inimigos a
“instituições de ligação”, onde o sistema observa a
partir de sua próprias comunicações como fatos e serem atingidos por um regime de
expectativas ocorridos no seu entorno, entendidos
sob a forma de contingências, podem se punibilidade que muito atenta para
transformar em operações do próprio sistema, tais direitos fundamentais,
como: reconhecer como jurídicas as ocupações de
terra e não como ilícitos penais contra o direito de constitucionalmente assegurados.
propriedade, por entender sua regularidade
constitucional enquanto exercício de um direito de
protesto, a ser reconhecido mediante o vislumbre
de um pluralismo jurídico a conviver com o
direito oficial.TEUBNER, Günther. TEUBNER,
Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade.
Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 85,

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Conclusão do quadro de desigualdade local, percebe-


se que estas acabam por implicar em
Por tudo o que foi exposto, pode-se confrontos violentos, que trazem à tona
chegar a algumas conclusões acerca de toda a intervenção punitiva do Estado.
realidades aparentemente distintas de dois Essa intervenção é caracterizada pelo
países latino-americanos com suas meio de conceitos empregados na teoria
especificidades históricas e culturais, penal, que levam a reforçar seletivamente
como Brasil e Colômbia. Observa-se que, estigmatizações já existentes nos
não obstante as diferenças, ambos são primórdios da formação do Estado
marcados por experiências econômicas e liberal-burguês: o camponês insurreto não
sociais que se traduziram numa passa de um inimigo, um terrorista a
organização irregular da distribuição de serviço da destruição ou enfraquecimento
terras agrícolas no país, resultando num do Estado de direito, no momento em que
aprofundamento da divisão de classes no se vale de organizações armadas para
meio rural, entre latifundiários de um lado defender seu direito a terra e trabalho,
e trabalhadores rurais do outro, tendo por como ocorreu na formação histórica das
consequência a emergência de conflitos FARC na Colômbia, e se dá
agrários, com luta armada e intervenção continuamente nos conflitos agrários
policial. entre militantes do MST, latifundiários e
integrantes das polícias, na realidade
Talvez muito em função de um passado brasileira.
autoritário comum, e pela semelhante
distribuição desigual de riquezas no Na observação das elites locais, emanam
âmbito das sociedades brasileira e opções conservadoras em duelo com
colombiana, agudizadas por um processo outras, mais progressistas, pois também
crescente de exclusão social e fazem parte da experiência política das
manutenção das diferenças entre ambiente lutas sociais desenvolvidas em torno da
urbano e rural, observa-se que tanto na terra, e no consequente confronto político
realidade do camponês brasileiro, quanto entre movimentos sociais associados às
de seus similares latino-americanos, nas lutas dos trabalhadores rurais com os
tentativas de organização e enfrentamento sucessivos governos que surgiram no

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Brasil e Colômbia no último século. Em Estado, com resultados trágicos para


relação ao governo colombiano, a opção ambos os lados, especialmente para os
conservadora esteve mais presente, guerrilheiros, com a perda de suas
reafirmando práticas de relação do principais lideranças. Apesar de
governo local com os projetos de nações anualmente ser anunciada a proximidade
outrora tidas como imperialistas, como os do fim da organização, com seu completo
Estados Unidos da América, aniquilamento pelo governo, através de
estabelecendo uma repressão aos uma pacificação forçada do campo pelo
movimentos sociais organizados e a emprego das armas (tema recorrente de
grupos clandestinos como as FARC, sob tantas campanhas eleitorais na Colômbia),
o slogan da política norte-americana de não se vislumbra uma dissipação imediata
Guerra às Drogas. No Brasil, com a vinda dos conflitos agrários no solo
do governo Lula, a relação do MST com colombiano, e nem a espiral da violência
o poder político apresentou traços de voltada para o ciclo do narcotráfico e
distensão e afrouxamento de conflitos, ao guerrilha, em confronto com organizações
mesmo tempo em que o novo governo paramilitares e latifúndio.
brasileiro, de orientação progressista
pouco inovou em termos de redefinir as Enquanto isso, no Brasil, as tentativas de
relações de poder de classe estabelecidas criminalização do MST esbarram na
no campo, ou de estimular mais agilmente maior legitimidade conferida a esses
profundas mudanças radicais nessas movimentos por parte do governo federal.
relações a partir de uma efetiva política Enquanto que na Colômbia é difícil uma
de reforma agrária 33. conciliação entre sublevados e governo,
no Brasil, a ascensão ao poder de
Na Colômbia, por sua vez, permanece a representantes do Partido dos
exclusão social nas grandes áreas rurais, Trabalhadores-PT (legenda
servindo trabalhadores rurais historicamente simpática ao MST), nos
despossuídos como eficiente exército de governos de esquerda dos presidentes
reserva a ser recrutado pelas FARC, Lula e sua sucessora, Dilma Roussef,
apesar das incessantes ações bélicas do apresentam um tom de abrandamento dos
33 conflitos com essa agremiação, em
MÉSZÁROS, Op. cit.,p.457.

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especial; apesar de manter uma dubiedade sociais consagrados constitucionalmente


conciliatória no que tange a estabelecer por meio do comprometimento
uma real ruptura com as condições governamental, no lugar de precipitadas e
anacrônicas ainda mantidas no campo, repressivas soluções criminalizantes,
que servem como obstáculo para uma talvez seja possível apontar novas e
reforma agrária real na realidade agrária menos pessimistas perspectivas para o
brasileira, ou preservar os interesses de desenvolvimento dos povos na América
uma elite rural, fortemente organizada por Latina, com avanços significativos no
meio de seus representantes no Congresso combate à desigualdade social, dentro de
Nacional, por meio de concessões à um ambiente e um espírito efetivamente
bancada parlamentar ruralista, em temas democráticos, algo jamais vislumbrado
relevantes, como modificação dos índices por esses povos, no seu passado recente
de produtividade no campo e exploração de opressão e colonização.
agrícola com preservação de meio
ambiente, na difícil votação do novo
Código Florestal.

De qualquer forma, tais movimentos


originados e desenvolvidos por meio das
lutas sociais agrárias permanecem vivos,
e com eles toda uma variedade de
militantes, que por meio das armas ou de
argumentos buscam soluções viáveis para
a redução e até mesmo eliminação das
desigualdades que já geraram tanto
desconforto e violência no campo, na
realidade de milhares, senão milhões de
camponeses. O Estado não pode mais
permanecer inerte diante disso, e, diante
da percepção de uma saída racional,
fundamentada na viabilidade de direitos

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Referências

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2006.
Carter, Miguel (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no
Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
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Gohn, Maria da Gloria, Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola,
2008.
Hobsbawn, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
Jakobs, Gunther. Direito penal do inimigo. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Meszaros, George. O MST e o estado de direito no Brasil. IN: CARTER, Miguel (org.).
Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo:
Editora UNESP, 2010.
Pécault, Daniel. As FARC: uma guerrilha sem fins? São Paulo: Paz e Terra, 2006.
Ribeiro, Ana Maria Motta. Sociologia do narcotráfico na América Latina e a questão
camponesa. In: Ribeiro, Ana Maria Motta; Iulianelli, Jorge Atílio. Narcotráfico e violência
no campo. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
Tardáguila, Cristina. Polícia, câmera e ação:como as Unidades de Polícia Pacificadora
ocuparam dez favelas e todo o noticiário do Rio. Revista Piauí.Rio de Janeiro: Editora
Alvinegra, nº 47, agosto 2010.
Teubner, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Tradução Dorothee Susanne
Rudiger e outros. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.

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