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Elio Assis

MALANDRO
NA LINHA
DO TREM

Uma história de amor e guerra

1ª edição
Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura
Deus permite a todo mundo
Uma loucura
Passa o domingo em família
Segunda-feira beleza
Embarca com alegria
Na correnteza.

Chico Buarque de Holanda

Mas em minha imaginação


Tudo é possível
Desde eu mesmo sendo um bom guerreiro
Até um cão de galho em galho.

LOAX

Malandro: Indivíduo esperto, vivo, astuto, matreiro.


Linha: Trincheira, entrincheiramento, frente de combate.
Trem: Comboio ferroviário.

Dicionário Aurélio
Malandro na linha do trem

O que vem por aí


Primeiro emprego.
Como comecei tentando ganhar a vida trabalhando e, claro,
incomodando muita gente com brincadeiras e grosserias.

Infância sem responsabilidade.


Relembrando as travessuras de criança quando tudo é uma
preparação para enfrentar a vida que vem com a idade, até
brincar na linha do trem.

Na bandidagem.
Os jovens não sabem para onde vão e alguns acabam se
metendo em grandes confusões e eu sou especialista nisso.

Meu sonho.
Todos sonham com o futuro, já que a vida é apenas um sonho
que logo acaba.

Guerra!
Sempre existe uma desculpa qualquer para fazer uma guerra
e tirar algo dos outros.

No quartel.
Chegou minha vez de ir para o exército e engordar as hordas
que vão atacar algum inimigo real ou imaginário.

Outra grande encrenca.


Novamente eu estava metido em uma grande encrenca, desta
vez dentro do quartel.

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Malandro na linha do trem

As meninas.
Finalmente o amor, o grande amor que nos faz voar sem ter
asas. Esse me fez voar pela janela sem asas mesmo.

Entrando na luta armada.


Quando alguém, como eu, tem um espírito aventureiro, vai
procurar mais encrenca e enfrenta inimigos bem armados.

A vida é um buraco.
Tentando me esconder depois de perder todas as lutas, acabei
por recriar minha coragem e voltei ao ataque sem medir as
consequências.

Prisioneiro!
De nada adianta a coragem quando o inimigo é muito mais
numeroso; agora é viver no campo de prisioneiros de guerra.

Na toca dos leões.


Ninguém me segura! Eu crio as minhas oportunidades de
fuga, porém tenho talvez a maior surpresa de toda minha vida.

Paz e liberdade.
Chega de lutas, guerras e brincadeiras, vou em busca de paz e
de amor.

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Primeiro emprego

Em casa todos me diziam “Vai trabalhar, vagabundo!” e eu


achei que era mesmo a hora de cair no mundo e procurar alguma
coisa para me distrair e ainda ganhar algum dinheiro. Para que
serve ter algum dinheiro? Para gastar com mulheres, ora! Quem
quer casar gasta com uma mulher só, pelo menos no início do
casamento; quem não quer, como é o meu caso, gasta com
todas, um pouco com cada uma.

Assim que eu contei ao meu pessoal essa resolução, a história


foi espalhada pelo bairro inteiro, e em menos de uma hora
começaram as velhotas vizinhas a me trazer notícias de mil
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Malandro na linha do trem

lugares onde estavam precisando de um rapaz para trabalhar em


escritórios, bares, lanchonetes, fábricas de roupas, postos de
gasolina e outras coisas nojentas do mesmo tipo. Preso o dia
todo em um escritório ou fábrica não é para mim, não; bar,
lanchonete, posto de gasolina até podem ser legais para
conhecer gente, principalmente meninas, mas também é
obrigatório ficar o dia todo no mesmo lugar.

Fui procurar por conta própria. Eu queria mesmo era ser


motobói, mas não tinha habilitação e nem moto. Afinal achei
minha vocação perfeita: babá de cachorros, aquele cara que leva
os cachorros das madames para passear e fazer coco na praça;
todas as meninas vão parar e comentar “Que lindo cachorrinho,
é de raça?” “Como é o nome dessa fofura?”. Passeio, conheço
gente, não fico preso em um lugar só e ainda ganho um
dinheirinho no final da semana. Logo aceitei o emprego sem
perguntar nada, nem quanto iria ganhar!

Na verdade eu tinha que ficar na loja todo fim de tarde, mas


era só uma horinha, até chegar o rapaz que ia buscar os cães que
haviam sido lavados e perfumados e levar de picape para suas
donas, depois era só fechar a loja e ir curtir a vida.

No primeiro dia me mandaram para duas casas da mesma rua


para buscar os cães que eu iria levar para rodar pelas praças do
bairro. A primeira dona era uma senhora de muita idade que me
entregou um cachorrinho pequeno, mais parecia um rato grande
e ela já foi fazendo muitas exigências.
- Se deixar ele fugir ou se machucar eu mato você; quando fizer
coco você tem que recolher e depois trazer neste saco de

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plástico para jogar no lixo aqui em casa; não deixe brigar com
outros cachorros; blá-blá-blá. Ah! O nome dele é Biscuí
“Biscuí”, isso lá é nome? Nem pra cachorro!

Na outra casa foi um menino que abriu a porta, jogou um


cachorro enorme pra cima de mim e bateu a porta na minha
cara. Esse tinha uma coleira com o nome, era “Hulk”.

Na praça o grandalhão me puxava e levava junto o pequeno,


achei até que ele é que estava nos levando para passear, mas o
problema foi quando ele resolveu correr atrás de uma
cachorrinha branca tipo poodle e nos levou todos para um
passeio involuntário pela grama, por cima dos bancos da praça,
até tropeçar em uma menina que estava sentada lendo uma
revista, ou livro, sei lá o que.

Ela era pequena e magrinha, tinha olhos cor de mel, usava


uma saia bem curtinha toda azul, e uma blusa branca com uma
frase escrita em letras pretas: "I love to be in love". E os
brincos? Enormes e prateados, uma sandália vermelha bem leve.

Não sei por sorte ou por azar, com o puxão dos cachorros
acabamos caindo todos por cima dela e o susto foi tão grande
que eu só vi uma revista pulando e uma saia voando. Pelo
menos isso valeu um papo muito agradável.
- Cai fora seu bobão, não sabe nem cuidar de seus cachorros!
- Desculpe o tranco, ainda bem que você é bem macia, nem me
machuquei.
- Você traz sempre seus cachorros aqui? - ela é quem veio com
papo furado!

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Depois dessa ficamos amigos e sempre nos encontrávamos


por lá, foi difícil explicar como eu tinha tantos tipos diferentes
de cães; eu menti dizendo que tinha uma associação para cuidar
de animais abandonados. Elas adoram esse tipo de pessoa, que
ajuda os animais.

Claro que nos encontramos mais vezes, sempre na praça e até


aconteceu um namoro, uns abraços e beijos, mas isso não
rendeu muito e ela acabou não voltando mais por lá, nem ao
menos para ver a cachorrada, sei lá, acho que mudou para China
ou para o Paraguai ou então foi estudar esgrima no Tibete.

Mas a melhor história mesmo era sobre o tal motorista que


levava os cães limpos e perfumados para suas donas. Era um
tipo bem estranho, falava pouco, parecia bem bobo e com pouca
cultura, o tipo exato para cair nas pegadinhas que nós
preparávamos para ele. Suas roupas eram mais estranhas que
ele: uma calça verde mais curta do que deveria, e era sempre a
mesma, uma barbicha bem rala no queixo e um boné sujo e
rasgado com a pala virada para trás. Era mesmo uma triste
figura.

Eu e mais outros funcionários resolvemos dar um susto no


motorista de cachorros. Um pouco antes da chegada dele nós
demos comida para os animais para que ficassem quietos; eu
liguei todos os secadores nas tomadas, mas antes desliguei a
chave geral da eletricidade, só se ouvia o barulho da cachorrada
mastigando os petiscos. Quando o motorista chegou estranhou a
escuridão e foi entrando devagar, tateando pelas paredes,
procurando o interruptor. Quando ele já estava lá dentro eu

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liguei a chave geral! Todos os ventiladores, as lâmpadas, o


computador, as maquinas de tosa, os sopradores, secadores,
todos começaram a funcionar ao mesmo tempo. Os cachorros
ficaram doidos e assustados uns latindo outros ganindo. O rapaz
levou um susto tão grande que recuou, tropeçou em um cabo
elétrico e caiu de costas. Nesse momento nós aparecemos e foi
muita gargalhada, quase perdemos o fôlego de tanto rir do
coitado; ele não ria nem chorava, ficou muito tempo mudo.

As gozações não pararam por aí. Na loja havia um cachorro


gigante, mas era apenas um boneco de pelúcia que parecia de
verdade. Colocamos o boneco em uma das gaiolas, a que estava
mais ao fundo, joguei molho de tomate como se fosse sangue
escorrendo da boca do presumível defunto e tranquei a gaiola de
modo que não pudesse ser aberta facilmente.

Deixamos pouca iluminação na sala e quando o caipira


chegou e pegou todos que iria levar, notou o cachorrão lá no
fundo. Ficou bastante amedrontado e foi aí que eu apareci e
perguntei:
- O que aconteceu aí, você matou o bicho?
- Eu não, nunca iria matar um bicho, já estava morto aí na
gaiola, deve ser doença.
- Doença nada, eu mesmo levei ele para passear e depois veio
tomar banho, eu estava aqui o tempo todo e nada aconteceu, ele
estava latindo e abanando o rabo até agora.
- Ai, e agora o que vamos fazer?
- Nós? Eu não tenho nada com isso, todos vão pensar que você
foi colocar no furgão, ele fugiu e foi atropelado. A dona dele é
uma mulher muito rica que trata ele como se fosse um filho, ele
tem um quarto na casa só para ele.

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Aí sim ele começou a chorar e soluçar.


- Vou perder o emprego, minha mulher vai me matar, posso até
ser preso se acharem que eu matei o bichão!
- Como sou seu amigo, vamos fazer um trato, você pega ele, nós
limpamos o sangue e colocamos no furgão. Na hora de entregar
você diz que não sabia de nada e que ele estava bem quando foi
colocado no veículo e que talvez tenha sido um outro cachorro
que você estava levando.
- Será que essa história vai colar? Acho que não.
- Mas não há outra opção, vamos fazer isso agora mesmo, eu
abro a gaiola, você pega ele e vamos limpar tudo.
Eu soltei a trava da gaiola e abri a porta. Ele foi até lá, pegou o
bicho e descobriu que era de mentira. Nessa hora todos
apareceram e começaram as risadas e o coro de “bobo”,
“trouxa”! Dessa vez ele virou uma fera e disse que iria se vingar
de todos nós, principalmente de mim.

Alguém pensa que ele teve imaginação para se vingar? Teve


nada, e ainda aprontamos mais uma. Eu vivia brigando com o
lavador de cachorros, um antipático fofoqueiro, mas um dia nos
juntamos para aprontar mais uma com o motorista caipira.
Quando o caipira chegou, eu estava sentado de frente para o
lavador e gritando para ele:
- Seu idiota, você sabia que não era para lavar aquele cachorro,
aquele ia só passear, a dona pediu para não molharem porque
estava resfriado! Sua besta!
Claro que isso era tudo mentira, fazia parte do esquema tático da
pegadinha.
O lavador respondeu aos berros:

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- Besta e idiota é você seu imprestável, não serve nem para levar
cachorro para passear, deixa fugir, vagabundo!
- O que, eu vagabundo? Vou quebrar suas costelas, lavador
safado, vai lavar bunda suja de cachorro vira latas.

A falsa briga entre nós continuou e eu fingindo me exaltar


cada vez mais; os dois gritavam e gesticulavam muito. O caipira
ficou sentado no meio da sala sem entender nada e muito
assustado nem conseguia se mexer.

Eu corri até o balcão do caixa, abri a gaveta e tirei um


revolver que estava lá para proteção em caso de assalto e que
nem balas tinha; o lavador corria pela sala e eu atrás fingindo
que atirava e todo o resto do pessoal gritando:
- Parem, não briguem, larga a arma, vamos todos conversar!
Vou chamar a polícia!
Todos eles também faziam parte da cena montada contra o
bobão, um deles ficou escondido e cada vez que eu fingia atirar
ele batia um ferro contra um pedaço de madeira que, no meio da
gritaria, parecia mesmo um estampido de revolver.
A correria só parou quando eu fiquei bem em frente ao caipira e
disse:
- Que saber, você também só me enche o saco, não gosto da sua
cara nem do seu jeito de bobo, vou matar você também!
Apontei a arma para ele e só começamos a rir quando vimos sua
calça molhada no meio das pernas.

Mais tarde me arrependi de tudo o que aprontei com ele, mas


isso já é uma outra história.

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Infância sem responsabilidade

A infância é um período da vida em que não nos preocupamos


em ter qualquer responsabilidade e sempre nos sentimos
completamente livres para fazer artes, aprontar com todo mundo
e ter a certeza de nos sairmos sempre bem, afinal todos acabam
perdoando as nossas aventuras.

Eu só usava sapatos para ir à escola, estava sempre na rua e


aí nada de sapatos, a sola dos pés tinha um cascão que assustava
até caco de vidro; andar descalço tinha lá suas vantagens como
subir nos telhados, nos muros, correr no asfalto ou nas pedras;
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fiquei até amigo dos gatos que viviam sobre as telhas e dentro
do forro das casas.

Uma brincadeira muito comum era colocar moedas sobre a


linha do trem para quando ele passasse amassar as moedas e elas
ficavam estampadas no trilho; outra brincadeira especial na
linha do trem era ficar sentado até que ele chegasse perto e
começasse a apitar e só aí pular fora; nunca deu errado, pelo
menos para meu pessoal.

Eu andava sempre com um baixinho italiano que era mais


bagunceiro do que eu; um dia nós fomos até a casa dele, quando
ninguém mais havia por lá, e começamos a beber vinho de uma
garrafa que já estava pela metade. Quando o vinho acabou nós
dois, já completamente bêbados, procuramos mais bebidas pela
casa. O italianinho disse:
- Meu pai vive bêbado e eu sempre vejo ele fazer o seguinte,
quando a bebida acaba, ele pega a garrafa de álcool, mistura
com água e açúcar e bebe.
- Então é isso que vamos fazer agora.
Quando a mãe dele apareceu, nós já estávamos mais do que
trêfegos e começamos a subir nos muros das casas próximas;
minha mãe foi chamada e as duas choravam e gritavam
pensando que por causa da bebedeira estávamos fazendo essas
loucuras, mal sabiam elas que subir nos muros era o mínimo que
fazíamos todos os dias.

No segundo andar de uma das casas havia uma pequena


oficina que reformava colchões e foi lá que uma gata deu cria a
vários filhotes. Como nós sempre brincávamos com os gatos, o
filho do colchoeiro, criança bem novinha, achou que nós

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queríamos os gatos e começou a nos entregar um dos bichinhos,


mas jogando pela janela - ele não sabia que gatos não voam - e
nós lá embaixo gesticulando e tentando pegar o gato, o que não
conseguimos antes que ele caísse no chão, de pé, mas caiu
direto.

O filhote, morto é claro, foi colocado em uma caixa de


sapatos e levado "com honras militares" até um terreno com
poucas árvores onde nós conhecíamos uma espécie de caverna
tão extensa que era difícil chegar até o final, mesmo andando
por ela um dia inteiro. A caixa foi colocada logo depois da
entrada da caverna e depois de alguns dias fomos averiguar o
que havia acontecido com o “defunto”. Dentro da caixa de
sapatos, além do bicho morto havia uma aranha gigantesca que
quase pulou na minha mão! Jogamos tudo longe e nunca mais
voltamos lá. Conhecer esse caminho subterrâneo foi muito
importante mais tarde em minha vida.

Atirar facas era outra brincadeira muito comum no nosso


grupo; primeiro rouba de casa uma faca de ponta, de preferência
bem pesada, segura pela ponta da lâmina e joga abrindo
rapidamente os dedos. Treinamos inicialmente espetando no
chão - o que me rendeu alguns ferimentos nos pés - depois
treinamos em tábuas e até em árvores. Essa brincadeira virou
mania e eu fiquei um craque atirador de facas, pensei até em
trabalhar em um circo!

Quando as facas se tornaram coisa de criança alguém


conseguiu uma pequena espingarda antiga e foi aí que o
treinamento ficou mais pesado. Escondido no matagal que
ficava longe da vila onde nós morávamos, eu atirava em tudo o

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que via, tomando o cuidado de não acertar meus amigos, é claro,


mas um dia acertei um pássaro que estava pousado em uma
árvore, mirei com firmeza, prendi a respiração e puxei o gatilho.
Depois fui olhar o resultado e vi que havia acertado bem no
peito do bichinho, até fiquei com pena, afinal ele não tinha culpa
de nada.

Na verdade não me arrependo de nada do que fiz na infância


e juventude, afinal esses tempos não voltam mais e eu acabei me
preparando para a vida, nadando nos rios e lagoas, descendo
pequenas cachoeiras sentado em tábuas, atirando paus, pedras,
facas e balas de verdade. Eu era um verdadeiro guerreiro das
selvas, o senhor dos insetos, pássaros e peixes!

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Na bandidagem

O jovem pensa que pode enfrentar qualquer coisa na vida e se


sair bem, sem problemas, mas na realidade isso não funciona
desse modo e o resultado quase sempre é desastroso.

Eu e meu amigo italianinho estávamos passeando por uma


avenida, procurando alguma coisa como por exemplo meninas
para namorar e acabamos encontrando duas morenas não muito
bonitas, mas que mesmo assim poderiam render uns bons
momentos de descontração e alegria para dois rapazes solitários.
Conversamos bastante, passeamos pela praça e acabamos por
marcar um encontro para mais tarde para tomarmos sorvete,
cerveja, e depois um passeio mais completo. Como sempre eu
me adiantei e disse a elas:
- Está bem, vamos buscar vocês no fim da tarde, eu venho com
meu carro - inventei essa história só para me mostrar, na
verdade nunca ative carro nenhum.
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- Ah! Que bom com carro é outro assunto, daí vamos poder
passear a noite toda - disse a mais desinibida das duas.
Saímos de perto delas e o italianinho começou a gritar comigo:
- Você é doido, não temos carro e ninguém nos emprestaria
nenhum. E agora o que vamos fazer?
- Sei lá, a gente arranja uma desculpa qualquer, diz que o carro
quebrou, que foi roubado, na hora eu achei de inventar isso e
pronto.

Se eu não tivesse dito essa bobagem tudo teria acontecido de


maneira diferente, mas com esse assunto na cabeça vimos um
idiota qualquer que parou o carro na frente de um bar para
comprar cigarros, eu acho, e na pressa deixou o motor ligado.
Eu não pensei duas vezes e gritei para meu amigo:
- Pula para dentro do carro, essa é a nossa chance.
Ele, sem saber o que fazer, entrou no carro comigo; sentei no
banco do motorista, assumi a direção, soltei o freio de mão,
engatei a primeira marcha e pisei no acelerador até o fundo. O
carro saiu cantando pneus e tudo o que eu vi foi o dono correndo
e gritando no meio da rua.
Até que foi uma aventura divertida, fomos para bem longe e
então eu pude reduzir a velocidade e começamos a passear;
claro que meu amigo não parava de me xingar de doido e de
outros nomes que não posso nem contar. A cada menina que eu
via nas calçadas eu diminuía a marcha e nós dizíamos gracinhas
e convidávamos para um passeio.

Em uma praça havia um carro de polícia estacionado e acho


que já estavam avisados do roubo do carro; tudo que eu lembro
é da sirene ligada e o carro nos perseguindo. Comecei
novamente a acelerar e correr o mais que o motor aguentava;

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passei por cima de uns canteiros com grama e algumas flores,


atravessei semáforos no vermelho, desviando para não bater, em
uma esquina vários pedestres atravessavam e eu, com a mão na
buzina, passei por todos sem atropelar ninguém. Parece que o
veículo dos guardas era muito mais potente, o motorista também
era muito bom e eles estavam me alcançando. Tive a sorte de
passar por uma rua que eu sabia que era bem estreita e era
contramão para entrar no sentido que eu vinha; como isso foi
depois de uma esquina eu entrei pela contramão mesmo e achei
que eles não poderiam ter me visto entrar por lá. No fim dessa
rua eu estaria livre para fugir, mas acho que me enganei: bem na
minha frente havia outro carro da polícia e o que estava me
perseguindo não foi bobo e entrou atrás de mim. Desceram
quatro policias, dois pela frente e dois por trás de nós, todos
com as armas apontadas para os ladrões - eu e meu amigo - e
gritando para levantarmos as mãos e deitarmos no chão. Como
essa era uma opção melhor do que levar uns tiros, deitamos,
fomos algemados e presos. Com “delicadeza” fomos jogados
para dentro de uma das viaturas e seguimos para uma delegacia.
Lá nos trancaram em uma cela com muitos outros vagabundos
como nós e ficamos a noite toda.

Pela manhã o italianinho foi chamado e levado para algum


lugar e não voltou mais. Acho que foi solto, pois a culpa no final
foi minha mesmo, ou então foi morto e jogado para os urubus. A
seguir foi minha vez de ser chamado e na verdade fui levado
para uma sala bem distante de tudo, um quartinho no fundo do
quintal da delegacia, atras do estacionamento de viaturas e logo
apareceu o delegado com mais dois homens não muito
simpáticos, nem bem encarados; para minha surpresa não

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apanhei nem levei chutes, também não fui solto. A conversa foi
muito estranha. Disse o delegado:
- Eu sou o mandachuva por aqui e posso fazer o que quiser com
você. Me informaram que você, apesar de malandro sem-
vergonha é um ótimo motorista e estamos precisando disso
agora.
- Como assim? Motorista? Da polícia? - perguntei.
- Não, idiota, não é da polícia, claro, é meu motorista mesmo.
Preciso que você vá buscar uma encomenda bem longe daqui.
Vou explicar uma vez só, preste atenção. Vai fazer uma viagem
de trem junto com um dos meus homens e na volta vai trazer um
veículo para cá; nós conhecemos sua família e se você não fizer
tudo conforme explicaremos vamos prender todos, vamos achar
você também e nem pergunte o que podemos fazer com sua
carcaça meio inútil, entendeu? Não quero pergunta nenhuma
basta dirigir e obedecer as ordens.
- Entendi tudinho - falei com voz meio sumida.
- Tudo isso tem uma vantagem muito grande. Se tudo for feito
sem problema, quando chegar de volta com o veículo e sem
perguntas, teremos um bom dinheiro esperando aqui.

No mesmo dia fui levado por um dos homens do delegado,


um grandão com cara de bandido com uma cicatriz que saía do
lado da orelha direita e descia até o pescoço; o cabelo quase
todo raspado e fez questão de me mostrar um enorme revólver
que levava escondido no blusão de couro marrom. Pegamos um
trem para uma cidade de que nunca ouvi falar e lá fomos nós por
dois dias seguidos, sacolejando. Meu companheiro de viagem
não conversava nada, apenas dava algumas ordens, mandava
que eu dormisse bastante para estar sem sono na volta; eu

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percebi que ele escondia o rosto com um boné e evitava olhar


diretamente para as pessoas.

Chegamos na tal cidade e lá fiquei sabendo que era a última


do nosso pais, que atravessando uma ponte estaríamos no pais
vizinho, mas nem eu nem ele atravessamos nada. Tomamos um
ônibus para um bairro afastado da cidade e lá ficamos sentados
na beira de uma estrada esburacada e quase sem movimento
nenhum.

Foi aí que meu companheiro começou a falar e explicou que


eu deveria ir de volta para nossa cidade levando o veículo sem
parar para nada, se precisasse ir a um banheiro, deveria parar no
mato mesmo para que ninguém me visse; parar em postos de
combustível só para abastecer e sair rapidamente, e me deu
dinheiro suficiente. E disse também que, caso a polícia me
mandasse parar eu deveria me mostrar bem tranquilo, mostrar
uns papeis e fingir que era um simples motorista de estrada
levando peças de trator! Eu perguntei:
- E você não vai comigo?
- Nada disso, malandro, podem me reconhecer na estrada, vai
sozinho e faça tudo direitinho ou morre, entendeu?
- Claro, o delegado já tinha me explicado.
- Se sumir nós temos como achar e já sabe o que lhe espera. Se
fizer tudo certinho ganha um dinheiro gordo para se divertir. No
veículo que vai chegar tem bastante sanduíche, NÃO PARE
PARA COMER, ouviu? Tome este comprimido aqui e não vai
precisar dormir.

Logo apareceu um furgão que entrou no mato e parou. O


motorista desceu e os dois ficaram por lá mesmo; eu nem vi o

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rosto do outro, e fui embora de volta pela estrada. Eu devo ser


meio doido mesmo, porque gosto de participar dessas aventuras
malucas sem ao menos saber para onde vou acabar indo, isso se
chegar vivo a algum lugar!

No começo não tive grandes problemas a não ser nas subidas


íngremes por causa do peso que estava levando, muito pesado
para serem drogas ou cigarros contrabandeados, acho que era
algum tipo de equipamento. E foi justamente em uma subida
que alguns policiais mandaram que eu parasse no acostamento.
Fiquei branco de medo, mas como eles estavam parando vários
outros veículos de carga eu pensei que ao menos o assunto não
era só comigo. Um guarda com a arma na mão veio até minha
janela:
- Desce do furgão e me mostra os documentos todos - ordenou.
- Está tudo aqui seu guarda, não tem nenhum problema comigo
nem com minha carga - menti descaradamente, como sempre.
Ele olhou tudo com cuidado e quando viu os papéis da carga foi
até seu superior e mostrou. Um olhou para o outro de um modo
esquisito e o superior bateu com a mão espalmada na papelada e
foi para outro lado. O guarda voltou a falar comigo:
- Está tudo certo, até aqui sem problemas, continue a viagem e
não esqueça de tomar todos os cuidados com essa carga e
lembre de uma coisa importante, se você ainda não sabe, nosso
pais está em guerra declarada com o pais vizinho.
Guerra? Agora é que a coisa vai esquentar mesmo! Ainda bem
que eu não era soldado e nunca pretendi ser nada disso, apenas
um rapaz folgado, brincalhão e malandro, claro.

Tive que parar algumas vezes para ir até o mato urinar, numa
dessas paradas escolhi um mato bem colorido para regar e tive

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Malandro na linha do trem

uma surpresa quando o mato começou a andar sozinho: era uma


pequena cobra que também levou o maior susto comigo, ainda
bem que cada um correu para o lado contrário.

No caminho eu vi passarem muito caminhões com soldados


indo em direção contrária à minha, acho que para guardar nossa
fronteira contra os “vizinhos invasores”. Quase chegando perto
de minha cidade o trânsito estava andando muito devagar e
percebi um comando do exercito fechando a estrada e olhando
para dentro dos veículos procurando algo ou alguém. Como
sempre, tive muita sorte, o comando se desfez antes de chegar
minha vez e pude continuar sem maiores problemas.

Entrando na cidade eram muitas as marcas de batalhas da


guerra, prédios meio destruídos, pessoas andando sem rumo,
cachorros assustados, crianças chorando. Consegui chegar até a
delegacia para entregar a “encomenda”, mas estava sem
ninguém e com as portas e janelas destruídas. Fiquei parado por
alguns minutos pensando no que fazer a seguir, já que tudo o
que fora planejado acabou em nada. Resolvi procurar minha
família e felizmente encontrei todos bem, assustados por me ver
vivo, já que todos achavam que nem meu corpo achariam mais.
Alguém foi avisar meu amigo inseparável, o italianinho, e ele
contou uma parte do que aconteceu: acharam ele sem nenhuma
valia e foi solto da cadeia depois de jurar sob ameaças que não
contaria nada para ninguém; quanto ao delegado e seus
ajudantes, foram acusados de espionagem e contrabando de
armas para um esquema de revolta popular, sumiram com todos
e ninguém mais soube de nada do que aconteceu. Agora eu já
sabia o que o furgão pesado estava carregando, eram armas.

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Elio Assis

Fomos até uma mata nossa velha conhecida e lá quebramos


os cadeados e encontramos muitas caixas com armas pequenas,
grandes, munição suficiente para fazer uma guerrilha urbana.
Deixamos toda a carga escondida em uma caverna onde nós
brincávamos quando pequenos e o furgão, depois de limpo de
nossas digitais, foi jogado em um barranco bem longe dali.

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Malandro na linha do trem

Meu sonho

A vida parece ser apenas um sonho e nada mais, sempre que


pensamos no passado tudo parece que aconteceu tão de repente
e não deixou muitas lembranças, apenas uns poucos momentos
bons e outros muito ruins; quando pensamos no futuro os planos
são mirabolantes, fantasias que acabam nos levando a ter
algumas ideias que até podemos tentar realizar e outras que
acabam parecendo ridículas e totalmente impossíveis. Existe um
breve momento em que estamos deitados, tentando dormir, e

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nosso pensamento vai para longe da realidade e isso tem


acontecido muito comigo.

Eu trabalhava no escritório de um estúdio de televisão e


sempre via toda a movimentação doida dos repórteres,
produtores, artistas, apresentadores e todo o pessoal de
produção, como era meu caso; como ajudante de cenografia eu
colaborava na montagem dos cenários e de tudo o mais que me
fosse mandado fazer. Eu também estava sempre atento ouvindo
o que o mais experientes conversavam e discutiam sobre o
futuro dos serviços técnicos e um dia, tendo sido enviado para
ajudar a montar uma estrutura apresentando maquetes de cenário
para ninguém menos que o presidente da companhia, ouvi a
conversa deles sobre programas e horários de apresentações para
o público. Percebi que o chefão era pessoa de muito fácil trato e
que ouvia tudo o que todos tinham a dizer para depois dar sua
própria opinião e decidir como fazer tudo. Fiz questão de ir
levar pessoalmente a ele o cafezinho na hora de uma pausa e
aproveitei para dizer:
- Com licença, eu posso falar com o senhor?
- Pode sim, mas rápido porque temos que continuar a reunião.
- É que eu ando por todos os cantos desta empresa e presto
muita atenção a tudo o que se passa e tenho muitas ideias que eu
acho que podem ser aproveitadas; o senhor é muito ocupado e
eu sei que não tem tempo para ver com detalhes tudo o que
acontece por aqui e se baseia sempre no que as pessoas trazem
de informação, eu queria ser mais uma dessas pessoas, claro,
dentro do meu humilde posto de ajudante.
- Tudo bem eu admiro sua coragem, mas fale com minha
secretária e diga que eu pedi para marcar um dia para
conversarmos com bastante tempo e calma.

26
Malandro na linha do trem

Saí de lá tonto de alegria, quase nem conseguia pisar direito


no chão, parecia que estava voando de tanta emoção!
No dia marcado fui até a sala do presidente e expus meus
pensamentos, que ele ouviu com atenção e sem aparte nenhum.
Minhas sugestões: Hoje a direção da empresa tem umas cabeças
pensantes de pessoas muito inteligentes e cultas, mas que são
sempre as mesmas. Que tal mudar isso um pouco e ouvir mais
gente? A TV está apenas dando os primeiros passos neste pais e
até já ouvi dizer que estão começando a testar a transmissão de
programas em cores e até na possibilidade de gravar tudo antes
de passar para o público, mas enquanto essa tecnologia toda não
chega até nós, precisamos nos colocar à frente da concorrência.

Os programas são escolhidos e transmitidos sem muito


critério e eu tive uma ideia: fazer uma pesquisa bem ampla junto
ao povo de todos os bairros e cidades que nos assistem; vamos
descobrir a que horas as crianças, os idosos, as mulheres e os
homens ligam a TV e aí vamos dar a todos o que eles querem
assistir, na melhor hora. Desse modo a audiência deve aumentar
muito e os anunciantes vão todos vir até nós pedindo horário
para propagandas, desta vez destinadas aos públicos que mais
nos assistam.
- Fabulosa imaginação, por que ninguém sugeriu isso até agora?
- disse o chefão - a partir de hoje você vai ocupar aquela mesa
ali na sala ao lado da minha e vamos trocar mais ideias. Ah! E
vai ter um bom aumento de salário!

Saí de lá pulando de alegria e encontrei a secretária que acho


que deve ter ouvido toda a conversa, pois não esperou nada
mais, já havia limpado a mesa que eu ia ocupar e ficou sorrindo

27
Elio Assis

para mim; ela era muito linda, cabelos curtos e sempre bem
arrumados, pintura discreta, e quando andava parecia estar
dançando ao som de uma música doce e romântica. Sorri de
volta e fui para a mesa fazendo pose de "assessor da
presidência". Nessa minha fabulosa carreira tudo deu certo; dei
muitos outros palpites que foram logo aproveitados e a empresa
passou ao segundo lugar em audiência e em faturamento de
anunciantes. O presidente estava rindo à toa... e eu também!

A mesa da moça ficava ao lado da minha e ela sempre dava


um jeito de vir com saias curtas, blusas decotadas, trazer café e
bolachas o dia todo, até que tivemos a oportunidade de ficar
sozinhos até mais tarde e ela não teve mais dúvidas,
praticamente pulou sobre mim com abraços e beijos quentes;
esse namoro durou por muito tempo, sem nenhum tropeço.

Eu já participava das reuniões da diretoria e podia sempre dar


mais algumas ideias. Em uma dessas discussões eu pedi
novamente para falar a sós com o chefão e ele logo suspendeu a
reunião para ouvir meu palpite e eu disse:
- Sabe, eu tive mais um pensamento de algo que acho que vai
ajudar um pouco mais.
- Diga logo, rapaz.
- Eu sei que o aparelhamento todo é muito caro, mas acho que
vale a pena gastar mais um pouco.
- No que? Diga e eu farei.
- Os programas, especialmente teatros e novelas, são captados
por uma única câmera, se fossem pelo menos duas o diretor
poderia escolher sempre o melhor ângulo e sei que isso daria
uma imagem bem mais realista aos espectadores. Isso caso seja
possível comprar mais uma câmara.

28
Malandro na linha do trem

- Adorei a ideia, vou imediatamente encomendar outra câmera, e


enquanto ela não chega - isso demora alguns meses - eu vou
refazer um pouco toda a programação para que sobre mais uma
para as novelas e peças de teatro.

Depois de um tempo fui chamado na diretoria e ouvi o que


segue:
- Sua última sugestão foi tão boa que já estamos em primeiro
lugar em tudo. Você agora é sócio desta emissora e vai ganhar
uma sala só para você, com a minha secretária, que eu sei que
você gosta muito dela; eu contratarei outra para me atender.
Eu nem consegui responder de tão assustado, emocionado, nem
consegui pisar no chão.

Minha secretária soube e veio muito contente me beijar. Foi


um beijo demorado, gostoso e molhado, mas como tudo na vida
tem um "mas", eu simplesmente ACORDEI com meu cachorro
me lambendo: ERA TUDO UM SONHO!

29
Elio Assis

Guerra!

A humanidade sempre viveu em guerra, todos lutando contra


todos, seja por inveja, ciúmes, vantagens no sexo, alimentos,
garantia de segurança e mil outros motivos.

Os animais também lutam entre si pelos mesmos motivos,


mas quando um percebe que perdeu ou já está perdendo, desiste
e vai embora sem ficar remoendo mágoas e ódio.

Ah! Com os humanos é diferente! Até que se sinta vingado


um homem ou mulher ataca quantas vezes pensa ser necessário
ou, quando não consegue vingança ou tenta se controlar, guarda

30
Malandro na linha do trem

o ressentimento por toda a vida, às vezes até demonstrando que


perdeu a razão de viver ou adoecendo.

No começo da civilização, para que se esforçar plantando ou


criando gado quando era mais fácil invadir a tribo vizinha e
roubar tudo o que tinham de mais precioso? E isso não é
verdade até hoje?

Temos um pais vizinho ao nosso com o qual sempre nos


demos razoavelmente bem e sempre fizemos comércio,
vendendo a eles o que produzimos e comprando o que eles
produzem, mas isso não parecia suficiente para os governantes
dos dois lados e iniciou-se uma luta de fronteira pela posse de
terras que tinham algumas riquezas minerais, ou que eram mais
férteis do que as do outro lado.

Esses pequenos embates fronteiriços acabaram virando uma


luta armada mais pesada, onde um dos países começou a desviar
a água que ia para o outro e facilitando a entrada de drogas no
pais vizinho para minar as forças da juventude; por muito tempo
fiquei sem saber quem estava lucrando algo com toda essa briga
e para onde ia o dinheiro que a droga gerava. A situação gerou,
nos dois países, muitos problemas políticos e de segurança,
obrigando a uma tomada de posição dos militares que
resolveram tomar o que chamaram de “medidas de exceção” e
isso nada mais é do que aumentar seus próprios poderes e não
serem mais obrigados e prestar contas a ninguém do que era
feito com dinheiro, (in)justiça e outras coisas que as pessoas
importantes escondem do nós, pobre povinho mal vestido, mal
educado e mal alimentado.

31
Elio Assis

É interessante como os políticos usam o dinheiro do povo


todo e inventam mil mentiras e falcatruas para não ter que
explicar nada; uns políticos compram o silencio dos outros,
compram os jornais e todos os meios de comunicação, mas
mesmo assim querem ainda mais e inventam mais e mais
mentiras. Para eles é importante que a população não tenha
muito estudo e assim não entenda o que acontece e não possa
reclamar de nada.

Se eu roubar um pacote de bolachas no mercado eu sou preso


e apanho bastante. Os poderosos roubam milhões e continuam
livres, leves e soltos! Eu pessoalmente ouvi uma pessoa na rua
ser entrevistada sobre os ganhos fabulosos dos políticos e essa
pessoa respondeu:
- “Ta” certo, eles precisam ganhar bastante porque eles
“trabaiam” muito!

32
Malandro na linha do trem

No quartel

Recebi umas visitas que eu nem imaginava que pudessem


aparecer um dia, eram 3 soldados fardados, com armas enormes
nas mãos, já desceram perguntando pelo meu nome. Apresentei-
me e perguntei o que foi que eu fiz dessa vez; era sempre a
polícia que aparecia atrás de mim, mas o exército? Acho que
agora eu aprontei para valer mesmo, devem ter descoberto o
contrabando de armas de que participei. Não era nada disso. Um
soldado falou:
- Estamos em guerra, o que você anda fazendo em casa? Está na
idade certa para lutar e precisamos de voluntários. Você foi

33
Elio Assis

escolhido como voluntário, tem 10 minutos para pegar a escova


de dentes e vai com a gente para o quartel.
- Posso levar meu cachorro Luque?
- Você deve ser doido, se perguntar mais besteiras vai embaixo
de cacetadas!

Peguei umas tralhas, fiz xixi e saí correndo, minha mãe se


arrebentando de chorar. Afinal eu pensei, deve ser bom mesmo
mudar de vida, conhecer novos lugares, treinar com armas de
verdade e assim fui com boa vontade e sorrindo.

Com um salto entrei no caminhão, que já estava bem lotado


de “voluntários”, alguns até conhecidos meus, e lá fomos para o
matadouro, quero dizer, para a guerra.

Um portão gigante se abriu, o caminhão entrou e freou com


violência, jogando alguns para o chão da carroceria e outros se
espremendo contra os que estavam mais na frente.
- Desçam todos! JÁ! - gritou um soldado, que mais parecia um
cachorro buldogue latindo.

Pulamos da carroceria e ficamos parados com cara de idiotas


olhando para todos os lados tentando reconhecer alguma coisa.
Tudo o que eu vi foram prédios bem feios, com a pintura
desbotada; lá ao longe, no que parecia uma praça, vi vários
soldados perfilados ouvindo alguém gritando ordens, mais para
a direita outros faziam ginástica no chão, do lado esquerdo todos
corriam como loucos, em fila indiana e gritando palavras que
pareciam números como “1, 2, 3, vamos morrer por vocês”, mas
acho que não foi isso, porque não consegui ouvir direito. A

34
Malandro na linha do trem

roupa deles era daquelas que a gente vê nas ruas, de cores


escuras e borradas, acho que devem servir de disfarce.
Perto dos militares fardados que marchavam o nosso grupo
parecia um ajuntamento de palhaços mal vestidos, alguns de
camiseta com besteiras escritas, outros de bermudas vermelhas
todas desenhadas de flores, alguns de chinelão e outros de
sapato, mas a maioria era de tênis baratos imitando as melhores
e mais caras marcas de grife.

Meus pensamentos terminaram quando ouvi alguém gritando


para nós.
- ATENÇÃO PELOTÃO! EM FORMA! SENTIDO!
Quem seria o tal pelotão? Eu? E não estou sentido com nada,
estou até alegre; o soldado tentou explicar para nosso bando de
novatos.
- “Pelotão” são todos vocês, “em forma” quer dizer um ao lado
do outro e olhando para mim. “Sentido” é para ficarem parados
e quietos, com as mãos ao lado do corpo. Isso é para fazer JÁ!
AGORA!

Com o pelotão - nós mesmos - em forma, o soldado começou


a falar e explicar o que era tudo aquilo, o que deveríamos fazer
por lá, como devíamos nos comportar, blá-blá-blá... Acho que
ninguém prestou atenção em nada daquilo. No final ele nos
mandou ir para o alojamento e mostrou onde ficava, lá alguém
iria nos dizer o que fazer.

O alojamento era uma sala enorme com muitas camas,


parecia um hospital, mas não estava muito limpo. Mandaram
cada um ficar com a cama que estivesse mais perto e tudo em
silêncio e sem correria. Dei sorte, minha cama ficava perto de

35
Elio Assis

uma janela de onde eu podia ver muita coisa que acontecia lá


fora. Depois de todos arrumarem suas camas, tudo conforme
instruções recebidas, nos mandaram ir até o prédio onde iríamos
ganhar nossos uniformes completos, era um tal de almoxarifado.

Saí procurando o tal de prédio do almoxarifado e quando


passei na praça parei para olhar o que todos aqueles soldados
estavam fazendo e acabei me perdendo dos outros colegas meus.
Vi um velhote bem vestido e achei que ele saberia das coisas
por ali e perguntei:
- Ei tio, onde fica a droga de almoxarifado aqui nesta bagunça?
A resposta veio em alto e bom som, aos berros:
- NÃO SOU SEU TIO, SOU O CAPITÃO! AO DIRIGIR-SE A
MIM DIGA “SENHOR” E “SIM, SENHOR”, E SÓ FALE
COMIGO QUANDO EU ORDENAR, ENTENDEU SEU
RESTO DE PESSOA IMPRESTÁVEL?
Minha resposta também foi bem rápida:
- Sim, senhor, desculpe, senhor, perdão.
E tratei de correr dali bem rapidinho, não sem antes perceber
que ele chamou um outro homem fardado e conversou algo
apontando para mim.

Nem tive tempo de me esconder e o outro me alcançou e


disse:
- O capitão mandou que eu o prendesse por alguns dias! Mas eu
sou muito bonzinho com os novatos, então só vou mandar que
você limpe meu coturno. COM A LÍNGUA! E se aprontar mais
alguma, aí sim, vai em cana. OUVIU?

Parece que ninguém fala por ali, só gritam com a gente, logo
comigo que sou tão educado e respeitador...

36
Malandro na linha do trem

Perguntei com voz bem fininha:


- Meu senhor, o que é coturno?
- Minha bota, sua besta analfabeta. E diga sempre: Sim, Senhor
Sargento!
Depois de deixar as botas do “senhor” sargento bem limpas com
minha língua e aturando as risadas de todo o pessoal do quartel,
fui para o alojamento e não saí dali até que me chamassem.

37
Elio Assis

Outra grande encrenca

Mais alguns meses por lá e acabei aprendendo que tudo o que


eu sabia sobre comportamento estava completamente errado e
que eu deveria fazer tudo o que me mandassem, ouvir antes de
falar, e principalmente saber com quem estava falando.

Eu até que não me sentia muito estranho lá porque muitos


dos meus vizinhos e conhecidos também eram “voluntários”
para a tal de guerra que eu nem sabia contra quem iríamos lutar.

Um dos que estavam lá era o caipira que trabalhou comigo na


loja de animais e que era o alvo das gozações minhas e de todo
o pessoal. Ele não me viu com bons olhos e eu estava sempre de

38
Malandro na linha do trem

prontidão esperando a vingança que ele havia prometido, mas


parece que acabou perdoando tudo e agora era ele exatamente o
motorista que dirigia o carro do capitão!

Um dia o corneteiro chamou para que todos se apresentassem


imediatamente, mas eu não encontrava meu quepe.
- Pessoal, onde está meu quepe?
Todos correram para fora e eu tive que me virar sozinho,
procurei em todo lado e encontrei o treco embaixo da minha
própria cama, mas com um cheiro esquisito, parecia bosta. E era
mesmo. Meu quepe estava todo cheio de bosta! Não tinha outro
jeito, joguei a bosta no chão e vesti assim mesmo, meu cabelo
ficou empastado, mas pelo menos estava bem penteado. Com
bosta.
A risada foi geral, todos às gargalhadas, todos já sabendo o que
aconteceu. Eu vou me vingar, ah se vou! Eu tinha certeza que
tinha sido o motorista caipira.

Mais tarde, ao sair do alojamento o caipira disse bem alto


para que todos ouvissem, especialmente eu:
- Eu consegui esse coturno novo e não quero que ninguém mexa
nele, ou vai ter que se entender comigo, ouviram bem? É para
usar daqui a alguns dias em uma festa no quartel.

Pensei então na minha vingança e preparei um saco de


plástico bem fino, enchi de bosta e de muitas formigas vivas,
grandes e avermelhadas, que eu juntei pacientemente. Coloquei
tudo no saco e com bastante cuidado enfiei dentro do coturno
dele. O saco deveria rasgar assim que ele enfiasse o pé, mas ao
invés de vestir o coturno ele pegou com cuidado e levou para o
alojamento do capitão; aí é que entendi tudo, ele estava

39
Elio Assis

limpando o coturno do capitão e foi lá entregar. E eu que havia


enchido de bosta e formigas! Caí na cilada como um idiota que
sempre fui!

Dali a pouco chega o capitão escoltado pelo motorista e com


o sargento junto. Entraram gritando:
- VOU MATAR ALGUNS VAGABUNDOS E A FAMÍLIA
DE CADA UM DESSES DESGRAÇADOS!
- Quem foi o culpado pela bosta com formigas dentro do meu
coturno? Se não aparecer o culpado dentro de um minuto todos
vão pagar muito caro, vocês nem imaginam o quanto isso vai
custar, vão para a guerra, sem treinamento, sem armas e isso vai
ser amanhã mesmo. Talvez eu pessoalmente mate alguns
durante a campanha! Se alguém rir ou mesmo tentar rir, vai ser
considerado culpado por tudo!

Ninguém riu, nem ao menos um leve sorriso, só rostos sérios,


alguns quase chorando com medo; como eu poderia tentar rir, se
estava tão apavorado que tinha dificuldade até para respirar?
Nisso meu antigo colega, o motorista caipira, levanta a mão:
- Desculpe, senhor, posso falar, senhor?
- Fala maldito!
- Foi ele, eu estava por aqui e vi tudo, disse apontando para
mim.
Esse foi o verdadeiro momento da vingança que ele tanto
esperou e preparou.

Todos olharam para mim e eu nem pensei em inventar


qualquer desculpa ou em negar tudo. Não tive outra saída senão
correr para fora com o capitão atrás gritando:

40
Malandro na linha do trem

- MATEM ESSE MALDITO, É SEMPRE ELE QUE


APRONTA! Eu tenho todo o direito de matar esse desgraçado!

Não entendo como consegui correr tanto assim, o sargento


com a arma na mão e atirando, não sei ainda se para me assustar
ou para matar mesmo.

Corri o mais que consegui, estava suado, ainda vestindo o


uniforme militar, meu quepe caiu e tive que parar. Voltei para
buscar e ao me abaixar ouvi um apito forte. Eu estava parado na
linha do trem e um deles vinha vindo na minha direção,
apitando como um doido, tentando me matar, acho, ou foi o
capitão que mandou!

Pulei para um lado, mas o trem já estava quase parando. Foi


então que decidi fugir de uma vez e me joguei para dentro de
um vagão.

Novamente eu estava em um trem e partindo para outros


lugares, outras pessoas, outras aventuras e desventuras, mas
acho que a vida é isso mesmo.

41
Elio Assis

As meninas

A única vantagem de uma guerra é ser do exército e como eu


estava fardado todos tinham receio, ninguém mexeu nem falou
comigo no trem. Sentei e fiquei pensando na vida, até agora
acho até que está valendo a pena ser como eu sempre fui,
esquecer essa história de obediência aos superiores, sim senhor,
não senhor, e outras drogas como essas.

42
Malandro na linha do trem

Fiquei olhando distraído para as casas coloridas que


passavam rapidamente pelas janelas do trem. Vi uma casa
branca com muitas varandas, com pessoas que conversavam e
riam muito. Vi uma casa amarela com crianças brincando e
correndo em volta de uma árvore, do mesmo jeito que eu fazia
quando ainda pensava que a vida seria uma coisa simples e fácil
de ser levada. Vi outra casa com moças na janela acenando para
mim. Opa, acenando para mim? Abri a janela do vagão, encostei
a barriga no vidro abaixado e pus metade do corpo para fora,
para ver melhor o que estava acontecendo.

Quando uma delas viu que eu estava olhando para seu lado
tentou sair da janela, mas no movimento sua roupa se abriu
mostrando um pedaço dos mais belos e bem formados seios que
eu já havia visto na vida, isso foi o que bastou para que eu
ficasse totalmente transtornado por aquela visão e decidi que iria
até lá de qualquer maneira. Corri até a porta do trem e reparei
que muitos arbustos se alinhavam ao lado dos trilhos, mais
parecendo uma parede macia e convidativa a um mergulho para
dentro de suas ramagens tingidas de verde de todos os matizes.
Saltei! Ainda não descobri se me machuquei ou não, estava tão
excitado que tudo o que eu sentia era um calor por todo o corpo
e um desejo de poder voar como um gavião esfomeado e correr
como um touro enraivecido nas ruas da Espanha.

Ao verem que eu havia descido do trem elas se assustaram e


fecharam a janela rapidamente. Mesmo assim não desisti em
nenhum momento e corri até chegar na parede bem cuidada
daquela casa mágica; a janela desejada por mim ficava no andar
superior e juro que ouvi risos abafados vindo dela, risos de
meninas que haviam se metido em alguma encrenca e estavam

43
Elio Assis

meio assustadas e meio excitadas pela aventura doida. Eu nunca


pensei nem refleti muito antes de enfrentar qualquer obstáculo e
não seria agora que eu começaria e me tornar cuidadoso. A
parede era toda decorada com saliências como algum desenho
antigo e foi isso que facilitou minha escalada por ela e por elas e
subindo percebi que os risos pararam, estavam mais assustadas
ainda. Parei bem ao lado da janela, comecei a arranhar a
madeira como se fosse um gatinho e dizendo “miau” como um
gato falso que queria mostrar mesmo que era falso e atrevido
como todo felino e com voz bem fraquinha eu dizia:
- Abram a janela, meus amores, é seu gatinho que quer entrar
para ganhar só um pouco de carinho e que promete ser bonzinho
e educado como um bichano de madame!

Notei que alguém mexia no trinco com muito cuidado, mas


parece que outro alguém estava tentando impedir a abertura, até
que um rostinho lindo apareceu por uma fresta e sorriu para
mim. Eu estava no céu, sentia tudo girando dentro de mim, o
calor em meu rosto aumentou e meus olhos estavam rodando, eu
não sentia o restante do meu corpo, como se estivesse tudo
adormecido e leve; eu não pesava nada, flutuava no ar, me
segurando apenas pelas mãos nos desenhos da parede, se me
soltasse flutuaria pelo espaço sem poder voltar à Terra.

Ela deixou a janela aberta e sumiu no quarto onde eu entrei


com cuidado e olhando para todos os cantos. Era um verdadeiro
quarto de princesa, muito bem decorado, com quadros de
crianças brincando, mil bonecas com vestidos largos e cheios de
renda, as paredes rosadas como o céu em um fim de tarde de
verão e onde havia duas camas, uma ao lado da outra, ambas
desarrumadas e com peças de roupa jogadas por todos os lados;

44
Malandro na linha do trem

também não faltavam livros e cadernos espalhados em cima de


uma mesa de bom tamanho e com duas cadeiras. Simples
dedução de um rapaz com eu: era o quarto de duas irmãs que lá
ficavam o dia todo para não participar dos assuntos sem graça
dos pais e para ficar bem longe das reclamações que as moças
sempre são obrigadas a ouvir como “não faça isso, fique longe
daquilo, comporte-se como uma dama” e outras imposições que
obrigam as mulheres a engolir como se fossem puros e sábios
ensinamentos vindos dos mais velhos que sabem tudo e que
vivem suas vidas perfeitas e bem regradas. Como se isso fosse
mesmo verdade!

O lindo rostinho que apareceu na janela, também se mostrou


perto de uma porta e sorriu para mim novamente. Abaixo desse
rosto, outro tão lindo quanto o primeiro, mas de uma menina
mais nova. As duas vestiam camisolas curtas, com tirinhas no
ombro, feitas, as duas, de um mesmo tecido rosado bem leve,
quase transparente e todo desenhado com bolinhas vermelhas
bem pequenas.

Juntando toda a coragem que eu pensava que nunca teria,


entrei pela janela e sentei em uma cadeira perto da mesa de
estudo das meninas. Abri um livro qualquer e fingi que estava
entretido lendo, mas na verdade olhava com cuidado para o lado
onde elas estavam. A mais velha apareceu fingindo estar
ofendida com minha intromissão em sua vida.
- Quem é você? Posso saber o que quer aqui no meu quarto? Se
for assaltante pode ir embora porque meu pai é militar e sempre
anda armado, viu? E também não há nada para roubar por aqui.
Eu respondi sem nem precisar pensar:

45
Elio Assis

- O assaltado aqui sou eu, você roubou meu coração e acho que
nunca mais vai poder devolver, estou sem fôlego e sem ação.
Depois de conhecer você eu me perdi dentro de mim mesmo e
nem ao menos lembro quem sou nem onde estou, nem para onde
ia ou de onde eu vinha. Vou dar parte na polícia, quero minha
tranquilidade de volta!

Ela sorriu, chegou mais perto e pudemos conversar um


pouco:
- Eu não fiz nada de mais, só que quando vi você olhando para
cá me assustei, pulei para trás e tentei fechar a janela, minha
irmã até me empurrou e brigou comigo. Vá embora logo, se meu
pai aparecer vamos ter mais um defunto por aqui, como se já
não bastassem os mortos pela maldita guerra sem motivo
nenhum.
- Menina, eu não tenho medo de nada, já passei por muitos
apertos em minha vida e conheço muito bem os tais de militares,
eu até sou um deles, mas sou apenas um lixo para eles pisarem,
maltratarem e descontarem as humilhações que sofrem com suas
mulheres e filhos e com sua vidinha suja e vazia.
- Se não for embora nesse instante eu vou até aí e empurro você
para fora da janela, vai cair lá embaixo e tomara que quebre uma
perna e um braço!
- Então venha me empurrar se for mulher valente!

Ela chegou bem perto e tentou me empurrar, mas aquelas


mãos lindas e macias como pó de nuvem, com as unhas pintadas
com desenhos de pequenas flores, não conseguiriam mais do
que me obrigar a agarrá-las e beijar as pontas dos dedos, um a
um.

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Malandro na linha do trem

Nossas quatro mãos juntas se soltaram e tudo o que ela


conseguiu foi ganhar um abraço que valeu como desculpa para
iniciar uma luta onde os dois sairiam ganhando. Empate técnico.
Ela não parava de rir, um riso nervoso de quem havia entrado
em uma situação nova e não sabia o que fazer. O abraço ficou
mais apertado e uma espécie de força magnética uniu os dois. O
calor ia e vinha de um para o outro e parecia que estávamos em
algum lugar longe de tudo, calor no corpo, frio na barriga, leve
tremor nos braços e um grande tremor nas pernas. A menina
quase desmaiou e eu tive que apertar mais ainda o abraço sem
fim até que arrisquei um beijo, logo retribuído e que demorou
algumas horas para acabar, pelo menos isso foi o que me
pareceu.

Sentindo aquele corpo macio e quente em meus braços eu


estava cego, surdo e mudo, mas não tão surdo a ponto de não
ouvir uma leve risada que vinha detrás de uma cortina: era a
irmã mais nova que assistia a tudo e que pelo visto estava
achando muito engraçado e também ria nervosamente com as
mãos no próprio rosto como se estivesse com medo, gostando,
reprovando, aprovando tudo e, na verdade, invejando a irmã
“maluca” que tinha. Eu olhei para ela sem disfarçar, sorri e
pisquei um olho como se estivesse pedindo para a garotinha
aceitar tudo e ficar bem quietinha só assistindo e aprendendo.
Seu prêmio seria ter uma irmã mais feliz e que seria sua amiga
para sempre.

Sem muita calma eu segurei cada lado da camisola - a


incômoda camisola, a maldita camisola, a bendita camisola
rosada com bolinhas - com as pontas dos dedos e tentei levantar
aquela peça de roupa que nos incomodava muito, mas ela não

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Elio Assis

deixou. Bateu em minhas mãos e saiu correndo e rindo pelo


quarto todo, a irmã correndo junto e pulando por cima da cama e
das cadeiras. E eu atrás das duas.
Acho que fizemos muito barulho nessa correria!

Eu ouvi uma voz feminina, mas grossa, gritando do lado de


fora da porta:
- O que está acontecendo aí? Que bagunça é essa? Não estavam
estudando, suas preguiçosas? Com certeza era a mãe delas que
entrou como uma vaca doida e eu mal tive tempo de me
esconder atrás da cortina.
As duas meninas ficaram brancas como algodão doce e imóveis
como esculturas de pedra; isso assustou a mulher que pensou
que algo mais grave estaria acontecendo lá e parou olhando para
todo o quarto com muita atenção e cuidado. Rosnou com um
cachorro e saiu devagar sem fechar a porta.

Assim que ela saiu do quarto eu corri para a janela tentando


pular de qualquer jeito e sumir dali o mais rápido possível, mas
antes de chegar perto da minha liberdade, ouvi uma voz e desta
vez era voz de homem:
- Pare malandro! Se mexer um dedo eu atiro, tenho medalhas de
tiro do exército! Veio assaltar minhas filhas ou veio estuprar
minha mulher? Fala logo!

A única coisa que se mexia em mim era o peito para respirar


com muita dificuldade, o resto estava imobilizado talvez pela
visão do enorme revólver na mão do velho, e apontado para
mim. Com muito esforço, eu que sempre fui o maior mentiroso
da história do mundo, consegui responder:
- Nada disso, eu só vim aqui consertar a janela.

48
Malandro na linha do trem

- Ainda por cima pensa que eu sou idiota, disse ele.


Percebi que não iria adiantar mentir nem discutir, mas apenas
me arriscar a levar um tiro bem no meio da testa, logo eu que
gosto tanto de mim mesmo e que tenho tanta vida pela frente; a
solução escolhida foi me jogar da janela sem pensar em mais
nada.

Consegui pular e cair em cima de uns arbustos sem machucar


nem um dedo. Lá embaixo a rua estava cheia de vizinhos que
vieram ver o que era a gritaria e aí eu tive uma das minhas
fabulosas ideias. Corri para o meio do povo gritando:
- Me ajudem, o velho está tendo um ataque, vai morrer! Venham
aqui comigo buscar socorro!
Ninguém entendeu nada, mas ficaram todos perto de mim e isso
impediu que o pai das meninas atirasse em mim e assim eu pude
correr e me jogar no mato mais próximo. Rolei por um barranco
e continuei correndo e correndo cada vez mais rapidamente:
parece que correr é meu esporte predileto e que eu nasci para
isso.

49
Elio Assis

Entrando na luta armada

Lá estava eu novamente perdido no mundo até que encontrei


algo muito familiar: a linha do trem, a mesma que me trouxe até
aqui e que com certeza vai me levar para novas aventuras.

Com os pés sobre um dos lados da linha eu me equilibrava e


andava, às vezes rindo de tudo o que aconteceu, às vezes
evitando ter medo de que me encontrassem e tomassem como
um desertor e fujão. Enquanto pensava nisso eu vi uma pequena
casa que parecia vazia e que tinha ao lado um varal lotado de
roupas de todos os tipos. Era minha salvação! Com muito

50
Malandro na linha do trem

cuidado cheguei até o varal, escolhi as melhores roupas entre


aqueles quase trapos muito usados; deixei meu uniforme inteiro
no varal me vesti, me sentindo como um escravo recém liberto
do cativeiro. Enfim, livre do exército e de suas ordens e
desordens! Saí de lá rapidinho, antes que alguém me visse ou
que algum cachorro acordasse e mordesse meu bumbum.

Logo adiante apareceu uma estação e eu sentei num banco


bem escondido, fingindo que lia um jornal velho que achei no
lixo, até que um trem apareceu. Tomei o trem como se fosse um
pobre passageiro comum com aquelas roupas esfarrapadas.
Passamos por várias antigas fazendas quase destruídas pela
guerra, sem nada plantado e apenas um pouco de gado magro e
meio abandonado, pois todos os jovens estavam na guerra e os
mais velhos não podiam fazer muito pela produção a não ser dar
comida para as galinhas, patos e tentar manter pelo menos os
cavalos de pé.

Acho que me deu uma raiva muito grande ver o povo todo
sendo tão maltratado e sofrendo como cães abandonados na rua
e comecei a pensar que eu não poderia fugir da luta, mesmo
sendo caçado pelo capitão do meu pelotão. Foi então que eu vi
um grande grupo de soldados bem armados em cima de um
vagão sem teto, de um trem militar. Nesse vagão havia um tipo
de canhão instalado e muita gente em volta; estavam se
preparando para ir à luta. Como eu estava com roupas civis,
achei que ninguém iria saber que eu era um militar fujão e me
aproximei do grupo; um sargento gritou para mim:
- O que está fazendo aí parado? Precisamos de muita gente,
venha ser voluntário e vai viver aventuras, ver novas pessoas,
matar muitos inimigos e talvez até morrer; vai ser divertido!

51
Elio Assis

Achei que ele estava maluco, e como eu também sou meio


maluco me apresentei com a maior naturalidade, já que percebi
que aquele não era meu pelotão e ninguém iria me reconhecer:
eu parecia apenas um rapaz pobre, aventureiro e solitário.

Recebi um uniforme bastante surrado, parecendo ser de


alguém que morreu lutando; eu desconfiei de um pequeno furo
na altura do peito! Novamente eu estava vestido como um
militar, e o sargento mandou que eu pegasse uma arma dentro
de um enorme baú cheio de tranqueiras de todos os tipos.
Surpresa! Grande surpresa minha foi descobrir que as armas
eram DE MADEIRA! Bem feitas, pintadas e envernizadas
pareciam de verdade ao serem vistas de longe e eu gritei para o
sargento:
- Ei, são de madeira! Como vou matar inimigos? Chegando bem
perto e batendo na cabeça deles? Ou eles vão morrer de tanto rir
quando me virem mal vestido e com uma arma de brinquedo nas
mãos?
- É assim mesmo, malandro - respondeu o sargento - acabaram
as armas e só os soldados "de verdade" possuem armas, o resto
de vocês vai fazer número para que todos pensem que nosso
exército ainda está forte e muito bem armado. Olhe bem para o
canhão aí em cima do vagão, também é de madeira! Vou
explicar melhor: você já está alistado e agora vai "lutar vivo ou
morto". Seja esperto, quando encontrar alguém morto, seja
amigo ou inimigo, pegue a arma dele e saia atirando por aí, só
tome muito cuidado para não acertar em seus próprios colegas.

Se eu pudesse contar e provar que eu era um ótimo atirador


ele teria me dado os melhores equipamentos! Sem poder dizer
quem eu era realmente eu engoli tudo e ainda fiquei contente de

52
Malandro na linha do trem

poder entrar nessa "aventura" doida. E lá fui novamente, agora


num trem militar.

Uns poucos quilômetros adiante o trem parou quando


começou a ser alvejado por muitas balas que passavam bem
perto de nós, algumas até mesmo atingiram nosso pessoal e eu,
mesmo triste por ver meus colegas morrerem, aproveitei e
peguei um revólver, uma espingarda, algumas granadas de mão
e uma faca bem afiada e bastante munição, e desta vez tudo era
de verdade. Alguns ficaram sobre o trem, atirando na direção do
local de onde vinham os tiros inimigos e outros saltaram para
um ataque mais "pessoal". Eu estava nesse grupo e notei que os
inimigos se afastaram para um lugar mais seguro e ficaram nos
aguardando de tocaia. Eu, que nunca fui bobo nesses assuntos,
chamei alguns do meu grupo para dar a volta e tentar
surpreender os atiradores.

Conseguimos muitas vitórias, fizemos muitos fugirem para o


mato e com isso eu pude notar que eles, como nós mesmos, não
estavam preparados e nem muito treinados para lutar em campo
aberto. Nada disso adiantou e um belo dia começou um boato
de que a guerra havia terminado, e nós havíamos perdido!
Demoramos a acreditar, mas vimos que era verdade quando os
soldados inimigos entraram na cidade onde estávamos e os
soldados e até alguns civis foram presos e apanharam por não
obedecerem cegamente às ordens dos novos "superiores"; como
se não bastassem nossos superiores incompetentes ainda
tínhamos que aturar agora os inimigos nos dando ordens.

Fugi antes de ser preso, junto com alguns outros; passamos


fome e frio e ficávamos nos culpando pelas batalhas perdidas.

53
Elio Assis

A vida é um buraco

Nem quando o sargento me perseguiu atirando por causa da


história da bosta com formigas no coturno do capitão eu tive
tanto medo. Estava completamente só no meio do nada, não via
nenhum soldado da minha tropa morto, mas também não via
mais nenhum ao meu lado. Teriam sido removidos os corpos?
Estariam nas enfermarias? Teriam fugido?

Não consegui descobrir, mas achei que estava me sentindo


muito sozinho nessa tal de guerra e resolvi, vou me esconder e
ficar de fora dessa confusão toda, já que nem sei o motivo pelo
qual estamos lutando. Eu conhecia muito bem a região já que
brincava sempre por ali quando era criança e me escondia para
que nenhum dos meus amiguinhos me encontrasse nunca.
54
Malandro na linha do trem

Eu sabia que havia um buraco por ali onde eu caberia sem que
ninguém jamais me achasse e poderia ficar até que terminasse a
briga e eu pudesse sair e voltar a viver minha vida, ver as
meninas que eu tanto amei; só espero que o pai delas tenha
sumido pelo mundo e só volte quando eu já estiver bem contente
e velho, tendo curtido tudo o que eu programei para minha vida.

Rodei pela mata até encontrar a velha árvore que eu havia


marcado com canivete quando era apenas um moleque
bagunceiro e que escondeu minhas travessuras com as meninas
da vizinhança, para desespero das mães, principalmente da
minha.

A árvore estava ainda de pé e era muito, mas muito mais


velha do que eu poderia imaginar. Bem no meio do tronco eu
havia feito uma marca para saber como estaria quando eu
voltasse lá mais tarde, mas não adiantou nada, ela era tão velha
que não havia mudado nada desde aquela época. Isso nem era
tão importante agora, já que o que eu mais desejava era me
esconder das balas que estariam me esperando por perto.

Se bem me lembro, do lado da árvore havia um barranco que,


se eu seguisse até perto do lago, encontraria o buraco fundo
onde nós nos escondíamos depois de aprontar as artes mais
famosas da redondeza, como aquele dia em que eu soltei o freio
de mão do caminhão do padeiro, que desceu a ladeira e foi bater
no portão da casa amarela do pai do meu colega de escola,
aquele mesmo que roubou as figurinhas do álbum de futebol.

Corri descendo o barranco e por fim achei o pequeno monte


de terra onde estava o famoso buraco-esconderijo. Rolei com

55
Elio Assis

muito cuidado e entrei; para minha grande surpresa não


consegui nem entrar pela abertura. Será que engordei tanto?
Não, o problema é que o buraco estava tão cheio de gente que
não havia espaço nem para caber mais um rato como eu; já
estava lotado de ratos, quer dizer, soldados escondidos e fugindo
da responsabilidade de guerrear pela pátria e pelo capitão. Os
que já estavam lá dentro me receberam muito bem, dizendo:
- Cai fora maluco, não cabe mais ninguém, muito menos bosta
como você!

Fiquei por alguns segundos deitado no chão perto da entrada


da caverna, mas lá era perigoso e então fui me arrastando,
tentando olhar para todos os lados. Não senti nenhum
movimento nem ouvi nada mais do que minha respiração pesada
e as batidas do meu coração; eu já estava tão sujo de lama e
folhas que até parecia um disfarce daqueles que se veem nos
filmes de guerra, os soldados se esgueirando como cobras pela
mata, assim estava eu com meus pensamentos quando vi alguns
inimigos deitados mais à frente: dormindo, mortos ou
disfarçados? Já de pé eu me escondi atrás de uma árvore grande
e, olhando à minha volta, encontrei uma pedra de bom tamanho
que logo peguei, mirei no que estava deitado mais perto de mim.
Como eu já havia treinado em minha infância segurei a pedra na
mão direita, estiquei o braço para trás do corpo e, jogando o
braço com toda a força possível ainda juntei o peso do corpo no
impulso e joguei a pedra, acertando a cabeça do maldito. Ele
estava mesmo morto, do contrario teria pulado ou feito algum
outro movimento, pois a pedra era realmente pesada. Nem
sangue saiu do ferimento que ele ganhou com a pedrada.

56
Malandro na linha do trem

Com a cautela possível me aproximei do corpo até alcançar o


cano de seu fuzil que estava jogado; assim que peguei e senti o
peso notei que estava carregado e corri de volta para a segurança
do meu esconderijo de madeira viva, levando o trunfo nas mãos.

A arma era antiga, mas bem conservada e com ela eu senti


mais segurança para sair e verificar se todos estavam mesmo
mortos, e estavam. Juntei mais munição e voltei para a luta, já
que me esconder agora não seria mais necessário, uma vez que
estava bem armado, e agora iria andando e não mais me
arrastando como uma jararaca. Talvez por excesso de cuidado,
ou até adivinhando o futuro, eu escondi muitas armas, munição
e granadas pesadas nos buracos e entre as raízes da velha árvore.
Olhando as copas da vegetação mais alta eu pude entender onde
estava e sabia que o certo era andar sempre para o lado norte,
onde deveriam estar os meus colegas que não haviam fugido da
luta.

No caminho encontrei muita destruição de casas, estradas,


pastagens; algumas pessoas de muita idade, com crianças no
colo paravam e olhavam assustados para mim como seu eu fosse
de outro planeta, não mostravam sentir raiva nem medo, só
rostos com expressões vazias de quem havia perdido tudo o que
tinha na vida e já se sentia até conformado; talvez achassem
realmente que sua própria vida já era um bem muito precioso ou
que não valesse mais que um palito queimado.

Uma ponte toda de metal por onde deveriam passar trens -


isso se a ponte não estivesse quase toda desmantelada -
possibilitou minha passagem para o outro lado do rio, o mesmo
rio aonde íamos todos passear para ver o pôr-do-sol e pescar.

57
Elio Assis

Vivendo tudo isso começou a aumentar minha angústia e onde


antes eu me sentia impotente e assustado, foi crescendo uma
raiva muito grande daqueles homens que, tentando invadir
nossas terras, acabaram matando meus amigos, meus parentes,
meus amores e até meu cachorro!

Sem nem mesmo refletir me equipei com o máximo de armas


e munições que podia carregar e comecei a procurar o local
onde o inimigo se escondia.

58
Malandro na linha do trem

Prisioneiro!

Eu não consegui encontrar muitas marcas que me dissessem


onde estava o pelotão dos inimigos, mesmo com toda minha
experiência de vagar por aquelas matas, antigas fazendas,
plantações e pastagens. Finalmente avistei um grupo de
inimigos que vinham para o meu lado e tratei de fugir para o
lado contrário. Surpresa! Eu estava encurralado, do lado para
onde corri havia muitos outros e eu fui preso.

Pegaram minhas armas todas, apanhei um bocado,


arrancaram minha identificação, rasgaram minha farda para
procurar mais armas, roubaram meu coturno e me arrastaram
pela estrada, não sem antes vendar meus olhos para que eu não
soubesse para onde me levavam.
59
Elio Assis

Ouvi barulho de portões e de muita gente falando e gritando.


Fui jogado no chão com um chute nas costas, logo vieram outras
pessoas e tiraram minha venda e pude ver que eram soldados e
até civis que estavam confinados em um tipo de campo de
concentração com muros altos, não de tijolos, mas apenas de
cercas de arame farpado; no topo das cercas, concertinas, que
são aqueles arames cortantes enrolados. Em cada canto havia
uma torre de madeira com soldados bem armados sobre elas e
do lado de fora mais alguns fazendo ronda. Impossível fugir,
para simples mortais, não para mim!

Estava escurecendo e logo vieram gritando para que


entrássemos nas barracas para dormir, ameaçando atirar em
quem não entrasse correndo. Os outros presos foram me
empurrando para fora de suas barracas dizendo que já estava
tudo lotado e sobrou uma delas lá no fundo perto da cerca.
Dormíamos no chão mesmo e como não se podia sair para ir ao
banheiro, o jeito era levantar um pouco o pano da barraca e
fazer as necessidades por lá mesmo.

Pela manhã recebemos o café na cama, quer dizer, na barraca


mesmo, só não sei se aquilo era café, chá, água suja ou sei lá o
que, e um pão tipo francês e mais nada. Quando todos
começaram a sair das barracas eu entendi que era hora de
movimentar um pouco os músculos e ir até a latrina - um buraco
no chão, no meio do campo. Alguns, inclusive eu, fizeram
muitos exercícios sempre sob as vistas e a mira das armas dos
soldados; isso assustava um pouco, pois a qualquer momento
alguém poderia fazer um movimento suspeito e levar um tiro.
Na hora do almoço levavam uma panela para um canto do

60
Malandro na linha do trem

campo, sem pratos; percebi que muitos tinham pratos e pedi um


para mim, que foi jogado no chão perto dos meus pés; era feito
de alumínio desses descartáveis. Em uma fila completamente
desordenada consegui agarrar um pouco de "comida", comi com
as mãos mesmo e fiquei satisfeito desse modo.

À noite, sem conseguir dormir de tanta raiva, comecei a


pensar em com sairia de lá e só de dia pude pensar com mais
calma, sentei no chão e fiquei olhando em volta do campo, para
todos os lados para ver se reconhecia algum lugar das minhas
antigas andanças. Eureca! Descobri onde eu estava! Era um
descampado com poucas árvores que talvez tivesse sido uma
pastagem nos tempos antigos e aí comecei a lembrar de tudo o
que eu e minha turma havíamos aprontado por lá. Só por
divertimento, ou talvez alguma vingança, várias vezes roubamos
carroças, com os cavalos, sem os cavalos, e até somente os
cavalos e burros, e deixamos naquele descampado para que o
dono ficasse desesperado procurando.

Minha fuga seria a mais espetacular jamais imaginada, nem


nos livros de aventuras! Na pressa de montarem e cercarem o
campo, os soldados esqueceram de vasculhar com calma uma
coisa que eu sabia que existia por lá, bem no meio de um
matagal aonde ninguém ia porque poderia despertar suspeita por
ficar bem próximo à cerca de arame. Fingi que passeava e
tomava sol, vistoriei de longe o matagal e reconheci. Era ali
mesmo que havia a entrada de uma caverna! Nada mais que um
buraco no chão, escondido por muito mato, mas que servia de
entrada para uma espécie de labirinto muito extenso, que eu
conhecia muito bem por já ter entrado lá algumas vezes e saído
do outro lado do morro. Estava pronta a estratégia para a fuga

61
Elio Assis

cinematográfica, pena que ninguém veria o que eu estava para


fazer e eu não contaria para nenhum companheiro pelo simples
fato de que isso causaria uma movimentação tão grande que
acabaria por alertar a todos.

Assim que começou a escurecer eu me esgueirei até uma das


tendas dos soldados, esperei a sentinela distrair-se um pouco e,
como um rato, entrei por baixo da lona e roubei uma lanterna
grande. Na manhã seguinte comi e bebi até não aguentar mais,
sabendo que ficaria pelo menos uma hora sem água e sem
aquele "pão" que nos serviam. Escondi a lanterna amarrada
entre as pernas, cheguei o mais próximo possível do matagal,
abaixei o que restou de minhas calças e fingi que fazia minhas
necessidades, com isso até os guardas evitavam olhar para meu
lado e então com um salto certeiro me joguei para dentro do
buraco. De lá de dentro estiquei os braços e arrumei as plantas
da melhor maneira possível para não deixar vestígios de minha
passagem; se alguém havia reparado em mim, deve ter achado
que eu desapareci no espaço, virei um risco, entrei na cartola de
um mágico de circo: em um momento estava lá, no seguinte
havia sumido do mundo!

Logo perto da entrada eu vi o local onde, quando criança, eu


havia "enterrado" um gato morto e lá estava a ossada do gato
bem arrumada, como se ninguém houvesse mexido em nada,
apenas insetos teriam comido tudo, menos os ossos. Poucas
pessoas sabiam da existência daquele labirinto subterrâneo, mas
eu lembrava muito bem que uma das saídas ficava no pé de um
pequeno morro, próximo a outro descampado; acho que tudo
isso deve ter sido feito por um riacho que corria por lá no tempo
das bisavós dos dinossauros, ou até antes disso! Eu estava na

62
Malandro na linha do trem

verdade preocupado mais com os escorpiões que existiam aos


montes por lá, do que com as enormes aranhas que teimavam
em cair em minhas costas e no cabelo, atraídas pela luz da
lanterna, talvez. Eu não tinha outra saída, o jeito era enfrentar a
bicharada e seguir em frente ou voltar e apanhar mais dos
soldados, talvez até ser morto!

Fiquei bastante preocupado quando cheguei a um ponto onde


havia uma bifurcação, uma à esquerda e outra à direita, e eu não
conseguia lembrar por qual delas deveria seguir! Tirei par ou
ímpar comigo mesmo, mas acabei escolhendo o buraco da
direita que me pareceu um pouco mais familiar e também por
ser um pouco mais largo; em alguns pontos eu podia andar, em
outros tinha que engatinhar e no fim desse aperto todo acabei
chegando... ao mesmo lugar onde eu estava quando decidi entrar
pela direita. Acabei entrando "pelo cano". Pelo menos agora
havia uma saída só: pela esquerda.

Entrei quase me arrastando, minhas mãos já estavam


esfoladas, meus pés doíam muito; por sorte mais à frente o
buraco se abriu em outro mais largo e pude andar novamente. O
cheiro naquele local era muito forte, um odor de fezes de
animal, algo quase insuportável; logo senti alguma coisa se
enroscando em meus cabelos, se fosse uma aranha seria a maior
aranha já vista no mundo. Não era aranha, era um morcego que
eu espantei com as mãos e aproveitei para iluminar o teto da
caverna e vi dezenas, centenas, acho que milhares de morcegos,
que ao se verem iluminados pela luz da minha lanterna,
começaram a voar para todos os lados, subindo, descendo,
batendo em mim nos seus voos sem rumo! Corri de lá o mais
rápido que pude e assim que me vi livre deles comecei a pensar

63
Elio Assis

que, se eles se alimentam de insetos e frutas, achei que a saída


deveria estar bem perto por ali.

Vi uma luz fraca e apaguei a lanterna para ter certeza;


realmente era luz natural e com certeza era uma saída da
caverna. Afastei o mato que escondia o buraco, olhei com
bastante atenção para ver quem poderia estar por perto e como
não havia ninguém eu saí, procurando não fazer muito barulho.

Decidi procurar o local onde eu havia escondido todas


minhas armas e munições, antes de ser preso, aquela velha
árvore. Custei muito a achar o local, ainda mais por ter de andar
devagar e com cautela extrema; achei, e lá estava ainda todo
meu tesouro de guerreiro.

64
Malandro na linha do trem

Na toca dos leões

Novamente armado e agora menos preocupado em ser visto,


resolvi procurar alguma ação mais direta e comecei por procurar
o esconderijo do inimigo.

Acostumado como eu estava com aquela mata não foi muito


difícil descobrir onde era o acampamento deles, apenas pelas
marcas deixadas em sua passagem, pelos galhos quebrados e
pelos animais ausentes, pois onde há muito movimento e cheiros
estranhos de pólvora e de combustível os animais não ficam,
fogem para longe.

Para que não dificultassem os meus movimentos deixei as


armas maiores e suas munições em local seguro e levei apenas

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Elio Assis

duas pistolas carregadas, muitas granadas e minha inseparável


faca; eu não podia fazer nenhum barulho na minha
movimentação sorrateira e assim fui chegando cada vez mais
perto do covil dos miseráveis, respirando lentamente, sentindo
os batimentos do meu coração como se estivessem tão altos que
os outros pudessem ouvir.

Achei uma sentinela! Distraído como todos os que se sentem


seguros e confortáveis, estando ali somente para obedecer às
ordens e não para cuidar de si e de seus companheiros. Apenas
atacar por trás - calando sua boca com minhas mãos - e dois
golpes de faca em suas costas, bastou para que ele ficasse
deitado e quieto, talvez pensando em seu futuro que acabou
naquele mesmo instante. Ele estava sozinho naquela ronda e não
havia mais soldados no local e isso facilitou muito minhas
andanças matreiras por lá.

Olhando de um ponto mais elevado eu percebi barulho e


vozes de muitas pessoas e assim entendi que havia chegado
aonde queria: na toca dos leões, no covil dos desgraçados, na
boca dos infernos. Fui obrigado, mas com muito prazer, a matar
mais um soldado que estava incomodando minha passagem e
então eu pude ver onde eles se reuniam e tive a maior surpresa
de toda minha vida, maior do que tudo o que eu já havia passado
e maior ainda de tudo o que eu poderia imaginar de ruim, de
indigno, de algo que nem sei como descrever!

Rodeados de soldados inimigos, estavam reunidos os


militares mais graduados deles, capitães, coronéis, majores e até
um general. Reunido com eles e discutindo apaixonadamente

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Malandro na linha do trem

estava um general que eu conhecia e respeitava muito até aquele


instante: o general do MEU EXÉRCITO!

Espanto dos espantos, eles não pareciam estar discutindo


alguma rendição ou acordo militar, sorriam e conversavam
como amigos assistindo a um jogo de futebol de uma seleção
nacional e bebendo cerveja em um bar. Seus rostos mostravam
expressões de amizade e companheirismo, coisas que nem com
meus camaradas eu próprio compartilhava, era uma situação de
cumplicidade em algum ato criminoso, se mostravam mais
tranquilos do que traficantes de drogas da mesma quadrilha
trocando informações de pontos de venda de cocaína ou
maconha.

Os soldados que estavam perto da reunião eram dos dois


exércitos e não estavam nem ao menos lutando entre si, se
limitavam a ficar de prontidão, mas sem muito empenho, apenas
olhando para os chefões reunidos, como se os próprios soldados
também estivessem tentando entender algo. Algumas dúvidas
passaram por meus pensamentos, seria um ato de rendição de
alguma das partes? Impossível, neste caso o perdedor não
estaria mostrando tanta confiança e tranquilidade, mas
desespero e mágoa. Talvez eu estivesse sonhando, mas os
pequenos ferimentos em meu corpo não me deixariam esquecer
que eu estava vivo e acordado. Eu precisava entender o que
estava acontecendo para tomar alguma decisão, mas fiquei
pasmo por alguns minutos, nada mais se encaixava na minha
cabeça, meus pensamentos giravam e a única reação que tive foi
ficar deitado no chão com os olhos fechados, só pensando na
situação a que cheguei por tentar resolver as coisas por mim
mesmo. A realidade é que eu estava lá, disposto a tomar alguma

67
Elio Assis

atitude que, se não resolvesse o problema do mundo inteiro,


pelo menos me deixaria mais conformado por haver ido até o
fim naquilo a que eu havia me proposto.

Me “arrastando como cobra pelo chão”, como dizia a música


popular, cheguei o mais perto possível e tentei ficar total e
completamente imóvel para ouvir o que estavam dizendo;
algumas formigas resolveram explorar minhas mãos para saber
se havia algo aproveitável no meu corpo, passearam, deram
algumas ferroadas e foram embora, mesmo assim não mexi um
dedo. Uma aranha de bom tamanho também resolveu conferir
meu casaco e veio me fazer companhia, mas com esse tipo eu já
estava acostumado e não me incomodou nem um pouco.
Continuei imóvel como uma pedra e pensei que, se ficasse
muito tempo naquela posição, até as plantas tomariam conta de
mim e me fariam parte de suas raízes e folhas.

A ideia que me restava, e que me dava tontura só de pensar


que pudesse ser verdade, mesmo eu sabendo que em guerra e
política tudo é possível, foi confirmada: ELES ESTAVAM
UNIDOS, haviam tramado tudo aquilo em conjunto e a
motivação parece que ficou bem clara dentro de mim. Perdendo
a guerra, o governo civil do pais nosso inimigo sairia
enfraquecido e assim os militares teriam uma desculpa séria
para tomar o poder e culpar os atuais governantes pelos gastos
desnecessários com essa investida militar. Ganhando a guerra,
nossos generais sairiam fortalecidos e também poderiam tomar
o poder nas mãos, declarando que o nosso governo civil havia
criado essa situação por torpes motivos políticos de esquerda.
Cheguei a essa conclusão refletindo sobre os últimos
acontecimentos dos dois países, sobre a insegurança de todos,

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Malandro na linha do trem

tanto na situação econômica dos povos, como no envolvimento


dos políticos em desvio de dinheiro e de bens, um verdadeiro
caos, criado justamente para desviar a atenção sobre as trapaças
que aconteciam. Mas tomar o poder desse modo foi uma ideia
infame, destruir a vida pessoal de todos, matando tantos jovens
e mostrando ao mundo, mais uma vez, que estes países não
poderiam ser levados a sério por investidores internacionais.
Isso também explicou, pelo menos para mim, o motivo do
despreparo dos exércitos, a guerra era apenas um pretexto para
seus motivos pessoais e não importava quantos iriam morrer ou
ficarem inválidos.

Não tive mais dúvidas sobre meus próximos atos, se não


podia resolver, pelo menos podia tentar acabar com alguns dos
envolvidos, algo assim como uma vingança pessoal pelo que
haviam feito com nossas vidas.

Levantei um pouco a cabeça para olhar em volta e vi que


continuava sozinho e que ninguém havia percebido que eu
estava por lá, todos estavam tão seguros da situação que não
tinham mais receio de nada. Eu nunca estive muito preocupado
em viver ou morrer e muito menos agora, nisto que me pareceu
o final dos tempos para todos nós. Assim pensando peguei
algumas granadas e coloquei no cinto e uma delas, a de maior
potência, aninhei em minha mão direita, destravando o pino de
segurança. Não havia mais tempo para refletir nem pensar em
coisa alguma, era a hora de cobrar o pênalti no meu futebol
imaginário, levantei de um salto e comecei a correr em direção
aos que estavam reunidos, que só me viram quando cheguei
perto, já com o braço onde estava a granada todo estendido para
trás e assim atirei o explosivo bem no meio de todos eles que

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Elio Assis

mal tiveram tempo de levantar; o que eu havia planejado estava


dando certo, depois de atirar a granada, a grande pedra que
estava no meio do caminho me protegeu quando atirei a mim
mesmo no chão atrás dela. Meu ataque quase suicida não parou
por aí, sem esperar o resultado da primeira, atirei todos os outros
explosivos, uns para a esquerda e outros para a direita e assim
eliminei os que começaram a correr em minha direção para me
eliminar. Com muito cuidado puxei uma arma e olhei para ver o
que havia acontecido com as gangues. Os que haviam sobrado
estavam correndo para bem longe, pensando que o ataque havia
sido feito por uma grande tropa que eles nem sabiam de qual
dos exércitos seria.

Serviço feito, voltei e peguei o resto da munição e armas que


estavam escondidos e só nesse momento percebi que eu estava
vivo e sem nenhum ferimento grave e era o grande vencedor
desta batalha pessoal que eu pensava ser pequena e de pouco
importância e que me deixou satisfeito e vingado.

Com a debandada dos soldados que sobraram por lá, os


demais completamente desmotivados e sabendo que seus líderes
estavam mortos e pensando que nós havíamos iniciado um
grande ataque, começaram também a desertar e ir embora sem
olhar para trás, deixando as armas pesadas para trás.

Nem sei de que modo o pessoal do meu exército soube do


que aconteceu e todos foram aparecendo aos poucos,
inicialmente muito desconfiados e logo depois tomando posse
de todos os locais de onde haviam fugido deixando os pobres
civis desprotegidos. Muitos dos sobreviventes da mortandade
que eu havia promovido logo entenderam tudo o que havia se

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Malandro na linha do trem

passado e mesmo muitos dos inimigos entregaram suas armas e


suplicaram para serem perdoados.

Caso possa interessar a alguém saber o que se passou com os


dois países, é bem claro que os verdadeiros governantes
puniram com muita severidade os demais culpados pela guerra
e, aos poucos, tudo foi voltando ao normal, às pequenas
aventuras e desventuras do dia a dia.

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Elio Assis

Paz e liberdade

Agora eu não me sentia obrigado a servir a mais ninguém, a


não ser a mim mesmo; troquei a farda e as armas por roupas
civis e esperei o próximo trem, desta vez no sentido contrário ao
que eu estava acostumado nos últimos tempos.

Desnecessário dizer para onde eu ia: procurar mais uma vez


minha musa inspiradora, o verdadeiro amor feito pessoa.

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Malandro na linha do trem

Créditos

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O autor recomenda aos jovens que não procurem as


encrencas e confusões em que o personagem se
mete, já que a vida se encarrega de nos levar
sempre a enfrentar duras provas e os resultados
nunca são tão favoráveis como pode parecer aos
incautos.

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