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Entorses do Tornozelo

da Lesão Aguda à Instabilidade Crónica

» Rev Medic Desp in forma, 1 (5), pp.12-14, 2010

Marta Massada (1), Alexandre Pereira (1), Ricardo Aido (1), Ricardo Sousa (1), Leandro Massada (2)
(1)
Serviço de Ortopedia, Hospital de Santo António, Centro Hospitalar do Porto | (2) Departamento
1

de Traumatologia, Faculdade de Desporto, Universidade do Porto


tema

abstract

A entorse do tornozelo encontra-se entre as lesões mais comuns no desportista e na popula-


ção fisicamente activa. Apesar de frequentemente consideradas triviais, estas lesões podem
representar um problema real em termos de saúde pública, face à elevada prevalência de
sintomatologia e incapacidade residuais. O principal factor predisponente da entorse do
tornozelo é a história de entorses prévias desta articulação. Sendo que a sintomatologia
residual destas lesões pode alterar de forma significativa o estado de saúde dos indivíduos
que sofrem de instabilidade recorrente, os autores são da opinião que as entorses do tor-
nozelo não devem ser consideradas lesões ligeiras. Pelo contrário, devem desenvolver-se
abordagens correctas e programas de prevenção adequados.

Ankle sprain is among the most common injuries in sports and in the active population. Although
often regarded as trivial by athletes and coaches, they can represent a significant public health
problem. The primary predisposing factor to suffering an ankle sprain is a history of previous
sprains.As residual symptoms of ankle sprains can alter significantly the health of individuals who
suffer from recurrent instability, it’s the authors’ opinion that they shouldn’t be considered mild
injuries. In contrast, a proper approach to this injury and a prevention programme are required.

palavras-chave Entorse do tornozelo; Entorse recidivante; Instabilidade crónica;


Desporto; Prevenção; (Ankle sprain; Recidivant sprain; Chronic
keywords instability; Sports, Prevention)

Introdução ponentes mais frequentemente asso-


A entorse do tornozelo representa a pa- ciados são a história prévia de entorse,
tologia traumática mais frequente da alterações na proprioceptividade e força
população activa (1,2)
. Nos Estados Unidos dos músculos eversores do tornozelo e
estimam-se cerca de 23000 entorses do índice de massa corporal elevado(7-10).
tornozelo diárias (1 entorse/10000 indi- Os autores analisaram num estudo an-
víduos/dia)(1). No nosso país, os números terior a incidência, tempo de abstinên-
atingem particular importância no meio cia desportiva, mecanismo de lesão e
desportivo, com 30% dos atletas apresen- sequelas associadas aos traumatismos
tando pelo menos um traumatismo em agudos em inversão da articulação tí-
inversão do tornozelo durante a carrei- bio-társica numa população desportista
ra . Apesar de usualmente consideradas
(3)
portuguesa(11). A entorse do tornozelo
lesões triviais, as entorses do tornozelo obteve uma prevalência de 25.8%, re-
representam um problema de saúde pú- velando-se a patologia traumática mais
blica importante, associado a uma absti- usual entre os futebolistas (29.6%). O
nência desportiva e laboral significativas. mecanismo causal relacionou-se habi-
tualmente com deslocamentos laterais
Factores de risco no desporto e sprints, entrando em jogo o binómio
Os desportos com corrida, saltos, mu- irregularidade do terreno/aderência da
danças de direcção e contacto com ou- chuteira ao relvado. Os terrenos de jogo
tros jogadores são aqueles em que se ve- encharcados e o sapato desportivo com
rifica uma maior incidência de entorse pitões desadequados mostraram-se fac-
tíbio-társica . Os factores predis-
(2,4-7,9,10)
tores relevantes no desencadeamento de

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situações potencialmente instáveis para o apoio plantar. Entre anos após a lesão(15). Os sintomas residuais são responsáveis
os andebolistas, basquetebolistas e voleibolistas, as entorses por alterações na qualidade de saúde dos indivíduos que so-
do tornozelo surgiram com maior frequência na fase final do frem de instabilidade, podendo persistir até pelo menos 2 anos
salto (apoio plantar anormal sobre o pé do adversário/colega após a lesão(10), causando a longo prazo alterações degenerati-
de equipa). vas determinadas pela alteração da concentração dos esforços
mecânicos articulares(11,15,19).
Apenas uma entorse?
O mecanismo habitualmente associado com a entorse do tor- Tratamento: conservador ou cirúrgico?

1
nozelo é um traumatismo em inversão excessiva, com supi- Não existe um tratamento “óptimo” consensual para as entor-

tema
nação, rotação interna e flexão-plantar do complexo articular ses do tornozelo. No atleta jovem com evidência diagnóstica
tornozelo-pé(5). Neste tipo de traumatismo, as estruturas mais de rotura aguda do LPAA e/ou LCP o tratamento cirúrgico
frequentemente lesadas são o ligamento peróneo-astragalino imediato é uma opção válida, com resultados demonstrados(16).
anterior (LPAA), a região ântero-lateral da cápsula articular, A exigência da alta competição e a necessidade de um retorno
o ligamento calcâneo-peroneal (LCP) e o ligamento peróneo- rápido à actividade, minimizando a sintomatologia residual e/
astragalino posterior, o que resulta inevitavelmente em dor, ou a instabilidade sequelar podem ser alguns dos factores pro-
redução do arco de movimento e défice funcional . Os meios
(4,5)
postos na “defesa” desta abordagem. No entanto, são vários os
complementares de diagnóstico devem ser utilizados com sen- autores que referem não existir diferença significativa entre os
dois tipos de tratamento. Povacz et al numa população não-
atleta, mostraram resultados funcionais semelhantes entre os
dois tipos de tratamento e um período de recuperação mais
rápido no grupo tratado conservadoramente(17). Pijnenburg ve-
rificou que uma estratégia de “não-tratamento” conduz a mais
sintomatologia residual e que o tratamento cirúrgico apresen-
ta melhores resultados que o tratamento funcional e que este
tem melhores resultados que a imobilização gessada por 6 se-
manas(18). Na abordagem inicial da lesão ligamentar aguda, os
autores defendem a análise individual de cada caso, ponderan-
Figura 1 - Regras de decisão para realização de Rx nas lesões agu-
do, para além da gravidade da lesão, os níveis de actividade e
das do tornozelo (segundo regras de Ottawa).
a exigência competitiva do atleta em questão. Na instabilidade
so, sendo aconselhados quando a clínica o justifique. Segundo crónica, incapacitante tanto no desportista como no indivíduo
as regras de Ottawa (Fig. 1), o estudo radiográfico simples tem activo, os autores defendem a reparação cirúrgica como única
indicações precisas podendo ser complementado com o exame forma de restaurar a biomecânica do tornozelo. Num estudo
em stress dos dois tornozelos ou com ressonância magnética(12). de Hintermann et al, a artroscopia do tornozelo permitiu vi-
Após o primeiro episódio, o risco de desenvolvimento de ins- sualizar lesões da cartilagem articular em 66% dos tornozelos
tabilidade crónica do tornozelo (ICT) aumenta exponencial- com alterações ligamentares externas e em 98% das lesões do
mente(1,4,16). Yeung reportou uma taxa de recorrência em 73% deltóide(19), o que enfatiza a necessidade de correcção desta
dos indivíduos vítimas de um primeiro episódio de entorse e anomalia mecânica, potenciadora de lesão adicional.
sintomas residuais e incapacidade que condicionaram inevita-
velmente a prática desportiva em 59%(14). Baseados num estudo A prevenção
epidemiológico que conduzimos entre jovens atletas de quatro A prevenção, amplamente discutida, não se acompanha de
das principais modalidades em Portugal (voleibol, basque- evidência científica que suporte os benef ícios da aplicação dos
tebol, futebol e andebol), pudemos verificar que pelo menos métodos aconselhados. O treino proprioceptivo, referido insis-
11.3% dos atletas sofreram entorses recidivantes do tornozelo tentemente como uma medida profiláctica eficaz, parece dimi-
e 3.5% da população total desenvolveu sintomas residuais de nuir a recorrência de lesão nos atletas com história prévia, mas
instabilidade articular crónica que condicionaram seriamente não naqueles que nunca sofreram uma entorse do tornozelo(27-
a prática desportiva(11). De referir, ainda, que em cada 100 en- . O taping ou bracing do tornozelo é de utilização endémica
29)

torses passam despercebidas 15 lesões ligamentares externas nos desportistas. Acredita-se que associado a mecanismos neu-
graves(3). Anandacoomarasamy et al demonstraram a persis- romusculares reflexos(28,29), o suporte externo pode potenciar a
tência de pelo menos um sintoma em 74% dos atletas 1.5 a 4 estabilidade, protegendo as estruturas ligamentares através da

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restrição dos movimentos de inversão severos(30,31). Não existe, 6. Ekstrand J, Tropp H. The incidence of ankle sprains in soccer. Foot Ankle 1983; 11:41-44.

no entanto, evidência comprovando inequivocamente o efeito 7. Boland AJ, Glick J. Editorial comment. Am J Sports Med 1981; 9: 316-317.
8. Brynhildsen J, Ekstrand J, Jeppsson A. Prevention of anterior cruciate ligaments injuries
protector das ortóteses ou do taping do tornozelo. A escolha do
in soccer: A prospective controlled study of proprioceptive training. Knee Surg Sports Trau-
calçado desportivo, por vezes limitado pelos ditames da moda matol Arthrosc 1990; 4: 19-21.

ou influência publicitária, pode igualmente influir na história 9. Ekstrand J, Gillquist J. The frequency of muscle tightness and injuries in soccer players. Am
J Sports Med 1982; 10: 75-78.
natural da entorse. A única certeza dos autores é que, não obs-
10. McKay GD, Goldie PA, Payne WR, Oakes BW. Ankle injuries in basketball: injury rate
tante os meios de prevenção adoptados, a entorse do tornozelo and risk factors. Br J Sports Med 2001; 35: 103-108.
continuará a ser uma lesão frequente no sistema esquelético do 11. Massada M, Pereira A, Sousa R, Freitas D, Muras Geada J, Massada, L. Traumatismo
1

em inversão do tornozelo - Apenas uma entorse? Estudo epidemiológico numa população


Homem, com impacto real na saúde do atleta (Fig. 2).
tema

desportista jovem. XXIX Congresso Nacional de Ortopedia 2009; CL5.


12. Stiell IG, McKnight RD, Greenberg GH, McDowell I, Nair RC, Wells GA, Johns
C, Worthington JR. Implementation of the Ottawa ankle rules. JAMA. 1994 Mar
16; 271(11): 827-32
13. Beynnon BD, Renström PA, Haugh L, Uh BS, Barker H. A prospective, rando-
mized clinical investigation of the treatment of first-time ankle sprains. Am J Sports
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J Sports Med 1994; 28: 112-116.
15. Anandacoomarasamy A, Barnsley L. Long term outcomes of inversion ankle injuries. Br
Figura 2 - A- Rx em stress evidenciando báscula do astrágalo, sinal
J Sports Med 2005; 39: e14.
de instabilidade ligamentar externa. B- Imagem intra-operatória
16. Staples OS. Ruptures of the fibular collateral ligaments of the ankle. Result study of im-
demonstrando a rotura completa das estruturas capsulo-ligamen-
mediate surgical treatment. J Bone Joint Surg 1975; 57: 101 - 107.
tares externas do tornozelo.
17. Povacz P, Unger F, Miller, Tockner R, Resch H. A Randomized, Prospective Study of Ope-
rative and Non-Operative Treatment of Injuries of the Fibular Collateral Ligaments of the
Ankle. J Bone Joint Surg 1998; 80: 345 – 51.
Discussão 18. Pijnenburg ACM, van Dijk C, Bossuyt PMM, Marti RK. Treatment of Ruptures of the
A entorse do tornozelo é uma das lesões mais frequentes no des- Lateral Ankle Ligaments: A Meta-Analysis. J Bone Joint Surg, 2000; 82: 761.
19. Hintermann B, Boss A, Schäfer D. Arthroscopic Findings in Patients with Chronic Ankle
porto, revelando uma prevalência elevada não só de entorses reci-
Instability. Am J Sports Med 2002; 30:402-409.
divantes, como de instabilidade articular crónica. O não reconheci-
20. Harrington KD. Degenerative arthritis of the ankle secondary to longstanding lateral
mento da real gravidade da entorse do tornozelo, pode condicionar ligament instability. J Bone Joint Surg 1979; 61(A): 354-361.

o tratamento e o prognóstico destas lesões. Assim sendo, o conceito 21. Pinar H, Akseki D, M. Bozkurt, Kovanlikaya I, Araç S, Bozkurt M. Bone bruises detected
by magnetic resonance imaging following lateral ankle sprains. Knee Surg Sports Traumatol
de trivialidade associado à entorse do tornozelo deve ser modifi-
Arthrosc 1997; 5: 113–117.
cado na prática médico-desportiva, aconselhando-se um exame 22. Schäfer D, Hintermann B. Arthroscopic assessment of the chronic unstable ankle joint.
clínico cuidadoso, determinando o mecanismo causal com pesqui- Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 1996; 4: 48-52.
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sa sistemática de sinais de instabilidade (sinais de gaveta anterior e
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posterior positivos e/ou báscula externa do astrágalo nas manobras 24. Volpi P, Pozzoni R, Galli M. The major traumas in youth football. Knee Surg Sports
em stress). Torna-se, ainda, fulcral enfatizar a criação de estratégias Traumatol Arthrosc 2003; 11: 399–402.

preventivas efectivas, como a criação de perfis pré-lesionais de esta- 25. Leanderson J, Nemeth G, Eriksson E. Ankle injuries in basketball players. Knee Surg
Sports Traumatol Arthrosc 1993; 1:200-202.
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namento pré-época de força, agilidade e flexibilidade, permitindo o rature review. J Athl Train 2002; 37(4): 376–80.
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28. Leanderson J, Nemeth G, Eriksson E. Ankle sprain and postural sway in basketball
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