Título:

No coração da tempestade: No coração da tempestade:

irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
irrupções insólitas em
Autor: Vinte e zinco,
João Olinto Trindade Junior de Mia Couto
Apresentação:
Flavio García
João Olinto Trindade Junior

Prefácio:
Marisa Martins Gama-Khalil

Revisão:
Beatriz Grego Torres Apresentação
Isabela Eduardo Cruz
Flavio García
Diagramação:
Igor Cesar Rosa da Silva

Capa:
Ana Paula de Menezes Firmino
Luiza Amaral Wenz Prefácio
Coordenação Editorial:
Darcilia Simões Marisa Martins Gama-Khalil
Flavio García

Ficha Catalográfica
J801c Trindade Junior, João Olinto.
No coração da tempestade: irrupções
insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto /
João Olinto Trindade Junior. – Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2013.
130 p.
ISBN 978-85-8199-013-2
2013
1. Literatura Moçambicana.
Ϯ͘ƌşƟĐĂ>ŝƚĞƌĄƌŝĂ͘ϯ͘dşƚƵůŽ͘
CDD: 869.3
CDU: 690.09
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 9
hDK>,ZZ/EsEdK^KZKZ>ͳE/D/^DK........................... 13
ADENTRANDO........................................................................................... 17
FANTÁSTICO .............................................................................................. 23
'žÄ›ÙÊ›Ý琦žÄ›ÙÊÝ ................................................................................. 26
DʗÊ........................................................................................................... 29
&ƒÄã…Ý㮑Ê›/ÄÝ̽®ãÊ .................................................................................. 31
Z›ƒ½ͲDƒÙƒò®½«ÊÝÊ....................................................................................... 33
Z›ƒ½ͲĮîÝÃÊ ............................................................................................ 35
MOÇAMBIQUE, LITERATURA MOÇAMBICANA, MIA COUTO .................. 43
DʖƒÃ®Øç› ............................................................................................... 45
>®ã›ÙƒãçكDʖƒÃ®‘ƒÄƒ ........................................................................... 50
>®ã›ÙƒãçكDʖƒÃ®‘ƒÄƒ›Z›ƒ½ͲĮîÝÃÊ............................................... 58
D®ƒÊçãÊ›Ê&ƒÄã…Ýã®‘Ê ........................................................................... 61
D/ZKKZ>ͳE/D/^DKDVINTE E ZINCO ........................... 71
‘ƒÝƒ¥Ù®‘ƒ›ƒ‘ƒÝƒ›Ã¥Ù®‘ƒ͗›ÄãٛƒòƒÙƒÄ—ƒ›ÊØç®Äヽ ............... 73
EÊ‘Êك–‡Ê—ƒã›Ã֛Ýプ› ........................................................................ 82
›ƒÃç½ƒÄ—ÊÖÊÙ›Ýփ–ÊÝ—›îك®½®ƒ›ÃϮϱ—›Ù®½ ........................... 88
ƒÝƒ—Ê݃ÝãÙÊ›ÊØç®Äヽ͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘95
WƒÝݛ®ÊÝ֛½ÊݐÊÝØç›Ý—›®Ä‘Ê͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘͘102
SAINDO... .................................................................................................118
REFERÊNCIAS ...........................................................................................122
Um olhar reinventado sobre o Real-Animismo
ŶŽƐƐĂůşŶŐƵĂĐŽŵƵŵĨŽŝĐŽŶƐƚƌƵşĚĂƉŽƌůĂĕŽƐĂŶƟŐŽƐ͕ƚĆŽĂŶƟ-
gos que por vezes lhes perdemos o rasto. (Mia Couto)
EĂƉƌĄƟĐĂĚŝƐĐƵƌƐŝǀĂĚŽƐƉƌĞĨĄĐŝŽƐĠĐŽŵƵŵƚĞƌŵŽƐƚĆŽƐŽŵĞŶƚĞĂĂƉƌĞƐĞŶ-
tação dos temas e argumentos arrolados ao longo do livro prefaciado. Entretanto
ĞƐƚĞůŝǀƌŽƋƵĞƉƌĞĨĂĐŝŽŝŶĐŝƚŽƵͲŵĞĂŽĚŝĄůŽŐŽĞƚĂůŝŶĐŝƚĂĕĆŽĚĞǀĞƵͲƐĞăĐƌŝƟĐŝĚĂĚĞ
ƋƵĞƐĞĞƐƉƌĂŝĂŶŽƐƚĞŵĂƐ͕ĂƌŐƵŵĞŶƚŽƐĞĂŶĄůŝƐĞƐ͕ƋƵĞďƵƐĐĂŵ͕ƉŽƌŝŶƚĞƌŵĠĚŝŽĚĂƐ
ƚĞŽƌŝnjĂĕƁĞƐƐŽďƌĞŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞƐŽďƌĞŽŝŶƐſůŝƚŽŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ĂƚƵ-
ĂůŝnjĂƌĂŶŽĕĆŽĚĞZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͕ŶŽƐĞŶƟĚŽĚĞĂŵƉůŝĂƌĂƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐĚĞůĞŝƚƵƌĂĚĂ
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ƚŽŵĂŶĚŽĐŽŵŽďĂƐĞĚĂƐƌĞŇĞdžƁĞƐŽƌŽŵĂŶĐĞVinte e zinco, do
escritor moçambicano Mia Couto.
Meu contato com esta pesquisa de João Olinto Trindade Junior ocorreu por
ŽĐĂƐŝĆŽ ĚĂ ŵŝŶŚĂ ƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽ ŶĂ ďĂŶĐĂ ĚĞ ĚĞĨĞƐĂ ĚĞ ƐƵĂ ĚŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ Ğ͕ ŶĂƋƵĞůĞ
momento, assinalei a importância da revisitação que ele operou na noção de Real-
Animismo, de forma a compreendê-la por meio do contato com outras noções refe-
ƌĞŶƚĞƐĂŽĐĂŵƉŽĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͘
Tanto no texto da dissertação, como em seu resultado, em forma de livro,
o que temos é a escrita madura de um pesquisador que busca não apenas aplicar
ĐŽŶĐĞŝƚŽƐĞŵƐĞƵŽďũĞƚŽĚĞĞƐƚƵĚŽ͕ƚŽĚĂǀŝĂ͕ƵŵƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌƋƵĞƚŽƌŶĂŽƐĐŽŶĐĞŝƚŽƐ
ƵŵůƵŐĂƌĚĞŝŶĚĂŐĂĕƁĞƐĞƌĞŝŶǀĞŶĕƁĞƐ͕ŵŽǀŝŵĞŶƚŽŝŶĞƌĞŶƚĞĂŽĨĂnjĞƌĐŝĞŶơĮĐŽ͕ƵŵĂ
ǀĞnjƋƵĞĂĐŝġŶĐŝĂĂƉĞŶĂƐƐĞƚŽƌŶĂƉŽƐƐşǀĞůƉĞůĂŝŶƋƵŝƌŝĕĆŽĞƉƌŽďůĞŵĂƟnjĂĕĆŽĚŽƐ
estudos e pesquisas, noções e categorias em uso.
No primeiro capítulo, o autor traz para a cena o debate epistemológico sobre
ƋƵĞƐƚƁĞƐ ĐŽŶĐĞƌŶĞŶƚĞƐ ĂŽƐ ĞƐƚƵĚŽƐ ƐŽďƌĞ Ă ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͘ WĂƌĂ ƚĂŶƚŽ͕ ƉĂƌ-
te da relação dessa literatura com as noções de gênero e subgênero, constantes
ŶŽĞƐƚƵĚŽĚĂƋƵĞůĞƋƵĞ͕ŶĂĚĠĐĂĚĂĚĞŽŝƚĞŶƚĂĚŽƐĠĐƵůŽyy͕ƐŝƐƚĞŵĂƟnjŽƵŽƐĞƐƚƵ-
ĚŽƐƐŽďƌĞůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕dnjǀĞƚĂŶdŽĚŽƌŽǀ͘ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞĞƐĐůĂƌĞĐĞƌĂŽůĞŝƚŽƌ
ƋƵĞŽƐĞƐƚƵĚŽƐĚĞdŽĚŽƌŽǀĨŽƌĂŵŝŵƉŽƌƚĂŶơƐƐŝŵŽƐĞŵĚĞĐŽƌƌġŶĐŝĂĚĂŽƌŐĂŶŝnjĂĕĆŽ
que ele conferiu a algumas ideias e conceitos que se encontravam dispersos so-
ďƌĞ ĞƐƐĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ƋƵĞ ƚġŵ ŶĂ ƐƵďǀĞƌƐĆŽ ĚŽ ƌĞĂů Ă ƐƵĂ ďĂƐĞ ĞƐƚĠƟĐĂ͖ ĐŽŶƚƵĚŽ͕ Ă
ŵĂŝŽƌŝĂĚŽƐĞƐƚƵĚŝŽƐŽƐĚŽƚĞŵĂ͕ŚŽũĞ͕ĠĂĐŽƌĚĞĞŵƉĞƌĐĞďĞƌĂƐůĂĐƵŶĂƐĚĞŝdžĂĚĂƐ
por Todorov em função do rigor de enquadramento aos pressupostos discursivos e
ĞƐƚĠƟĐŽƐĚŽĞƐƚƵĚŽĚĞŐġŶĞƌŽ͘WŽƌŝƐƐŽĂĐƌĞĚŝƚĂŵŽƐŵƵŝƚŽĂĐĞƌƚĂĚĂĂƉŽƐŝĕĆŽƋƵĞ
João Olinto toma logo na sequência à exposição acerca dos gêneros e subgêneros,
João Olinto Trindade Junior No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto

ƵŵĂǀĞnjƋƵĞĞůĞŽĨĞƌĞĐĞĂŽƐůĞŝƚŽƌĞƐĂŶŽĕĆŽĚĞůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂƉĞůŽŵŝƌĂŶƚĞ -brasileira”. Ser obrigatório, em nosso ponto de vista, é quase que não-ser, porque o
teórico do modo, como estabelecido pelo pesquisador português Filipe Furtado, no ƋƵĞŶŽƐŽďƌŝŐĂƋƵĂƐĞƐĞŵƉƌĞŶŽƐĂĨĂƐƚĂ͖ĞŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ƐĂďĞŵŽƐŽƋƵĆŽĠŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞ
ͲĚŝĐŝŽŶĄƌŝŽĚĞƚĞƌŵŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐ͕ŽƌŐĂŶŝnjĂĚŽƉŽƌĂƌůŽƐĞŝĂ͘EĞƐƐĞƐĞŶƟĚŽ͕ĂƐƐŝŶĂůĂ ŶſƐ͕ďƌĂƐŝůĞŝƌŽƐ͕ĂĐĞƌĐĂƌŵŽͲŶŽƐĚŽƐǀĂůŽƌĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĞůŝƚĞƌĄƌŝŽƐĚĞƵŵƉŽǀŽƋƵĞŶŽƐ
ƋƵĞĂůĞŝƚƵƌĂĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂƉĞůĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂŵŽĚĂůĠĐŽŶĚƵnjŝĚĂƉĞůĂŶŽĕĆŽ ĂũƵĚŽƵĂƐĞƌŽƋƵĞƐŽŵŽƐ͕͘ĐŽŵƵŵĞƐƚƵĚŽƚĆŽƌŝĐŽƋƵĂŶƚŽŽĚĞƐƚĞůŝǀƌŽ͕ƉŽĚĞŵŽƐ
ĚĞ͞ĮĐĕĆŽĚŽŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͕͟ŽƵƐĞũĂ͕ƉĞůĂŝƌƌƵƉĕĆŽĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůŶĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐ͘ ĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞƌŵƵŝƚŽŵĂŝƐƐŽďƌĞŶŽƐƐĂƐĂĮŶŝĚĂĚĞƐĞŶŽƐƐĂƐĚŝĨĞƌĞŶĕĂƐĞŵƌĞůĂĕĆŽĂ
A consideração do modo como ponto de vista teórico para se entender a literatura ƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƋƵĞŶŽƐĐŽŶƐƟƚƵŝ͘
ĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕ĐŽŵŽďĞŵƉŽŶƚƵŽƵŽĂƵƚŽƌ͕ƚĂŵďĠŵƉĂƌƚĞĚĂƐĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕƁĞƐĨĞŝƚĂƐƉĞůĂ
EĂĂŶĄůŝƐĞĚĞVinte e zinco, que compreende o terceiro capítulo, é importan-
francesa Irene Bessière.
te ressaltar o quanto o autor deste livro mostra-nos como Mia Couto faz um liame
Como tenho demonstrado em variados estudos, este vem sendo o meu mi- ĞŶƚƌĞĂƚƌĂĚŝĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂĞĂƚƌĂĚŝĕĆŽŽƌĂů͕ƌĞĐƵƉĞƌĂŶĚŽĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽ
ƌĂŶƚĞĚĞĂŶĄůŝƐĞĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕ŵŝƌĂŶƚĞĞƐƐĞƋƵĞŶĆŽŽďůŝƚĞƌĂƉƌŽĚƵĕƁĞƐ ĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ƐƵĂƐůŝŶŐƵĂŐĞŶƐ͕ƐĞƵƐǀĂůŽƌĞƐ͕ƐĞƵƐĞƐƉĂĕŽƐŵşƟĐŽƐĞƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕ƋƵĞ
que se encontram fora do recorte feito por Todorov, que não considera, por exem- ĚĞƐĐŽƌƟŶĂŵŽĞŶůĂĐĞĞŶƚƌĞŽƐƌĞĂůŝĂĞŽƐŵŝƌĂďŝůŝĂ͕ĞŶůĂĐĞĞŶĆŽũƵŶĕĆŽĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶ-
ƉůŽ͕ĂƉƌŽĚƵĕĆŽĚŽƐĠĐƵůŽyyĐŽŵŽƐĞŶĚŽůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͘ĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͕ŽƉŽƐŝ- ƚĂĕƁĞƐĐŽŶƚƌĄƌŝĂƐŽƵĐŽŶƚƌĂĚŝƚſƌŝĂƐ͕ĞŶůĂĐĞĞƐƚĞƐĞŵƉƌĞĞƵĨſƌŝĐŽĞũĂŵĂŝƐĚŝƐĨſƌŝĐŽ͘
cionamento do autor do presente livro amplia o campo que abarca a literatura fan- WĂƌĂĂĂŶĄůŝƐĞĚĞVinte e zinco͕ƐĆŽĂĐŝŽŶĂĚĂƐŝŶĨŽƌŵĂĕƁĞƐŚŝƐƚſƌŝĐĂƐ͕ŐĞŽŐƌĄĮĐĂƐ͕
ƚĄƐƟĐĂĞ͕ƉŽƌĞƐƐĞǀŝĠƐ͕ƚĂŶƚŽŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĐŽŵŽŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽĞƐƚĂƌŝĂŵ ĂŶƚƌŽƉŽůſŐŝĐĂƐĞůŝƚĞƌĄƌŝĂƐ͕ĞŽƌĞƐƵůƚĂĚŽƋƵĞĮĐĂƉĂƌĂŶſƐ͕ůĞŝƚŽƌĞƐ͕ĠƵŵĞƐƚƵĚŽ
ŝŶƐĞƌŝĚŽƐŶŽŐƌƵƉŽĚĞŽďƌĂƐƋƵĞƚġŵŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽŵŽĚŽĂŐƌĞŐĂĚŽƌ͘ ŝŶƐƟŐĂŶƚĞƋƵĞƵŶĞ͕ĐŽŵŽĚŝƌŝĂZŽůĂŶĚĂƌƚŚĞƐ͕ƐĂďĞƌĞƐĂďŽƌ͘DŝĂŽƵƚŽ͕ĂŽůŝĚĂƌ
ĐŽŵŽƐǀĂůŽƌĞƐĚŽƐĞƵƉĂşƐ͕ĚŽƐĞƵĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͕ĚĞĨŽƌŵĂƚĆŽƌĞƉůĞŶĂ ĚĞƐĞŶƟĚŽƐ͕
WĂƌĂƌĞĨŽƌĕĂƌĂŝĚĞŝĂĚĞĮĐĕĆŽĚŽŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͕:ŽĆŽKůŝŶƚŽŽĨĞƌĞĐĞͲŶŽƐƵŵ
faz do saber uma festa (mais uma vez evocando Barthes), pois não os estagna em
ĚĞďĂƚĞƐŽďƌĞŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŵŽƵŵĂĐĂƚĞŐŽƌŝĂŽƉĞƌĂĐŝŽŶĂůŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĞ͕
uma representação convencional, e João Olinto segue essa festa, porque, em sua
para tal explanação, recupera especialmente os estudos de Flavio García e Lenira
pesquisa, os convidados que a adentram são contemplados com sabores variados e
Covizzi. Ainda no primeiro capítulo, o autor traz à baila teórica as noções sobre os
ĐŽŵƉůĞdžŽƐƐŽďƌĞƵŵĂĨƌŝĐĂƋƵĞƐĞƐŝƚƵĂƚĆŽƉĞƌƚŽĚĞŶſƐ͗
ƋƵĂŝƐĞůĞƉƌŽŵŽǀĞƌĄĚŝĄůŽŐŽƐĐŽŶĐĞŝƚƵĂŝƐ͕ŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͕
ŵŽƐƚƌĂŶĚŽ ƋƵĞ ĞƐƐĂƐ ŵŽĚĂůŝĚĂĚĞƐ ĚĞ ƚƌĂďĂůŚŽ ĐŽŵ Ž ŝŶƐſůŝƚŽ͕ ĂŝŶĚĂ ƋƵĞ ƐĞũĂŵ Barracão de zinco
orientadas por valores culturais diferentes, muito se assemelham, pois nelas “o pro- ƐĞŵƚĞůŚĂĚŽ͕ƐĞŵƉŝŶƚƵƌĂůĄŶŽŵŽƌƌŽ͘͘͘; Jair Rodrigues)
ĚşŐŝŽŶĆŽƐƵďƐƟƚƵŝŽƌĞĂů͕ĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕ĐŽŶǀŝǀĞĞŵŚĂƌŵŽŶŝĂ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŽƐ
mirabilia são lidos como realia e vice-versa”.
No segundo capítulo, o autor nos apresenta um exemplar panorama sobre
Moçambique e sobre a literatura moçambicana para, em seguida, apresentar-nos
a literatura maravilhosa de Mia Couto. A respeito da literatura moçambicana e das
literaturas de outras literaturas africanas, o autor pontua, com riqueza de detalhes
e argumentos, que, no decorrer do processo de ruptura em relação à hegemonia
ĚŽĐąŶŽŶĞĞƵƌŽƉĞƵ͕ƚĂŝƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐƉƌŽĐƵƌĂŵďƵƐĐĂƌŶŽǀĂƐĨŽƌŵĂƐĞƐƚĠƟĐĂƐĞĞƐ-
ƚƌĂƚĠŐŝĂƐ ƌĞŝŶǀĞŶƚĂĚĂƐ ĚĞ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ͘ EĞƐƐĞ ƐĞŶƟĚŽ͕ ĂƐ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ ĂĨƌŝĐĂŶĂƐ
ĂĐĂďĂŵƉŽƌĞƐƚƌĞŝƚĂƌƐĞƵƐƉƌŽũĞƚŽƐĚŝƐĐƵƌƐŝǀŽƐĞůŝƚĞƌĄƌŝŽƐĐŽŵĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐůĂƟŶŽ-
-americanas, uma vez que, nelas, o real e o sobrenatural irrompem em um mesmo
ƵŶŝǀĞƌƐŽ͕ ĐŽĂďŝƚĂŶĚŽ ŽƐ ŵĞƐŵŽƐ ĞƐƉĂĕŽƐ͘ K ƌĞĂů Ġ ƋƵĞƐƟŽŶĂĚŽ ƉĞůĂƐ ĮƐƐƵƌĂƐ ĚŽ
aparentemente irreal.
EĂƉĂƌƚĞĚĞƐƐĞƐĞŐƵŶĚŽĐĂƉşƚƵůŽĚĞĚŝĐĂĚĂăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕:ŽĆŽK
ůŝŶƚŽĐŽŶƚĞŵƉůĂͲŶŽƐĐŽŵŝŶĨŽƌŵĂĕƁĞƐƋƵĞĚŝnjĞŵƌĞƐƉĞŝƚŽĂŽĞƐƟůŽĚĞDŝĂŽƵƚŽ͕ĂƐ
ƐƵĂƐŝŶŇƵġŶĐŝĂƐůŝƚĞƌĄƌŝĂƐĞ͕ĂŝŶĚĂ͕ŽĨĞƌĞĐĞƵŵƉĂƐƐĞŝŽƐŽďƌĞǀĂƌŝĂĚĂƐŽďƌĂƐĚŽĂƵƚŽƌ
ĞŵĨŽĐŽ͕ƉĂƌĂƋƵĞƚĞŶŚĂŵŽƐƵŵĂǀŝƐĆŽŐĞƌĂůĚĞŽŶĚĞƐĞƐŝƚƵĂĞƐƚĞƟĐĂŵĞŶƚĞĂŽďƌĂ
analisada, o romance Vinte e zinco.
^ĂďĞŵŽƐĚĂŽďƌŝŐĂƚŽƌŝĞĚĂĚĞŚŽũĞ͕ƉŽƌŵĞŝŽĚĂ>ĞŝŶǑϭϬ͘ϲϯϵͬϮϬϬϯ͕ĚĂŝŶ-
ĐůƵƐĆŽŶŽĐƵƌƌşĐƵůŽŽĮĐŝĂůĚĂƌĞĚĞĚĞĞŶƐŝŶŽĚĂƚĞŵĄƟĐĂ͞ŚŝƐƚſƌŝĂĞĐƵůƚƵƌĂĂĨƌŽ-

14 ISBN 978-85-8199-013-2 ISBN 978-85-8199-013-2 15

Adentrando...

Ž ĞdžƉĞƌŝĞŶĐŝĂƌ ƌĞŶŽǀĂĕƁĞƐ ĞƐƚĠƟĐĂƐ͕ DŝĂ ŽƵƚŽ͕ Ğŵ ƐƵĂ ŽďƌĂ ĮĐĐŝŽŶĂů͕
aproveita-se das possibilidades da língua para, não apenas renovar sua escrita,
mas, ainda, promover resgates de traços culturais – ritos, mitos e crenças – do povo
ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽĞŵƵŵĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƉůƵƌĂů͕ĂƐƐƵŵŝŶĚŽͲŽĐŽŵŽŚşďƌŝĚŽĞŵƐƵĂĐŽŶƐ-
ƚƌƵĕĆŽ͘ƐƐĂŚŝďƌŝĚĞnjƐĞŐƵĞƌĞƐŐĂƚĂŶĚŽƚĂŶƚŽƚƌĂĚŝĕƁĞƐĚĂƚĞƌƌĂʹĨƌŝĐĂ͕ĐŽŵŽƵŵ
ƚŽĚŽ͕ĞƐƵĂƐŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐʹ͕ƋƵĂŶƚŽĚ͛ůĠŵͲŵĂƌʹĂƚƌĂĚŝĕĆŽĞƵƌŽƉĞŝĂ͕ĞŵĞƐƉĞĐŝĂů͕
a portuguesa, da qual, inegavelmente, a nação Moçambique é herdeira, e de que
ƐĞĞŶƚĞŶĚĞ͕ƚĂŵďĠŵ͕ĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞĞƉĂƌƟĐŝƉĂŶƚĞĚŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĂĨŽƌŵĂĕĆŽŶĂĐŝŽŶĂů
–, capazes de, em sua concepção, apresentar os mirabilia de que se nutre cada ser
vivente naquele território.
ŵƐĞƵƐĞƐƚƵĚŽƐĂĐĞƌĐĂĚĞƐƐĞƉƌŽĐĞƐƐŽĞƐƚĠƟĐŽ͕ƋƵĞĞŶǀŽůǀĞƋƵĞƐƚƁĞƐĚĞŽƌ-
ĚĞŵ ŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĄĮĐĂ͕ ĞƚŶŽŐƌĄĮĐĂ͕ ƐŽĐŝŽůſŐŝĐĂ͕ ƉŽůşƟĐĂ͕ ƌĞůŝŐŝŽƐĂ͕ ĐƵůƚƵƌĂů͕ :ĂŶĞ dƵƟŬŝĂŶ
observa que:
Se, por um lado, o trabalho de subversão da linguagem resulta
ŶĂƐƵĂƉŽĞƟnjĂĕĆŽ͕ƉŽƌŽƵƚƌŽ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂĂŽƉƌŽĐĞƐƐŽ
colonizador, contribuindo na introdução do insólito como aconte-
ĐŝŵĞŶƚŽŶĂƚƵƌĂůĞĐŽƟĚŝĂŶŽŶĂŽďƌĂĞŶƵŵĂĐƵůƚƵƌĂĐƵũĂƚƌĂĚŝĕĆŽ
ĞƐƚĄĐĂůĐĂĚĂŶŽŵŝƚŽ͘ƋƵĂŶĚŽ͕ĞŵDŝĂŽƵƚŽ͕ŽƉƌĞƐĞŶƚĞƌĞƚŽŵĂ
ĂĐŽŶƐĐŝġŶĐŝĂŵşƟĐĂ͕ďƵƐĐĂŶĚŽƌĞĐƵƉĞƌĂƌĐĞƌƚŽƐǀĂůŽƌĞƐĂƵƚſĐƚŽ-
ŶĞƐ ĚĞ ƌĂşnjĞƐ ĞƐƉĞĐşĮĐĂƐ͕ ĐĂƉĂnjĞƐ ĚĞ ĐůĂƌŝĮĐĂƌ Ă ĐŽŶƐĐŝġŶĐŝĂ ŽƵ
ŝĚĞŶƟĚĂĚĞŶĂĐŝŽŶĂů͘ş͕ŵŝƚŽĞƌĞĂůŝĚĂĚĞĨŽƌŵĂŵƵŵƚŽĚŽĐŽĞƌĞŶ-
te e denunciador, opondo-se ao discurso do poder. (2006, p. 59)

,Ą͕ŶŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͕ƵŵƉƌŽĨƵŶĚŽĚĞƐĞũŽĚĞƌĞŶŽǀĂƌ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĂĮĐĕĆŽ͕ĂƚĞƌƌĂ͕
ĂƉƌŽƉƌŝĂŶĚŽͲƐĞĚŽĨŽƌƚĞĂŶŝŵŝƐŵŽĂůŝƉƌĞƐĞŶƚĞƉĂƌĂŝŶũĞƚĂƌƵŵĂ͞ĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞĂĨƌŝ-
ĐĂŶĂ͟ĞŵƐĞƵƐƚĞdžƚŽƐ͘ŽƐĞǀĂůĞƌĚĂƚƌĂĚŝĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂʹĞŵƵŵĂƉĄƚƌŝĂĚĞƉŽĞƚĂƐ
(NOA, 2007, p. 284) – e promover a renovação, Mia Couto segue à sua maneira,
dando novos contornos à literatura moçambicana contemporânea. O amadureci-
mento dessa literatura traz à tona questões anteriormente não tão relevantes, como
ĂĚĂůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞ͕ĚĂŶĂĕĆŽĞĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͘ƋƵĞƐƚĆŽƐŽďƌĞƵŵĞƐĐƌŝƚŽƌƋƵĞĨĂůĂĞŵ
Moçambique ou de Moçambique se faz presente, ao vermos que a literatura chega
ĂƚĠŶſƐĞŽƋƵĂŶƚŽĞůĂƉŽĚĞƐĞƌĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚĂ͞ůĞŐŝƟŵĂŵĞŶƚĞ͟ĂĨƌŝĐĂŶĂ͘
Esse processo de renovação gera uma notória qualidade, a ponto de Pires
>ĂƌĂŶũĞŝƌĂĂƉŽŶƚĂƌĐŽŵŽ͕ĂƉĂƌƟƌĚŽƌŽŵĂŶĐĞTerra Sonâmbula (1992), de Mia Couto,
ocorre uma ruptura no desenvolvimento da literatura moçambicana, quando ela, en-
João Olinto Trindade Junior
Įŵ͕ĐĂŵŝŶŚĂŶĚŽƉĂƌĂĂŵĂŝŽƌŝĚĂĚĞʹĐŽŵŽůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƋƵĞďƵƐĐĂƐĞƌƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶƚĞĚĂ
ŶĂĕĆŽʹĐŽŵĞĕĂĂŐĂŶŚĂƌĐŽŶƚŽƌŶŽƐĚĞĞƐƚĠƟĐĂůŝƚĞƌĄƌŝĂƉƌſƉƌŝĂ;ϭϵϵϱ͕Ɖ͘ϮϲϮͿ͘
ŵĞĚŝĚĂƋƵĞŽďƐĞƌǀĂĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞŽĐĞƌĐĂ͕DŝĂŽƵƚŽ͕ĞŵƐƵĂƐƚĞŶƚĂƟ-
ǀĂƐĚĞƚƌĂĚƵĕĆŽ͕ĚĄĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞăƚƌĂĚŝĕĆŽƋƵĞďƵƐĐĂĐŽŶƐƚƌƵŝƌƵŵĂ Moçambique
– aqui, a opção pelo feminino visa diferenciar, por um lado, Moçambique como
ƐƚĂĚŽ͕ ƉŽƌ ŽƵƚƌŽ͕ Ă ŶĂĕĆŽ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ ŵŽƐĂŝĐĂ͕ ĨŽƌŵĂĚĂ ƉŽƌ ǀĄƌŝŽƐ ƉŽǀŽƐ Ğ
ĐƵůƚƵƌĂƐ͘  ĞƐƐĂ DŽĕĂŵďŝƋƵĞ ƋƵĞ͕ Ğŵ ƐƵĂ ǀĞƌƐĆŽ ůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ ĂďƌĂŶŐĞ Ğ ƌĞƐƉĞŝƚĂ ĂƐ
ĚŝǀĞƌƐĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝ͕ĨŽƌŵĂŶĚŽƵŵŵŽƐĂŝĐŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ĞŵƐƵĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽ
ůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ŶĂĕĆŽƚĆŽƐŽŶŚĂĚĂ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞƐĞůĂŶĕĂ͞ĂŽůĂďŽƌŝŽƐŽĂƚŽĚĞĨĂůĂƌĚĂ
ƉƌſƉƌŝĂĐŽůĞƟǀŝĚĂĚĞ͟;,,͕ϭϵϵϱ͕Ɖ͘ϵͿ͕ĞŶƋƵĂŶƚŽĐƌŝĂƵŵĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞŵĂŝƐ
͞ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕͟ƋƵĞ͕ĞŵƐƵĂƵƚŽƉŝĂĮĐĐŝŽŶĂů͕ƉƌŽĐƵƌĂƌĞƐƉĞŝƚĂƌʹĞĞŶƐŝŶĂƌŽůĞŝƚŽƌ
ʹĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĂƚĞƌƌĂ͘DŝĂŽƵƚŽƉƌŽŵŽǀĞƵŵĚŝĄůŽŐŽ͕ĞŵƐƵĂĮĐĕĆŽ͕ĞŶƚƌĞ
ĞƐƐĂƉĄƚƌŝĂĚĞĚĞĐůĂŵĂĚŽƌĞƐĞĂƐǀŽnjĞƐƐŝůĞŶĐŝĂĚĂƐ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƌĞůĂĕƁĞƐƐŝŶĐƌƀŶŝĐĂƐ
ĞĚŝĂĐƌƀŶŝĐĂƐ͕ǀĂůĞŶĚŽͲƐĞĚĞƐƵũĞŝƚŽƐƋƵĞ͕ĂŶƚĞƐĐĂůĂĚŽƐ͕ƐĆŽƌĞƐŐĂƚĂĚŽƐƉĂƌĂƉƌŽ-
mover esse processo de “contar a terra”. E o faz ao apropria-se das tradições que
ĞŶǀŽůǀĞŵĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĞƐƐĂƚĞƌƌĂĞĚĂƌƉƌŽƐƐĞŐƵŝŵĞŶƚŽĂŽůĞŐĂĚŽĚĞŽƵƚƌŽƐ
escritores – e intelectuais - que se propuseram a pensar a nação moçambicana. No
ƐĞƵĐĂƐŽ͕ƉĞŶƐĄͲůĂĐŽŵŽĂůŐŽĂůĠŵĚĞƵŵƉĂşƐĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ŵĂƐƵŵƉĂşƐĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ
ocidental pós-colonial.
>ŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕ ĞƐƐĞ ũŽŐŽ ƐĞ ĂůŝŵĞŶƚĂ ĚĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ŽƌĂů͕ ŽƌŝƵŶĚĂ ĚĂ ƚĞƌƌĂ͕
ĚĂƋƵĂůŽĞƐĐƌŝƚŽƌƐĞĚŝnjŚĞƌĚĞŝƌŽ͕ƉĂƌĂƌĞĂůŝŵĞŶƚĂƌŽƐƵŶŝǀĞƌƐŽƐĚŝĞŐĠƟĐŽƐƉŽƌĞůĞ
representados. E essa transposição não se limita apenas à recriação de palavras,
ƉƌŽǀĠƌďŝŽƐĞĚŝƚĂĚŽƐʹĞŵƋƵĞƐƵĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐƐĆŽƌŝĐĂƐʹ͕ŵĂƐŝŶĐŽƌƉŽƌĂŵƵŝƚĂƐŽƵ-
ƚƌĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐ͘ĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ĂƌĞŶŽǀĂĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂƋƵĞĞdžĞƌĐĞƉŽƐƐŝďŝůŝƚĂƵŵĂ
desconstrução do discurso colonial – ou, segundo Albert Memmi, do retrato do eu
construído pelo do outro (1977, p. 58), do colonizado construído pelo colonizador.
WĂƌƟŶĚŽƉĂƌĂƵŵƉƌŽĐĞƐƐŽĐŽŶơŶƵŽĚĞƌĞĞƐĐƌŝƚƵƌĂĞƌĞŝŶǀĞŶĕĆŽ͕ƋƵĞƐĞŝŶŝĐŝĂ
em meados do século XIX, com os primeiros escritores que se assumiam como mo-
çambicanos, em busca de uma moçambicanidade que se expressasse pela arte das
ƉĂůĂǀƌĂƐ͕ĂŶƚĞƐ͕ŵĞƐŵŽ͕ĚĂĐŽŶƐƟƚƵŝĕĆŽĚŽƐĞƐƚĂĚŽƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐ;>ZE:/Z͕ϮϬϬϭ͕Ɖ͘
ϭϴϱͿ͕ĂŽďƌĂĚĞDŝĂŽƵƚŽĐŽŶƚƌŝďƵŝƉĂƌĂĂĨŽƌũĂĚĞƵŵĂŝĚĞŝĂĚĞŶĂĕĆŽ͕ƌĞŝŶǀĞŶƚĂŶĚŽ͕
ŵƵŝƚĂƐǀĞnjĞƐ͕ƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĚĞŽĚĞăĂĨƌŝĐĂŶŝĚĂĚĞ͕ƐĞũĂĞŵƌĞƐŐĂƚĞĚĞǀĂůŽƌĞƐĚŽƉĂƐ-
ƐĂĚŽ͕ƐĞũĂŶĂĂĮƌŵĂĕĆŽĚĞĐŽŶǀŝĐĕƁĞƐĂĚƋƵŝƌŝĚĂƐŶŽƉƌĞƐĞŶƚĞ͘ĞůĞŽĨĂnjƚŽŵĂŶĚŽ
ƉŽƐƐĞ ĚĞ ƵŵĂ ůşŶŐƵĂ ĞƵƌŽƉĞŝĂ ƉĂƌĂ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌ ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ Ž ŵŽƐĂŝĐŽ ĐƵůƚƵƌĂů
ƋƵĞĠƐƵĂƚĞƌƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ƌĞŵŽĚĞůĂŶĚŽĐŽŶƟŶƵĂŵĞŶƚĞĞƐƐĞƵŶŝǀĞƌƐŽĞĂůŝŵĞŶƚĂŶĚŽ-
-o com os signos de dentro e de fora para que sirvam às necessidades que procura
representar. Dessa maneira, rompe com premissas e buscas contemporâneas sobre a
ŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĞƐĞĞƐƚĂďĞůĞĐĞƌƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͞ůĞŐŝƟŵĂŵĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶĂ͘͟
ĐĞƌĐĂĚĞƐƐĂĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ĞůĞĚĞĐůĂƌĂƋƵĞ͗
entre o convite ao esquecimento da Europa e o sonho de ser
americano, a saída só pode ser vista como um passo para a fren-
te. Os intelectuais africanos não têm que se envergonhar da sua
18 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĂƉĞƚġŶĐŝĂƉĂƌĂĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵ΀͘͘͘΁͕ƐĆŽ͕ƵƌďĂŶŽƐĚĞĂůŵĂŵŝƐƚĂ
Ğ ŵĞƐĐůĂĚĂ͕ ƉŽƌƋƵĞ ĨƌŝĐĂ ƚĞŵ ĚŝƌĞŝƚŽ ƉůĞŶŽ ă ŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͕
ƚĞŵĚŝƌĞŝƚŽĂĂƐƐƵŵŝƌĂƐŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐƋƵĞĞůĂƉƌſƉƌŝĂŝŶŝĐŝŽƵĞ
que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica. (Couto, apud
&KE^͖hZz͕ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϰͲϭϱͿ
ŽĚĞƌƌƵďĂƌĂŝĚĞŝĂĚĞƵŵĂƐƵƉŽƐƚĂĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌĂĨƌŝĐĂŶŽĐŽŶ-
temporâneo – em especial, Mia Couto – não precisa se privar de buscar as fontes
ƋƵĞƉƌŽŵŽǀĞŵĞƐƐĂƌĞŶŽǀĂĕĆŽĞŵŽƵƚƌŽƐůƵŐĂƌĞƐĨŽƌĂĚĞĨƌŝĐĂ͘ĞƐƐĂƌĞĂůŝŵĞŶ-
ƚĂĕĆŽ͕ƉƌŽĚƵnjŝĚĂĂƚƌĂǀĠƐĚŽƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƐƋƵĞĨƌŝĐĂ͞ŐĞƌĂ͟ŶŽŵƵŶĚŽ͕ĂŵƉůŝĂŵĂƐ
concepções desses escritores. Do mesmo modo que, em um período anterior à
^ĞŐƵŶĚĂ'ƵĞƌƌĂDƵŶĚŝĂů͕ŽƐƉŽĞƚĂƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐĚĂĠƉŽĐĂĨŽƌĂŵŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚŽƐ
ƉĞůŽƐŵŽĚĞƌŶŝƐƚĂƐďƌĂƐŝůĞŝƌŽƐ͕DŝĂŽƵƚŽʹƋƵĞƚĞŵ͕ĚĞŶƚƌĞƐĞƵƐƉĂƌĂĚŝŐŵĂƐƐŝŐŶŝĮ-
ĐĂƟǀŽƐ͕'ƵŝŵĂƌĆĞƐZŽƐĂĞ>ƵĂŶĚŝŶŽsŝĞŝƌĂʹƚĂŵďĠŵƐŽĨƌĞŝŶŇƵġŶĐŝĂƐƐĞŵĞůŚĂŶƚĞƐ͘
ZĞƐŐĂƚĂŶĚŽĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞƵŶŝǀĞƌƐŽƐĐƵůƚƵƌĂŝƐƉůƵƌŝǀĂůĞŶƚĞƐ͕ƉƌſƉƌŝŽƐĚĂƚĞƌ-
ƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕DŝĂŽƵƚŽĂƉƌĞƐĞŶƚĂŽĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŵŽĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞ
e harmonizador da realidade. Ao buscar fugir da hegemonia do racionalismo ociden-
tal, ele – e toda uma geração de escritores moçambicanos, como Paulina Chiziane
Ğ hŶŐƵůĂŶŝ Ă <Ă <ŚŽƐĂ ʹ ĂďŽƌĚĂͬĂƉŽŶƚĂͬƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂ Ă ůſŐŝĐĂ ŵĞƐƟĕĂ͕ ĂŐƌĞŐĂŶĚŽ
elementos de dentro e de fora. Desse modo, ele experimenta, em seu processo de
ƉƌŽĚƵĕĆŽ͕ĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĞĞŶƌĂŝnjĂŵĞŶƚŽŶĞƐƐĞƵŶŝǀĞƌƐŽŵşƟĐŽĞŵşƐƟĐŽ͕ĚŝǀĞƌƐŽĞ
ŚşďƌŝĚŽ͕ĂĮŵĚĞƐĞƌĞĞŶĐŽŶƚƌĂƌĐŽŵǀĂůŽƌĞƐƚĞůƷƌŝĐŽƐ͘
,Ą ƵŵĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ĐƌşƟĐĂ ƋƵĞ ĂƉŽŶƚĂ ƉĂƌĂ Ă ŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ ĚŽ ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů
ĐŽŵŽƵŵĂĚĂƐŵĂƌĐĂƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ĂŽůĂĚŽĚŝƐƐŽ͕ǀĞƌŝĮĐĂͲƐĞĂĚŝĮĐƵů-
ĚĂĚĞĞŵĐůĂƐƐŝĮĐĂƌĂŽďƌĂĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͕stricto sensu͕ĞŵƵŵĂǀĞƌƚĞŶƚĞĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͘
Essa mesma tradição entende que a violência contra a terra – que ataca valores,
ƌŝƚŽƐ͕ŵŝƚŽƐ͕ĐŽƐƚƵŵĞƐʹĞƐƚĄƌĞůĂĐŝŽŶĂĚĂĐŽŵĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͘ŵ
seu processo para emancipar a literatura, Mia Couto se apropria não apenas das
ƚƌĂĚŝĕƁĞƐůŽĐĂŝƐ͕ŵĂƐǀĂůĞͲƐĞĚĞǀŝĞƐĞƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƵŵĂĚĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐ
de representar essa Moçambique utópica, mais “moçambicana”.
ƐƐŝŵĐŽŵŽůĞũŽĂƌƉĞŶƟĞƌĐŽŶǀŝĚĂŽĞƐĐƌŝƚŽƌůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽĂƐĞǀŽůƚĂƌ
para sua terra, Mia Couto também o faz, voltando-se para Moçambique. Uma vez
ƋƵĞĂƌƉĞŶƟĞƌĚŝƐĐƵƚĞŽĨĂƚŽĚĞĂƌĞĂůŝĚĂĚĞŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂʹŶŽWƌĞĨĄĐŝŽĂEl reino des-
te mundo (1949) – deixar de ser uma criação, mas, diferentemente, ser um elemento
ŶĂƚƵƌĂůĚĂŚŝƐƚſƌŝĂĞĐƵůƚƵƌĂĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ƉŽĚĞŵŽƐ͕ƚĂůƋƵĂůŚŝĂŵƉŝ͕ĂŽǀĂůĞƌ-
ͲƐĞĚŽƚĞƌŵŽ͞ƵŶŝĚĂĚĞĐƵůƚƵƌĂů͕͟ƉĂƌĂĂƉŽŶƚĂƌĐŽŵŽĂĞƐƚĠƟĐĂĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ
ŶĆŽƐĞũĂĞdžĐůƵƐŝǀĂĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ŵĂƐƉƌſƉƌŝĂĚĞƚĂŶƚŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƋƵĂŶƚŽƐĐŽŵ
ĞůĂƐĞŝĚĞŶƟĮƋƵĞŵ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϵϮͿ͕ĂƉƌŽƉƌŝĂƌŵŽͲŶŽƐĚĞƐƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂĞĂĚĞƌŝƌ-
mos a esse mesmo posicionamento em nossos estudos acerca da literatura miacou-
ƟĂŶĂ͘ŶĮŵ͕ĐŽŶĐŽƌĚĂŵŽƐĐŽŵĞƐƐĂƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĂ͕ƋƵĂŶĚŽĂĮƌŵĂƋƵĞ͕͞ĂĚĞĮŶŝĕĆŽ
lexical de maravilhoso facilita a conceituação do Realismo Maravilhoso, baseada na
ŶĆŽĐŽŶƚƌĂĚŝĕĆŽĐŽŵŽŶĂƚƵƌĂů͘DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĠŽ͚ĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽ͕͛Ž͚ŝŶƐſůŝƚŽ͕͛ŽƋƵĞ
ĞƐĐĂƉĂĂŽĐƵƌƐŽŽƌĚŝŶĄƌŝŽĚĂƐĐŽŝƐĂƐĞĚŽŚƵŵĂŶŽ͟;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϰϴͿ͘
ISBN 978-85-8199-013-2 19
João Olinto Trindade Junior No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto

DĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽĂƉŽŶƚĂĐŽŵŽǀĄƌŝŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĂƐƐƵŵŝƌĂŵĂƐĞƐƚƌĂƚĠ- Sendo uma distorção da lógica habitual, a ideologia do realis-

ŐŝĂƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹƐĞŶĚŽƋƵĞŵƵŝƚŽƐĂůĂƌŐĂƌĂŵĞŵŽĚŝĮĐĂƌĂŵ͕ŶĂƉƌĄƟĐĂĮĐĐŝŽŶĂů͕ mo maravilhoso persegue a reviravolta da concepção racional-
ͲƉŽƐŝƟǀŝƐƚĂĚĂĐŽŶƐƟƚƵŝĕĆŽĚŽƌĞĂůĞĐŽŝŶĐŝĚĞĐŽŵŽƋƵĞ>ŽƚŵĂŶ
ĂƐĞƐƚƌƵƚƵƌĂƐĐŽŶĐĞďŝĚĂƐƉŽƌdŽĚŽƌŽǀ͕ǀŝƐĂŶĚŽăĂĚĂƉƚĂĕĆŽĂƐĞƵƌĞƐƉĞĐƟǀŽĐŽŶƚĞdž-
ĐŚĂŵĂ ĚĞ ͞ĞƐƚĠƟĐĂ ĚĂ ŽƉŽƐŝĕĆŽ͘͟ ΀͘͘͘΁ EĞŐĂŶĚŽ Ă ĚŝƐũƵŶĕĆŽ ĚĞ
ƚŽƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂů;&KE^K͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϱϳͿʹ͕ƉŽƌŝŶŇƵġŶĐŝĂĚĂĮĐĕĆŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂ͕ ƚĞƌŵŽƐ ĐŽŶƚƌĂĚŝƚſƌŝŽƐ͕ Ž ĚŝƐĐƵƌƐŽ ƌĞĂůŝƐƚĂ ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ƌĞŇĞƚĞ
ĐŽŵŽ Ġ Ž ĐĂƐŽ ĚĞ ^ŽŶLJ >ĂǀŽƵ dĂŶƐŝ͕ ŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚŽ ƉŽƌ 'Ăƌкà DĄƌƋƵĞnj ;&KE^K͕ ĞƐƐĞŵŽĚŽĚĞƐĞƌͬĚŝnjĞƌĞ͕ĐŽŵŽĞƐƚĞ͕ŝŶƐƚĂůĂŽKƵƚƌŽ^ĞŶƟĚŽŶŽ
2004, p. 358). centro da sua linguagem. (CHIAMPI, 1980, p. 155-156)
ŝŶŇƵġŶĐŝĂĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĞŵǀĞƌƚĞŶƚĞƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ƐĞĚĄ
ƉĞůĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ͕ŶŽƉůĂŶŽĚĂĚŝĞŐĞƐĞ͕ĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ĐŽŵƉƌĞ- ŽƚƌĂĚƵnjŝƌ͕ŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƚĞůƷƌŝĐĂƋƵĞŽĐĞƌĐĂʹĐŽŵƐĞƵƐƐŝŐŶŽƐʹ͕DŝĂ
sença marcante, como elemento integrante do mundo possível – a exemplo das Couto recupera, pela via das trocas culturais, pressupostos desenvolvidos acerca das
ŶĂƌƌĂƟǀĂƐO Segredo da Morta (1979), de Assis Jr, e Um Rio Chamado Tempo, uma ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂƐƉĂƌĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌDŽĕĂŵďŝƋƵĞĞŵƐƵĂŽďƌĂ͘
Casa chamada terra;ϮϬϬϯͿ͕ĚĞDŝĂŽƵƚŽ͘ƐƐĞĨĞŶƀŵĞŶŽĂŐŝƌŝĂĐŽŵŽƵŵĂƌĞĨĞƌġŶ- ^ĞƌĄ͕ƉŽŝƐ͕ŶĞƐƐĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƚĞſƌŝĐĂ͕ĐƌşƟĐĂĞŵĞƚŽĚŽůſŐŝĐĂ͕ƋƵĞƉƌĞƚĞŶĚĞ-
ĐŝĂŵĞĚŝĂĚŽƌĂĞŶƚƌĞŽŵƵŶĚŽĞŵƉşƌŝĐŽĞƐƵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐĂŶĂĮĐĕĆŽ mos, ao longo do ensaio desenvolvido a seguir, apropriarmo-nos das teorizações
(AFONSO, 2004, p. 359). acerca do Real-Maravilhoso – e a atualização que propomos, o Real-Animismo, que
 ĐŽŶĐĞƉĕĆŽ ĚŝĞŐĠƟĐĂ ƋƵĞ ƌĞƷŶĞ ŽƐ realia aos mirabilia ĞƐƚĄ ƉƌĞƐĞŶƚĞ ƐĞƌĄĂůǀŽĚĞŶŽƐƐĂƐƌĞŇĞdžƁĞƐƉĂƌĂƵŵĂŵĞůŚŽƌĂĚĞƋƵĂĕĆŽăƌĞĂůŝĚĂĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂʹĂ
ŶĆŽ ĂƉĞŶĂƐ Ğŵ ĨƌŝĐĂ ʹ ŽƵ͕ ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ ŶĂ ĨƌŝĐĂ >ƵƐſĨŽŶĂ ŽƵ͕ ĂŝŶĚĂ͕ Ğŵ ĮŵƉƌŽŵŽǀĞƌŵŽƐ͕ĞĨĞƟǀĂŵĞŶƚĞ͕͞ƌĞŇĞdžƁĞƐƐŽďƌĞŽŝŶƐſůŝƚŽ͟ĞŵVinte e zinco, de
Moçambique –, mas é resgatada, na qualidade de herança de uma literatura da ora- DŝĂŽƵƚŽ͘ŵďŽƌĂ͕ĞŵŶŽƐƐĂĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽ͕ŶĆŽƐĞũĂƉŽƐƐşǀĞůĐůĂƐƐŝĮĐĂƌĂůŝƚĞƌĂ-
lidade, que se manteve ao longo dos séculos, na forma de resistência, e que o escri- ƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕stricto sensu, ĞŵƵŵĂĚĂƐǀĞƌƚĞŶƚĞƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐ
ƚŽƌƌĞƚŽŵĂĐŽŵŽ͞ƌĞŶŽǀĂĕĆŽ͟ĞƐƚĠƟĐĂĞŝĚĞŶƟƚĄƌŝĂ͘ como Vinte e zinco apresenta melhor capacidade de adaptação – poderíamos dizer,
oferece maior gama de possibilidades – das teorizações acerca do Real Maravilhoso
^Ğ͕ ĐŽŶĨŽƌŵĞ ƉĞƌĐĞďĞ ĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ Ž ĞƐĐƌŝƚŽƌ ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ ǀŽůƚĂͲƐĞ ƉĂƌĂ nas literaturas dos PALOP, quanto nos auxilia em nosso percurso rumo a uma de-
ĂƐŵĂƌĂǀŝůŚĂƐĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ŽĂĨƌŝĐĂŶŽͬŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽʹĞ͕ĂƋƵŝ͕ĠƌĞůĞǀĂŶƚĞƌĞ- ĮŶŝĕĆŽ ĚŽ ƋƵĞ ƐĞƌŝĂ͕ ĚĞ ĨĂƚŽ͕ Ă ĐŽƌƌĞŶƚĞ ĚŽ ZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͘ ͕ ĞŵďŽƌĂ͕ ĂŽ ůŽŶŐŽ
ůĞŵďƌĂƌŵŽƐĂŽďƐĞƌǀĂĕĆŽĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞĨĞŝƚĂƐŽďƌĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞƐĞƌƵŵĂƉĄƚƌŝĂĚĞ de nossas considerações, recorramos constantemente a outras obras do escritor,
poetas – volta-se para dentro de seu mundo e busca resgatar, redescobrir ou reinven- ĐŽŵŽŝŶƚƵŝƚŽĚĞƉƌŽŵŽǀĞƌĚŝĄůŽŐŽƐĞŶƚƌĞƐƵĂƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůĚƵƌĂŶƚĞŽŶŽƐƐŽ
ƚĂƌƐƵĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐ͕ŽƋƵĞĨĂnjĂŽĂĚĂƉƚĂƌƵŵĂĞƐƚĠƟĐĂĞƐƚƌĂŶŐĞŝƌĂăƐƵĂſƟĐĂ ƉĂƐƐĞŝŽƉĞůŽƐďŽƐƋƵĞƐŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽƐʹďŽƐƋƵĞƐĚĞnjŝŶĐŽʹ͕ƐĞƌĄĞŵVinte e zinco
incomum de ver o mundo, observando as maravilhas de sua existência, em sua terra, ƋƵĞĞŶĐŽŶƚƌĂƌĞŵŽƐĂƐĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐĞƐƚĠƟĐĂƐĚĞDŝĂŽƵƚŽƋƵĞŝůƵƐƚƌĂŵĚĞŵŽĚŽ
que recria literariamente. mais abrangente o rico universo telúrico moçambicano, terra de maravilhas, sob a
Em Vinte e zinco;ϮϬϬϰͿ͕DŝĂŽƵƚŽ͕ƌĞĐŽƌƌĞŶĚŽăƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĂƚĞƌ- ƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƚĞſƌŝĐĂƋƵĞĂĚŽƚĂŵŽƐ͘
ƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕ĂZĞǀŽůƵĕĆŽĚŽƐƌĂǀŽƐ͕ƋƵĂŶĚŽƐĞ
deu a queda do regime salazarista, em 25 de Abril de 1974. Vinte e zinco͕ŶĂƌƌĂƟǀĂ
ĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚĂĐŽŵŽĚŝƐĐƵƌƐŽĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽ͕ƉƌŽŵŽǀĞĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŽƐ
mirabilia como suporte para a encenação dos realia (CHIAMPI, 1980, p. 158).
Temos, então, nesse caso, buscas pela reunião do natural – o que é conside-
ƌĂĚŽ͕ƉĞůŽƐĞŶƐŽĐŽŵƵŵ͕ĐŽŵŽŶŽƌŵĂů͕ĐŽƟĚŝĂŶŽ͕ƵƐƵĂů͖ƉŽĚĞĮƐŝĐĂŵĞŶƚĞĂĐŽŶƚĞĐĞƌ
ƐĞŵĐĂƵƐĂƌƉĞƌƚƵƌďĂĕĆŽĞŵƵŵƵŶŝǀĞƌƐŽĨŽĐĂĚŽĞŵƌĞŐƌĂƐĞŵƉşƌŝĐĂƐ͖ĞŶĮŵ͕͞ƐŽĞ
acontecer” (= “soer”) – e do sobrenatural – o que é considerado, via de regra, pouco
comum, inusual, insólito, além da percepção proporcionada pela ordem empírica vi-
ŐĞŶƚĞʹƋƵĞ͕ƉŽƌĮŵ͕ŶĆŽƌĞƐƵůƚĞĞŵŽƉŽƐŝĕĆŽĞŶƚƌĞĂƐĐŽŶĮŐƵƌĂĕƁĞƐĚŝƐĐƵƌƐŝǀĂƐĚŽƐ
sistemas real-naturalista e maravilhoso (CHIAMPI, 1980, p. 140), não excluindo nem
realia, nem mirabilia. Em suma:
KĚŝƐĐƵƌƐŽƌĞĂůŝƐƚĂŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĂƌƟĐƵůĂĚŽƐŽďƌĞĂŶĞŐĂĕĆŽĚŽ
ƉƌŝŶĐŝƉŝŽĚĂĐŽŶƚƌĂĚŝĕĆŽ͕ĞŶƵŶĐŝĂƉŽĞƟĐĂŵĞŶƚĞĞƐƐĞŝŵƉŽƐƐşǀĞů
ůſŐŝĐŽĞĂŶƚŽůſŐŝĐŽ͘ŽĚŝnjĞƌͲƐĞ͞ĠƉŽƐƐşǀĞůƋƵĞƵŵĂĐŽŝƐĂƐĞũĂ
Ğ ŶĆŽ ƐĞũĂ͟ ĞƐƚĂŵŽƐ ĚŝĂŶƚĞ ĚĞ ĂůŐŽ ŵĂŝƐ ƋƵĞ Ž ŽďũĞƚŽ ǀĞƌďĂů͘

20 ISBN 978-85-8199-013-2 ISBN 978-85-8199-013-2 21

&ĂŶƚĄƐƟĐŽ

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o

mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrena-
tural dos acontecimentos evocados.

Tzvetan Todorov

KůĞŝƚŽƌƉƌĞĐŝƐĂĂĐĞŝƚĂƌƚĂĐŝƚĂŵĞŶƚĞƵŵĂĐŽƌĚŽĮĐĐŝŽŶĂůĞƐĂďĞƌ
ƋƵĞ Ž ƋƵĞ ĞƐƚĄ ƐĞŶĚŽ ŶĂƌƌĂĚŽ Ġ ƵŵĂ ŚŝƐƚſƌŝĂ ŝŵĂŐŝŶĄƌŝĂ͕ ŵĂƐ
ŶĞŵƉŽƌŝƐƐŽĚĞǀĞƉĞŶƐĂƌƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƚĄĐŽŶƚĂŶĚŽŵĞŶƟƌĂƐ͘

Umberto Eco

KƐĐŝůĂŶĚŽĞŶƚƌĞŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞŽƌĞĂůŝƐŵŽŵĄŐŝĐŽ͕ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƵů-
ƚƌĂƉĂƐƐĂŽƐůŝŵŝƚĞƐŚĂďŝƚƵĂŝƐĚĂĮĐĕĆŽ͘dĞƌƌŝĮĐĂŶƚĞŽƵĨĂƐĐŝŶĂŶƚĞ͕
ĂǀŝƐĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƉƌŽƉŽƐƚĂĞǀŝĚĞŶĐŝĂĂƌĞĐƵƐĂĐĂƚĞŐſƌŝĐĂĚŽŵƵŶ-
do tal como ele aparece e uma vontade clara da sua reconstru-
ção. Não se trata de uma fuga à realidade, mas de uma dinâmica
ƋƵĞĞƐƟŵƵůĂĂƐĞŶƐŝďŝůŝĚĂĚĞĂƐĞƵƌĞƐƉĞŝƚŽ͘

Maria Fernanda Afonso

ƉĞƐĂƌĚĞĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂƌŝŶƷŵĞƌĂƐǀĞƌƚĞŶƚĞƐĂŽůŽŶŐŽĚŽƐ
ƚĞŵƉŽƐ͕ƚŽƌŶĂͲƐĞŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽĚĞĮŶŝƌŵŽƐŽƋƵĞĞŶƚĞŶĚĞŵŽƐƉŽƌ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͘WĂƌĂƚĂŶ-
to, propomos a leitura de textos fundamentais que vêm orientando o desenvolvi-
ŵĞŶƚŽĚĞĞƐƚƵĚŽƐĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞŽƐĂĐĞƌĐĂĚŽƋƵĞǀŝƌŝĂĂƐĞƌĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕
tendo em vista suas relações com os eventos insólitos que, de ordem diversa, nela
ƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂŵ͘ŽĞŶƚĞŶĚĞƌŵŽƐŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƵŵƐŝƐƚĞŵĂŶŽƋƵĂůŽĞƐĐƌŝƚŽƌ
se expressa, tendo em vista as possibilidades por ele oferecidas, deparamo-nos com
ƚƌĂĚŝĕĆŽĐƌşƟĐĂƋƵĞ͕ĂŽĞƐƚƵĚĄͲůŽ͕ƚĂŶƚŽĂƉŽŶƚĂƐĞƵŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽĞƉĞƌĐƵƌƐŽ͕ƋƵĂŶƚŽ
suas vertentes e possíveis atualizações.
Segundo a tradição de crivo todoroviano (TODOROV, 1992), teríamos um
&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐůĄƐƐŝĐŽʹŽƵƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůʹĐŽŵďĂƐĞ͕ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞ͕ŶŽĞƐƚƵĚŽĚĞŶĂƌƌĂ-
ƟǀĂƐĚŽKŝƚŽĐĞŶƚŽƐ͘ƉſƐŽďƐĞƌǀĂƌĐŽŵŽĞƐƐĞƐƚĞdžƚŽƐƉŽƐƐƵĞŵĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽŐƌĂƵ
ĚĞƐĞŵĞůŚĂŶĕĂ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƐƵĂƐƉƌĄƟĐĂƐĚŝƐĐƵƌƐŝǀĂƐ͕ŽĐƌşƟĐŽďƷůŐĂƌŽĐůĂƐƐŝĮĐĂͲŽƐ
ŶŽŐġŶĞƌŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƋƵĞƐĞĂůŝŵĞŶƚĂƌŝĂĚĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽ;dKKZKs͕ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϯϱͿĚĞ
João Olinto Trindade Junior No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto

ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞůĞŝƚŽƌĞŶƚƌĞĞdžƉůŝĐĂĕƁĞƐĞŵƉşƌŝĐĂƐŽƵŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐĂƐƉĂƌĂĨĞŶƀŵĞ- tanto por Filipe Furtado (FURTADO, s/d), ƋƵĂŶƚŽƉŽƌĂƌůŽƐZĞŝƐĂŽĂĮƌŵĂƌƋƵĞŽƚĞƌŵŽ

ŶŽƐŝŶƐſůŝƚŽƐƋƵĞƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĞŵŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘&ŝůŝƉĞ&ƵƌƚĂĚŽ͕ƋƵĞƉƌĞƐƚĂŽĚĞǀŝĚŽ
procura apreender a ampla dimensão de uma sociedade em
ƌĞƐƉĞŝƚŽĂdŽĚŽƌŽǀĂŽƉƌŽƐƐĞŐƵŝƌĞŵƐĞƵƐĞƐƚƵĚŽƐ͕ĚĞĮŶĞĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽ͕ĐŽŶƐƚƌƵşĚĂ
ĞǀŽůƵĕĆŽ;͘͘͘ͿŽƋƵĞĂƋƵŝĞƐƚĄĞŵĐĂƵƐĂƚĂŵďĠŵ͕ĐŽŵŽƐĞǀġ͕ĠĂ
ŶĂĚŝĞŐĞƐĞĞǀŝǀĞŶĐŝĂĚĂƉĞůŽůĞŝƚŽƌ͕ĐŽŵŽĂŵĂŝƐĮƌŵĞƉƌĞŵŝƐƐĂƚŽĚŽƌŽǀŝĂŶĂ͕ĞǀĂŝ ƋƵĞƐƚĆŽĚĂĨŽƌŵĂĚŽƐŐġŶĞƌŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐ͕ĞdžƉƌĞƐƐĆŽƋƵĞŝŵƉŽƌƚĂ
ĂůĠŵ͕ƋƵĂŶĚŽ͕ĞŵƐƵĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ĂĮƌŵĂƋƵĞĞƐƐĞŐġŶĞƌŽƐĞŵĂŶƚĠŵĂŽůŽŶŐŽĚĂŝŶ- entender numa acepção alargada, reportando-se tanto à forma
teração entre empírico e metaempírico, de uma forma convincente e ambígua, sem do conteúdo como a forma da expressão. (REIS, 2008, p. 253-
que o texto explicite uma opção de escolha (1980, p. 36). A hesitação frente a essa 254, grifo nosso)
realidade – e o (f)ato insólito – dura o período de um instante, na visão de Todorov.
Assim, operamos em meio às tradições que o encaram como gênero, modo
WŽƌƐĞƌƵŵŐġŶĞƌŽĐƵũŽƐĂůŝĐĞƌĐĞƐĂƉŽŝĂŵͲƐĞ͕ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞ͕ŶĂƉƌĞŵŝƐƐĂ
ŽƵĚĞŵĂŝƐǀĞƌƚĞŶƚĞƐ;d>,͕ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϭϬͿ͘KďƐĞƌǀĂŵŽƐƋƵĞŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŶƟŶƵĂ
da hesitação, trata-se de um gênero evanescente (TODOROV, 1992, p. 48) e, se essa
sendo apontado, por todas as diferentes correntes teóricas, como ponto comum,
ŶĆŽƐĞŵĂŶƚĠŵ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽƌƌĞŽƌŝƐĐŽĚĞƚƌĂŶƐŝƚĂƌƉĂƌĂƵŵŽƵŽƵƚƌŽĚĞƐĞƵƐŐġ-
representando, diegesicamente, um acontecimento que foge às normas da raciona-
ŶĞƌŽƐǀŝnjŝŶŚŽƐ͕ŽƐƚƌĂŶŚŽĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͘,Ą͕ƚĂŵďĠŵ͕ĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĞŶŽƌŵĂƐ
ůŝĚĂĚĞĞĚĂĐŽŵƉĂĐƚƵĂĕĆŽĐŽƟĚŝĂŶĂƐ͘KŝŶƐſůŝƚŽĂŐŝƌŝĂĐŽŵŽĨĞƌƌĂŵĞŶƚĂĚĞƐƵďǀĞƌ-
ĂƐĞƌĞŵƐĞŐƵŝĚĂƐŶĂƉƌŽĚƵĕĆŽĞǀĞƌŝĮĐĂĚĂƐŶĂůĞŝƚƵƌĂƉĂƌĂƋƵĞƐĞƉŽƐƐĂĂĮƌŵĂƌĂ
ƐĆŽĚŽƌĞĂůĞŵƉşƌŝĐŽ͕ĐŽŶƚƌŝďƵŝŶĚŽƉĂƌĂŽĚĞƐĞŶƌŽůĂƌĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘
ĞĨĞƟǀĂǀŝŶĐƵůĂĕĆŽĚĞĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂĂŽŐġŶĞƌŽ͘
ĞŶƚƌĞ ĂƐ ƉŽƐƐşǀĞŝƐ ĐůĂƐƐŝĮĐĂĕƁĞƐ͕ ŽƉƚĂŵŽƐ͕ Ğŵ Ƶŵ ƉƌŝŵĞŝƌŽ ŵŽŵĞŶƚŽ͕
^Ğ͕ƉŽƌƵŵůĂĚŽ͕ĞƐƐĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĕĆŽ͕stricto sensu, contribui, em determinado
ƉĞůĂǀĞƌƚĞŶƚĞĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹƉƌŽƉŽƐƚŽƉŽƌůĞũŽĂƌƉĞŶƟĞƌĞŵƉƌĞĨĄĐŝŽ
ŵŽŵĞŶƚŽ͕ƉĂƌĂŽĂŵĂĚƵƌĞĐŝŵĞŶƚŽĚŽƐĞƐƚƵĚŽƐƐŽďƌĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƚĂŵďĠŵĂƉŽŶƚĂ
a El Reino deste Mundo;ϭϵϰϵͿ͕ĐƵũĂƐŝƐƚĞŵĂƟnjĂĕĆŽƚĞſƌŝĐĂĨŽŝĚĞƐĞŶǀŽůǀŝĚĂƉŽƌ
ĐŽŵŽĞƐƐĞũĄĂƉƌĞƐĞŶƚĂƐƵĂƐĚŝǀĞƌŐġŶĐŝĂƐĞŵƌĞůĂĕĆŽĂƵŵĂŶŽǀĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŽ
Irlemar Chiampi em O realismo maravilhoso;ϭϵϴϬͿʹ͕ĐŽŵŽŽďũĞƟǀŽĚĞĂƟŶŐŝƌĂ
ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĐŽŵƉĂƌĂŶĚŽĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĚŽƐĠĐƵůŽy/yĐŽŵĂƐ
“suposta” corrente do Real-Animismo, por nós, até então, considerada como uma
ŝŶŽǀĂĕƁĞƐĚŽƐĠĐƵůŽyy͕ĂĞdžĞŵƉůŽĚĂŽďƌĂĚĞ<ĂŅĂ͕ƋƵĞĂŶƚĞĐŝƉĂĂďĂŶĂůŝnjĂĕĆŽĚŽ
ĂĚũĞƟǀĂĕĆŽĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞŵĨƌŝĐĂ͘
acontecimento sobrenatural (TODOROV, 1992, p. 181).
dĂŶƚŽĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ĂŽĐŽŶǀŝĚĂƌŽĞƐĐƌŝƚŽƌƉĂƌĂŽŵƵŶĚŽĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ƋƵĂŶƚŽ
Irène Bessiére, embora resgate Todorov em seus estudos, concebe o
ŚŝĂŵƉŝ͕ĂŽĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƌŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐĚĞƐƐĂĞƐƚĠƟĐĂ͕ĂƉŽŶƚĂŵƉĂƌĂƵŵĂƌĞƉƌĞ-
&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƵŵŵŽĚŽĚŝƐĐƵƌƐŝǀŽ;^^/Z͕ϮϬϬϭͿĞ͕ƉŽƐƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ͕ŽŵĞƐ-
ƐĞŶƚĂĕĆŽŚŝƐƚſƌŝĐĂĞƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂůĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂ;,/DW/͕ϭϵϴϬ͕Ɖ͘
mo Filipe Furtado assume posição semelhante (2011). Apesar de Furtado não
32), renovando-a tanto pelo viés da linguagem, quanto da diegese.
ŶĞŐĂƌĂǀŝƐĆŽŐĞŶŽůſŐŝĐĂĚŽƚĞſƌŝĐŽďƷůŐĂƌŽ͕ĞůĞƉĂƐƐĂ͕ĂƉĂƌƟƌĚĞƵŵƐĞŐƵŶĚŽ
momento, em seus estudos, a assumir a possibilidade das duas vertentes nas sĞƌŝĮĐĂŵŽƐ͕ ĂŝŶĚĂ͕ Ă ĞǀŽůƵĕĆŽ ĚŽ ŝŶƐſůŝƚŽ ĚĞƐĚĞ ŽƐ ĂƉŽŶƚĂŵĞŶƚŽƐ ĚĞ
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϮϭͿ͕ŽƉŽŶĚŽͲƐĞăǀŝƐĆŽĐůĄƐƐŝĐĂ͕ĂŽĂĐĞŝƚĂƌ dŽĚŽƌŽǀ͕ĂƚĠĂǀŝƐĆŽĚĞƋƵĞŶĆŽŚĄŵĂŝƐĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽƉĂƌĂĂĐŽŶƐƚƌƵ-
ƚĂŶƚŽƵŵ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŐġŶĞƌŽ͕ƋƵĂŶƚŽƵŵ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚŽ͘ ĕĆŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ŵĂƐĚĂĨĠ;ŽƌŐĞƐ͕apud CHIAMPI, 1980, p. 61) para
a irrupção dos mirabilia. Nessa realidade metaempírica, as personagens possuem
ƐƐĞ ͞ŽƵƚƌŽ͟ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ ƋƵĞ ŶĆŽ ƐĞ ƐƵďŵĞƚĞ ăƐ ĞƐƚƌƵƚƵƌĂĕƁĞƐ ƌşŐŝĚĂƐ
fé na transcendência de um estado extranatural, aceitando o acontecimento insóli-
apresentadas e defendidas por Todorov (1992) e Furtado (1980), possui maior
ƚŽĐŽŵŽĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞĚŽŵĞŝŽ͘^ĞŐƵŶĚŽĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ŽƐmirabilia ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐ
semelhança com as manifestações do fantasy, em que eventos insólitos se ma-
ĂƉƌŽdžŝŵĂŵ ͞ĂƋƵĞůĂ ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ ƌĞĐĠŵͲǀŝǀŝĚĂ ă ĞdžĂƵƐƟǀĂ ƉƌĞƚĞŶƐĆŽ ĚĞ
nifestam, sem que a maneira pela qual são apresentados e/ou percebidos pelas
ƐƵƐĐŝƚĂƌŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽƋƵĞĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjŽƵĐĞƌƚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĞƵƌŽƉĞŝĂŶĞƐƚĞƐƷůƟŵŽƐƚƌŝŶ-
ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐŝŶĐŽƌƌĂĞŵƐƵĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĕĆŽƌĞƐƚƌŝƚĂĚĞŶƚƌŽĚĂƐŝŵƉŽƐŝĕƁĞƐĨĞĐŚĂĚĂƐ
ƚĂ ĂŶŽƐ͟ ;ϭϵϰϵͿ͘ WŽƐƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ͕ ĂƉŽŶƚĂ ĐŽŵŽ ͞Ž ĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽ ŶĆŽ Ġ ďĞůŽ ŶĞŵ
ĚŽŐġŶĞƌŽ͘^ĞƌŝĂ͕ĚĞƐƐĞ͞ŵŽĚŽ͕͟Ƶŵ&ĂŶƚĄƐƟĐŽůĞǀĂĚŽăĂďĞƌƚƵƌĂƉůĞŶĂ͕ĞĞƐƐĂ
ĨŽƌŵŽƐŽƉŽƌĨŽƌĕĂ͘EĞŵĠďĞůŽŶĞŵĨĞŝŽ͖ĠŵĂŝƐƋƵĞŶĂĚĂĂƐƐŽŵďƌŽƐŽƉĞůŽŝŶƐſůŝƚŽ͘
ĂďĞƌƚƵƌĂĂďƌĂŶŐĞƌŝĂŽƉƌſƉƌŝŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŐġŶĞƌŽ͕ďĞŵĐŽŵŽĂƐĚĞŵĂŝƐǀĞƌƚĞŶƚĞƐ
Todo o insólito, todo o assombroso, tudo o que sai das normas estabelecidas é ma-
próximas, desde o Estranho e o Maravilhoso, até outras, como o romance policial
ravilhoso” (1984, p. 119).
ĞĂĮĐĕĆŽĐŝĞŶơĮĐĂ͘ƌŝƐƟŶĂĂƚĂůŚĂ͕ĂŽƚƌĂƚĂƌĚĞĐŽŵŽĂŶĂƌƌĂƟǀĂƐĞĂƉƌĞƐĞŶƚĂ
ĂŽůŽŶŐŽĚŽƐƚĞŵƉŽƐ͕ƌĞĨĞƌĞͲƐĞĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ͞&ĂŶƚĄƐƟĐŽƐ͟ĂĚũĞƟǀĂĚŽƐ͕ĨƌƵƚŽĚĞƐ- Prestando o devido respeito à tradição que se inicia em Todorov, percorre-
ƐĂƐŇƵƚƵĂĕƁĞƐŶĂƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůĞŶĂĐƌşƟĐĂ;ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϭϴͿ͘ ŵŽƐƵŵĂƉŽƐƐşǀĞůĞǀŽůƵĕĆŽʹŶĆŽŶŽƐĞŶƟĚŽƋƵĂůŝƚĂƟǀŽ͕ŵĂƐĚĞƉĞƌĐƵƌƐŽ͕ƚƌĂũĞƚŽʹ͕
ĚĞƐĚĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐůĄƐƐŝĐŽĂƚĠŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞƐƵĂĂƚƵĂůŝnjĂĕĆŽĞŵĨƌŝĐĂ͕ƐŽďĂ
KƉƚĂŵŽƐƉŽƌĂƐƐƵŵŝƌŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƐŝƐƚĞŵĂʹĞĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐƋƵĞŽĨĞ-
nomenclatura de Realismo Animista – termo cunhado por Pepetela (1997), segundo
rece no plano da diegese –, igual a modo, onde o escritor se apropria das possibilida-
a tradição que estuda tanto as literaturas africanas de língua portuguesa, quanto
des que esse macro-gênero – entendemos, aqui, como uma questão de nomenclatura,
a representação do sobrenatural nelas. Assim, assumiremos como Real-Animismo
ƚĞŶĚŽŽŵĞƐŵŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚŽĞ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵĂĐƌŽͲŐġŶĞƌŽʹ͕ĞŵďĂƐĂĚŽ

24 ISBN 978-85-8199-013-2 ISBN 978-85-8199-013-2 25

João Olinto Trindade Junior
como termo-conceito a ser por nós perseguido ao longo deste ensaio.
Gênero e subgêneros
EĆŽ Ġ ǀĞƌĚĂĚĞŝƌŽ ĂĮƌŵĂƌ ƋƵĞ ŽƐ ĞƐƚƵĚŽƐ Ğŵ ƚŽƌŶŽ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ ůŝƚĞƌĄ-
ƌŝŽ ƐĞ ŝŶŝĐŝĂŵ Ğŵ ŵĞĂĚŽƐ ĚŽ ƐĠĐƵůŽ yy͕ ƉŽƌĠŵ͕ Ğŵ ƐĞƵ ƚƌĂďĂůŚŽ ƉĂƌĂĚŝŐŵĄƟĐŽ͕
/ŶƚƌŽĚƵĕĆŽăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ;ϭϵϳϬ͕ϭǐĞĚŝĕĆŽ͖ϭϵϵϮ͕ĞĚŝĕĆŽĂƋƵŝƵƟůŝnjĂĚĂͿ͕ƉŽƌ
ŵƵŝƚŽƐǀŝƐƚŽĐŽŵŽŶŽƌƚĞĂĚŽƌĚŽƐĞƐƚƵĚŽƐĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĚĂůŝƉĂƌĂĚŝĂŶƚĞ͕
Todorov promove o amadurecimento das discussões anteriores relacionadas ao
&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƉƌŽƉŽŶĚŽƵŵĂƐŝƐƚĞŵĂƟnjĂĕĆŽĚĞĐŽŶĐĞŝƚŽƐ͕ĚĞďĂƐĞĞƐƚƌƵƚƵƌĂůŝƐƚĂ͕ƉĂƌĂ
ŽƉĞƌĂĐŝŽŶĂůŝnjĂĕĆŽĚĞůĞŝƚƵƌĂƐ͘^ĞŐƵŝŶĚŽƵŵĂůŽŶŐĂƚƌĂĚŝĕĆŽĚĞĐƌşƟĐŽƐʹĞ͕ƚĂŵďĠŵ͕
ĚĞĮĐĐŝŽŶŝƐƚĂƐʹƋƵĞƐĞĚĞĚŝĐĂƌĂŵĂĞƐƚƵĚĂƌĞƐƐĞŐġŶĞƌŽŶĂƌƌĂƟǀŽ͕ĚĞƐĚĞŽƐĠĐƵůŽ
ys/// ʹ ĐŽŵŽ WŽĞ͕ >ŽǀĞĐƌĂŌ͕ ,ŽīŵĂŶŶ͕ DĂƵƉĂƐƐĂŶƚ Ğ ŽƵƚƌŽƐ ʹ dŽĚŽƌŽǀ ŶŽƐ ƉƌŽ-
ƉƁĞŵƵŵĂĂŶĄůŝƐĞĐŽŵďĂƐĞĞŵŶĂƌƌĂƟǀĂƐĚŽKŝƚŽĐĞŶƚŽƐĞŽƵƚƌĂƐŵĂŝƐƉƌſdžŝŵĂƐ
de seu tempo.
Ž ƚƌĂƚĂƌ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ dŽĚŽƌŽǀ ƐŝƚƵĂͲŽ ĞŶƚƌĞ ĚŽŝƐ ŐġŶĞƌŽƐ ǀŝnjŝŶŚŽƐ
(TODOROV, 1992, p. 50), o Estranho – que presume uma aceitação ou explicação
ƌĂĐŝŽŶĂůƉĂƌĂƵŵĞǀĞŶƚŽƐƵƉŽƐƚĂŵĞŶƚĞƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůƋƵĞƚĞƌŝĂƐƵďǀĞƌƟĚŽĂŽƌĚĞŵ
ůſŐŝĐĂĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƐĞŐƵŶĚŽŽƐƉĂĚƌƁĞƐƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂŝƐʹĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹĞŵƋƵĞ
se pressupõe uma realidade totalmente diferente daquela regida por regras pró-
ƉƌŝĂƐĚĞŶŽƐƐĂĐŽŶǀĞŶĐŝŽŶĂůŝĚĂĚĞİƐŝĐĂ͕ƐĞƌĞƐƋƵĞƐŽŵŽƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĐŽƟĚŝĂŶĂʹ͕
ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂƐĞŵĂŶƚĠŵŶŽůŝŵŝĂƌĚĂĞdžƉůŝĐĂĕĆŽƌĂĐŝŽŶĂůĞ
da explicação não racional do evento insólito que nela se manifesta, permanecendo
ĞŶƚƌĞĞƐƐĞƐŽƵƚƌŽƐĚŽŝƐŐġŶĞƌŽƐ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ƉŽƌŵĂŶƚĞƌ͕ĂƚĠŽĮŶĂůĚĂ
história, a hesitação experienciada por personagens e narrador, levada ao leitor, que
ƐĞǀġĐŽŶƚĂŵŝŶĂĚŽƉŽƌƚĂůĞĨĞŝƚŽĚĞĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ͕ĚŝĂŶƚĞĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽƋƵĞƐĞ
apresenta como incoerente em relação às normas vigentes, entre aceitar ou não.
Para o teórico, esse gênero se alimentaria da hesitação (TODOROV, 1992,
p. 36) e da incapacidade de o leitor se decidir entre o que ele tem por real e aquilo
ƋƵĞƐƵƉƁĞŶĆŽƐĞũĂƌĞĂů͕ŽƌĂĐŝŽŶĂůĞŽŝƌƌĂĐŝŽŶĂů͕ƉĞƌŵĂŶĞĐĞŶĚŽĞƚĞƌŶĂŵĞŶƚĞĚĞůŝ-
mitado entre seus gêneros vizinhos, embora, tecnicamente, essa “eternidade” dure
o período de um momento, de maneira que, nas palavras do estudioso, “nada nos
ŝŵƉĞĚĞĚĞĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽƉƌĞĐŝƐĂŵĞŶƚĞĐŽŵŽƵŵŐġŶĞƌŽƐĞŵƉƌĞĞǀĂŶĞƐ-
ĐĞŶƚĞ͟;ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϰϴͿ͘ƐƐŝŵ͕ƐĞŐƵŶĚŽdŽĚŽƌŽǀ͕ĞƐƐĞĞĨĞŝƚŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŶĂŶĂƌƌĂƟ-
ǀĂ͕ĚĞůŝŵŝƚĂĚŽĞŶƚƌĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞŽƐƚƌĂŶŚŽ͕ƐĞƌŝĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĚŽĚĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵ
ƐƵďŐġŶĞƌŽƐƚƌĂŶƐŝƚſƌŝŽƐĞŶƚƌĞĞůĞƐ͕ĐŽŵŽŽƐƚƌĂŶŚŽƉƵƌŽ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞƐƚƌĂŶŚŽ͕Ž
&ĂŶƚĄƐƟĐŽƉƵƌŽ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽƉƵƌŽ͘
ůĠŵĚĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂĂŽƚĞdžƚŽƉĂƌĂƐƵĂǀŝŶĐƵůĂĕĆŽĂŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕dŽĚŽƌŽǀ
também aponta outros elementos imprescindíveis à construção do gênero, como:
Primeiro, é preciso que o texto obrigue ao leitor a considerar
o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas
26 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação so-
brenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesita-
ĕĆŽƉŽĚĞƐĞƌŝŐƵĂůŵĞŶƚĞĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂĚĂƉŽƌƵŵĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͖
ĚĞƐƚĂĨŽƌŵĂŽƉĂƉĞůĚŽůĞŝƚŽƌĠ͕ƉŽƌĂƐƐŝŵĚŝnjĞƌ͕ĐŽŶĮĂĚŽĂƵŵĂ
personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se repre-
ƐĞŶƚĂĚĂ͕ƚŽƌŶĂͲƐĞƵŵĚŽƐƚĞŵĂƐĚĂŽďƌĂ͖ŶŽĐĂƐŽĚĞƵŵĂůĞŝƚƵƌĂ
ŝŶŐġŶƵĂ͕ŽůĞŝƚŽƌƌĞĂůƐĞŝĚĞŶƟĮĐĂĐŽŵĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͘ŶĮŵ͕Ġ
ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƋƵĞŽůĞŝƚŽƌĂĚŽƚĞĐĞƌƚĂĂƟƚƵĚĞƉĂƌĂĐŽŵŽƚĞdžƚŽ͗ĞůĞ
ƌĞĐƵƐĂƌĄƚĂŶƚŽĂŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕĆŽĂůĞŐſƌŝĐĂƋƵĂŶƚŽĂŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕĆŽ
͞ƉŽĠƟĐĂ͘͟ƐƚĂƐƚƌġƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐŶĆŽƚġŵǀĂůŽƌŝŐƵĂů͘ƉƌŝŵĞŝƌĂ
Ğ Ă ƚĞƌĐĞŝƌĂ ĐŽŶƐƟƚƵĞŵ ǀĞƌĚĂĚĞŝƌĂŵĞŶƚĞ Ž ŐġŶĞƌŽ͖ Ă ƐĞŐƵŶĚĂ
ƉŽĚĞŶĆŽƐĞƌƐĂƟƐĨĞŝƚĂ͘;ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϯϴͲϯϵͿ
Em suma, segundo a proposta apresentada: 1) O recurso a uma realidade
ƋƵĞ ƵƟůŝnjĂ Ž ŵƵŶĚŽ ƌĞĂů͕ ĚŽ ƋƵĂů Ġ ƉĂƌĂƐŝƚĂ͕ ĐŽŵŽ ƉĂŶŽ ĚĞ ĨƵŶĚŽ ƉĂƌĂ Ă ƚƌĂŵĂ͖
ϮͿŶĂƌƌĂĕĆŽĞŵƉƌĞĞŶĚŝĚĂƉŽƌƵŵŶĂƌƌĂĚŽƌĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚŽĐŽŵŽĚĞƐĞŶƌŽůĂƌĚŽƐ
acontecimentos – de preferência em primeira pessoa –, com o qual o leitor empírico
ƐĞũĂŝŶĚƵnjŝĚŽĂƐĞŝĚĞŶƟĮĐĂƌ͕ƐĞŶĚŽĐĂƉĂnjĚĞĐŽŶƚƌŝďƵŝƌƉĂƌĂĂŝŶƐƚĂƵƌĂĕĆŽĚŽĞĨĞŝƚŽ
ĚĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ͕ŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽăŶĂƌƌĂƟǀĂ͖ϯͿKůĞŝƚŽƌĞŵƉşƌŝĐŽŶĆŽĚĞǀĞƐĞƌŝŶŐġŶƵŽĞ͕
ĂƐƐŝŵ͕ĞŶĐĂƌĂƌŽƚĞdžƚŽĐŽŵŽĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ĂƐƐƵŵŝŶĚŽƵŵĂĂƟƚƵĚĞĚĞƌĞĐƵƐĂ
ĞŵƌĞůĂĕĆŽĂŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕƁĞƐĂůĞŐſƌŝĐĂƐŽƵƉŽĠƟĐĂƐ͘
WĂƌĂŽĐƌşƟĐŽ͕ĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĕĆŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĚĞƉĞŶĚĞƌŝĂ͕ĞŵƉĂƌƚĞ͕ĚĂĂƟƚƵĚĞ
ƚŽŵĂĚĂƉĞůŽůĞŝƚŽƌĞŵƉşƌŝĐŽ͕ĞŶƚƌĞŚĞƐŝƚĂƌŽƵŶĆŽ͕ũƵŶƚŽĚĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞĚŽŶĂƌƌĂ-
dor, frente a um evento que contrariasse as leis vigentes, próprias de uma realidade
ŶĂƌƌĂƟǀĂĂƉŽŝĂĚĂŶŽŵƵŶĚŽƌĞĂů͕ĂƋƵĞůĞĞŵƋƵĞǀŝǀĞŵŽƐ͘ŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ĂŽĐŽŵƉĂƌĂƌ
Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐůĄƐƐŝĐŽŽƵƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůʹƌĞĨĞƌĞŶƚĞăƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐƉƌŽĚƵnjŝĚĂƐ͕ŵĂũŽƌŝƚĂƌŝĂ-
mente, no século XIX – com os rumos que essa literatura estaria tomando no século XX
ʹĞŵĞƐƉĞĐŝĂů͕ĐŽŶƐŝĚĞƌĂŶĚŽĂŽďƌĂĚĞ<ĂŅĂʹ͕dŽĚŽƌŽǀĚĞŝdžĂĞŶƚƌĞǀĞƌƋƵĞƐƵĂŽƉĞ-
ƌĂĐŝŽŶĂůŝnjĂĕĆŽĐƌşƟĐŽͲƚĞſƌŝĐĂŶĆŽƐĞĂĚĞƋƵĂƌŝĂĂŽƐŶŽǀŽƐƚĞdžƚŽƐ͕ƉŽŝƐ͕ĞŵƐƵĂŽƉŝŶŝĆŽ͕
ŵ <ĂŅĂ͕ Ž ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽ ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů ŶĆŽ ƉƌŽǀŽĐĂ ŵĂŝƐ
hesitação, pois o mundo descrito é inteiramente bizarro, tão
anormal quanto o próprio acontecimento a que serve de fundo.
ZĞĞŶĐŽŶƚƌĂŵŽƐ͕ ƉŽƌƚĂŶƚŽ͕ ;ŝŶǀĞƐƟĚŽͿ Ž ƉƌŽďůĞŵĂ ĚĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ
ĨĂŶƚĄƐƟĐĂʹůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƋƵĞƉŽƐƚƵůĂĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚŽƌĞĂů͕ĚŽŶĂƚƵ-
ƌĂů͕ĚŽŶŽƌŵĂů͕ƉĂƌĂƉŽĚĞƌĞŵƐĞŐƵŝĚĂĂƚĂĐĄͲůŽǀŝŽůĞŶƚĂŵĞŶƚĞͶ
ŵĂƐ <ĂŅĂ ĐŽŶƐĞŐƵŝƵ ƐƵƉĞƌĄͲůŽ͘ ůĞ ƚƌĂƚĂ Ž ŝƌƌĂĐŝŽŶĂů ĐŽŵŽ ƐĞ
ĮnjĞƐƐĞƉĂƌƚĞĚŽũŽŐŽ͗ƐĞƵŵƵŶĚŽŝŶƚĞŝƌŽŽďĞĚĞĐĞĂƵŵĂůſŐŝĐĂ
onírica, se não de pesadelo, que nada mais tem a ver com o real.
Mesmo que uma certa hesitação persista no leitor, nunca toca a
ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͖ Ğ Ă ŝĚĞŶƟĮĐĂĕĆŽ ĐŽŵŽ ĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ ŽďƐĞƌǀĂĚĂ
ŶĆŽĠŵĂŝƐƉŽƐƐşǀĞů͘ŶĂƌƌĂƟǀĂŬĂŅŝĂŶĂ abandona aquilo que
ơŶŚĂŵŽƐĚĞƐŝŐŶĂĚŽĐŽŵŽĂƐĞŐƵŶĚĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽ͗Ă
hesitação representada no interior do texto, e que caracteriza
especialmente os exemplos do século XIX. (1992, p. 181)
EĂŶĂƌƌĂƟǀĂĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂ͕ƋƵĞƐĞĐŽƐƚƵŵĂǀŝŶĐƵůĂƌĂŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƚĞŵƐŝĚŽ
ĐŽŵƵŵƋƵĞŽĨĞŶƀŵĞŶŽŝŶƐſůŝƚŽĂƉĂƌĞĕĂŝŶĐŽƌƉŽƌĂĚŽŶŽĐŽƟĚŝĂŶŽĚĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ
ISBN 978-85-8199-013-2 27
João Olinto Trindade Junior
ĐŽŵŽĂůŐŽƉƌĞǀŝƐşǀĞů͕ĂŝŶĚĂƋƵĞŝŶĐŽŵƵŵ͘ĞŵďƌŝŽŶĄƌŝĂůĞŝƚƵƌĂƋƵĞdŽĚŽƌŽǀĨĂnjĚĂ
ŽďƌĂĚĞ<ĂŅĂ͕Ğŵ/ŶƚƌŽĚƵĕĆŽăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕ũĄĂƉŽŶƚĂƌĂƉĂƌĂƵŵŶŽǀŽŵŽĚĞůŽ
ĚĞ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĚŝǀĞƌŐĞŶƚĞĚŽĐůĄƐƐŝĐŽŽƵƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͕ŶŽƋƵĂůŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůƚƌĂŶƐďŽƌĚĂ
ĚŽŚŽŵĞŵĐŽƟĚŝĂŶŽ͕ĐƌŝĂŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕Ƶŵ͞ĨĂŶƚĄƐƟĐŽŐĞŶĞƌĂůŝnjĂĚŽ͟;ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϭϴϮͿ͘
&ŝůŝƉĞ&ƵƌƚĂĚŽ͕ĐƌşƟĐŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĚĞŝŶŇƵġŶĐŝĂƐĞŵąŶƟĐŽͲĞƐƚƌƵƚƵƌĂůŝƐƚĂ͕ĂƉĞ-
ƐĂƌ ĚĞ ĂƐƐƵŵŝƌ ĂůŐƵŵĂ ŝŶŇƵġŶĐŝĂ ĚĞ dŽĚŽƌŽǀ͕ ǀĂŝ ŵĂŝƐ ĂůĠŵ͘ DĞƐŵŽ ƌĞŶĚĞŶĚŽ Ž
devido respeito ao prestar homenagem à teorização todoroviana, discorda do fato
ĚĞĐĂďĞƌĂŽůĞŝƚŽƌĂĚĞĐŝƐĆŽŵĂŝƐĚĞĮŶŝƟǀĂƋƵĂŶƚŽăĞƐĐŽůŚĂĚĞƵŵĂĞdžƉůŝĐĂĕĆŽŶĂ-
ƚƵƌĂůŽƵŶĆŽƉĂƌĂŽĞǀĞŶƚŽŝŶƐſůŝƚŽ͘^ĞŐƵŶĚŽŽĐƌşƟĐŽƉŽƌƚƵŐƵġƐ͕ŶĆŽĐĂďĞĂŽůĞŝƚŽƌ
empírico hesitar ou não, mas este, sim, é levado, pelas personagens ou pelo narra-
dor, a hesitar, sem que possa ter opção própria. Para ele, o texto é uma construção
ƚƌĂďĂůŚĂĚĂĐŽŵŽƉƌŽƉſƐŝƚŽĚĞĂƟŶŐŝƌƐĞƵƐŽďũĞƟǀŽƐ͕ĞĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽĠĐŽŶƐƚƌƵşĚĂĂŽ
ůŽŶŐŽ ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ ĐŽŵ ďĂƐĞ ŶĂƐ ĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐ ĞŵƉƌĞŐĂĚĂƐ ƉĞůŽ ĂƵƚŽƌ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ
ƋƵĞĂĮŐƵƌĂĚŽŶĂƌƌĂƚĄƌŝŽʹƉŽƌƚĂͲǀŽnjĚĞƐƐĂƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐʹ͕ůĞǀĂͲĂƐĂŽůĞŝƚŽƌĞŵƉşƌŝ-
co, em seus atos de leitura - através de uma ambiguidade propositalmente estrutu-
ƌĂĚĂ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϵϱͿ͕ƚƌĂŶƐŵŝƟĚĂĂŽůĞŝƚŽƌĞŵƉşƌŝĐŽ͕ƐĞŵƋƵĞůŚĞĐĂŝďĂŽƵŶĆŽĂĐĞŝƚĂƌ
o acontecimento como tal. Conforme Furtado,
ĂĞƐƐġŶĐŝĂĚŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽƌĞƐŝĚĞŶĂƐƵĂĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞĚĞĞdžƉƌĞƐƐĂƌ
o sobrenatural de uma forma convincente e de manter uma
ĐŽŶƐƚĂŶƚĞĞŶƵŶĐĂƌĞƐŽůǀŝĚĂĚŝĂůĠƟĐĂĞŶƚƌĞĞůĞĞŽŵƵŶĚŽŶĂ-
tural em que irrompe, sem que o texto alguma vez explicite se
aceita ou exclui inteiramente a existência de qualquer deles. Em
ĐŽŶƐĞƋƺġŶĐŝĂ͕ Ă ƉƌŝŵĞŝƌĂ ĐŽŶĚŝĕĆŽ ƉĂƌĂ ƋƵĞ Ž ĨĂŶƚĄƐƟĐŽ ƐĞũĂ
construído é a de o discurso evocar a fenomenologia insólita de
ƵŵĂĨŽƌŵĂĂŵďşŐƵĂĞŵĂŶƚĞƌĂƚĠĂŽĮŵƵŵĂƚŽƚĂůŝŶĚĞĮŶŝĕĆŽ
perante ela. (1980, p. 36)
&ƵƌƚĂĚŽǀġĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽ͕ƚƌĂŶƐŵŝƟĚĂĂŽĞǀŝǀĞŶĐŝĂĚĂƉĞůŽůĞŝƚŽƌ͕ĐŽŵŽĂŵĂŝƐ
ĨŽƌƚĞƉƌĞŵŝƐƐĂƚŽĚŽƌŽǀŝĂŶĂƉĂƌĂĂĐŽŶƐƵŵĂĕĆŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĐŽŵŽƉƌŽĚƵƚŽĚĂƚĞdž-
ƚƵĂůŝĚĂĚĞ͕ĐŽŵďĂƐĞŶŽƐƌĞĐƵƌƐŽƐĚĞůŝŶŐƵĂŐĞŵĞŵƉƌĞŐĂĚŽƐŶŽĚŝƐĐƵƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂů͘
WĂƌĂĞůĞ͕ƐſŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŶĨĞƌĞƐĞŵƉƌĞƵŵĂĞdžƚƌĞŵĂĚƵƉůŝĐŝĚĂĚĞăŽĐŽƌƌġŶĐŝĂŝŶ-
ƐſůŝƚĂĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞ͕ƉĂƌĂƐƵĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ͕ŝŵƉůŝĐĂͲƐĞĂĮĐĕĆŽ͘
ŶĮŵ͕ƐĞƌĄĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽ͕ĐŽŶƐƚƌƵşĚĂƉĞůĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ͕ƵŵĚŽƐĨĂƚŽƌĞƐĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂŝƐ
ƉĂƌĂ&ƵƌƚĂĚŽ͕ŽƵƐĞũĂ͕ĂĚƵĂůŝĚĂĚĞĞŶƚƌĞŽƐŵƵŶĚŽƐƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůĞŶĂƚƵƌĂů͘
ĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵ&ƵƌƚĂĚŽ͕ĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂƐĞƌĄĐƌŝĂ-
ĚĂ Ğ ŵĂŶƟĚĂ ƐĞ Ă ŵĞƐŵĂ ĨŽƌ ŽƌŐĂŶŝnjĂĚĂ ĚĂ ƐĞŐƵŝŶƚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ͗ ϭͿ &ĂnjĞƌ ƐƵƌŐŝƌ͕
num contexto aparentemente normal e tornar dominantes em relação aos res-
ƚĂŶƚĞƐ͕ĞůĞŵĞŶƚŽƐƚĞŵĄƟĐŽƐ͕ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐŽƵƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐƋƵĞƐƵďĞŶƚĞŶĚĂŵ
ĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂŽďũĞƟǀĂĚĞƵŵĂĨĞŶŽŵĞŶŽůŽŐŝĂŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐĂĞĞǀŝĚĞŶĐŝĞŵşŶĚŽůĞ
ĞƉƌŽƉſƐŝƚŽƐĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚŽƐŶĞŐĂƟǀŽƐăůƵnjĚŽƐƉĂĚƌƁĞƐĂdžŝŽůſŐŝĐŽƐĐŽƌƌĞŶƚĞƐ͖ϮͿ
ŽŶĨĞƌŝƌ ǀĞƌŽƐƐŝŵŝůŚĂŶĕĂ Ă ĞƐƐĂ ĨĞŶŽŵĞŶŽůŽŐŝĂ͕ ƚŽƌŶĂŶĚŽͲĂ ĂĐĞŝƚĄǀĞů ă ŽƉŝŶŝĆŽ
ĐŽŵƵŵ͖ϯͿǀŝƚĂƌĂƌĂĐŝŽŶĂůŝnjĂĕĆŽƉůĞŶĂĚĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽ͖ϰͿ/ŶƐƚĂƵƌĂƌ
ƵŵŶĂƌƌĂƚĄƌŝŽƋƵĞƚĞŶŚĂĂĚƵƉůĂĨƵŶĕĆŽĚĞƌĞŇĞƟƌĂůĞŝƚƵƌĂŝŶĐĞƌƚĂĚŽŝŶƐſůŝƚŽ
Ğ ƚƌĂŶƐŵŝƟƌ ĂŽ ƌĞĐĞƉƚŽƌ ƌĞĂů ĚŽ ĞŶƵŶĐŝĂĚŽ ʹ Ž ůĞŝƚŽƌ ĞŵƉşƌŝĐŽ ʹ ƉĞƌƉůĞdžŝĚĂĚĞ
28 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƉĞƌĂŶƚĞ Ă ŝŶƚƌŝŐĂ͖ ϱͿ /ŶƐƚĂƵƌĂƌ ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ ƋƵĞ ƐƵƐĐŝƚĞŵ Ă ŝĚĞŶƟĮĐĂĕĆŽ ĂĐŝŵĂ
ƌĞĨĞƌŝĚĂƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽůĞŝƚŽƌ͖ϲͿKƌŐĂŶŝnjĂƌĂƐĨƵŶĕƁĞƐĚŽƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĚĞĂĐŽƌĚŽ
ĐŽŵƵŵĂĞƐƚƌƵƚƵƌĂƋƵĞƌĞŇŝƚĂĞĐŽŶĮƌŵĞĂƐĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐĞƐƐĞŶĐŝĂŝƐĂŽŐġŶĞƌŽ͖
ϳͿhƟůŝnjĂƌƵŵŶĂƌƌĂĚŽƌŚŽŵŽĚŝĞŐĠƟĐŽʹŽƵƐĞũĂ͕ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͕ŵĂƐŶĆŽƉƌŽƚĂŐŽ-
ŶŝƐƚĂ ʹ͕ ĐƵũŽ ĚƵƉůŽ ĞƐƚĂƚƵƚŽ Ğŵ ĨĂĐĞ ĚĂ ŝŶƚƌŝŐĂ ƌĞƐƵůƚĞ ŶƵŵĂ ŵĂŝŽƌ ĂƵƚŽƌŝĚĂĚĞ
ƉĞƌĂŶƚĞŽůĞŝƚŽƌĞŶĂĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞĚĞĐŽŵƉĞůŝͲůŽĂƵŵĞƐƚƌĞŝƚŽĐŽŶƐĞŶƟŵĞŶƚŽĞŵ
ƌĞůĂĕĆŽĂƚƵĚŽƋƵĞĠŶĂƌƌĂĚŽ͖ϴͿǀŽĐĂƌƵŵĞƐƉĂĕŽŝŶĚĞĮŶŝĚŽƋƵĞĂƉĂƌĞŶƚĞƌĞ-
presentar o mundo real, contendo indícios da própria subversão deste e deixan-
do insinuar-se aos poucos.
Essa racionalização parcial é proposital, visto que auxilia em sua construção
ĞŽƉĞƌĂĕĆŽ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞ͞ƐƵƐĐŝƚĂŶŽĚĞƐƟŶĂƚĄƌŝŽĚŽĞŶƵŶĐŝĂĚŽƵŵĂŝůƵƐĆŽĚĞĐŽŶ-
ĮĂŶĕĂ ŶĂ ŝŵƉĂƌĐŝĂůŝĚĂĚĞ ĚŽ ŶĂƌƌĂĚŽƌ͕ ƚŽƌŶĂŶĚŽͲƐĞ ĂƐƐŝŵ Ƶŵ ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞ ĨĂƚŽƌ ĚĞ
ǀĞƌŽƐƐŝŵŝůŚĂŶĕĂ͟;&hZdK͕ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϲϳͿ͘ĞƐƐĂƌĂĐŝŽŶĂůŝnjĂĕĆŽƉĂƌĐŝĂůƋƵĞĞǀŝƚĂƌĄ
ĂƚĞŶƚĂĕĆŽĚĂůĞŝƚƵƌĂƉŽĠƟĐĂĞͬŽƵĂůĞŐſƌŝĐĂ͕ŵĂŶƚĞŶĚŽĂĂƚŵŽƐĨĞƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂŝŶĞ-
rente à obra, que “deve desenvolver e fazer ecoar por todas as formas a incerteza
ƐŽďƌĞĂƋƵŝůŽƋƵĞĞŶĐĞƌƌĂ΀͘͘͘΁ĂƚƌĂǀĠƐĚŽƐǀĄƌŝŽƐƉƌŽĐĞƐƐŽƐĞŵƉƌĞŐĂĚŽƐŶĂƚĞƐƐŝƚƵƌĂ
do discurso” (FURTADO, 1980, p. 131-132). Em suma, trata-se dos elementos da
ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ ĐŽŵďŝŶĂĚŽƐ ĐŽŵ Ž ŽďũĞƟǀŽ ĚĞ ĐŽŶƐƚƌƵŝƌ Ă ĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕
ĐŽŵŽƐĞƉŽĚĞĂƉŽŶƚĂƌĐŽŵďĂƐĞŶŽƋƵĞĂĮƌŵĂĂƌůŽƐZĞŝƐ͕ĂĐĞƌĐĂĚĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ
ŶŽƐĚŝƐĐƵƌƐŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐ͗
ĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ ŶĆŽƐƵƌŐĞĂůĞĂƚŽƌŝĂŵĞŶƚĞŶŽĚŝƐĐƵƌƐŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ͖
ela deve ser encarada como propriedade relevante, desde que
ƐƵĂƵƟůŝnjĂĕĆŽĨĂǀŽƌĞĕĂƵŵĂĐŽŶĮŐƵƌĂĕĆŽƐĞŵĂŶƟĐĂŵĞŶƚĞƉůƵƌĂů
;ŵĂƐƚĂŵďĠŵŝŶƚĞƌŶĂŵĞŶƚĞĐŽĞƌĞŶƚĞͿĚŽƚĞdžƚŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ͘͘͘hŵĂ
ĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ΀͘͘͘΁ŶĆŽĠƐĂƟƐĨĂƚſƌŝĂĞŵƐŝŵĞƐŵĂ͕ŶĞŵĐŽŶƐŝĚĞ-
ƌĂĚĂĂƌƟİĐŝŽƉŽƌƐŝƐſ͕ĂůŐŽƉĂƌĂƐĞƌƚĞŶƚĂĚŽ͖ĞůĂĚĞǀĞ͕ĞŵĐĂĚĂ
caso, emergir dos requisitos peculiares de uma situação e ser
ƉŽƌĞůĞƐũƵƐƟĮĐĂĚĂ͘;ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϮϳͿ
Modo
ZĞƚŽŵĂŶĚŽ Ă ĂďŽƌĚĂŐĞŵ ĚĞ dŽĚŽƌŽǀ ĂĐĞƌĐĂ ĚĞ <ĂŅĂ͕ ƉŽĚĞŵŽƐ ŽďƐĞƌǀĂƌ
ĐŽŵŽŽƚĞſƌŝĐŽƌĞĐŽŶŚĞĐĞĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞƵŵ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĚŝĨĞƌĞŶƚĞĚĂƋƵĞůĞ͕ĐůĄƐƐŝĐŽ
ŽƵƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͕ƌĞůĂƟǀŽĂŽƐĠĐƵůŽy/y͕ƋƵĞĂďŽƌĚĂŶĂŵĂŝŽƌƉĂƌƚĞĚĞƐĞƵĞƐƚƵĚŽ͘/ŶĚŽ
mais além, na teorização furtadiana, depois de observarmos que, conforme sugere
o teórico português, exista uma necessidade de regras mais rígidas e condições es-
ƉĞĐşĮĐĂƐƉĂƌĂĂůĞŝƚƵƌĂĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕ĚŽƋƵĞƉƌŽƉƁĞĂƚĞŽƌŝĂƚŽĚŽƌŽǀŝĂŶĂ͕
negando ao leitor qualquer liberdade de opção diante da fenomenologia insólita,
surpreendemo-nos, quando tomamos conhecimento de que o mesmo estudioso
ƉƌŽƉƁĞƵŵĂŽƵƚƌĂƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞůĞŝƚƵƌĂĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ŶĆŽĐŽŵŽŐġŶĞƌŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ͕
mas como modo discursivo.
KĐƌşƟĐŽĂƐƐŝŶĂ͕ŶŽ E-Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos
ISBN 978-85-8199-013-2 29
João Olinto Trindade Junior
ĞŝĂ͕ŶĆŽĂƉĞŶĂƐƵŵ͕ŵĂƐĚŽŝƐǀĞƌďĞƚĞƐƐŽďƌĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͘ŵƵŵĚĞůĞƐ͕ĂĐƌĞƐĐĞŶƚĂ͕
ĞŶƚƌĞƉĂƌġŶƚĞƐĞƐ͕ƵŵĂĚŝƐƟŶĕĆŽƋƵĂůŝĮĐĂƟǀĂ͕ĂƉŽŶƚĂŶĚŽͲŽĐŽŵŽŐġŶĞƌŽ͖ŶŽŽƵƚƌŽ͕
ĚĂ ŵĞƐŵĂ ĨŽƌŵĂ͕ ĂƉŽŶƚĂͲŽ ĐŽŵŽ ŵŽĚŽ͘ ŵ ƐĞƵ ǀĞƌďĞƚĞ ƐŽďƌĞ Ž &ĂŶƚĄƐƟĐŽ ĐŽŵŽ
ŵŽĚŽ͕ ĞƐƐĂ ǀĞƌƚĞŶƚĞ ůŝƚĞƌĄƌŝĂ ŶĆŽ Ġ ƚƌĂƚĂĚĂ ĐŽŵŽ ƵŵĂ ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ƋƵĞ ƐĞ ƌĞƐƚƌŝŶũĂ
ĂŽŐġŶĞƌŽĞƐƚƌƵƚƵƌĂĚŽĞĚĞĮŶŝĚŽĚĞŵĂŶĞŝƌĂĨĞĐŚĂĚĂ͕ĐŽŵŽĨĞnjdŽĚŽƌŽǀ͕ŵĂƐĂƐƐŽ-
ciando-a às manifestações do fantasy͕ĞŵƋƵĞĞǀĞŶƚŽƐŝŶƐſůŝƚŽƐŽĐŽƌƌĞŵŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕
independentemente da forma como são apresentados e percebidos por personagens
ŽƵŶĂƌƌĂĚŽƌ͘ĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͕ŶŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚĂů͕&ƵƌƚĂĚŽŝŶĐůƵŝ͕ĐŽŵŽƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐ͕
ĚĞƐĚĞŽĐŽƌƌġŶĐŝĂƐĚŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĂƚĠĂůŐƵŵĂƐĐĞƌƚĂƐǀĂƌŝĂŶƚĞƐĚĂĮĐĕĆŽĐŝĞŶơĮĐĂĞ͕
mesmo, dos romances policiais ou de mistério.
hŵĂǀĞnjƋƵĞdŽĚŽƌŽǀĂƐƐƵŵĞĐĞƌƚĂĚŝĮĐƵůĚĂĚĞĞŵĐůĂƐƐŝĮĐĂƌ͕stricto sensu, a
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŬĂŅŝĂŶĂŶŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůŽƵĐůĄƐƐŝĐŽ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚĂů͕ůĞǀĂĚŽă
extrema abertura por Furtado demonstraria a capacidade de ler essa literatura que
ŶĆŽƐĞĂĚĠƋƵĂĂƵŵŐġŶĞƌŽƌĞƐƚƌŝƚŽ͘^ŽďĂſƟĐĂŵŽĚĂů͕ĐŽŶƐƚƌŽĞŵͲƐĞĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐ
ĚŽ ŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͕ ƋƵĞ &ƵƌƚĂĚŽ ƌĞƷŶĞ ƐŽď Ă ĚĞŶŽŵŝŶĂĕĆŽ ŐĞŶĠƌŝĐĂ ĚĞ ͞ĮĐĕĆŽ ĚŽ
metaempírico” (FURTADO, s/d), recheadas de acontecimentos insólitos, mas sem se
ƉƌĞŶĚĞƌĂŽĐŽŶũƵŶƚŽĚĞƚƌĂĕŽƐĨĞĐŚĂĚŽƐĞƌĞƐƚƌŝƟǀŽƐƋƵĞĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂƌŝĂŵŽŐġŶĞƌŽ͘
O modo discursivo apresentaria o evento insólito e sua banalização. O concei-
ƚŽ͕ĂďŽƌĚĂŶĚŽŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ĞŵƐĞŶƟĚŽůĂƚŽ͕ĐŽŵŽĂŝŶĚĂŽƵƚƌĂƐ
ƋƵĞƐĆŽŝŶƐſůŝƚĂƐ͕ĂƉŽŶƚĂĐŽŵŽƚŽĚĂƐĞƐƐĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐƉĂƌƟůŚĂŵƚƌĂĕŽƐĐŽŵƵŶƐ͗
ŵĂŶƚĞƌĞŵŝŶĞdžƉůŝĐĄǀĞŝƐ͕ŶĂĠƉŽĐĂĚĞƉƌŽĚƵĕĆŽĚŽƚĞdžƚŽ͕ĚĞǀŝĚŽăŝŶƐƵĮĐŝġŶĐŝĂĚĞ
meios de percepção, ao desconhecimento dos seus princípios ordenadores ou a não
ƚĞƌĞŵ͕ĂĮŶĂů͕ĞdžŝƐƚġŶĐŝĂŽďũĞƟǀĂ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞ&ƵƌƚĂĚŽ͕ŶŽE-Dic. A teorização acerca
ĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚĂůƌĞƐŽůǀĞƌŝĂĂƉƌŽďůĞŵĄƟĐĂĞŵƚŽƌŶŽĚĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĕĆŽƌşŐŝĚĂƋƵĞ
ƐĞ ŝŵƉƁĞ ăƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ ĨĂŶƚĄƐƟĐĂƐ͕ ŶĂ ǀŝƐĆŽ ƚŽĚŽƌŽǀŝĂŶĂ͕ ĂƉŽŶƚĂŶĚŽ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ
ƐƵďƐƚĂŶƟǀĂ͕ƉĂƌĂĂŝƌƌƵƉĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽŶŽƵŶŝǀĞƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ĐŽŵŽƚƌĂĕŽĞƐƐĞŶĐŝĂů
ĚĞƐƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ͘
ƐƐĂĨŽƌŵĂĚĞƐĞĞŶƚĞŶĚĞƌŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽũĄŚĂǀŝĂƐŝĚŽĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞĂƉƌĞƐĞŶ-
ƚĂĚĂƉŽƌ/ƌĞŶĞĞƐƐŝğƌĞ͕ƉĂƌĂĂƋƵĞŵ͞ůŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞƐƵŶĂĨŽƌŵĂĚĞŶĂƌƌĂƌ͟;ϮϬϬϭ͕
p. 83). Segundo ela,
N Ž ĚĞĮŶĞ ƵŶĂ ĐƵĂůŝĚĂĚ ĂĐƚƵĂů ĚĞ ŽďũĞƚŽ Ž ƐĞƌĞƐ ĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐ͕
ĐŽŵŽ ƚĂŵƉŽĐŽ ĐŽŶƐƟƚƵLJĞ ƵŶĂ ĐĂƚĞŐŽƌşĂ Ž ƵŶ ŐĠŶĞƌŽ ůŝƚĞƌĂƌŝŽ͕
ƉĞƌŽƐƵƉŽŶĞƵŶĂůſŐŝĐĂŶĂƌƌĂƟǀĂĂůĂǀĞnjĨŽƌŵĂůLJƚĞŵĄƟĐĂƋƵĞ͕
ƐŽƌƉƌĞĞŶĚĞŶƚĞ͕ŽĂƌďŝƚƌĂƌŝĂƉĂƌĂĞůůĞĐƚŽƌ͕ƌĞŇĞũĂ͕ďĂũŽĞůĂƉĂƌĞŶ-
ƚĞũƵĞŐŽĚĞůĂŝŶǀĞŶĐŝſŶƉƵƌĂ͕ůĂƐŵĞƚĂŵŽƌĨŽƐŝƐĐƵůƚƵƌĂůĞƐĚĞůĂ
ƌĂnjſŶLJĚĞůŝŵĂŐŝŶĂƌŝŽĐŽůĞĐƟǀŽ͘;ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϴϰͿ
ŶƚĞŶĚŝĚŽĐŽŵŽƵŵŵŽĚŽĚĞŶĂƌƌĂƌ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽĂƉŽŶƚĂƉĂƌĂƵŵĂǀĞƌƚĞŶƚĞ
ůŝƚĞƌĄƌŝĂĞŵƋƵĞŽĞdžĂŵĞŝŶƚĞůĞĐƚƵĂůĂĐĂďĂƉĞƌƚƵƌďĂĚŽ͕ƉŽƌƌĞƵŶŝƌĞůĞŵĞŶƚŽƐĐŽŶ-
ƚƌĂĚŝƚſƌŝŽƐ͕ƐĞŐƵŶĚŽƌĞŐƌĂƐĞƐƉĞĐşĮĐĂƐĚĞƐƵĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƉŽŝƐĐŽůŽĐĂĞŵ
ação dados incoerentes entre si, segundo uma lógica e uma complementaridade
próprias. Em síntese,
30 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
Lo f ĂŶƚĄƐƟĐŽŶŽĞƐŵĄƐƋƵĞƵŶĂĚĞůĂƐǀşĂƐĚĞůĂŝŵĂŐŝŶĂĐŝſŶ͕
ĐƵLJĂĨĞŶŽŵĞŶŽůŽŐŝĂƐĞŵĄŶƟĐĂŶĂĐĞĂůĂǀĞnjĚĞůĂŵŝƚŽůŽŐşĂ͕ĚĞ
lo religioso, de la psicología normal y patológica, por lo que, de
ĞƐĞŵŽĚŽ͕ŶŽƐĞĚŝƐƟŶŐƵĞĚĞůĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĐŝŽŶĞƐĂďĞƌƌĂŶƚĞƐĚĞ
ůŽŝŵĂŐŝŶĂƌŝŽŽĚĞƐƵĂƐĞdžƉƌĞƐŝŽŶĞƐĐŽĚŝĮĐĂĚĂƐĞŶůĂƚƌĂĚŝĐŝſŶ
popular. (BESSIÈRE, 2001, p. 84)
ŶĐŽƌĂĚŽĞŵƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĚŽƐƵďĐŽŶƐĐŝĞŶƚĞ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚĂůƚƌĂŶƐŝƚĂƌŝĂ
ĞŵƵŵĂĚŝĂůĠƟĐĂŵĂŶƟĚĂĞŶĆŽƌĞƐŽůǀŝĚĂ͕ĞŵƚġŶƵĞůŝŶŚĂĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĂƌĞĂůŝĚĂ-
ĚĞĮĐĐŝŽŶĂůĞƉƌſƉƌŝĂĚĞƐƌĞĂůŝnjĂĕĆŽ͘KĐŽƌƌĞƌŝĂƵŵĂĚƵƉůĂƌƵƉƚƵƌĂĚŽĐŽƟĚŝĂŶŽĞĚŽ
ŝŶĐŽŵƵŵ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĂŶĂƚƵƌĞnjĂĞĂƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĞnjĂʹƌĞƵŶŝŶĚŽŽƋƵĞĞƐƚĄƉĂƌĂ
ĂůĠŵŽƵĂƋƵĠŵĚŽŶĂƚƵƌĂůʹƐĆŽĐŽůŽĐĂĚĂƐĞŵdžĞƋƵĞ͘WĂƌĂĞƐƐŝğƌĞ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽ
ĐŽŵŽŵŽĚŽƐƵƉƁĞƵŵĂůſŐŝĐĂŝŶƚĞƌŶĂƋƵĞƉŽĚĞƐĞƌƚĂŶƚŽĨŽƌŵĂůƋƵĂŶƚŽƚĞŵĄƟĐĂ͕
ƉƌŽĨƵŶĚĂŵĞŶƚĞŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚĂƉĞůĂƐƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕƁĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĚĂƌĂnjĆŽĞĚŽŝŶĐŽŶƐ-
ĐŝĞŶƚĞĐŽůĞƟǀŽ͘WĂƌĂĞůĂ͕ƐĞƌŝĂƵŵĚŽƐŵĠƚŽĚŽƐĚĂŝŵĂŐŝŶĂĕĆŽ͕ŶĆŽƉŽƐƐƵŝŶĚŽĚŝƐ-
ƟŶĕĆŽĚŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽŽƵĚĞƐƵĂƐĞdžƉƌĞƐƐƁĞƐŶĂƚƌĂĚŝĕĆŽƉŽƉƵůĂƌĚĞƋƵĞƐĞĂůŝŵĞŶƚĂ
;ŵŝƚŽůŽŐŝĂ͕ƌĞůŝŐŝĆŽĞĐƌĞŶĕĂƐĐŽůĞƟǀĂƐͿ͘
ƐƐĂƐĨŽƌŵĂƐĞdžƉƌĞƐƐŝǀĂƐĚĞĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽ͕ƋƵĞĚĞĮŶĞŵŽƐĚŽŵşŶŝŽƐĚŽ
ŶĂƚƵƌĂůĞĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ƐĆŽƵƟůŝnjĂĚĂƐŶĆŽƉĂƌĂŝŶĨĞƌŝƌĂůŐƵŵĂĐĞƌƚĞnjĂŵĞƚĂİƐŝ-
ĐĂ͕ƐĞŶĆŽƋƵĞƉĂƌĂŽƌŐĂŶŝnjĂƌŽƐĞůĞŵĞŶƚŽƐĚĞƵŵĂĐŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƌĞůĂƟǀŽƐ͞ĂůŽƐĨĞ-
ŶſŵĞŶŽƐƋƵĞĞƐĐĂƉĂŶĂůĂĞĐŽŶŽŵŝĂĚĞůŽƌĞĂůLJĚĞůŽ͚ƐƵƌƌĞĂů͛͟;^^/Z͕ϮϬϬϭ͕
Ɖ͕ ϴϱͿ͘ ŽŶĐůƵŝŶĚŽ ƐĞƵ ƉĞŶƐĂŵĞŶƚŽ ƐŽďƌĞ Ă ĚĞůŝŵŝƚĂĕĆŽ ĚĞƐƐĞ ͞ũŽŐŽ ŶĂƌƌĂƟǀŽ͕͟
ĞƐƐŝğƌĞĂĮƌŵĂƋƵĞ͗
Ese nuevo universo elaborado en la trama del relato se lee entre
ůŝŶĞĂƐ͕ĞŶĞůũƵĞŐŽĚĞůĂƐŝŵĄŐĞŶĞƐLJĚĞůĂƐĐƌĞŶĐŝĂƐ͕ĚĞůĂůſŐŝ-
ca y de los afectos, contradictorios e comúnmente recibidos. Ni
mostrado ni probado, sino solamente designado, extrae de sua
propria improbabilidade algún indicio de posibilidad imaginaria,
ƉĞƌŽ͕ ůĞũŽƐ ĚĞ ƉĞƌƐĞŐƵŝƌ ŶŝŶŐƵŶĂ ǀĞƌĚĂĚ ʹ LJĂ ƐĞĂ ĠƐƚĂ ůĂ ĚĞ ůĂ
psique oculta y secreta –, toma su consistencia de sua propria
falsedad. (2001, p. 85-86)
&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞ/ŶƐſůŝƚŽ
>ĞǀĂŶĚŽͲƐĞĞŵĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕĆŽĂŚĞƌĂŶĕĂĐƌşƟĐŽͲƚĞſƌŝĐĂĂƉĂƌƟƌĚĞ dŽĚŽƌŽǀ͕
ŶĆŽĠĚĞƐƵƌƉƌĞĞŶĚĞƌƋƵĞ͕ƉĂƌĂĞƐƐŝğƌĞ͕ƋƵĞŶĆŽǀġŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƵŵŐġŶĞƌŽ
ĞƐƚƌŝƚĂŵĞŶƚĞĨĞĐŚĂĚŽ͕ŚĂũĂ͕ŝŐƵĂůŵĞŶƚĞ͕ŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŵŽƉŽŶƚŽĚĞĮŶŝĚŽƌĚĞƐƐĂǀĞƌ-
ƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ĂƐƉĞĐƚŽĐŽŵƵŵĞŶƚƌĞƐƵĂƐƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƐ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞĂŵďŽƐĞŶƚĞŶ-
ĚĞŵĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ͕ŶŽŶşǀĞůĚŝĞŐĠƟĐŽ͕ĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽƋƵĞŶĆŽ
se prenda às regras convencionais da racionalidade e do senso comum vigentes,
ƐƵďǀĞƌƚĞŶĚŽĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĮĐĐŝŽŶĂŝƐĚŽƉĂĚƌĆŽůŝƚĞƌĄƌŝŽƌĞĂůͲŶĂƚƵƌĂůŝƐƚĂ͘ĨĞŶŽ-
menologia insólita, para Furtado, seria uma marca dessas “literaturas do sobrena-
tural”, na qual é ponto decisivo a subversão do real empírico em prol do desenrolar
ISBN 978-85-8199-013-2 31
João Olinto Trindade Junior
ĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘ŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶĐŽŵƵŵ͕ĚŽŝŶĞƐƉĞƌĂĚŽ͕ĚŽŝŶĂƵĚŝƚŽ͕ŽƵƐĞũĂ͕ĚŽ
ŝŶƐſůŝƚŽ͕ŶŽŶşǀĞůĚĂĚŝĞŐĞƐĞ͕ĞĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽƚƌĂŶƐŵŝƟĚĂĂŽůĞŝƚŽƌǀŝĂŶĂƌƌĂƚĄƌŝŽ͕ƐĞũĂ
através da ambiguidade – conforme Todorov – ou da incerteza – segunda Bessière –
são elementos comuns às suas teorias.
^Ğ͕ƉĂƌĂdŽĚŽƌŽǀʹĞ&ƵƌƚĂĚŽʹ͕ĞƐƐĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽĞƐƚĄĂƐƐŽĐŝĂ-
ĚĂĂƵŵĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽďĂƐƚĂŶƚĞĚĞůŝŵŝƚĂĚĂ͕ŶĂƋƵĂůƵŵƚƌĂĕŽĂůƚĞƌĂĚŽũĄŵƵĚĂƌŝĂŽ
gênero em que tal construção se apresenta, para Bessière, essa simples manifesta-
ĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ĂĐŽŵƉĂŶŚĂĚĂĚĂŝŶĐĞƌƚĞnjĂĨƌĞŶƚĞăƐƐƵĂƐƉŽƐƐşǀĞŝƐĞdžƉůŝĐĂĕƁĞƐ͕ũĄ
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŵĂƌĞĂůŝnjĂĕĆŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĞƐƚĞʹŽŝŶƐſůŝƚŽʹĂƚƵĂƌŝĂ
ĐŽŵŽ ĞůĞŵĞŶƚŽ ĐŽŵƵŵ ăƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ Ğŵ ƋƵĞ ƐĞ ŵĂŶŝĨĞƐƚĂ͕ ƐĞũĂ ĞůĞ ƌĞƐƵůƚĂĚŽ ĚĞ
Ƶŵ ĐŽŶũƵŶƚŽ ŚĞƌŵĞƟĐĂŵĞŶƚĞ ĨĞĐŚĂĚŽ ĚĞ ƌĞŐƌĂƐ ĚĞ ĐŽŵƉŽƐŝĕĆŽ ŽƵ ƌĞƐƵůƚĂĚŽ ĚĞ
Ƶŵ ũŽŐŽ ĚŝƐĐƵƌƐŝǀŽ ĞŵƋƵĞ ŝŶƚĞƌĨĞƌĞŵƌĞĐƵƌƐŽƐ ǀĂƌŝĂĚŽƐ ĚĂ ůŝŶŐƵĂŐĞŵĞĞdžƚƌĂƚŽƐ
socioculturais.
dĂŶƚŽdŽĚŽƌŽǀĞ&ƵƌƚĂĚŽʹŶĂĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽŐĞŶŽůſŐŝĐĂĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹƋƵĂŶ-
to Bessière e, posteriormente, o mesmo Furtado – ao compreendê-lo como modo
– possuem, em suas teorizações, a irrupção do insólito como uma das premissas
ĞƐƐĞŶĐŝĂŝƐĚĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĐŽŶĨĞƌŝŶĚŽͲůŚĞƵŵĂǀĞƌŽƐƐŝ-
milhança tanto quanto possível e deixando margem para o entrelugar do explicar
ou não explicar a fenomenologia manifestada. O insólito seria o que não é comum
ĂĐŽŶƚĞĐĞƌ͕ŶĆŽĐŽƐƚƵŵĞŝƌŽ͕ŶĆŽŽƌĚŝŶĄƌŝŽ͕ŶĆŽƉƌĞǀŝƐşǀĞů͕ĞŶĮŵ͕ŽƋƵĞĨŽŐĞăĐŽĞ-
ƌġŶĐŝĂůſŐŝĐĂĚŽĐŽƟĚŝĂŶŽƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂůǀŝŐĞŶƚĞ͘
WĂƌĂ>ĞŶŝƌĂDĂƌƋƵĞƐŽǀŝnjnjŝ͕ŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞƌŝĂĂ͞ƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽĚĞ
ŝŶĂĚĞƋƵĂĕĆŽĞƐƐĞŶĐŝĂůĞŶƚƌĞƉĂƌƚĞƐĚĞƵŵŵĞƐŵŽŽďũĞƚŽ͕ĞŶƚƌĞŽƌŝŐĞŵĞĮŵ͕ĐŽŶƐ-
ƟƚƵŝĕĆŽĞĮŵ΀͘͘͘΁ŽƵƐƵĂĞƐƉĞĐŝĂůƐŝŐŶŝĮĐĂĕĆŽĞŽĐŽŶƚĞdžƚŽĞŵƋƵĞƐĞŝŶƐĞƌĞ͟;ϭϵϳϴ͕
p. 26). Ainda segundo Covizzi, o insólito “carrega consigo e desperta no leitor, o
ƐĞŶƟŵĞŶƚŽ ĚŽ ŝŶǀĞƌŽƐƐşŵŝů͕ ŝŶĐƀŵŽĚŽ͕ ŝŶĨĂŵĞ͕ ŝŶĐŽŶŐƌƵĞŶƚĞ͕ ŝŵƉŽƐƐşǀĞů͕ ŝŶĮŶŝƚŽ͕
incorrigível, incrível, inaudito, inusitado, informal” (1978, p. 25-26).
EĆŽĞŶƚĞŶĚĞŵŽƐŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŵŽƵŵŵĂĐƌŽŐġŶĞƌŽƋƵĞĂďƌĂŶũĂĂƐĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐ
ĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ŵĂƐĐŽŵŽƵŵĂŵĂƌĐĂĚŝƐƟŶƟǀĂĚĞƐƐĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ŵĂŶŝĨĞƐ-
ƚĂŶĚŽͲƐĞŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂũƵƐƚĂŵĞŶƚĞƉĞůŽƋƵĞŽǀŽĐĄďƵůŽƐŝŐŶŝĮĐĂ͕͞ŝŶƐŽĞƌ͟ʹŶĆŽƐĞƌ
comum de acontecer, ao menos segundo as visões estabilizadas do sistema Real-
Naturalista –, sua interferência. Um evento – sobrenatural ou não – que ocorra sem
causar a menor perturbação não corresponde a um evento insólito, mas deve ser
ĂƐƐŝŵĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚŽƋƵĂŶĚŽƐĞƵƐĞůĞŵĞŶƚŽƐʹƐĞũĂŵĞůĞƐƌĞůĂĐŝŽŶĂĚŽƐăƐĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐ
ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ ŽƵ ĂŽ ĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ ĚŽ ĞŶƌĞĚŽ ʹ ŶĆŽ ƐĆŽ ďĂŶĂůŝnjĂĚŽƐ͘ ƐƐŝŵ͕ ŶĂ
ĂŶĄůŝƐĞĚŽƐĐƌşƟĐŽƐ͕ŽŝŶƐſůŝƚŽĞƐƚĂƌŝĂĚŝƌĞƚĂŵĞŶƚĞĂƐƐŽĐŝĂĚŽăŚĞƐŝƚĂĕĆŽ͕ǀŝƐƚĂƉŽƌ
Todorov como uma possibilidade resultante da atuação de personagens e narra-
ĚŽƌ͕ŽƵ͕ĐŽŶƐƚƌƵşĚĂĂƉĂƌƟƌĚĞĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƌşŐŝĚĂƐĚĞĐŽŵƉŽƐŝĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƐĞŐƵŶ-
ĚŽ &ƵƌƚĂĚŽ͕ ƋƵĂŶƚŽ͕ ĂŝŶĚĂ͕ ĐŽŵŽ ũŽŐŽ ĚŝƐĐƵƌƐŝǀŽ ĚĞ ůŝŶŐƵĂŐĞŵ͕ ŶĂƐ ĂĐĞƉĕƁĞƐ ĚĞ
Bessière e, mais tarde, do próprio Furtado.
ŽĐŽƌƌġŶĐŝĂĚŽƚĞƌŵŽŝŶƐſůŝƚŽŶĂƐƚĞŽƌŝĂƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ǀŝƐƚŽĐŽŵŽŐġŶĞƌŽ
ůŝƚĞƌĄƌŝŽ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞŽĂƉƌĞƐĞŶƚĂŵdŽĚŽƌŽǀ;ϭϵϵϮͿĞ&ŝůŝƉĞ&ƵƌƚĂĚŽ;ϭϵϴϬͿ͕ŽƵĐŽŵŽ
32 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
modo discursivo, tendência assumida por Irene Bessière (2001) e, mais adiante, pelo
ŵĞƐŵŽ&ŝůŝƉĞ&ƵƌƚĂĚŽ;ϮϬϭϭͿ͕ĠƌĞŝƚĞƌĂĚĂŶĂƚƌĂĚŝĕĆŽĐƌşƟĐĂƐŽďƌĞĂĮĐĕĆŽĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕
sendo bastante comum a alusão tanto à literatura insólita quanto à literatura do
insólito. Conforme Flavio García, estudioso brasileiro que estuda as manifestações
ĚŽŝŶƐſůŝƚŽŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂĮĐĐŝŽŶĂů͕ŽƚĞƌŵŽĠ͞ŽƌĂĂƉŽŶƚĂĚŽĐŽŵŽĚĞƐŝŐŶĂƟǀŽĚĞƵŵĂ
ĐĂƚĞŐŽƌŝĂĚŽĚŝƐĐƵƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ŽƌĂĐŽŵŽĚĞƐŝŐŶĂƟǀŽĚĞƵŵĐŽŶũƵŶƚŽĚĞŽďƌĂƐƋƵĞ
ŵĂŶŝĨĞƐƚĂŵƚĂůĐĂƚĞŐŽƌŝĂ͘ƐƐĂŽƐĐŝůĂĕĆŽƐĞĨĂnjƉƌĞƐĞŶƚĞĞŵŵƷůƟƉůĂƐĐŽƌƌĞŶƚĞƐƚĞſ-
ƌŝĐĂƐĞǀĂƌŝĂĚĂƐĞdžƉƌĞƐƐƁĞƐĚĂĐƌşƟĐĂůŝƚĞƌĄƌŝĂ͟; 2012, p. 1).
ĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͕ĞŶƚĞŶĚĞͲƐĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƵŵŐġŶĞƌŽŽƵƵŵĂŵĂŶĞŝƌĂĚĞŶĂƌƌĂƌ͕
ĐŽŵŽƵŵƐŝƐƚĞŵĂŶŽƋƵĂůŽĞƐĐƌŝƚŽƌĞdžƉůŽƌĂĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐĚŝƐƉŽŶşǀĞŝƐ͕Ğŵ
ƋƵĞ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĂǀĞƌŽƐƐŝŵŝůŚĂŶĕĂ͕ŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽĞŽƌĞĂůƐĆŽĂŵĞƐŵĂĐŽŝƐĂ;:K^&͕ϮϬϬϲ͕
Ɖ͘ϮϭϱͿ͘EĞƐƐĞƐĞŶƟĚŽ͕ŽŝŶƐſůŝƚŽƐĞƌŝĂƵŵĂŵĂƌĐĂĐƵũĂƐŝŶŐƵůĂƌŝĚĂĚĞĠĂĚĞŝŶƐƟŐĂƌŽ
ůĞŝƚŽƌĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĂŚĞƐŝƚĂĕĆŽŽƵŝŶĐĞƌƚĞnjĂƐĞũĂŵĂĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƋƵĞŐĞƌĞŽĚĞƐĞŶƌŽ-
lar da história. Filipe Furtado, por sua vez, não deixa de apontar a irrupção do insólito
ĐŽŵŽĨĂƚŽƌĚĞĐŝƐŝǀŽŶŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽĞŶĂĐŽŶĐůƵƐĆŽĚĂƐĂĕƁĞƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐĞŵƚĞdžƚŽƐ
ĮůŝĄǀĞŝƐăƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϮϭͿ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĂĨĞŶŽŵĞŶŽůŽŐŝĂ
ĚŽŝŶƐſůŝƚŽ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϮϯͿƉŽĚĞƐĞƌĂƉŽŶƚĂĚĂĐŽŵŽŽƚƌĂĕŽĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕
ƉŽĚĞŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂƌĞŵƋƵĂůƋƵĞƌƵŵĂĚĂƐĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐʹĂĕĆŽ͕ƉĞƌ-
ƐŽŶĂŐĞŵ͕ƚĞŵƉŽĞͬŽƵĞƐƉĂĕŽʹŽƋƵĞ&ůĄǀŝŽ'ĂƌĐŝĂƌĞŝƚĞƌĂʹĞĂƉƌŽĨƵŶĚĂʹĂŽĂƉŽŶƚĂƌ
o insólito como uma categoria operacional que:
ĞŶŐůŽďĂ ĞǀĞŶƚŽƐ ĮĐĐŝŽŶĂŝƐ ƋƵĞ Ă ĐƌşƟĐĂ ƚĞŵ ĂƉŽŶƚĂĚŽ ŽƌĂ
ĐŽŵŽĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽƐʹƉĂƌĂĂůĠŵĚĂŽƌĚĞŵʹŽƌĂĐŽŵŽƐŽďƌĞ-
naturais – para além do natural - e que são marcas próprias de
ŐġŶĞƌŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐĚĞůŽŶŐĂƚƌĂĚŝĕĆŽ͕ĂƐĂďĞƌ͕ŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕Ž
&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕Ž^ŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ŽƐƚƌĂŶŚŽ͕ŽZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ
e o Absurdo. (2009, p. 1)
Real-Maravilhoso
ĐƌşƟĐĂďƌĂƐŝůĞŝƌĂ/ƌůĞŵĂƌŚŝĂŵƉŝ͕ĂŽƉƌŽŵŽǀĞƌƵŵĂƌĞůĞŝƚƵƌĂĚĂƚĞŽƌŝnjĂĕĆŽ
ĚŽ ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ĚĞ ůĞũŽ ĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ ƵƟůŝnjĂ Ž ƚĞƌŵŽ ͞ZĞĂůŝƐŵŽ DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͟
para relatar uma realidade onde os mirabiliaƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂŵ͕ŶƵŵĂũƵŶĕĆŽĞŶƚƌĞŽ
real e o irreal, como forma de subversão da realidade eurocêntrica, revelando “não
ĂƐĨĂŶƚĂƐŝĂƐŽƵŝŶǀĞŶĕƁĞƐĚŽŶĂƌƌĂĚŽƌ͕ŵĂƐŽĐŽŶũƵŶƚŽĚĞŽďũĞƚŽƐĞĞǀĞŶƚŽƐƌĞĂŝƐ
que singularizam a América no contexto ocidental” (1980, p. 32). Esse movimento
ůŝƚĞƌĄƌŝŽĚŽŝŶşĐŝŽĚŽƐĠĐƵůŽyyĠǀŝƐƚŽĐŽŵŽƌĞƐƉŽƐƚĂăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĞƵƌŽƉĞŝĂ͘
No prólogo de El Reino deste Mundo ;ϭϵϰϵͿ͕ ĂƌƉĞŶƟĞƌ ĚŝƐĐƵƚĞ ŽƐ ĞůĞŵĞŶƚŽƐ ĚŽ
chamado “Real-Maravilhoso”, expondo como, ao se voltar para o universo cultural
ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ƉƀĚĞĐŽŶƚĞŵƉůĂƌƉŽƌƐŝƉƌſƉƌŝŽƵŵŵƵŶĚŽĚĞŵĂƌĂǀŝůŚĂƐ͘
Chiampi, em seu trabalho fundamental, O realismo maravilhoso (1980), pro-
ĐƵƌĂĚĞůŝŵŝƚĂƌŽŐġŶĞƌŽƉƌŽƉŽƐƚŽƉĞůŽĞƐĐƌŝƚŽƌĐƵďĂŶŽƐŽďƌĞƵŵĂĞƐƚĠƟĐĂǀŝŶĐƵůĂĚĂ
ISBN 978-85-8199-013-2 33
João Olinto Trindade Junior
ăƚĞƌƌĂĂŵĞƌşŶĚĞĂ͘ůĂĐŽŶƐŝĚĞƌĂ͕ĞŵŽƵƚƌŽĐŽŶƚĞdžƚŽŶĂƌƌĂƟǀŽ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĂƌĞƉƌĞƐĞŶ-
ƚĂĕĆŽĚŝĞŐĞƐŝĐĂĚŽĐŽŶũƵŶƚŽĚĞŽďũĞƚŽƐĞĞǀĞŶƚŽƐƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞŝƐƉĞůĂƐŵĂƌĐĂƐĚĞƐŝŶ-
ŐƵůĂƌŝĚĂĚĞĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ŽƐĨĂƚŽƌĞƐŚŝƐƚſƌŝĐŽƐĞƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂŝƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĞŵ
ƋƵĞƐƚĆŽƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂ͕ƋƵĞůĞǀĂăĞŵĞƌŐġŶĐŝĂĞĨŽƌŵĂĕĆŽĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ
próprio, fruto de um processo de renovação tanto da linguagem, quanto da realica-
ĚĞĮĐĐŝŽŶĂů͘ŵƐƵŵĂ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽĠĐŽŶǀŝĚĂĚŽĂƐĞǀŽůƚĂƌ͞ƉĂƌĂŽ
ŵƵŶĚŽĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ĐƵũŽƉŽƚĞŶĐŝĂůĚĞƉƌŽĚşŐŝŽƐʹŐĂƌĂŶƟĂʹ͕ƐŽďƌĞƉƵũĂǀĂĞŵŵƵŝƚŽĂ
fantasia e a imaginação europeia” (CHIAMPI, 1980, p. 32).
ZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĐŽŵďŝŶĂƵŵƐƵďƐƚĂŶƟǀŽƋƵĞĞdžƉƌŝŵĞƵŵƐĞŶƟŵĞŶƚŽ
de concretude frente à realidade, algo com existência própria presumível (real), a
outro que expressa uma ideia ĚĞƐƵďũĞƟǀŝĚĂĚĞ͕ůŽŐŽĚĞŝŶĐĞƌƚĞnjĂĞƋƵĞƐƟŽŶĂŵĞŶ-
ƚŽƐ͕ĚĞƉĞŶĚĞŶĚŽĚŽƐƵũĞŝƚŽ;ŵĂƌĂǀŝůŚĂфсх mirar, olhar com atenção e cuidado),
e ambos são passíveis de uma percepção diferenciada pelo leitor (receptor do dis-
ĐƵƌƐŽͿ͕ůĞǀĂŶĚŽĂƋƵĞƐĞƌĞŇŝƚĂĂĐĞƌĐĂĚĞƐƵĂŵĞƐĐůĂŐĞŵ;ƌĞĂůũƵŶƚŽăŵĂƌĂǀŝůŚĂ͕
ƐŽďĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽŽůŚĂƌͿ͘ŶƚĞŶĚĞŶĚŽƋƵĞ͕ŶĞƐƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ĂĚŝĞŐĞƐĞƉƌŽ-
move um encontro entre esses dois aspectos fenomenológicos (real e maravilha),
ƋƵĞƉŽƐƐƵĞŵŽƌŝŐĞŶƐĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ͕ƚĂŶƚŽŶĂƚƌĂĚŝĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ƋƵĂŶƚŽŶĂƐĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐ
socioculturais da humanidade, passando a conviver em harmonia, somos levados a
ĞŶĐĂƌĂƌĂĮĐĕĆŽƌĞĂůͲŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂĐŽŵŽƉƌŽĚƵƚŽĚĞĚƵĂƐĨŽƌĕĂƐĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĞŵĐŽŶǀŝ-
ǀġŶĐŝĂŽƌŐąŶŝĐĂŶŽƐĞŝŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘ƐƐĂĂƉĂƌĞŶƚĞĚŝĐŽƚŽŵŝĂrealia vs./& mirabilia
ƚŽƌŶĂͲƐĞƉŽƐƐşǀĞůũƵƐƚĂŵĞŶƚĞƉĞůŽƉŽƚĞŶĐŝĂůŝŶĞƌĞŶƚĞĂŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ĚĞ
ŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞĞŶƵŶĐŝĂĂƌƉĞŶƟĞƌ͕
Lo  ƌĞĂů ŵĂƌĂǀŝůůŽƐŽ͕ ĞŶ ĐĂŵďŝŽ͕ ƋƵĞ LJŽ ĚĞĮĞŶĚŽ͕ LJ ĞƐ ůŽ ƌĞĂů
maravilloso nuestro, es el que encontramos al estado bruto, la-
ƚĞŶƚĞ͕ŽŵŶŝƉƌĞƐĞŶƚĞĞŶƚŽĚŽůŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͘ƋƵşůŽŝŶƐſ-
ůŝƚŽĞƐĐŽƟĚŝĂŶŽ͕ƐŝĞŵƉƌĞĨƵĞĐŽƟĚŝĂŶŽ͘>ŽƐůŝǀƌŽƐĚĞĐĂǀĂůůĞƌŝĂ
se escribieron en Europa, pelo se vivieron en América, porque si
bien se escribieron las aventuras de Amadis de Gaula en Europa,
ĞŶĞƌŶĂůşĂnjĚĞůĂƐƟůůŽƋƵŝĞŶŶŽƐƉƌĞƐĞŶƚĂĐŽŵƐƵ,ŝƐƚŽƌŝĂ
de la conquista de la Nueva España el primer livro de caballería
ĂƵƚĠŶƟĐŽ͘;ϭϵϴϰ͕Ɖ͘ϳϯͿ
ZĞŝƚĞƌĂŵŽƐ͕ ĂƐƐŝŵ͕ Ă ŽďƐĞƌǀĂĕĆŽ ĚĞ ŚŝĂŵƉŝ ƐŽďƌĞ ĞƐƐĂ ĞƐƚĠƟĐĂ  ƌĞƉƌĞ-
ƐĞŶƚĂƌƵŵĚĞƐĞũŽŶĂĐŝŽŶĂůŝƐƚĂƉĂƌĂĐĂƉƚƵƌĂƌĂĞƐƐġŶĐŝĂĚĂŵĠƌŝĐĂ͕ĨƌƵƚŽĚĞƵŵĂ
ŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĞŵĂŶĐŝƉĂƚſƌŝĂĨƌĞŶƚĞăƵƌŽƉĂ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϯϵͿ͕ŽƵƐĞũĂ͕ƵŵĨŽĐŽĐŽŶƚƌĂ-
ͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽƋƵĞƚŽŵĂƉƌŽǀĞŝƚŽĚŽũĄĚŝƚŽĐŽŵŽƋƵĞĞƐƚĂǀĂƉŽƌƐĞĚŝnjĞƌĞŵƵŵĂ
nova forma de produção textual. Tendo, assim, a união desses elementos supos-
ƚĂŵĞŶƚĞĚşƐƉĂƌĞƐʹŽƌĞĂůĞŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹŶŽƵŶŝǀĞƌƐŽŶĂƌƌĂƟǀŽʹƉƌŽĚƵnjŝŶĚŽ͕
desse modo, uma nova realidade ou, em outras palavras, uma outra forma de se
ver/perceber o real – abre o leque das possibilidades. Logo, Potosi, a gigante mon-
ƚĂŶŚĂĚĞƉƌĂƚĂďŽůŝǀŝĂŶĂ͕ƋƵĞĂƐƐƵŵĞĐŽŶƚŽƌŶŽƐŵşƟĐŽƐŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂĐĞƌǀĂŶƟĂŶĂ
(CERVANTES, 2005, p. 295), passa a contar sua história à sua maneira.
ŚŝĂŵƉŝƐĞŐƵĞ͕ĚŝĨĞƌĞŶĐŝĂŶĚŽŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĚŽZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĂƉĂƌƟƌ
ĚĂŵĂŶĞŝƌĂĐŽŵŽŽŝŶƐſůŝƚŽƐƵƌŐĞŶĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐĚĞƐƐĞƐŐġŶĞƌŽƐ͘WĂƌĂĞůĂ͕
34 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
KĨĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŶƚĞŶƚĂͲƐĞĞŵĨĂďƌŝĐĂƌŚŝƉſƚĞƐĞƐĨĂůƐĂƐ;ŽƐĞƵ͞ƉŽƐ-
ƐşǀĞů͟ Ġ ŝŵƉƌŽǀĄǀĞůͿ͕ Ğŵ ĚĞƐĞŶŚĂƌ Ă ĂƌďŝƚƌĂƌŝĞĚĂĚĞ ĚĂ ƌĂnjĆŽ͕ Ğŵ
sacudir as convenções culturais, mas sem oferecer ao leitor, nada
ĂůĠŵĚĂŝŶĐĞƌƚĞnjĂ͘ĨĂůĄĐŝĂĚĂƐƉƌŽďĂďŝůŝĚĂĚĞƐĞdžƚĞƌŶĂƐĞŝŶĂĚĞ-
ƋƵĂĚĂƐ͕ĂƐĞdžƉůŝĐĂĕƁĞƐŝŵƉŽƐƐşǀĞŝƐʹƚĂŶƚŽŶŽąŵďŝƚŽĚŽŵşƟĐŽʹƐĞ
ĐŽŶƐƚƌŽĞŵƐŽďƌĞŽĂƌƟİĐŝŽůƷĚŝĐŽĚŽǀĞƌŽƐƐşŵŝůƚĞdžƚƵĂů͕ĐƵũŽƉƌŽũĞ-
ƚŽĠĞǀŝƚĂƌƚŽĚĂĂƐƐĞƌĕĆŽ͕ƚŽĚŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĮdžŽ͘KĨĂŶƚĄƐƟĐŽ͞ĨĂnjĚĂ
ĨĂůƐŝĚĂĚĞŽƐĞƵƉƌſƉƌŝŽŽďũĞƚŽ͕ŽƐĞƵƉƌſƉƌŝŽŵſǀŝů͘͟;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϱϲͿ
EŽƐƚĞdžƚŽƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ŽĐŽƌƌĞƌŝĂĂƐƵďǀĞƌƐĆŽĚĂůſŐŝĐĂZĞĂůͲEĂƚƵƌĂůŝƐƚĂʹ
uma das condições fundamentais para o gênero – de forma a levar o leitor ao ques-
ƟŽŶĂŵĞŶƚŽĚŽƋƵĞĠͬƐĞƌŝĂŶĂƚƵƌĂůŽƵŶĆŽŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘EŽZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕
ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ƚĞƌͲƐĞͲŝĂƵŵĂĚŝƐƟŶĕĆŽƉŽƌ͕ŶĞůĞ͕ŶĆŽŽĐŽƌƌĞƌĞƐƐĞĐŚŽƋƵĞͬĞŶĨƌĞŶƚĂ-
mento entre o real e o insólito e, ao mesmo tempo, não adentrar por completo no
ƵŶŝǀĞƌƐŽĚŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹŐġŶĞƌŽǀŝnjŝŶŚŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽƋƵĞ͕ĚĞƵŵůĂĚŽ͕ŽĚĞůŝŵŝƚĂ
–, não assumindo um mundo com regras próprias, mas representando esse mundo,
ĞŵƉĂƌƚĞ͕ĐŽŵŽƉĂƌĂƐŝƚĂĚŽĐŽƟĚŝĂŶŽĂƚĠŶŽƐŵşŶŝŵŽƐĚĞƚĂůŚĞƐ͘ŵƐƵŵĂ͕ƚƌĂƚĂƌ-
ͲƐĞͲŝĂĚĞƵŵĂĨŽƌŵĂŚşďƌŝĚĂĞŶƚƌĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ;ZK^͕ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϭϯͿ͘
Teriamos, assim, um entre-espaço onde os planos não se romperiam, mas estariam
nivelados, espaço esse em que história e mito, realia e mirabilia, coabitam e se co-
ŵƵŶŝĐĂŵŚĂƌŵŽŶŝŽƐĂŵĞŶƚĞ͘KŝŶƐſůŝƚŽ͕ĚĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͕ŝŶĐŽƌƉŽƌĂƌͲƐĞͲŝĂĂŽƌĞĂůİƐŝĐŽ͕
ĐŽƟĚŝĂŶŽ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞŽĐŽŶŚĞĐĞŵŽƐĞŵŶŽƐƐŽĚŝĂĂĚŝĂ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŽƐmirabi-
lia fariam parte dos realia, e vice-versa, ůĞǀĂŶĚŽͲƐĞĞŵĐŽŶƚĂŽƵŶŝǀĞƌƐŽĚŝĞŐĠƟĐŽ
(CHIAMPI, 1980, p. 59).
Real-Animismo
Tem sido lugar comum o estudo das literaturas africanas de língua portugue-
ƐĂƉĞůŽǀŝĠƐŚŝƐƚſƌŝĐŽ͕ƉŽůşƟĐŽĞƐŽĐŝĂůʹůĞǀĂŶĚŽͲƐĞĞŵĐŽŶƚĂŽƌĞĐĞŶƚĞƉĞƌşŽĚŽĚĞƐ-
ĚĞĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂĚĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͕ŶĂĚĠĐĂĚĂĚĞϭϵϳϬ͕ĞŽƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽ
das literaturas ditas como “nacionais” –, mas, recentemente, têm-se criado espaços
de tensão quando se discute a presença de elementos oriundos do sobrenatural, a
ƉĂƌƟƌĚĂſƟĐĂĞƵƌŽĐġŶƚƌŝĐĂ͘ƐƐĂƐůĞŝƚƵƌĂƐŵĂŝƐĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŵƵŵ
tabu nos meios acadêmicos, onde os estudos pós-coloniais de compromisso socio-
lógico ainda têm mais espaço e privilégios.
Para certa parcela da tradição que estuda a literatura dos PALOP – Países
ĨƌŝĐĂŶŽƐ ĚĞ >şŶŐƵĂ KĮĐŝĂů WŽƌƚƵŐƵĞƐĂ ;ŶŐŽůĂ͕ ĂďŽ sĞƌĚĞ͕ 'ƵŝŶĠͲŝƐƐĂƵ͕
DŽĕĂŵďŝƋƵĞĞ^ĆŽdŽŵĠĞWƌşŶĐŝƉĞͿʹƉŽƌƵŵǀŝĠƐŚŝƐƚŽƌŝĐŽͲƉŽůŝƟĐŽͲƐŽĐŝĂů͕ĠůƵŐĂƌ
ĐŽŵƵŵĂŽƉŝŶŝĆŽĚĞƋƵĞ͞ŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůŶĆŽĞdžŝƐƚĞĞŵĨƌŝĐĂ͕ũĄƋƵĞŽƋƵĞĐŽŶƐŝ-
deramos como sobrenatural é visto como normal”, e “as literaturas africanas não
devem se submeter aos teóricos não africanos”. Indo mais além, podemos lembrar
ƋƵĞ͕ĚŝĨĞƌĞŶƚĞĚĞŽƵƚƌĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐƟǀĞƌĂŵƵŵĂƉƌŽİĐƵĂ
literatura colonial que “apresentava” a cultura africana para os curiosos cidadãos da
ISBN 978-85-8199-013-2 35
João Olinto Trindade Junior
metrópole. Isso teria gerado, possivelmente, a não aceitação das vertentes teóricas
que buscam estudar a manifestação do sobrenatural nas literaturas dos PALOP, tal-
vez, por, em períodos anteriores, terem imaginado a cultura africana através de um
ĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞdžſƟĐŽ;EK͕ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϭϳϵͿ͘
ƐƐĂƌĞĂĕĆŽĐŽŶƚƌĄƌŝĂăĂĐĞŝƚĂĕĆŽĚĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚĞƵŵƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůůŝƚĞƌĄƌŝŽ
ŶĂĮĐĕĆŽĚŽƐW>KW͕ĞŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ŶĆŽƐĞũƵƐƟĮĐĂƉŽƌĐŽŵƉůĞƚŽ͕ƉŽŝƐĐŽŶĨŽƌŵĞŽď-
ƐĞƌǀĂŵŽƐ͕ ĞƐƐĂƐ ǀĞƌƚĞŶƚĞƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ͕ ĂŝŶĚĂ ƋƵĞ ĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚĂƐ ĐŽŵ Ă ŝĚĞŽůŽŐŝĂ
ĚŽŵŝŶĂŶƚĞĚĂĠƉŽĐĂ͕ĐƵŵƉƌŝƌĂŵƵŵĂĨƵŶĕĆŽŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂĂŽƌĞƐŐĂƚĂƌ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶ-
te, a realidade sociocultural da terra africana, como bem adverte o moçambicano
Francisco Noa:
KƵƚƌĂƉƌĄƟĐĂƚĂŵďĠŵĞŵďůĞŵĄƟĐĂĞdžƉůŽƌĂĚĂŶŽƌŽŵĂŶĐĞĐŽ-
ůŽŶŝĂůĠĂĚĂĨĞŝƟĕĂƌŝĂĞĂĚŽƐƌŝƚƵĂŝƐŵĄŐŝĐŽͲƌĞůŝŐŝŽƐŽƐ͘DĂŝƐŝŶ-
ĚŝǀŝĚƵĂůŝnjĂĚĂ͕ƵŵĂ͕ĐŽŵŵĂŶŝĨĞƐƚŽĐĂƌĄĐƚĞƌƐŽĐŝĂů͕ĂŽƵƚƌĂ͕ĂƉĂ-
recem-nos como imagem de marca do anacronismo cultural em
que é quase sempre colocada a sociedade africana tradicional.
Por outro lado, abre-se no espaço discursivo do romance colo-
ŶŝĂůŽůƵŐĂƌƉĂƌĂŽ͞ĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞdžſƟĐŽ͟;dKKZKs͕ϭϵϳϬ͕Ɖ͘ϴϯͿĞ
que tem a ver com a narração de acontecimentos sobrenaturais.
Além do mais, o receptor implícito, por suposição, não conhe-
cendo as religiões onde se desenvolvem os acontecimentos, não
ǀġƌĂnjĆŽŶĞŶŚƵŵĂƉĂƌĂŽƐƉƀƌĞŵĚƷǀŝĚĂ͘;ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϭϳϵͿ
WĂƌĂĞůůĂ:ŽnjĞĨ͕ƋƵĞƌĞŇĞƟƵƐŽďƌĞĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂĞŵƐĞƵǀŝĠƐ
ƌĞĂůͲŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĐŽŶĨƌŽŶƚĂŶĚŽŽƐŝƐƚĞŵĂůŝƚĞƌĄƌŝŽĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚŽ ĐŽŵŝĚĞĂůZĞĂůͲ
EĂƚƵƌĂůŝƐƚĂ͕ŽƌŝƵŶĚŽĚŽƐĠĐƵůŽy/y͕ăƋƵĞůĞƋƵĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽĞůĂ͕ĞŵĞƌŐŝƌĂŶĂƐƷůƟŵĂƐ
décadas da nossa contemporaneidade:
a literatura contemporânea abandona a visão realista e a des-
ĐƌŝĕĆŽĚŝƌĞƚĂĚŽŵƵŶĚŽĚĞĐůŝŶĂ͘ĮĐĕĆŽĚĂƐƷůƟŵĂƐĚĠĐĂĚĂƐƐĞ
ĂĨĂƐƚĂĚĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŝƌĞƚĂĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƉƌŝŵĞŝƌĂĞĚĄƉƌĞĨĞ-
ƌġŶĐŝĂăĐƌŝĂĕĆŽĚĞƵŵŵƵŶĚŽŵĄŐŝĐŽĞƐŝŵďſůŝĐŽ͕ŵĞƚĄĨŽƌĂĚŽ
ŵƵŶĚŽƌĞĂů͘ƌŝĂͲƐĞƵŵĐĞŶĄƌŝŽĚĞĚŝŵĞŶƐƁĞƐƚƌĂŶƐĐĞŶĚĞŶƚĂŝƐ͕
ĞdžƉůŽƌĂŶĚŽŽƌĞŝŶŽĚŽƐƵďũĞƟǀŽĞĚŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͘;ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϭϴϭͿ
Sendo assim, pode-se sugerir que, atualmente, a representação do sobre-
ŶĂƚƵƌĂůŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ĐŽŵŽĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ĞŶĐŽŶƚƌĂĞƐƉĂĕŽŶĆŽĂƉĞŶĂƐĐŽŵŽ
ĞdžĞƌĐşĐŝŽ ĞƐƚĠƟĐŽ͕ ŵĂƐ ĐŽŵŽ ƌĞƐŐĂƚĞ ĐƵůƚƵƌĂů ĚŽƐ ƉŽǀŽƐ Ğ ĚĂƐ ŶĂĕƁĞƐ ĚŽƐ W>KW͕
apresentando grandes resultados para o desenvolvimento e reconhecimento de sua
ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͘>ŽŐŽ͕ƚŽƌŶĂͲƐĞŝŶĚŝƐĐƵơǀĞůŶĆŽĂƉĞŶĂƐĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůĐŽŵŽ
ĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚĞƵŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽĐƌşƟĐŽͲƚĞſƌŝĐĂƋƵĞƚƌĂnjĞƐƐĂĚŝƐĐƵƐƐĆŽăƚŽŶĂ͘
ŶƚŽŶŝŽDĂƌƟŶƐũĄĂƉŽŶƚĂƌĂŵĂƌĐĂƐĚŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽŶŽĞƐĐƌŝƚŽƌŵŽĕĂŵďŝ-
cano Mia Couto (2008). Maria Fernanda Afonso também relaciona a corrente do
ƌĞĂůŝƐŵŽŵĄŐŝĐŽĂŽƐƚĞdžƚŽƐĚĞDŝĂŽƵƚŽĞĚŽƚĂŵďĠŵŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽhŶŐƵůĂŶŝĂ
Ka Khosa (AFONSO, 2004, p. 348). Sueli Saraiva, ao estudar o resgate do mito e do
ƌŝƚŽƉĂƌĂĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ƉƌŽŵŽǀŝĚŽƉĞůĂĞƐĐƌŝƚŽƌĂ
36 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
Paulina Chiziane, outro expoente da literatura de Moçambique, enfoca a maneira
ĐŽŵŽĂĂƵƚŽƌĂƐĞƵƟůŝnjĂĚĞƐƐĞƐĞůĞŵĞŶƚŽƐĞŵK^ĠƟŵŽ:ƵƌĂŵĞŶƚŽ (2006). Carmen
>ƵĐŝĂdŝŶĚſ^ĞĐĐŽ͕ĂŽŽďƐĞƌǀĂƌĂĂŵďŝǀĂůġŶĐŝĂŶĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐĨĂŶƚĄƐƟĐĂƐƉƌĞƐĞŶƚĞƐ
em Mãe, Materno Mar, do escritor angolano Boaventura Cardoso, observa como:
a evocação dos rituais e crenças africanos (como, por exem-
ƉůŽ͕ĂƐĐŽŶƐƚĂŶƚĞƐĂƉĂƌŝĕƁĞƐĚĂĨĂůĞĐŝĚĂĞĨĂŶŽĂƉĂƌƚĂŵĞŶƚŽ
em Luanda, onde Segunda conservara o seu lugar à mesa das
ƌĞĨĞŝĕƁĞƐ Ğ ŵĂŶƟǀĞƌĂ ŝŶƚĂĐƚĂƐ ĂƐ ƐƵĂƐ ƌŽƵƉĂƐ ŶŽ ĂƌŵĄƌŝŽͿ͕ Ă
ƉƌĞƐĞŶĕĂ ĚŽ ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ĐƌŝƐƚĆŽ Ğ ĚŽ ĐůŝŵĂ ͞ĨĂŶƚĄƐƟĐŽ͟΀͘͘͘΁
ƐƵƌŐĞŵĐŽŵŽƌĞƐƉŽƐƚĂƐŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂŝƐƋƵĞƚĞŶƚĂŵƉƌĞĞŶĐŚĞƌ
as falhas e os vazios deixados pela perda das utopias revolu-
ĐŝŽŶĄƌŝĂƐ͘;ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϮϴͲϭϮϵͿ
Em meio a todos esses estudos acerca das manifestações do sobrenatural
ŶĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĚŽƐW>KW͕Ğ͕ĂŝŶĚĂŵĂŝƐŽƵƚƌŽƐ͕ƐƵƌŐĞ͕ŝŶƚĞŵƉĞƐƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ŽƚĞƌŵŽ
Realismo Animista, em Lueji – O Nascimento de um Império;ϭϵϵϬ͕ϭǐĞĚŝĕĆŽ͖ϭϵϵϳ͕
ĞĚŝĕĆŽ ƵƟůŝnjĂĚĂ ŶĞƐƚĞ ĞŶƐĂŝŽͿ͕ ĚĞ WĞƉĞƚĞůĂ ͕ ůŽŐŽ ĂƉƌŽƉƌŝĂĚŽ ƉĞůŽƐ ĐƌşƟĐŽƐ ĐŽŵŽ
ƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞĐŽŶĐĞŝƚƵĂƌĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞŶĞƐƐĂƐůŝ-
ƚĞƌĂƚƵƌĂƐ͘EĆŽƐĞƌĆŽƉŽƵĐŽƐŽƐƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĞƐƋƵĞƐĞƵƟůŝnjĂƌĆŽĚĞƐƐĞƚĞƌŵŽƉĂƌĂ
ƐĞƌĞĨĞƌŝƌĞŵĞĐůĂƐƐŝĮĐĂƌĞŵƚĂŝƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐ͕ƐĞŵ͕ŶŽĞŶƚĂŶƚŽ͕ĂƉƌŽĨƵŶĚĂƌĞŵĂ
ŽĐŽƌƌġŶĐŝĂĞƌĞůĞǀąŶĐŝĂĚĞƐƐĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐƉĂƌĂĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐƋƵĞĞƐƚƵĚĂŵ͘
Ɛ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ ƉĞƌŵĞĂĚĂƐ ƉŽƌ ŽĐŽƌƌġŶĐŝĂƐ ŝŶĐŽŵƵŶƐ͕ ƋƵĞ ƉŽĚĞŵ ĞŶǀŽůǀĞƌ
tanto as personagens quanto o meio em que ocorrem as ações, levam a circuns-
ƚąŶĐŝĂƐŝŶƐſůŝƚĂƐ͕ĂƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽ͕ĞŵƐƵĂŝŶĚŝǀŝĚƵĂůŝĚĂĚĞƉŽĠƟĐĂ͕ĂƐŵĂƌĐĂƐƉƌſƉƌŝĂƐ
ĚĂƉƌŽĚƵĕĆŽĞ͕ĂƉĞƐĂƌĚĞĐĂĚĂĂƵƚŽƌƚĞƌƵŵĂĨŽƌŵĂƐƵďũĞƟǀĂĚĞĞƐƚƌƵƚƵƌĂƌŽƚĞdžƚŽ͕
essas obras apresentam traços em comum na maneira em que representam a mani-
ĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ĐŽŵŽƐĞĐŽŶƐƚƌƵşƐƐĞŵŵŝƐƐŽƐƐŽƐʹŶĂƌƌĂƟǀĂƐƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂŝƐ
ĚĞĨƵŶĚŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽʹƉſƐͲŵŽĚĞƌŶŽƐ;W/>,͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϯϵͲϰϬͿ͘
EĆŽ ƉĂƌƟŶĚŽ ĚĞ ƵŵĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ĐƌşƟĐĂ ƋƵĞ ŚĄ ĂůŐƵŵ ƚĞŵƉŽ ũĄ ĂƉŽŶƚĂǀĂ Ğ
ĞƐƚƵĚĂǀĂ ĞƐƐĂƐ ŵĂƌĐĂƐ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ ĞƐƚƌŝƚĂŵĞŶƚĞ ǀŝŶĐƵůĂĚĂ Ă ƵŵĂ ǀŝƐĆŽ ƉŽůşƟĐĂ Ğ
ŚŝƐƚſƌŝĐĂ ĚĂƐ ĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͕ ŵĂƐ ĚĞ Ƶŵ ƉŽŶƚŽ ĚĞ ǀŝƐƚĂ ĚĞ ĐŽŵŽ ĞƐƐĂƐ
ŶĂƌƌĂƟǀĂƐƐĆŽĐŽŶƐƚƌƵşĚĂƐʹĞŵďŽƌĂŶĆŽƐĞĚĞƐĐĂƌƚĞĂƋƵŝĂĞdžƉůŽƌĂĕĆŽĚŽƐǀĂůŽƌĞƐ
ŝĚĞŶƟƚĄƌŝŽƐʹ͕ĐŚĞŐĂŵŽƐĂƵŵƉŽŶƚŽĞŵƋƵĞ͕ƉŽƌŵĞŝŽĚĞƵŵĂĂŶĄůŝƐĞĐƌşƟĐŽͲƚĞſƌŝ-
ĐĂ͕ƉŽĚĞŵŽƐĂƌƌŝƐĐĂƌĞƉƌŽƉŽƌůĞŝƚƵƌĂƐĂƉĂƌƟƌĚŽĐŽŶĐĞŝƚŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͕ƚĞŶƚĂŶ-
ĚŽĚĞůŝŵŝƚĂƌĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĞĨƌŽŶƚĞŝƌĂƐĞŶƚƌĞŽƐZĞĂůŝƐŵŽƐĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂʹ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹĞĚĞĨƌŝĐĂʹŶŝŵŝƐƚĂ͘dĞŶƚĂƌĞŵŽƐƋƵĞŶŽƐƐŽĞƐƚƵĚŽŶĆŽƐĞƌĞƐƚƌŝŶũĂ͕
apenas, à visão branco-europeia – em suma, uma visão eurocêntrica que diferencia
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ͞ŵĂŝŽƌĞƐĞŵĞŶŽƌĞƐ͕͟ŶĞƐƐĞĐĂƐŽ͕ƋƵĞĂƉůŝĐĂũƵŐŽƐĚĞǀĂůŽƌăƐƉƌŽĚƵĕƁĞƐ
ůŝƚĞƌĄƌŝĂƐĚĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐ͕ŽƵ͕ĞŵŽƵƚƌĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ƵŵĂǀŝƐĆŽĚĞƋƵĞŵŽďƐĞƌǀĂĂƌĞĂ-
lidade apenas por um ponto de vista, o de fora, do colonizador, do eu. Europeu, não
ĂƉĞŶĂƐĐŽŵŽůŽĐĂůĚĞŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽ͕ŵĂƐĚĞƐĞƉŽƐŝĐŝŽŶĂƌĨƌĞŶƚĞĂŽŵƵŶĚŽ͖ďƌĂŶĐŽ͕
não como cor, mas em uma percepção de valores socioculturais que caracterizam
ŽŝŶĚŝǀşĚƵŽʹ͕ũĄĮdžĂĚĂƐ͕ŵĂƐƋƵĞŶŽƐƐĞũĂŵƉŽƐƐşǀĞŝƐŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕƁĞƐƉĞůŽƐǀŝĞƐĞƐ
africanos, levando-nos a uma discussão mais ampla, menos preconceituosa – em
ISBN 978-85-8199-013-2 37
João Olinto Trindade Junior
ƐĞŶƟĚŽĞŵĆŽĚƵƉůŽƐʹĞŵĂŝƐĂďƌĂŶŐĞŶƚĞ͘
Mas o que seria, de fato, a literatura do Real-Animismo? O escritor angolano
Pepetela, em seu romance Lueji – O Nascimento de um Império͕ƵƟůŝnjĂŽƚĞƌŵŽƉĂƌĂ
se referir ao modo de escrever/descrever a realidade em que vive, “a sua maneira”.
ŵƐƵŵĂ͕ƉĂƌĂĐŽŶĐĞŝƚƵĂƌĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƉƌŽĚƵnjŝĚĂŶŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶŽĞƋƵĞŵĞůŚŽƌ
ƐĞĂĚĞƋƵĂƌŝĂăƌĞĂůŝĚĂĚĞĚŽƐƉĂşƐĞƐĚĞĨƌŝĐĂ͘WĞƉĞƚĞůĂ͕ƚĂůǀĞnj͕ĐƵŶŚĞŽƚĞƌŵŽ͕ŵĂƐ
ŶĆŽƚĞŽƌŝnjĂĂĐĞƌĐĂĚĞƐĞƵĐŽŶĐĞŝƚŽ͕ĐŽŵŽƐĞƉĞƌĐĞďĞĞŵƵŵũŽŐŽĚĞƉĂůĂǀƌĂƐŽŶĚĞƐĞ
diz que a personagem Jaime, do romance em questão, estuda a corrente do Realismo
ŶŝŵŝƐƚĂ͕ĂƉĞƐĂƌĚĞŶĆŽĞdžŝƐƟƌĞŵŵƵŝƚĂƐƚĞŽƌŝĂƐƐŽďƌĞŽĂƐƐƵŶƚŽ͕ĂƉĞŶĂƐŽŶŽŵĞĞ
ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞƉƌŽĐƵƌĂĞdžĞŵƉůŝĮĐĂƌ͕ĂƐƐŝŵĐŽŵŽŚŽƵǀĞ͞ŽƵƚƌŽƐƌĞĂůŝƐŵŽƐƉŽƌĂŝ͟
(PEPETELA, 1997, p. 452).
 ŶŽƚſƌŝĂ͕ Ğŵ ŵĞŝŽ ă Đƌş ƟĐĂ ůŝƚĞƌĄƌŝĂ ĞŶǀŽůǀŝĚĂ ĐŽŵ ŽƐ ĞƐƚƵĚŽƐ ĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͕
Ă ĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽ ĚĞƐƐĞ ƐƵƉŽƐƚŽ ŶŽǀŽ ŐġŶĞƌŽ Ă ŽƵƚƌĂƐ ǀĞƌƚĞŶƚĞƐ ĚŽ ŝŶƐſůŝƚŽ ĮĐĐŝŽŶĂů͕
ĐŽŵŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹĞƐĞƵƐŐġŶĞƌŽƐǀŝnjŝŶŚŽƐ͕ŽƐƚƌĂŶŚŽĞŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹ͕ŽZĞĂůͲ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽĞŽZĞĂůŝƐŵŽDĄŐŝĐŽ͕ƐĞŵ͕ĞŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ĐŚĞŐĂƌͲƐĞĂƵŵ
ĚĞŶŽŵŝŶĂĚŽƌĐŽŵƵŵ͘KƚĞƌŵŽƚŽƌŶŽƵͲƐĞ͕ŐĞŶĞƌŝĐĂŵĞŶƚĞ͕ƐŝŶƀŶŝŵŽĚĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂ-
ĕĆŽʹŶŽĐĂŵƉŽĚŽƐĞƐƚƵĚŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐʹĚŽĨĞŶƀŵĞŶŽŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͕ĞŵĐŽŶƚƌĂĚŝ-
ĕĆŽĐŽŵŽ͞ĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞdžſƟĐŽ͕͟ũĄĂƉŽŶƚĂĚŽƉŽƌ&ƌĂŶĐŝƐĐŽEŽĂ;ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϭϳϵͿ͕ƵŵĂ
ĞƐƉĠĐŝĞĚĞƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůƋƵĞĐŽŶǀŝǀĞƌŝĂĐŽŵƌĞĂůŝĚĂĚĞİƐŝĐĂ͘ƐƵŐĞƐƚĆŽĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ
angolano, entretanto, segue mais confundindo do que auxiliando, uma vez que traz à
ƚŽŶĂĂŝĚĞŝĂĚĞƵŵĂĐŽƌƌĞŶƚĞĐƌşƟĐŽͲůŝƚĞƌĄƌŝĂƋƵĞĂůĞŐĂƵŵĂůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞƉĂƌĂĂƋƵĞůĂ
literatura, não acrescentando muito para o desenvolvimento de seu estudo.
ŵ ĞƐƚƵĚŽƐ ƐŽďƌĞĂƐ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƋƵĞ ƌĞƚŽŵĂŵ ĐƌşƟĐŽƐ ĂŶƚĞ-
ƌŝŽƌĞƐ͕ ƐĞũĂ ƉĂƌĂ ƐĞ ĂĮƌŵĂƌ͕ ƋƵĂŶƚŽ ƉĂƌĂ ŶĞŐĄͲůŽƐ͕ Ă ŵĂŶĞŝƌĂ ǀĂŐĂ ĐŽŵŽ Ă ͞ŶŽǀĂ
ĐŽƌƌĞŶƚĞ ĐƌşƟĐĂ͟ Ġ ĂƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂ ŵĞŶŽƐ ĂƵdžŝůŝĂ ĚŽ ƋƵĞ ĂĐƌĞƐĐĞŶƚĂ͕ Ğ͕ ŶĂ ǀĞƌĚĂĚĞ͕
ĂĐĂďĂƉŽƌĐŽŶĨƵŶĚŝƌ͘ŵƌĞƐƵŵŽ͕ĞŵƵŵĂĚĞƐƵĂƐĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂƐ͕ƋƵĂŶĚŽƋƵĞƐƟŽŶĂĚŽ
se seu novo romance, O desejo de Kianda (1995), poderia se inscrever na corrente
do Realismo Animista, Pepetela responde elucidando, em parte, a ocorrência do
termo em Lueji:
Creo que es posible – sin exagerar ni tomar demasiado en serio
ůĂƐĐĂƚĞŐŽƌŝnjĂĐŝŽŶĞƐʹĚŝƐƟŶŐƵŝƌƵŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂǀŝŶĐƵůĂĚĂ
al mundo rural, a su civilización, a su cultura y a las historias y
ĨĄďƵůĂƐĚĞĂŶŝŵĂůĞƐ͕ŚĞĐŚŝnjŽƐ͕ŵĂŐŝĂLJŽƚƌĂƐǀŝǀĞŶĐŝĂƐ͘ĚĞŵĄƐ͕
y como un aspecto sobresaliente, creo que las culturas africanas
ƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůĞƐƚĞŶşĂŶʹŶŽƐĠƐŝĂƷŶůŽƐƟĞŶĞŶ͕ƉĞƌŽĞƐŵŽƟǀŽĚĞ
preocupación para mi – algunos valores muy importantes que
deberían haber sido preservados o deberían preservarse y que
con El ĂǀĂŶĐĞĚĞůĂůůĂŵĂĚĂŐůŽďĂůŝnjĂĐŝſŶĞƐƚĄŶĚĞƐĂƉĂƌĞĐŝĞŶĚŽ
completamente. (2000, s/d)
Tentando escapar desse beco sem saída, retornamos às considerações de
Irlemar Chiampi, que, ao promover uma releitura da teorização do Real-Maravilhoso
ĚĞůĞũŽĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ƵƟůŝnjĂŽƚĞƌŵŽƉĂƌĂƌĞůĂƚĂƌƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĞŵƋƵĞŽƐmirabilia
38 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
se manifestam, fundindo o real e o irreal, como forma de subversão da realidade
eurocêntrica e revelando “não as fantasias ou invenções do narrador, mas o con-
ũƵŶƚŽĚĞŽďũĞƚŽƐĞĞǀĞŶƚŽƐƌĞĂŝƐƋƵĞƐŝŶŐƵůĂƌŝnjĂŵĂŵĠƌŝĐĂŶŽĐŽŶƚĞdžƚŽŽĐŝĚĞŶƚĂů͟
(1980. p. 32).
ƌĞƐƉĞŝƚŽĚĂƐŽƐĐŝůĂĕƁĞƐĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐĞŶƚƌĞŽƐƉĞƌşŽĚŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐĞƐƵĂƐŶŽ-
menclaturas, Carlos Reis tece as seguintes observações, que nos parecem úteis para
o percurso que vimos empreendendo:
 ĚĞŶŽŵŝŶĂĕĆŽ ĚŽƐ ƉĞƌşŽĚŽƐ ůŝƚĞƌĄƌŝŽƐ ƌĞŐŝƐƚƌĂ ƉŽƌ ǀĞnjĞƐ ŽƐĐŝ-
lações, de tal modo que um mesmo termo pode designar movi-
ŵĞŶƚŽƐƉĞƌŝŽĚŽůſŐŝĐŽƐĚŝƐƟŶƚŽƐ;Ɖ͘Ğdž͗͘ŽDŽĚĞƌŶŝƐŵŽĞƐƉĂŶŚŽů
não se refere ao mesmo movimento periodológico a que cha-
mamos Modernismo na Literatura Portuguesa). Inversamente,
ƚĞƌŵŽƐ ĚŝƐƟŶƚŽƐ ƉŽĚĞŵ ƌĞĨĞƌŝƌͲƐĞ ĂŽ ŵĞƐŵŽ ŵŽǀŝŵĞŶƚŽ ƉĞ-
riodológico ou a movimentos periodológicos com importantes
ĂĮŶŝĚĂĚĞƐ ĞŶƚƌĞ Ɛŝ ;Ġ Ž ĐĂƐŽ ĚŽ DŽĚĞƌŶŝƐŵŽ WŽƌƚƵŐƵġƐ Ğ ĚŽ
Ultraísmo e Criacionismo espanhol). (2008, p. 410)
WĞƉĞƚĞůĂ͕ĂŽƉƌŽƉŽƌĂƵƟůŝnjĂĕĆŽĚĞƵŵĂŶŽŵĞŶĐůĂƚƵƌĂƉĂƌĂĂƋƵĂůŶĆŽĞdžŝƐƚĞ
ĂƚĞŽƌŝĂ͕ĂƉĞŶĂƐŽǀŽĐĄďƵůŽĚĞƐŝŐŶĂƟǀŽ;ϭϵϵϳ͕Ɖ͘ϰϱϭͲϰϱϯͿ͕ĂƉŽŶƚĂƉĂƌĂŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝ-
ŵĞŶƚŽĚĞĂůŐŽĂŽƐƐĞƵƐŵŽůĚĞƐ͕ŶĆŽƐƵďŵĞƟĚŽĂŽƐƉĂĚƌƁĞƐĚĞĨŽƌĂ͘ŝƚŽĞĨĞŝƚŽ͕Ğŵ
Lueji, o bailado promovido pelo checo e patrocinado pelo governo fracassa, como se
os espíritos conspirassem contra, enquanto nada fosse feito com o devido respeito
ăƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĂƚĞƌƌĂ͘ĂĚĂƐĂƐƐŝŵŝůĂƌŝĚĂĚĞƐĞŶƚƌĞĂƐƉƌŽƉŽƐƚĂƐĚĂ͞ƌĞĂůŝĚĂĚĞ
maravilhosa”, onde o real e o irreal convivem, além das trocas culturais entre os paí-
ƐĞƐĂŽůŽŶŐŽĚĞƐĞƵƉĞƌşŽĚŽĚĞĨŽƌŵĂĕĆŽ͕ƉŽĚĞŵŽƐĂĮƌŵĂƌƋƵĞŽZĞĂůŝƐŵŽŶŝŵŝƐƚĂ
ƐĞũĂŽĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞŶƚĞ͕ĞŵĨƌŝĐĂ͕ĂŽZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽʹĞƐƚĠ-
ƟĐĂƐƋƵĞƐĞĂƉƌŽdžŝŵĂŵ͕ƐĞŐƵŶĚŽ/ŶŽĐġŶĐŝĂDĂƚĂ;ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϵͿ͕ĞŵƉƌĞĨĄĐŝŽĚĂŽďƌĂ
DŝĂŽƵƚŽ͗ĞƐƉĂĕŽƐĮĐĐŝŽŶĂŝƐ, das pesquisadoras Maria Nazareth Soares Fonseca e
DĂƌŝĂŝůĚĂ&ĞƌƌĞŝƌĂƵƌLJƐŽďƌĞĂƉƌŽĚƵĕĆŽƚĞdžƚƵĂůĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͘
^ĞŐƵŶĚŽ&ƌĞƵĚ͕ŽĂŶŝŵŝƐŵŽ͕ĞŵƐĞŶƟĚŽĂŵƉůŽ͕ƐĞƌŝĂĂƚĞŽƌŝĂĚŽƐƐĞƌĞƐĞƐ-
pirituais em geral, não apenas na visão de grupos culturais tradicionais, mas tam-
bém de povos contemporâneos, envolvendo sua visão sobre a natureza e o mundo
;ϭϵϱϴ͕ Ɖ͘ ϰϱϱͲϰϱϳͿ͘ WĂƌĂ EƐĂŶŐ K͛<ŚĂŶ <ĂďǁĂƐĂ͕ Ă ǀŝĚĂ Ġ ƵŵĂ ĐŽƌƌĞŶƚĞ ƋƵĞ ŇƵŝ
ĂƚƌĂǀĠƐĚŽƐŚŽŵĞŶƐĞŵŐĞƌĂĕƁĞƐƐƵĐĞƐƐŝǀĂƐ;ϭϵϴϮ͕Ɖ͘ϭϰͿ͘,ĄƵŵĂůŝŐĂĕĆŽĞŶƚƌĞ
o mundo dos vivos e dos mortos, pela qual a criança se liga ao velho, este ao an-
tepassado e, por sua vez, à criança em um ciclo, onde a vida não termina com a
morte, mas torna possível a coexistência entre ambos. Seria essa, basicamente, a
ƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞŽƐŝƐƚĞŵĂĚŽZĞĂůŝƐŵŽŶŝŵŝƐƚĂƉƌŽĐƵƌĂƌŝĂĞdžĞŵƉůŝĮĐĂƌ͘
Para Filipe Furtado, essas literaturas que recorrem à fenomenologia insó-
lita são genericamente referidas como “Literatura do Sobrenatural” (1980, p. 21),
ĐŽŶĨĞƌŝŶĚŽăƐƵďǀĞƌƐĆŽĚŽƌĞĂůƵŵĂĨƵŶĕĆŽĚĞĐŝƐŝǀĂŶŽĚĞƐĞŶƌŽůĂƌĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĞŽ
ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ƉŽƌƐŝƐſ͕ĞƐƚĂƌŝĂŝŶƟŵĂŵĞŶƚĞĞŶǀŽůǀŝĚŽĐŽŵŽĚĞƐĞŶƌŽůĂƌ
da trama. Assim sendo, temos um problema, pois, na obra de Pepetela, que traz
ISBN 978-85-8199-013-2 39
João Olinto Trindade Junior
à baila o termo-conceito complicador dos estudos do sobrenatural nas literaturas
ĚĞĨƌŝĐĂ͕ŽĞǀĞŶƚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ƐĞĞƋƵĂŶĚŽŽĐŽƌƌĞʹĨĂƚŽƌĂƌŽʹ͕ƉŽƵĐŽŽƵŶĂĚĂ
contribui para a diegese.
Exemplos disso são o suposto fantasma de Leli, visto pelo comandante Sem
Medo em Mayombe (1982, p. 49-50), o barulho das folhas da Mangueira que Aníbal
atribui a sua falecida esposa Mussole em A geração da utopia (2000, p. 235), e a
cabeça decepada do escravo Thor, em A gloriosa família (1999, p. 247), da qual sai
ƵŵĂĞƐƉƵŵĂĚĞŽŶĚĞŶĂƐĐĞƵŵĂŇŽƌ͘KŵĂŝƐƉƌſdžŝŵŽĚĞƵŵĂĐŽŶĐĞƉĕĆŽĨƵƌƚĂĚŝĂŶĂ
ĚĞƵŵĞǀĞŶƚŽƋƵĞƐƵďǀĞƌƚĞŽƌĞĂůĞŝŶƚĞƌĨĞƌĞŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂŽĐŽƌƌĞĞŵO desejo de
Kianda;ϭϵϵϱͿ͕ŶŽƋƵĂůŽƐĞĚŝİĐŝŽƐŐƌĂĚƵĂůŵĞŶƚĞĚĞƐŵŽƌŽŶĂŵĞǀŝƌĂŵƉſʹƐĞŵ
causar dano aos moradores que os ocupavam no momento do acontecimento, pa-
ralelo a observações de moradores da cidade acerca do ocorrido possuir alguma
relação com o passado –, culminando na gigantesca serpente Kianda sobrevoando a
cidade de Luanda (1995, p. 119).
Na medida em que, em meio às nossas observações, constatamos que os
mesmos teóricos que renegam o termo “sobrenatural” nessas literaturas recorrem
ĐŽŶƐƚĂŶƚĞŵĞŶƚĞ ƚĂŶƚŽ ĂŽ ƚĞƌŵŽ ͞ŝŶƐſůŝƚŽ͟ ƋƵĂŶƚŽ Ă ƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĞƐ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ
que se apoiam, por exemplo, na teoria todoroviana, optamos, então, por dois au-
ƚŽƌĞƐĐƵũĂƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůŶŽƐƉĞƌŵŝƟƐƐĞƵŵĂŵĞůŚŽƌĂďŽƌĚĂŐĞŵĚĂĐŽƌƌĞŶƚĞ͘
^ĆŽĞůĞƐƐƐŝƐ:ƌ͘ĞDŝĂŽƵƚŽ͘KƉƌŝŵĞŝƌŽ͕ĂŶŐŽůĂŶŽ͕ĐƵũĂŽďƌĂO Segredo da Morta
– Romance de Costumes Angolenses (1979), escrito em 1935, é apontado por Rita
ŚĂǀĞƐĐŽŵŽŽƌŽŵĂŶĐĞŝŶĂƵŐƵƌĂůŶŽƐŝƐƚĞŵĂůŝƚĞƌĄƌŝŽĂŶŐŽůĂŶŽ;ϭϵϵϵ͕Ɖ͘ϮϭͿʹŽƵ͕
ƐĞŐƵŶĚŽ>ĂƵƌĂWĂĚŝůŚĂ͕ĚŽƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽĚĞƵŵĂ͞ĂŶŐŽůĂŶŝĚĂĚĞ͟ŶĂĮĐĕĆŽĚĂĞdžͲĐŽůƀ-
nia Portuguesa (2007, p. 79). O segundo, moçambicano, autor de Um Rio Chamado
Tempo, Uma Casa Chamada Terra (2003), escrito em 2002, que busca, como propos-
ƚĂĞƐƚĠƟĐĂĚĞƐƵĂĐƌŝĂĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ŽƌĞƐŐĂƚĞĐƵůƚƵƌĂůĚĞƵŵĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞƋƵĞƌĞŶĞŐĂ
o conceito de pura, vendo-a como um mosaico de tradições. Analisaremos a obra
ƉĂƌĂĮŶƐĚĞĐŽŵƉĂƌĂĕĆŽ͕ĞŵďŽƌĂŶĆŽƐĞũĂĞƐƚĂĂŶĂƌƌĂƟǀĂĂƐĞƌĞƐƚƵĚĂĚĂŶŽƉƌĞƐĞŶ-
ƚĞĞŶƐĂŝŽ͕ƋƵĞƚĞƌĄƉŽƌŽďũĞƚŽVinte e zinco (2004), escrita em 1999.
Em O segredo da morta, a história gira em torno de um grupo de mulheres do
Dondo, em Angola, ao longo dos anos de 1899 e 1900, em que a personagem principal,
yŝŵŝŶŚĂĞůĐŚŝŽƌ͕ƚĞŵƐĞƵƐĞŐƌĞĚŽƌĞǀĞůĂĚŽăŵĞĚŝĚĂƋƵĞĂŶĂƌƌĂƟǀĂǀĂŝƐĞŶĚŽĐŽŶƐƚƌƵş-
ĚĂ͘:ĄĞŵUm Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra͕ŽũŽǀĞŵDĂƌŝĂŶŽƌĞƚŽƌŶĂ
ĂƐƵĂƚĞƌƌĂŶĂƚĂů͕Ă/ůŚĂ>ƵĂƌͲĚŽͲŚĆŽ͕ƉĂƌĂŽĞŶƚĞƌƌŽĚŽĂǀƀ͕ŝƚŽDĂƌŝĂŶŽ͕ƉƌĞƐŽĞŵ
uma condição de “desmorto”, sendo impedido de ser enterrado até mesmo pela própria
terra, enquanto não cumprir suas responsabilidades com o neto, através de estranhos
bilhetes que lhe chegam.
Ao longo dessas histórias, o leitor mais atento vai tomando conhecimento
ĚĂƐ ĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐ ĚĞ ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ŶĂƌƌĂƟǀĂ ĞŵƉƌĞŐĂĚĂƐ ƉĞůŽƐ ĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ͗ ĂƉƌĞƐĞŶƚĂƌ
uma realidade tal como ela é, mas de uma forma que contraria o sistema real natu-
ƌĂůŝƐƚĂ͕ĞŵďƵƐĐĂĚĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽŝĚĞŶƟƚĄƌŝĂůŽĐĂů͘ŵďŽƌĂŽơƚƵůŽĚĞƐƐŝƐ:ƌƐĞũĂŵĂŝƐ
explícito, ambos os textos levam o leitor a tomar conhecimento de um segredo que
40 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
não apenas vale a pena ser revelado, e sua solução guia toda a trama, resgatando,
com isso, as concepções de Umberto Eco sobre autor modelo, leitor modelo e o
ƉĂĐƚŽĮĐĐŝŽŶĂů;ϭϵϵϰͿ͘
Se, em O segredo da morta͕ Ġ ŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽ ĚĞĐŝĨƌĂƌ ǀĄƌŝŽƐ ŽƵƚƌŽƐ ƐĞŐƌĞĚŽƐ
para se chegar até o grande mistério – em sua maioria, através do conhecimento
ƚƌĂŶƐŵŝƟĚŽŽƌĂůŵĞŶƚĞƉĞůŽƐŚĂďŝƚĂŶƚĞƐĚĂƌĞŐŝĆŽʹ͕ĞŵUm Rio Chamado Tempo,
Uma Casa Chamada Terra, como em um processo de reaprendizagem – e não pode-
ria ser diferente, uma vez que era considerado um estrangeiro, um assimilado, após
tanto tempo longe de sua terra –, Marianinho vai reaprendendo a história de sua
família e suas tradições.
Em ambos os romances, tanto Ximinha Belchior, quanto Dito Mariano de-
monstram o poder de intervir no desenrolar das vidas sobre as quais atuam – como
Ğŵ Ƶŵ ŵŝƐƐŽƐŽ ĚŽƐ ƚĞŵƉŽƐ ŵŽĚĞƌŶŽƐ͘ 'ƌĂĚĂƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ yŝŵŝŶŚĂ ĞůĐŚŝŽƌ ĂǀŝƐĂ͕
ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƐŝŶĂŝƐĞƐŽŶŚŽƐ͕ŽƐĐĂƐƟŐŽƐƋƵĞƐĞƌĆŽŝŶŇŝŐŝĚŽƐ͕ĂƐƐŝŵĐŽŵŽǀƀDĂƌŝĂŶŽ
se comunica com seu neto por meio de bilhetes – os quais simplesmente “surgem”
– sobre as instruções a serem seguidas.
Na medida em que encobre o segredo da morta e a impossibilidade do en-
ƚĞƌƌŽĚŽǀƀ͕ĂŵďŽƐŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĐŽŶǀŝĚĂŵŽůĞŝƚŽƌĂƉĂƌƟĐŝƉĂƌĚĞƵŵũŽŐŽŽŶĚĞ
são recuperados os costumes de um povo – tanto os angolanos quanto, metonimi-
camente, os moçambicanos, pela representação de Luar-do-Chão –, seus ritos e tra-
ĚŝĕƁĞƐ͕ĐŽŵƉŽŶĞŶƚĞƐĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂŝƐŶĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŽƵƌĞƐŐĂƚĞĚĞƐƵĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐ͘
A leitura de Assis Jr nos revela um Realismo Animista – que se adéqua às
ƐƵĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐʹĞŶĐŽŶƚƌĂĚŽŶŽƐƉƌŝŵĞŝƌŽƐƚƌĂĕŽƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĚĞƵŵƉŽǀŽ͘
ƐƐĞŵĞƐŵŽŐġŶĞƌŽďƌŽƚĂĞŵDŝĂŽƵƚŽ͕ĂŽƉƌŽĐƵƌĂƌĞdžƉŽƌĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĂ
ƚĞƌƌĂ Ğŵ ƋƵĞ ǀŝǀĞ͘ ^ĞŶĚŽ ĂƐƐŝŵ͕ Ž ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ ĂďŽƌĚĂĚŽ
ƉŽƌĂƌƉĞŶƟĞƌĞŚŝĂŵƉŝƉĂƌĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƚĆŽƐŝŶŐƵůĂƌĚŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞ
ĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ Ğŵ ĐŽŶƚƌĂƉŽƐŝĕĆŽ ĂŽ ĞƵƌŽƉĞƵ͕ ĂŝŶĚĂ ƋƵĞ ƐĞ ĂŵďŝĞŶƚĞ ŶŽ ĐŽŶƟŶĞŶƚĞ
ĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ƐŽĨƌĞƵŵĂĂƚƵĂůŝnjĂĕĆŽ͕Ğ͕ĞŵďŽƌĂƚĞŶŚĂƟĚŽŵƵŝƚĂƐƚƌŽĐĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĐŽŵĂ
América, apresenta outro contexto sociocultural, marcado pelo animismo telúrico
ĚĞĨƌŝĐĂ͕ŶŽƋƵĂůŽƐĞƐƉĂĕŽƐĚŽƐrealia se mesclam com os dos mirabilia, resga-
tando as crenças, as lendas, os mitos, a cosmogonia própria daquela terra, em sua
ƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͘
Assim como no Real-Maravilhoso, no Real-Animismo o prodígio não subs-
ƟƚƵŝ Ž ƌĞĂů͕ ĂŽ ĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕ ĐŽŶǀŝǀĞ Ğŵ ŚĂƌŵŽŶŝĂ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ ƋƵĞ ŽƐ mirabilia são
lidos como realiaĞǀŝĐĞͲǀĞƌƐĂ͕ĞŵďŽƌĂƐĞũĂŵĚĞŽƵƚƌĂŶĂƚƵƌĞnjĂĞŽƌŝĞŶƚĂĚŽƐƉŽƌ
ŽƵƚƌŽƐ ǀĂůŽƌĞƐ ĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕ Ž ƋƵĞ ŚŝĂŵƉŝ ũĄ ĂƉŽŶƚĂ ĐŽŵŽ ƐĞŶĚŽ ͞Ă ŝƌƌĞĚƵƟďŝůŝĚĂĚĞ
da oposição entre o real e o irreal” (1980, p. 61). Observamos, portanto, que, por
ƐĞƚƌĂƚĂƌĚĞƵŵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŽZĞĂůŝƐŵŽDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽŶĆŽƐĞ
ƌĞƐƚƌŝŶŐĞĂŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͘ŶƚĞƐ͕ĠĨƌƵƚŽĚĂƐĐŽŶƐƚĂŶƚĞƐƚƌŽĐĂƐŚŝƐƚſƌŝĐĂƐĞ
culturais, reduplicando-se e sendo reinterpretado por outros povos e culturas, em
ŽƵƚƌŽƐĞƐƉĂĕŽƐ͕ĐŽŵŽŶŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͘ŽŶĨŽƌŵĞĂƌƉĞŶƟĞƌ
em A Literatura do Maravilhoso (1987), a “vigência do real maravilhoso não era pri-
ISBN 978-85-8199-013-2 41
João Olinto Trindade Junior
ǀŝůĠŐŝŽĞdžĐůƵƐŝǀŽĚŽ,ĂŝƟ;͘͘͘Ϳ o Real-Maravilhoso se encontra a cada passo nas vidas
ĚĞŚŽŵĞŶƐƋƵĞŝŶƐĐƌĞǀĞƌĂŵĚĂƚĂƐŶĂŚŝƐƚſƌŝĂĚŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞ;͘͘͘Ϳ ΀ĐŽŵŽ΁ĐĞƌƚŽƐŚĞƌſŝƐ
ŵŽĚĞƌŶŽƐĚĂƐŶŽƐƐĂƐŐƵĞƌƌĂƐĚĞŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͟;ϭϵϴϳ͕Ɖ͘ϭϰϭͲϭϰϮͿ͘KƌşƟĐŽĂŝŶĚĂ
ƚƌĂĕĂĂƉƌŽdžŝŵĂĕƁĞƐĞŶƚƌĞĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐʹƉŽĚĞŵŽƐĚŝnjĞƌ͕ĂƚĠ͕ƌŝƚƵĂůşƐƟĐĂƐ
ʹĚŽƐĐŽŶƟŶĞŶƚĞƐĂŵĞƌŝĐĂŶŽĞĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ĂŽĂƉŽŶƚĂƌĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚĞ͗
ƚŽĚĂƵŵĂŵŝƚŽůŽŐŝĂ͕ĂĐŽŵƉĂŶŚĂĚĂĚĞŚŝŶŽƐŵĄŐŝĐŽƐ͕ĐŽŶƐĞƌǀĂĚŽƐ
ƉŽƌƚŽĚŽƵŵƉŽǀŽ͕ƋƵĞĂŝŶĚĂƐĆŽĐŽŶƚĂĚŽƐŶĂƐĐĞƌŝŵƀŶŝĂƐĚŽsŽĚƵ͘
΀͘͘͘΁ĐŽŶƚĞĐĞƋƵĞ͕ƉĞůĂǀŝƌŐŝŶĚĂĚĞĚĂƉĂŝƐĂŐĞŵ͕ƉĞůĂĨŽƌŵĂĕĆŽ΀͘͘͘΁͕
ƉĞůĂƉƌĞƐĞŶĕĂĨĄƵƐƟĐĂĚŽşŶĚŝŽĞĚŽnegro ΀͘͘͘΁͕ƉĞůĂƐĨĞĐƵŶĚĂƐ
ŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐƋƵĞƉƌŽƉŝĐŝŽƵ͕ĂŵĠƌŝĐĂĞƐƚĄůŽŶŐĞĚĞƚĞƌĞƐŐŽƚĂĚŽ
seu caudal de mitologias. Mas que é a história da América inteira
ƐĞŶĆŽƵŵĂĐƌƀŶŝĐĂĚŽƌĞĂůŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͍;ZWEd/Z͕ϭϵϴϳ͕Ɖ͘
142, grifos nossos)
Nos países africanos de língua portuguesa, especialmente em Angola e
DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĂĚŵŝƚĞŵĂŝŶƚĞƌƉĞŶĞƚƌĂĕĆŽĞĂŝŶŇƵġŶĐŝĂĚĂƐĞƐĐŽůĂƐůŝ-
ƚĞƌĄƌŝĂƐƋƵĞƉĞƌŵŝƟƌĂŵĐŽŶƐƚĂŶƚĞƐƚƌŽĐĂƐ͕ĂĞdžĞŵƉůŽĚĞDŝĂŽƵƚŽ͕ƋƵĞƌĞĐŽŶŚĞĐĞ
ĂŝŶŇƵġŶĐŝĂĚĞ'ƵŝŵĂƌĆĞƐZŽƐĂĞŵƐƵĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͘ŵĨƌŝĐĂ͕ĨŽŝĐŽŵƵŵ͕
ůŽŐŽĂƉſƐĂĞƐƚĂďŝůŝnjĂĕĆŽĚĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͕ŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ͕ĞŵďƵƐĐĂĚĞĮƌŵĂƌƵŵĂ
ŝĚĞŶƟĚĂĚĞůŽĐĂů͕ĂƉƌŽƉƌŝĂƌĞŵͲƐĞĚĞƚĞŶĚġŶĐŝĂƐůŝƚĞƌĄƌŝĂƐďƌĂƐŝůĞŝƌĂƐƋƵĞĞdžƉƌŝŵŝĂŵ
ĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐ ůŽĐĂŝƐ ĚĞƐƐĂ ƚĂŵďĠŵ ĞdžͲĐŽůƀŶŝĂ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕ ũĄ ŚĄ ŵƵŝƚŽ ŝŶĚĞƉĞŶ-
ĚĞŶƚĞ͘ ŝƐƐŽ ĚĄ ĐŽŶƚĂ Ž ƉƌſƉƌŝŽ DŝĂ ŽƵƚŽ Ğŵ ǀĄƌŝŽƐ ĚĞ ƐĞƵƐ ĂƌƟŐŽƐ ĚĞ ŽƉŝŶŝĆŽ
– reunidos, até então, em três coletâneas: Pensatempos: textos de opinião (2005),
E se Obama fosse africano (2009) e Pensageiro Frequente (2010). Essa opção não
ĐŽŶƚƌĂĚŝnjĂƐŝĚĞŝĂƐĂƵƚſĐƚŽŶĞƐ͕ĞƉĞƌŵŝƚĞ͕ĂŝŶĚĂ͕ƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĄͲůĂƐĐŽŵŽĞdžƉƌĞƐƐĆŽ
ĚĞƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŶĂĐŝŽŶĂůĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂ͕ŽŶĚĞĂƐŵĂƌĂǀŝůŚĂƐĚĂƐƚĞƌƌĂƐĂŵĞ-
ƌŝĐĂŶĂƐƐĆŽƐƵďƐƟƚƵşĚĂƐƉĞůĂƐŵĂƌĂǀŝůŚĂƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐ͕ŶƵŵĂĂƉƌŽƉƌŝĂĕĆŽŶĆŽĂƉĞŶĂƐ
de mitos, lendas ou crenças, mas da língua do colonizador, ao longo desse processo
ĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽͲĐƌŝĂĕĆŽͲĨĂďƌŝĐĂĕĆŽĚĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐ͘
EŽƐEŽǀŽƐDƵŶĚŽƐʹŵĠƌŝĐĂĞĨƌŝĐĂʹ͕ĨŽŝŶĂƚƵƌĂůĂĞŵĞƌƐĆŽĚĞƵŵĂǀĞƌ-
ƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂůŽĐĂůƋƵĞ͕ĂƉĞƐĂƌĚĞƐĞĂƉƌŽƉƌŝĂƌĚĂƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐĚŽƐŵŽĚĞůŽƐĮĐĐŝŽ-
ŶĂŝƐĞƵƌŽƉĞƵƐ͕ŵŽůĚŽͲŽƐăƐƌĞĂůŝĚĂĚĞƐŝŶĚşŐĞŶĂƐĚĞĐĂĚĂĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͕ĨĂnjĞŶĚŽĐŽŵ
que suas próprias maravilhas telúricas funcionassem como recursos de linguagem
ŶĂĞůĂďŽƌĂĕĆŽĚĞƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽƉƌſƉƌŝŽĞĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽ͘EĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ĚĞƵ-
ͲƐĞ͕ĂƵŵŵĂƟnjĚĞƐƐĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ŽŶŽŵĞĚĞZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͖ĞŵĨƌŝĐĂ͕ĞŵƌĞƐƉĞŝ-
ƚŽĂŽƐǀĂůŽƌĞƐĚĞůĄ͕ƉŽĚĞͲƐĞĐŚĂŵĂƌĞƐƐĞŵĞƐŵŽǀŝĠƐĚĂĮĐĕĆŽĚĞZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͘
Nos dois casos, o que se tem é a realidade dura e crua da terra vista sob as lentes
ĚĞĐĂĚĂƵŵĂĚĞƐƐĂƐĐƵůƚƵƌĂƐ͕ŽŶĚĞƐſůŝƚŽĞŝŶƐſůŝƚŽĐŽĂďŝƚĂŵƵŵŵĞƐŵŽĐĞŶĄƌŝŽ͕
ŶĂĚĂĞdžſƟĐŽ͕ƐĞŶĆŽƋƵĞĚŝǀĞƌƐŽĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞ͘dƌĂƚĂͲƐĞĚĞƵŵZĞĂůŝƐŵŽĂĚũĞƟǀĂĚŽ͕
ĐŽŶĨŽƌŵĞĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĞƐƵĂŽĐŽƌƌġŶĐŝĂ͕ƌĞƐƉĞŝƚĂŶĚŽĂǀŝƐĆŽĚĞŵƵŶĚŽĚĞ
ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐŽƵĚĞĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͕ŝŶĚŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞ͘
42 ISBN 978-85-8199-013-2
Moçambique, Literatura Moçambicana, Mia Couto
'ƌĂŶĚĞƉĂƌƚĞĚĂƐǀĞnjĞƐĞƐƐĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĠƵŵĂĐĂƐĂŵŽďŝůŝĂĚĂƉŽƌ
nós, mas a mobília e a própria casa foram construídas por outros.
Mia Couto
ŝƐĐƵƟƌĂĮĐĕĆŽƉƌŽĚƵnjŝĚĂĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞƚŽƌŶĂͲƐĞƵŵƚƌĂďĂůŚŽĄƌĚƵŽĨƌĞŶ-
ƚĞăƐŽďƐĞƌǀĂĕƁĞƐĚĞǀĄƌŝŽƐĞƐƚƵĚŝŽƐŽƐĚŽĂƐƐƵŶƚŽ͘^Ğ͕ŶĂĐŽŶƚĞŵƉŽƌĂŶĞŝĚĂĚĞ͕ĂůĞ-
ŐŝƟŵŝĚĂĚĞĚĞƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂʹŽƵƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂƋƵĞƐĞĚŝnjůĞŐşƟŵĂ
ʹ͕ƚĞŵĂƉŽƌĚŝǀĞƌƐĂƐǀĞnjĞƐĚŝƐĐƵƟĚŽƉŽƌDŝĂŽƵƚŽĂĐĞƌĐĂĚĂĐŽďƌĂŶĕĂƋƵĞĠĨĞŝƚĂ
ƉĂƌĂŽƐƚĞdžƚŽƐƉƌŽĚƵnjŝĚŽƐŶŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͕ĠƉŽŶƚŽĚĞƉƌŽİĐƵĂĚŝƐĐƵƐƐĆŽŶŽƐŵĞŝŽƐ
ĂĐĂĚġŵŝĐŽƐ͕ ƚŽƌŶĂͲƐĞ ŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽ͕ ĨƌĞŶƚĞ ĂŽ ŶŽƐƐŽ corpus ĮĐĐŝŽŶĂů ĞůĞŝƚŽ͕ ĚĞĮŶŝƌ Ž
que é uma literatura africana – de língua portuguesa, nesse caso, Moçambicana. Isso
que nos leva a promover a leitura de textos essenciais para não apenas compreen-
ĚĞƌŵŽƐŽƐĞƵƐĞŶƟĚŽ͕ŵĂƐ͕ŽďƐĞƌǀĂŶĚŽĂƐƉĞƌŐƵŶƚĂƐƐƵƌŐŝĚĂƐŶĞƐƐĂďƵƐĐĂŝŶŝĐŝĂůʹĂƐ
ƌĞůĂĕƁĞƐĞŶƚƌĞ͞DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕͟͞ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕͟͞ĞƐĐƌŝƚŽƌ͟Ğ͞ůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞ͟ŶŽƐƉĞƌşŽĚŽƐ
colonial e pós-colonial –, propormos o estabelecimento de uma relação espaciotem-
poral entre essas literaturas e a terra em que são produzidas.
Moçambique, da mesma forma que os modernos Estados africanos, “nas-
ĐĞ͕͟ƉƌŝŵĞŝƌĂŵĞŶƚĞ͕ƐŽďƵŵĂĂĚŵŝŶŝƐƚƌĂĕĆŽĐŽůŽŶŝĂů͕͘ďĞŵĚĞƉŽŝƐ͕ĞŵĐŽŶƐĞƋƵ-
ġŶĐŝĂĚĞƵŵůŽŶŐŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐŽŶŇŝƚŽƐ͕ƋƵĞƐĞĨŽƌŵĂŽƐƚĂĚŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͕Ž
qual não representa necessariamente a nação moçambicana, mas busca conciliar
ĂƐǀĄƌŝĂƐŶĂĕƁĞƐƋƵĞŚĂďŝƚĂŵĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝ;,>>͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϱͿ͘ƐƐĂƉůƵƌĂůŝĚĂĚĞĚĞ
grupos socioculturais – muitos, por vezes, inimigos entre si – não é exclusividade de
DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ŵĂƐƵŵĂŚĞƌĂŶĕĂĚĂŽŶĨĞƌġŶĐŝĂĚĞĞƌůŝŵ͕ĚĞϭϴϴϱ͕ƋƵĞƉĂƌƟůŚŽƵ
ĂĨƌŝĐĂĞŶƚƌĞĂƐƉŽƚġŶĐŝĂƐŽĐŝĚĞŶƚĂŝƐ͕ƐĞŵƌĞƐƉĞŝƚĂƌŽƐĚŝǀĞƌƐŽƐŐƌƵƉŽƐƐŽĐŝŽĐƵůƚƵ-
rais que ali habitavam, de maneira que, os Estados modernos precisaram aprender
Ă ŚĂƌŵŽŶŝnjĂƌ͕ ĂƉſƐ ƐƵĂƐ ĞŵĂŶĐŝƉĂĕƁĞƐ ƉŽůşƟĐĂƐ͕ ĞƐƐĞƐ ŐƌƵƉŽƐ ƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕ ŽƌĂ
ƐĞƉĂƌĂĚŽƐ͕ŽƌĂƌĞƵŶŝĚŽƐƉŽƌĨƌŽŶƚĞŝƌĂƐƋƵĞŶĆŽƌĞƐƉĞŝƚĂŵƐĞƵƐĞƐƉĂĕŽƐŽƌŝŐŝŶĄƌŝŽƐ͘
͕ĞŵŵĞŝŽĂĞƐƐĞƐĐŽŶŇŝƚŽƐ͕ƋƵĞĂ͞ĐƵůƚƵƌĂ͟ĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĞŵƐƵĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞ
Nação formada por nações – algumas de fora, outras de dentro –, vai se mesclando,
miscigenando, hibridizando.
A literatura que nasce/se desenvolve em Moçambique, toma como ponto
ĚĞƉĂƌƟĚĂƚĂŶƚŽĂƚƌĂĚŝĕĆŽĞƵƌŽƉĞŝĂʹĂĞƐĐƌŝƚĂʹ͕ƚƌĂnjŝĚĂĞĂĚŽƚĂĚĂƉĞůĂƐƉƌŝŵĞŝƌĂƐ
ĞůŝƚĞƐŝŶƚĞůĞĐƚƵĂŝƐ͕ƋƵĂŶƚŽĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĂƚĞƌƌĂ͘ŵƵŵƉƌŝŵĞŝƌŽŵŽŵĞŶƚŽ͕
ĞůĂĠĂǀŽnjĚŽĚŝƐĐƵƌƐŽĐŽůŽŶŝĂů͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽƵŵƉĂşƐŵĂŝƐĞdžſƟĐŽĚŽƋƵĞƌĞĂůĞ
ůĞǀĂŶĚŽĂƚĠĂŵĞƚƌſƉŽůĞƵŵĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞŵĂŝƐůŝƚĞƌĄƌŝĂĚŽƋƵĞĨĂƚƵĂů͘ĞƉŽŝƐ͕ĞƐƐĂ
literatura age como desconstrutora do discurso colonial, produzida por uma elite
João Olinto Trindade Junior
gradualmente assimilada à terra. Em seus textos, os primeiros intelectuais moçam-
bicanos, ao imaginarem sua terra de maneira diferente, denunciavam a realidade
colonial, contando outras histórias sobre outros povos, não apenas enfocando a
ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂĞŵĨƌŝĐĂ͘ŶĞƐƐĞĐŽŶƚĞdžƚŽƋƵĞ͕ůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕Ă͞ƉĄƚƌŝĂ͟
moçambicana – ainda mais imaginada do que real (ANDERSON, 2008. p. 32) –, em-
ďŽƌĂĞŵƵŵƉƌŝŵĞŝƌŽŵŽŵĞŶƚŽŶĆŽĂďƌĂŶŐĞƐƐĞƋƵĞƐƚƁĞƐĚĞĞŵĂŶĐŝƉĂĕĆŽƉŽůşƟĐĂ͕
ĞƌĂĂůŵĞũĂĚĂ͕ĚĞƐĞũĂĚĂ͘'ƌĂĚƵĂůŵĞŶƚĞ͕ĞƐƐĞƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ͕ƚĂŶƚŽĂƐƐŝŵŝůĂĚŽƐƋƵĂŶƚŽ
naturais da terra, servem-se da língua do colonizador e do universo telúrico que os
cercam para representar a heterogeneidade do meio local.
Se o escritor é quem (tenta) traduz(ir) o que vê, é incoerente não considerar-
ŵŽƐƋƵĞŵŽůŚĂʹĂƋƵŝ͕ĞŶƚĞŶĚĞŶĚŽŽƐƵũĞŝƚŽƚĂŶƚŽĐŽŵŽŽĂĨƌŝĐĂŶŽͬŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͕
quanto os de fora, como o português – e como olha a realidade – sua postura em
relação ao meio que habita, aqui, Moçambique . Não obstante, se, por um lado,
temos o escritor que se apropria no meio como pano de fundo para sua compo-
ƐŝĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂʹƉŽƌǀĞnjĞƐ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽͲŽǀŝĂĞdžŽƟƐŵŽʹ͕ƉŽƌŽƵƚƌŽ͕ƚĞŵŽƐŽĞƐ-
critor como intelectual de uma cultura que transmite suas denúncias através de
ƐĞƵƐƚĞdžƚŽƐ͘^ĆŽĞƐƐĞƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐͬŝŶƚĞůĞĐƚƵĂŝƐƋƵĞ͕ĂŽĐĂŶƚĂƌƵŵĂƉĄƚƌŝĂŝŵĂŐŝŶĂĚĂ͕
sonhar uma Moçambique diferente daquela promovida pelo discurso colonial, con-
tribuíram tanto para seu processo de independência, quanto para a ideia de uma
Moçambique mais “moçambicana”, diferente da ideia que era divulgada acerca da
terra pelo poder vigente.
À medida que essa literatura amadureceu, surgiram questões anteriormen-
ƚĞŶĆŽƚĆŽƌĞůĞǀĂŶƚĞƐ͕ĐŽŵŽĂĚĂůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞ͘ƋƵŝ͕ƉŽĚĞƌşĂŵŽƐĚŝnjĞƌƋƵĞĞƐƐĂĠ
ƵŵĂ ƋƵĞƐƚĆŽ ĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂ Ğ͕ ĂŽ ŵĞƐŵŽ ƚĞŵƉŽ͕ ŵĂŝƐ ĂŶƟŐĂ͕ ƵŵĂ ǀĞnj ƋƵĞ͕ ĂŽ
observarmos os estudos de Francisco Noa (2002), vemos como ele aponta tanto
ƵŵĂƋƵĂůŝĚĂĚĞŶĂĐŽůŽŶŝĂůŝĚĂĚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ƋƵĂŶƚŽďƌĞǀĞƐʹŵĂƐĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐʹĞdžƉƌĞƐ-
ƐƁĞƐ ĚĞ ͞ůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͟ ŶĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ĐŽůŽŶŝĂů͘ ŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ ŽƉƚĂŵŽƐ
por nos prender à literatura pós-colonial, na qual se faz presente a discussão sobre
ƵŵĂůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞĚĂŶĂĕĆŽĞĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͘ƋƵĞƐƚĆŽƐŽďƌĞƵŵĞƐĐƌŝƚŽƌƋƵĞĨĂůĂĞŵ
DŽĕĂŵďŝƋƵĞŽƵĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞƐĞĨĂnjƉƌĞƐĞŶƚĞ͕ĞŵďŽƌĂƐĞũĂ͕ĂŶŽƐƐŽǀĞƌ͕ƵŵĂ
ƋƵĞƐƚĆŽƚƌĂnjŝĚĂĚĞĨŽƌĂʹĂƋƵŝ͕ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐĐŽŵŽĂĐƌşƟĐĂƋƵĞ͞ĐŽďƌĂ͟ƵŵĂ͞ĂƵƚĞŶ-
ƟĐŝĚĂĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂ͟ĠĚĞĨŽƌĂ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ƌĞĨĞƌŝŵŽͲŶŽƐĂŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƋƵĞ
só ganham certa notoriedade quando seus livros são vendidos para fora de seu país
de origem –, e de dentro, ao analisarmos que literatura chega até nós e o quanto ela
ƉŽĚĞƐĞƌĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚĂ͞ůĞŐŝƟŵĂŵĞŶƚĞ͟ĂĨƌŝĐĂŶĂ͘
DŝĂŽƵƚŽƋƵĞ͕ĂŽƐĞĂƐƐƵŵŝƌĐŽŵŽŚşďƌŝĚŽ͕ĂƉƌŽƉƌŝĂͲƐĞĚĞƚŽĚĂƵŵĂƚƌĂ-
ĚŝĕĆŽƋƵĞĞŶǀŽůǀĞĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐĚĞƐƐĂƚĞƌƌĂĚĞĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐĞŽƵƚƌĂ͕ĚĞĞƐĐƌŝ-
ƚŽƌĞƐĞŝŶƚĞůĞĐƚƵĂŝƐƋƵĞƐĞƉƌŽƉƵƐĞƌĂŵĂƉĞŶƐĂƌĂŶĂĕĆŽ͘ŵďŽƌĂƐĞũĂĚĞƐĐĞŶĚĞŶƚĞ
de colonos portugueses e, branco – e essa é uma questão que é cara ao se pensar
ƐĞƌŝĂŵĞŶƚĞĂĐĞƌĐĂĚĞƵŵĂƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚĂ͞ůĞŐŝƟŵŝĚĂĚĞ͟ĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ƐŽďƌĞƵŵĂĂĨƌŝĐĂŶŝ-
ĚĂĚĞƐĞƌƵŵƉƌŽďůĞŵĂĚĞĐŽƌŽƵĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽĞĂƐƐŝŵŝůĂĕĆŽʹ͕ĂŽĂƐƐƵŵŝƌĂŵĞƐƟĕĂ-
ŐĞŵĞ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ŐĞƌĂƌƚŽĚĂƐƵĂŽďƌĂ͕ĞůĞůĞŐŝƟŵĂŽƉĂƉĞůĚĞĞƐĐƌŝƚŽƌ
e pensador da terra, à medida que se posiciona para ser levado a sério. Sua obra
44 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĮĐĐŝŽŶĂůʹƉŽĚĞƌşĂŵŽƐ͕ĂƚĠ͕ĚŝnjĞƌŝŶƚĞůĞĐƚƵĂů͕ũĄƋƵĞĞůĞĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞ
como algo além de um país africano, mas um país em uma sociedade ocidental pós-
-colonial, representando, através de seu pensamento, suas facetas no tempo e no
ĞƐƉĂĕŽʹ͕ƚĂůƋƵĂůŽŵŽƐĂŝĐŽƋƵĞĚĞĨĞŶĚĞƐĞƌƐĞƵƉĂşƐ͕ƐĞĂĮƌŵĂĐŽŵŽŚĞƌĚĞŝƌĂĚĞ
ǀĄƌŝĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐ͕ĚĞĚĞŶƚƌŽĞĚĞĨŽƌĂ͘
͕ĞŵƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽƉĂƌĂĞŵĂŶĐŝƉĂƌĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂʹĞĚĞƐǀŝŶĐƵůĄͲůĂĚĞŽƵƚƌŽ
ĚŝƐĐƵƌƐŽ͕ŵĂŝƐƉĂŶŇĞƟƐƚĂʹ͕ƋƵĞDŝĂŽƵƚŽƐĞĂƉƌŽƉƌŝĂŶĆŽĂƉĞŶĂƐĚĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐ
ŵĂƐ͕ǀŝĂƚƌŽĐĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕ƌĞĐŽƌƌĞĂĞƐƚĠƟĐĂƐůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂƐ͕ǀĂůĞŶĚŽͲƐĞĚĞǀŝĞƐĞƐ
ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ ʹ Ğŵ ĞƐƉĞĐŝĂů͕ ĚŽ ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ Ğ ƐƵĂ ĂƚƵĂůŝnjĂĕĆŽ Ğŵ ĨƌŝĐĂ͕ Ž
Real-Animismo –, como uma das possibilidades de representar essa Moçambique
utópica, mais “moçambicana”.
Moçambique
ŽŵŽũĄĂĮƌŵĂĂƌŵĞŶdŝŶĚſ^ĞĐĐŽ͕ĂƌĞŐŝĆŽĞŵƋƵĞƐĞĞŶĐŽŶƚƌĂŽƐƚĂĚŽ
ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ Ġ ŵĂƌĐĂĚĂ ƉĞůĂ ŵƵůƟƉůƵƌĂůŝĚĂĚĞ ĚĞ ƉŽǀŽƐ ƋƵĞ ĨŽƌĂŵ ƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞŝƐ
ƉŽƌƐƵĂĨŽƌŵĂĕĆŽ͕ĚĞƐĚĞŶĞŐƌŽƐďĂŶƚŽƐ͕ƉĂƐƐĂŶĚŽƉŽƌĄƌĂďĞƐ͕ĂƚĠƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐ͕Ă
exemplo dos marinheiros comandados por Vasco da Gama, que aportaram na Ilha
de Moçambique em 1498 (1999, p. 10). O africanólogo Alberto da Costa e Silva vai
ŵĂŝƐĂůĠŵ͕ĂŽĂƚĞŶƚĂƌƉĂƌĂĂǀŝƐŝƚĂͬƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽĚĞƌŽŵĞŶŽƐ͕ƉĞƌƐĂƐ͕ĐŚŝŶĞƐĞƐ͕ĐŝŶ-
galeses, indonésios e indianos na formação do mosaico étnico que compõe a região
(1996, p. 343).
dĞŶĚŽƉŽƌŽďũĞƟǀŽƉƌŝŶĐŝƉĂůĂůĐĂŶĕĂƌĂ1ŶĚŝĂʹĞŽĐĂŵŝŶŚŽĂƚĠĞůĂʹ͕ŽƐƉŽƌ-
ƚƵŐƵĞƐĞƐƋƵĞĐŚĞŐĂŵăƋƵĞůĂƌĞŐŝĆŽĞŵĮŶƐĚŽƐĠĐƵůŽysĞdžƉƵůƐĂŵĚĂůŝŽƐŵĞƌĐĂĚŽ-
res orientais, sem a intenção, a princípio, de colonizar, mas de explorar, dominando
ĂƐƉŽƉƵůĂĕƁĞƐŶĂƟǀĂƐ͘ƐƐĂƉƌĄƟĐĂƉĞƌĚƵƌŽƵĂƚĠŽƐĠĐƵůŽys///͕ĞŵƚŽĚĂƐĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ
ĚĞĨƌŝĐĂ͕ƋƵĂŶĚŽ͕ĂŽůŽŶŐŽĚŽKŝƚŽĐĞŶƚŽƐ͕ĚĞǀŝĚŽĂƵŵĂƐĠƌŝĞĚĞĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ͕
Portugal acaba voltando sua atenção para seus territórios africanos. Foram fatores
ĚĞĐŝƐŝǀŽƐƉĂƌĂŝƐƐŽŽĮŵĚŽƚƌĄĮĐŽŶĞŐƌĞŝƌŽĞĂƉĞƌĚĂĚĞƐƵĂŵĂŝŽƌĐŽůƀŶŝĂ͕ŽƌĂƐŝů͕
tornado independente em 1822. Segundo Carmen Tindó Secco:
A ação lusitana, de 1505 a 1693, foi a de explorar o ouro, de
ϭϲϵϯ Ă ϭϳϱϬ͕ Ž ŵĂƌĮŵ͖ Ğ͕ ĚĞ ϭϳϱϬ Ă ϭϴϲϬ͕ Ž ƚƌĄĮĐŽ ŶĞŐƌĞŝƌŽ͘
Em 1751, os portugueses, voltados apenas ao comércio de es-
cravos, deixaram a administração de Moçambique a cargo da
1ŶĚŝĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ;'ŽĂͿ͕ƌĂnjĆŽƋƵĞĞdžƉůŝĐĂŽŐƌĂŶĚĞŶƷŵĞƌŽĚĞ
indianos no território moçambicano. Só após 1860, cessada a es-
ĐƌĂǀĂƚƵƌĂ͕WŽƌƚƵŐĂůǀŽůƚŽƵͲƐĞƉĂƌĂƐƵĂƐĐŽůƀŶŝĂƐŶĂĨƌŝĐĂ͕ŝŶƚĞŶ-
ƐŝĮĐĂŶĚŽĂĂĕĆŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌĂ͕ŵĂƐĐŽŶƟŶƵŽƵĂĞŶĨƌĞŶƚĂƌ͕ĂŝŶĚĂ͕
ĚŝǀĞƌƐĂƐƌĞĂĕƁĞƐĚĂƐƉŽƉƵůĂĕƁĞƐŶĂƟǀĂƐ͘;ϭϵϵϵ͕Ɖ͘ϭϮͿ
ƚƌĂǀĠƐĚĞƉŽůşƟĐĂƐĂƐƐŝŵŝůĂƚſƌŝĂƐ͕WŽƌƚƵŐĂůƚĞŶƚĂŝŵƉŽƌƐĞƵƐǀĂůŽƌĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐ
ĂŽƐ ƉŽǀŽƐ ĂƵƚſĐƚŽŶĞƐ ĚĞ ĨƌŝĐĂ͕ ĚĂŶĚŽ͕ ĂƐƐŝŵ͕ Ž ĞƐƚĂƚƵƚŽ ĚĞ ͞ĂƐƐŝŵŝůĂĚŽƐ͟ ăƋƵĞůĞƐ
ISBN 978-85-8199-013-2 45
João Olinto Trindade Junior
ƋƵĞĂďƌŝƐƐĞŵŵĆŽĚĞƐƵĂĐƵůƚƵƌĂŽƌŝŐŝŶĄƌŝĂĞŵƉƌŽůĚĂ͞ŵĂŶĞŝƌĂĚĞƐĞƌĚŽƉŽǀŽƉŽƌ-
tuguês”, conforme denunciado por Albert Memmi, ao falar da imagem que o coloni-
zador cria do colonizado, ao longo do Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do
Colonizador;ϭϵϳϳͿ͘KŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĂůŝŵĞŶƚĂǀĂĂŝĚĞŝĂĚĞƋƵĞŽƐW>KWŶĆŽ
poderiam sobreviver sem o Império (ultramarino), e procurava-se, assim, criar, nas co-
ůƀŶŝĂƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐ͕Ƶŵ͞EŽǀŽƌĂƐŝů͘͟
DĞƐŵŽ Ğŵ ŵĞĂĚŽƐ ĚŽ ƐĠĐƵůŽ y/y͕ Ă ƉƌĞƐƐĆŽ ƉŽůşƟĐĂ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ ĂŝŶĚĂ
ĞƌĂ ƉĞƋƵĞŶĂ Ğŵ ĨƌŝĐĂ͕ ŚĂǀĞŶĚŽ ŵĂŝƐ ŶŝĐŚŽƐ ĚĞ ŶĞŐŽĐŝĂĕĆŽ ĚŽ ƋƵĞ͕ ĞĨĞƟǀĂŵĞŶ-
ƚĞ͕ ŝŵƉŽƐŝĕĆŽ ĚĞ ƵŵĂ ƉŽůşƟĐĂ ĚĂ ŵĞƚƌſƉŽůĞ ƐŽďƌĞ ĂƐ ĐŽůƀŶŝĂƐ͘ ƚĠ Ž ƐĠĐƵůŽ ys//͕
Moçambique foi usado, essencialmente, como apoio à rota de especiarias para
Ă 1ŶĚŝĂ͕ ƐĞŶĚŽ ƋƵĞ͕ Ɛſ ŶŽ ŝŶŝĐŝŽ ĚĞƐƐĞ ƐĠĐƵůŽ͕ Ž ƚĞƌƌŝƚſƌŝŽ ĚŽ ǀĂůĞ ĚŽ ĂŵďĞnjĞ ʹ
ŽŶĚĞƐĞůŽĐĂůŝnjĂǀĂŽƌĞŝŶŽĚŽDŽŶŽŵŽƚĂƉĂ͕ĐƵũĂƐƚĞƌƌĂƐĐŽŵƉƁĞŵŐƌĂŶĚĞƉĂƌƚĞĚĞ
Moçambique atualmente, envolvendo, ainda, outros mais Estados, e de que fala
Mia Couto em O Outro Pé da Sereia (2006) – é explorado pelos portugueses com
ĂĮŶĐŽ;K^d^/>s͕ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϲϮϲͲϲϮϳͿ͘
ŽŵĂƉŽůşƟĐĂŝŵƉĞƌŝĂůŝƐƚĂĞƵƌŽƉĞŝĂĚŽƐĠĐƵůŽy/yŶŽĂƵŐĞ͕ŽƐƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐĐŽ-
ůŽŶŝĂŝƐƉĂƐƐĂƌĂŵĂĮŐƵƌĂƌĐŽŵŽĞƐƉĂĕŽƐŽŶĚĞƐĞƌŝĂŵĞƐƚĂďĞůĞĐŝĚŽƐŶŽǀŽƐŵĞƌĐĂĚŽƐ
ĐŽŶƐƵŵŝĚŽƌĞƐ͘ƌŝĐ:͘,ŽďƐďĂǁŵ͕ŚŝƐƚŽƌŝĂĚŽƌďƌŝƚąŶŝĐŽĚĞƚƌĂĚŝĕĆŽŵĂƌdžŝƐƚĂ͕ĂƉŽŶƚĂ
como, durante esse período, “a maior parte do mundo à exceção da Europa e da
América foi formalmente dividida em territórios sob governo direto ou sob domina-
ĕĆŽƉŽůşƟĐĂŝŶĚŝƌĞƚĂĚĞŽƵƚƌŽƐƚĂĚŽ͟;ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϴϴͿ͘
A conferência de Berlim, realizada em 1885, delimita, grosso modo, a
ŐĞŽŐƌĂĨŝĂĂƚƵĂůĚĂƐĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͕ƋƵĂŶĚŽĂ/ŶŐůĂƚĞƌƌĂƉƌŽŵŽǀĞĂŽĐƵƉĂ-
ção do continente africano, alegando que o direito às referidas terras “deveria
provar-se pela posse presente, atestada por guarnições de soldados e não por
ĂƌŐƵŵĞŶƚŽƐŚŝƐƚſƌŝĐŽƐ͟;^Z/s͕ϭϵϴϳ͕Ɖ͘ϯϰϭͿ͘sĄƌŝŽƐŽƵƚƌŽƐƉĂşƐĞƐƚŽŵĂƌĂŵ
ĂƚŝƚƵĚĞŝĚġŶƚŝĐĂ͕ŝŶĐůƵŝŶĚŽŽƐh;dDEZ͕ƐͬĚͿ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞ͕ĂƉĂƌƚŝƌ
daí, realizaram-se profundas mudanças na organização sócio-espacial do conti-
nente e, consequentemente, nas culturas locais (COSTA E SILVA, 2002). O pes-
quisador congolense Kabengele Munanga faz uma importante observação sobre
as consequências dessa atitude para a realidade daqueles povos:
ŽŵĂƉĞŶĞƚƌĂĕĆŽĐŽůŽŶŝĂů͕ĂƐĨŽƌŵĂĕƁĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐƟ-
veram novos problemas. As fronteiras em linhas retas traçadas
Ă ƉĂƌƟƌ ĚŽƐ ŵĂƉĂƐ ŶĂ ŽŶĨĞƌġŶĐŝĂ ĚĞ Ğƌůŝŵ ĚŝǀŝĚŝƌĂŵ ǀĄƌŝŽƐ
povos, fragmentando suas formações culturais entre mais de
Ƶŵ ƚĞƌƌŝƚſƌŝŽ ĐŽůŽŶŝĂů ĞƵŶŝĮĐĂŶĚŽ ĚŝǀĞƌƐĂƐ ĐƵůƚƵƌĂƐ ĚĞŶƚƌŽ ĚĞ
um território colonial. Nessa operação, o de desfazer e refazer,
desestruturar e reestruturar, o colonizador explorou também as
ĚŝĨĞƌĞŶĕĂƐĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐĞŶƚƌĞŽƐƉŽǀŽƐƌĞƵŶŝĚŽƐ͕ĂƟĕĂŶĚŽƌŝǀĂůŝĚĂ-
ĚĞƐĞŽƉŽƐŝĕƁĞƐĞŶƚƌĞĞůĂƐŶŽĞƐƉşƌŝƚŽĚĂƉŽůşƟĐĂĚĞĚŝǀŝĚŝƌƉĂƌĂ
ĚŽŵŝŶĂƌ͘ĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚĂƐƌŝǀĂůŝĚĂĚĞƐĞŽƉŽƐŝĕƁĞƐĂƐƐŝŵĂƟ-
ĕĂĚĂƐ͕ŶĂƐĐĞƵŽĨĞŶƀŵĞŶŽďĂƟnjĂĚŽĚĞƚƌŝďĂůŝƐŵŽ͕ƵŵĐŽŶĐĞŝƚŽ
ƉŽďƌĞ͕ ŝĚĞŽůŽŐŝĐĂŵĞŶƚĞ ĐĂƌƌĞŐĂĚŽ Ğ ƋƵĞ ǀĞŵ ĚĞƐƋƵĂůŝĮĐĂƌ Ž
ƌŝĐŽĐŽŶƚĞƷĚŽĚĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĠƚŶŝĐĂƐĞĐƵůƚƵƌĂŝƐ͘;ϭϵϵϳ͕Ɖ͘ϮϵϳͿ
46 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƐƐĂƉĂƌƟůŚĂĚĞĨƌŝĐĂƌĞƐƵůƚŽƵŶĆŽĂƉĞŶĂƐŶĂƐĂƚƵĂŝƐĨƌŽŶƚĞŝƌĂƐĚŽƐŵŽĚĞƌ-
ŶŽƐĞƐƚĂĚŽƐĂĨƌŝĐĂŶŽƐŵĂƐ͕ƚĂŵďĠŵ͕ŶĂĂƚƵĂůĐĂƌƚŽŐƌĂĮĂƉŽůşƟĐĂĞŶŽƐĐŽŶŇŝƚŽƐĚĂş
ƌĞƐƵůƚĂŶƚĞƐ͘ŚĞƌĂŶĕĂĐŽůŽŶŝĂůƐĞƉĂƌŽƵŐƌƵƉŽƐĐƵůƚƵƌĂůĞͬŽƵŚŝƐƚſƌŝĐĂŵĞŶƚĞĂĮŶƐ
e reuniu, em um mesmo espaço, grupos diferentes e/ou opositores. O desconhe-
ĐŝŵĞŶƚŽĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞŐĞŽƉŽůşƟĐĂĚŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͕ƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽƐƉĂşƐĞƐĞƐƚƌĂŶŐĞŝƌŽƐ
ĞŶǀŽůǀŝĚŽƐ͕ĐŽŶƐŝĚĞƌĂŶĚŽͲƐĞĂƐƌĂşnjĞƐŚŝƐƚſƌŝĐĂƐůŽĐĂŝƐ͕ĂĐŝƌƌŽƵĂƐƌĞůĂĕƁĞƐ͕ũĄĐŽŶŇŝ-
tuosas e, em muitos casos, marcadas por sucessivas guerras étnicas.
O maior interesse dos invasores ali chegados era pelos espaços costeiros, de
ŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŵƵŝƚĂƐƋƵĞƐƚƁĞƐĚĞĨƌŽŶƚĞŝƌĂ͕ĞŶǀŽůǀĞŶĚŽƚĞƌƌĂƐĚŽĐĞŶƚƌŽĚŽĐŽŶƟ-
nente – sem, é claro, abdicar de, ainda, envolver terras da própria costa –, só foram
ƌĞƐŽůǀŝĚĂƐƉŽƐƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ͘WŽƌƚƵŐĂů͕ĂƉſƐƚĞƌƐĞƵƉƌŽũĞƚŽĚĞŝŶƚĞƌůŝŐĂƌŽƐŽĐĞĂŶŽƐ
ƚůąŶƟĐŽĞ1ŶĚŝĐŽ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƵŵĐĂŶĂůůŝŐĂŶĚŽŶŐŽůĂăDŽĕĂŵďŝƋƵĞʹŽĐŚĂŵĂĚŽ
͞DĂƉĂŽƌĚĞZŽƐĂ͟ʹ͕ǀĞƚĂĚŽƉĞůŽƐƉĂƌƟĐŝƉĂŶƚĞƐĚĂŽŶĨĞƌġŶĐŝĂĚĞĞƌůŝŵ͕ǀŽůƚĂͲƐĞ
ŵĂŝƐĂƟǀĂŵĞŶƚĞƉĂƌĂƐƵĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ŶƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞŵĂŶƚĞƌŽƐƷůƟŵŽƐƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐ
no ultramar.
ƐƐĂ ŽĐƵƉĂĕĆŽ ůĞǀŽƵ͕ ăƐ ĐŽůƀŶŝĂƐ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ Ğŵ ĨƌŝĐĂ͕ Ƶŵ ƐŝƐƚĞŵĂ ĐƵũĂ
ƉƌŝŶĐŝƉĂůĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂĞƌĂŽĚƵĂůŝƐŵŽ͕ĞƐƚĂďĞůĞĐĞŶĚŽƌĞůĂĕƁĞƐĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐĚŝĐŽƚŽ-
ŵŝĂƐďƌĂŶĐŽͬƉƌĞƚŽ͕ŽƌĂůŝĚĂĚĞͬĞƐĐƌŝƚĂ͕ƐƵƉĞƌƐƟĕĆŽͬƌĞůŝŐŝĆŽ͕ĐƵůƚƵƌĂͬďĂƌďĄƌŝĞ͘&ƌĂŶƚnj
&ĂŶŽŶ͕ƉĞŶƐĂĚŽƌĂŶƟůŚĂŶŽƋƵĞƚĞŵƐĞĚĞĚŝĐĂĚŽĂƌĞŇĞdžƁĞƐĂĐĞƌĐĂĚĂĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂ-
ção africana, expõe uma opinião bem adequada sobre a questão:
O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de
corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos po-
ůŝĐŝĂŝƐ͘ EĂƐ ĐŽůƀŶŝĂƐ͕ Ž ŝŶƚĞƌůŽĐƵƚŽƌ ůĞŐşƟŵŽ Ğ ŝŶƐƟƚƵĐŝŽŶĂů ĚŽ
colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o
policial ou o soldado. (2005, p.54)
ƐƐĂƐĚŝĐŽƚŽŵŝĂƐƐĆŽĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƐĂƐĞƌĞŵĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚĂƐŶŽĐŽůŽŶŝĂ-
ůŝƐŵŽƉŽƌƚƵŐƵġƐ͕ƉŽŝƐĞŶǀŽůǀĞŵƐĞƵĞƚŶŽĐĞŶƚƌŝƐŵŽ͕ĐƌŝĂĚŽĂƉĂƌƟƌĚĞŝĚĞŝĂƐĚĞŽƉŽ-
sição como desigualdade e racismo.
<ǁĂŵĞŶƚŚŽŶLJƉƉŝĂŚ͕ĮůſƐŽĨŽĞĞƐĐƌŝƚŽƌƋƵĞĚĞƐĞŶǀŽůǀĞĞƐƚƵĚŽƐƐŽďƌĞ
ĐƵůƚƵƌĂ Ğ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ ĞdžƉůŝĐĂ ƋƵĞ ĞƐƐĂ ĂƟƚƵĚĞ ĞƚŶŽĐĞŶƚƌŝƐƚĂ ʹ ŽƵ ĞƵƌŽĐĞŶƚƌŝƐƚĂ͕
levando-se em conta o lugar de onde e para onde olhamos – ocorre quando são
ĚĞĮŶŝĚĂƐ͞ĚŝĨĞƌĞŶĕĂƐŵŽƌĂŝƐĞŶƚƌĞŽƐŵĞŵďƌŽƐĚĂƐĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐƌĂĕĂƐ͕ƉŽƌĂĐƌĞĚŝƚĂ-
rem que cada raça tem um status moral diferente, independentemente das carac-
ƚĞƌşƐƟĐĂƐƉĂƌƟůŚĂĚĂƐƉŽƌƐĞƵƐŵĞŵďƌŽƐ͟; ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϯϱͿ͘dƌĂƚĂͲƐĞĚĞƵŵĂĂƟƚƵĚĞ
sempre aliada a um grupo ou ideologia dominante.
Logo após a Conferência de Berlim, tendo em vista as deliberações nela to-
ŵĂĚĂƐƉĞůŽƐƉĂşƐĞƐƉĂƌƟĐŝƉĂŶƚĞƐ͕ĐŽŵĞĕĂ͕ĚĞĨĂƚŽ͕ĂŽĐƵƉĂĕĆŽĚĂƐĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵ-
ŐƵĞƐĂƐĞŵĨƌŝĐĂ͕ƚĞŶĚŽĞŵǀŝƐƚĂƋƵĞ͕ĂƚĠĞŶƚĆŽ͕ŽƐƉŽƐƚŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐĞŶĐŽŶƚƌĂ-
ǀĂŵͲƐĞ͕ŵĂũŽƌŝƚĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕ĞŵnjŽŶĂƐůŝƚŽƌąŶĞĂƐ͕ĂƉĂƌƟƌĚĞŽŶĚĞĞůĞƐŶĞŐŽĐŝĂǀĂŵ
ĐŽŵŽƐƉŽǀŽƐĚŽŝŶƚĞƌŝŽƌ͘KĐŽƌƌĞ͕ĂƐƐŝŵ͕ƵŵŐƌĂŶĚĞŝŶǀĞƐƟŵĞŶƚŽŶĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ĨƵŶ-
ĚĂŶĚŽŝŵƉƌĞŶƐĂ͕ĞƐĐŽůĂƐĞŝŶƐƟƚƵŝŶĚŽĂůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂĐŽŵŽŽĮĐŝĂů͘
ISBN 978-85-8199-013-2 47
João Olinto Trindade Junior
Referindo-se a invasões, imposições e tomadas de territórios, Norberto do
sĂůĞĂƌĚŽƐŽĚĞŶƵŶĐŝĂĐŽŵŽŽĚĞƐĞũŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĚĞĐŽŶƋƵŝƐƚĂƚĞǀĞƐĞŵƉƌĞĐŽŵŽ
ũƵƐƟĮĐĂƟǀĂĂŵŝƐƐĆŽĐŝǀŝůŝnjĂƚſƌŝĂƌĞůŝŐŝŽƐĂʹŽĂŶƟŐŽƉƌŽũĞƚŽĚŽ͞/ŵƉĠƌŝŽĚĂ&Ġ͟ʹ͕
ŶŽƋƵĂůĂĚŽŵŝŶĂĕĆŽĞƌĂĨĞŝƚĂĞŵŶŽŵĞĚĞĞƵƐ͘ƉƌſƉƌŝĂĨŽƌŵĂĕĆŽĚĂŝĚĞŶƟĚĂ-
de portuguesa tem como alicerce mitos que apontam para a origem de um povo
com a vocação de espalhar a fé pelo mundo (Ferraz, apud CARDOSO, 2004, p. 161).
^ĞŐƵŶĚŽĂƌĚŽƐŽ͕͞ŚĄƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞŵƵŝƚŽƉĞĐƵůŝĂƌƋƵĞŵĂƌĐĂŽŵŽĚŽĚĞƐĞƌƉŽƌ-
ƚƵŐƵġƐ͕ƋƵĞƐĞďĂƐĞŝĂĞŵŝƌƌĞĂůŝƐŵŽƐ͕ŝŶǀĞŶĕƁĞƐ͕ĐĂƌġŶĐŝĂĚĞƌĞŇĞdžĆŽ͕Ğ͕ƐŽďƌĞƚƵĚŽ͕
recalcamento de traumas” (2004, p. 161).
Somente após a Segunda Guerra Mundial, tornar-se-ia mais evidente a fra-
ŐŝůŝĚĂĚĞĚŽƐŝƐƚĞŵĂĞĐŽŶƀŵŝĐŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ďĞŵĐŽŵŽŶĂƐĚĞŵĂŝƐ
ĐŽůƀŶŝĂŝƐ͕Ğ͕ĐŽŵŽĮŵĚĂWƌŝŵĞŝƌĂZĞƉƷďůŝĐĂ͕ĞŵϭϵϮϲ͕ŝŶƐƚĂƵƌĂƌͲƐĞͲŝĂƵŵƌĞŐŝŵĞĚĞ
ditadura militar – coroado pelo salazarismo –, que se estende até o 25 abril de 1974,
conhecido mundialmente como dia da Revolução dos Cravos.
ƐƐĞƐƚĂĚŽEŽǀŽĞƐƚĂďĞůĞĐĞƵŵĞĚŝĚĂƐǀŝƐĂŶĚŽĂƵŵĂŵĂŝŽƌƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽĚĂ
ŵĞƚƌſƉŽůĞŶĂƐĐŽůƀŶŝĂƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐ͕ĂƵŵĞŶƚĂŶĚŽŽƐƉŽĚĞƌĞƐĚŽDŝŶŝƐƚƌŽĚĂƐŽůƀŶŝĂƐ͕
ŶƚſŶŝŽĚĞKůŝǀĞŝƌĂ^ĂůĂnjĂƌ͘ƉŽůşƟĐĂĐŽůŽŶŝĂůƚŽƌŶŽƵͲƐĞŵĂŝƐƌşŐŝĚĂ͕ƐƵďƐƟƚƵŝŶĚŽĂƐ
autonomias locais pelas mãos fortes do Estado salazarista. Em resposta aos protes-
tos, tanto no campo, quanto na cidade, o governo acentuava ainda mais as medidas
ƌĞƉƌĞƐƐŝǀĂƐ͕ŶĂŵĂŝŽƌŝĂĚĂƐǀĞnjĞƐ͕ƌĞĐŽƌƌĞŶĚŽăǀŝŽůġŶĐŝĂİƐŝĐĂ͕ŽƋƵĞŝŵƉůŝĐŽƵĞƐ-
pancamentos e mortes.
A Segunda Guerra Mundial foi um dos primeiros fatores decisivos que cul-
ŵŝŶĂƌŝĂŵŶĂƐŐƵĞƌƌĂƐĚĞŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂĞůŝďĞƌƚĂĕĆŽĚĂƐĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͕ĐƵũĂ
ĐŽŶĐƌĞƟnjĂĕĆŽƐſĨŽŝƉŽƐƐşǀĞůĂƉſƐŽϮϱĚĞďƌŝů͕ƋƵĂŶĚŽƐĞƉƀƐĮŵĂŽƐƌĞƐƋƵşĐŝŽƐĚŽ
ƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͘ƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽĚĞƐŽůĚĂĚŽƐŶĞŐƌŽƐŶĂ^ĞŐƵŶĚĂ'ƵĞƌƌĂDƵŶĚŝĂů
ƉƌŽƉŽƌĐŝŽŶŽƵͲůŚĞƐ ŶŽǀĂƐƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƐĨƌĞŶƚĞăƌĞůĂĕĆŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƐͬĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌĞƐ͕
uma vez que brancos e negros lutavam lado a lado no front. Além disso, a criação
da ONU e o fortalecimento dos nacionalismos africanos – combinados com a pres-
ƐĆŽƋƵĞŽƵƚƌŽƐƉĂşƐĞƐĮnjĞƌĂŵƐŽďƌĞWŽƌƚƵŐĂů͕ĐŽŶƚƌĄƌŝŽƐăŵĂŶƵƚĞŶĕĆŽĞĚŽŵşŶŝŽ
de seus territórios ultramarinos –, paralelamente à formação, em primeiro lugar,
de uma elite mulata e, posteriormente, de uma elite negra, formada na Casa dos
Estudantes do Império – CEI – em Portugal, foram essenciais para esse período de
ƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂ͘ĂďĞĚĞƐƚĂĐĂƌĂĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽƋƵĞŽƐŵŝůŝƚĂŶƚĞƐŽƌŝƵŶĚŽƐĚĂ
/ƟǀĞƌĂŵĚƵƌĂŶƚĞŽƉĞƌşŽĚŽĚĂƐŐƵĞƌƌĂƐĚĞŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͘sĄƌŝŽƐůşĚĞƌĞƐƉŽůşƟĐŽƐ
ĚĂƐŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐʹĐŽŵŽŐŽƐƟŶŚŽEĞƚŽĞŵşůĐĂƌĂďƌĂůĞƐĐƌĞǀĞƌĂŵ
ĞƉƵďůŝĐĂƌĂŵƐĞƵƐĞŶƐĂŝŽƐƉŽůşƟĐŽƐ͘ŽŵŽĐŽŶƚĂDĄƌŝŽW͘ĚĞŶĚƌĂĚĞ͕
A CEI, Casa do Estudante do Império, era a associação que agru-
ƉĂǀĂ ƚŽĚŽƐ ŽƐ ŽƌŝŐŝŶĄƌŝŽƐ ĚŽƐ ƉĂşƐĞƐ ĚŽ /ŵƉĠƌŝŽ͕ ĐŽŵŽ Ž ƐĞƵ
ŶŽŵĞ ŝŶĚŝĐĂ͕ Ğ ƋƵĞ ƉĞƌŵŝƟĂ ƵŵĂ ĂĕĆŽ ĂƐƐŽĐŝĂƟǀĂ͕ ĚĞ ƚĞŵƉŽƐ
livres, mas igualmente uma ação cultural, porque havia uma
revista, a revista Mensagem, e conferências. E depois havia um
público largo de estudantes africanos de diversas origens raciais.
(...) No nosso grupo, a que chamo sempre a “geração de Cabral”,
48 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ŚĂǀŝĂ ƐŽďƌĞƚƵĚŽ ŵşůĐĂƌ ĂďƌĂů͕ ŐŽƐƟŶŚŽ EĞƚŽ͕ ,ƵŵďĞƌƚŽ
Machado, Noémia de Sousa, Alda do Espírito Santo, Francisco
:ŽƐĠdĞŶƌĞŝƌŽ͕ŵĂƐŽƐŵĂŝƐƉŽůŝƟnjĂĚŽƐĞƌĂŵŵşůĐĂƌ͕EĞƚŽĞ͕ƐƵ-
ƉŽŶŚŽƐĞŵĨĂůƐĂŵŽĚĠƐƟĂ͕ĞƵƉƌſƉƌŝŽ͕ƋƵĞĞƐƚĄǀĂŵŽƐŵĂŝƐĂƉĂƌ
ĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƉŽůşƟĐĂĚĞŶŽƐƐŽƐƉĂşƐĞƐ͘ŽŶƐƟƚƵşͲŵŽͲŶŽƐĞŵŐƌƵ-
ƉŽĚĞƉĞŶƐĂŵĞŶƚŽ͘;EZ͕DĄƌŝŽ͘/Ŷ͗>E͕ϭϵϵϳ͕Ɖ͘ϲϴͿ
ŵƐƵĂŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞDĞƐƚƌĂĚŽ͕ŝŶƟƚƵůĂĚĂYaka, ou um texto tecendo a na-
ção ;ϭϵϵϱͿ͕ĂƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĂďƌĂƐŝůĞŝƌĂDĂƌŝĂ'ĞƌĂůĚĂĚĞDŝƌĂŶĚĂŝƌĄ ĚŝƐĐŽƌĚĂƌǀĞĞ-
ŵĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚĞƋƵĞĂůŝďĞƌƚĂĕĆŽĚĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƚĞŶŚĂƐŝĚŽƉƌŽĚƵƚŽĂƉĞŶĂƐĚĂŐƵĞƌ-
ra colonial. A pesquisad ora alega que o processo de independência fora ocasionado
͞ƉĞůĂ ŝŶƐƵďŽƌĚŝŶĂĕĆŽ ĚŽ ƉŽǀŽ ΀͘͘͘΁ ĐŽŶƚƌĂ ŽƐ ĐŽŶƋƵŝƐƚĂĚŽƌĞƐ͘ ƌĂ ƚĂŵďĠŵ Ă ƉƌŽǀĂ
ŝŶĐŽŶƚĞƐƚĄǀĞůĚĞƋƵĞĞƐƚĞƉŽǀŽƐĞŵƉƌĞƌĞƐŝƐƟƵăŽƉƌĞƐƐĆŽĐŽůŽŶŝĂů͟;ϭϵϵϱ͕Ɖ͘ϮϬͿ͘
A criação da PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado – teve, por exemplo,
como uma de suas principais metas, assegurar a ordem estatal, não diferenciando,
em muitos casos, negros de brancos, indigenas de assimilados etc., em seu trato.
'ƵĞƌƌĂĂƟŶŐĞƐƵĂŵĂƚƵƌŝĚĂĚĞ͕ĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĞŵϭϵϲϮ͕ĐŽŵŽƐƵƌŐŝ-
mento da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), movimento armado em
defesa do nacionalismo moçambicano. Diversos intelectuais – dentre eles, o próprio
DŝĂŽƵƚŽʹĂĚĞƌŝƌĂŵĂŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽĞŵƉƌŽůĚĂĂƵƚŽĂĮƌŵĂĕĆŽĚĂŶĂĕĆŽ͘
Incapaz de manter uma guerra que esvaziava seus cofres, Portugal não resis-
ƟƵĞ͕ĞŵϮϱĚĞďƌŝůĚĞϭϵϳϰ͕ŽĐŽƌƌĞƌŝĂĂƋƵĞĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͕ĞŶĐĞƌƌĂŶĚŽ͕
assim, a guerra colonial. Apesar disso, Moçambique, como nação independente, de
fato, ainda necessitaria de um pouco mais de tempo para emergir. Nas palavras da
adivinhadora Jessumina, importante personagem de Vinte e zinco, “Vinte e Cinco é
para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos
ŶĂŵĂĚĞŝƌĂĞnjŝŶĐŽ͕ŽŶŽƐƐŽĚŝĂĂŝŶĚĂĞƐƚĄƉŽƌǀŝƌ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϯͿ͘ĞĨĂƚŽ͕Ă
independência viria pouco mais de um ano depois, em 25 de Junho de 1975.
ĞǀŝĚŽ ă ŐƵĞƌƌĂ ĐŽůŽŶŝĂů ĞƐƚĂƌ ŝŶƐĞƌŝĚĂ Ğŵ ǀĄƌŝĂƐ ƋƵĞƐƚƁĞƐ ĞŶǀŽůǀĞŶĚŽ Ă
Guerra Fria – basicamente entre os centros de poder norte-americanos e sovié-
ƟĐŽƐʹ͕DŽĕĂŵďŝƋƵĞĞŶƚƌŽƵĞŵƵŵĂĚƵƌĂĚŽƵƌĂŐƵĞƌƌĂĐŝǀŝůĞŶƚƌĞĂ&Z>/DK;ĚĞ
tendência marxista-leninista) e a RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana
;ĚĞƚĞŶĚġŶĐŝĂůŝďĞƌĂůͲĐĂƉŝƚĂůŝƐƚĂͿ͘ƐƐĂŐƵĞƌƌĂĚƵƌŽƵĂƚĠϮϬϬϮ͕ƋƵĂŶĚŽ͕ĂƉſƐǀĄƌŝĂƐ
ƚĞŶƚĂƟǀĂƐ͕ĂĐŽƌĚŽƐĚĞƉĂnjĨŽƌĂŵĂƐƐŝŶĂĚŽƐ͘
ŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ĞŶǀŽůǀĞŶĚŽƚĂŶƚŽƐƵĂĮĐĕĆŽʹƌŽŵĂŶĐĞƐ͕ĐŽŶƚŽƐ͕ĐƌƀŶŝĐĂƐ
ĞƉŽĞŵĂƐʹ͕ƋƵĂŶƚŽƐĞƵƐƚĞdžƚŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽ͕ƚƌĂŶƐŝƚĂƉŽƌǀĄƌŝŽƐŵŽŵĞŶƚŽƐĚĞƐƐĞƐƉĞƌş-
odos de dominação e guerra, procurando, assim, representar as facetas de sua terra.
ISBN 978-85-8199-013-2 49
João Olinto Trindade Junior
Literatura Moçambicana
Quando abordamos as literaturas africanas, dentre elas, as dos PALOP, opta-
ŵŽƐ͕ŶĞƐƚĞĞƐƚƵĚŽ͕ƉĞůĂƉƌŽĚƵnjŝĚĂĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞĞ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ƉĞůĂ
obra do escritor Mia Couto, da qual destacaremos, como corpus de leitura, Vinte e
zinco;ϭϵϵϵ͕ϭǐĞĚŝĕĆŽ͖ϮϬϬϰ͕ĞĚŝĕĆŽĂƋƵŝƵƟůŝnjĂĚĂͿ͘ƉƌĞĐŝƐŽƉƌŝŵĞŝƌĂŵĞŶƚĞ͕Ğŵ
ƌĞůĂĕĆŽĂĞƐƐĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ͕ĞdžƉůŝĐŝƚĂƌƋƵĞŶĆŽƵƟůŝnjĂƌĞŵŽƐĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽĐƵŶŚĂĚĂƉŽƌ
Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão portuguesa (1987). Em um perí-
odo anterior à Segunda Guerra Mundial, quando os poetas moçambicanos da época
ĞƌĂŵ ŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚŽƐ ƉĞůŽƐ ŵŽĚĞƌŶŝƐƚĂƐ ďƌĂƐŝůĞŝƌŽƐ͕ ƋƵĞ ŽƉƚĂƌĂŵ ƉĞůŽ ƐĞƵ ŐƌŝƚŽ ĚĞ
“vamos descobrir o ƌĂƐŝů͕͟ĞƐƐĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĚĂĨƌŝĐĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕ĂŝŶĚĂƋƵĞŶĆŽ
se distanciassem por completo do modelo metropolitano, não expressavam nem
uma realidade de todo europeia, nem, mesmo, uma realidade exclusivamente local,
ĂŝŶĚĂƋƵĞũĄďƵƐĐĂƐƐĞŵƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌƵŵĐŽŶƚĞdžƚŽĂĨƌŝĐĂŶŽͬŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͘
ĞƉŽŝƐĚĂƐŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂƐĚĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂŝƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͕ƉŽĚĞŵŽƐ͕ĞŶƚĆŽ͕
referirmo-nos a essas literaturas como sendo expressões pós-coloniais, por estar-
mos tomando por balizamento o processo de colonização que, em parte, paradoxal-
ŵĞŶƚĞ͕ŝŵƉĞĚŝƵĂŝŶƚĞŐƌĂĕĆŽĐŽŵŽƐŵŽĚĞůŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐĞƵƌŽƉĞƵƐǀŝŐĞŶƚĞƐ͕ƵŵĂǀĞnj
ƋƵĞĚŝĮĐƵůƚĂǀĂŽĐŽŶƚĂƚŽĚŽƐŶĂƚƵƌĂŝƐĚĂƚĞƌƌĂĐŽŵĂĐƵůƚƵƌĂĞƵƌŽƉĞŝĂ͘/ƐƐŽƚŽƌŶŽƵ
ŽƐ ĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ ĚĞƐƐĂƐ ĞdžͲĐŽůƀŶŝĂŝƐ ŵĂŝƐ ƉĂƌĂƐŝƚĄƌŝŽƐ ĚĞ ŽƵƚƌĂƐ ĞdžͲĐŽůƀŶŝĂŝƐ ŝďĠƌŝĐĂƐ͕
fossem espanholas ou portuguesa ͕ĐŽŵŽŽƌĂƐŝů͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͕ůŝǀƌĞĚŽũƵůŐŽůƵƐŝƚĂ-
ŶŽĚĞƐĚĞŽĮŶĂůĚŽƐĠĐƵůŽy/y͕ĐƵũĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂũĄĂůĐĂŶĕĂƌĂŵĂŝŽƌŝĚĂĚĞ͘
Assim, para prosseguirmos em nossas premissas de estudo, precisamos, an-
ƚĞƐ͕ĐŽŶƚĞdžƚƵĂůŝnjĂƌƚĂŶƚŽŽŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽʹƐĞƐĞƉŽĚĞƵƟůŝnjĂƌĞƐƐĞƚĞƌŵŽ͕ƐĞŵŝŶĐŽƌ-
rermos em imprecisão, uma vez que toda literatura, originada no Mito, nasce na
oralidade dos povos – da literatura moçambicana, quanto o nascimento – aqui, o
termo cabe com menos risco de imprecisão, uma vez que o Estado não correspon-
ĚĞ͕ŽƌŝŐŝŶĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕ĂƵŵĂEĂĕĆŽ͕ƉŽŝƐĨŽŝĨŽƌũĂĚŽƉĞůĂƐĨŽƌĕĂƐĚŽďƌĂŶĐŽĞƵƌŽƉĞƵ
invasor, que não respeitou limites étnicos locais – de um Moçambique para à vida
ůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ŝĚĞŶƟĮĐĂŶĚŽŽƐŵŽŵĞŶƚŽƐĐƌƵĐŝĂŝƐƉĂƌĂƐĞƵĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ͕ƌĞƐƵůƚĂŶĚŽ
na construção da nação, através da cultura (CHABAL, 1994, p. 14).
Não é por acaso que, nos primórdios dos estudos dessas literatu-
ras, Manuel Ferreira também as tenha chamado de “literaturas ignoradas”
(SANTILLI, 1985, p. 6), uma vez que, naquela época, havia uma enorme es-
cassez de escritores africanos, que se expressassem em língua portuguesa –
mantendo aqui o cunho de Manuel Ferreira, do qual não vamos nos apropriar
ĞĨĞƟǀĂŵĞŶƚĞ ʹ ĐŽŶŚĞĐŝĚŽƐ ŵƵŶĚŽ ă ĨŽƌĂ͘ WĂƐƐĂĚĂƐ ƋƵĂƐĞ ƋƵĂƚƌŽ ĚĠĐĂĚĂƐ
desses estudos iniciais, muito embora aquelas literaturas tenham conquista-
do um espaço um tanto maior, ainda nos vemos obrigados a trazer a mesma
questão: “quantas ou quais obras seriam adequadas a caracterizar essas lite-
ƌĂƚƵƌĂƐ͕ ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ ΀͘͘͘΁ Ă ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͍͟ ;^Ed/>>/͕ ϭϵϴϱ͕ Ɖ͘ϲͿ͘ >ŽŐŽ͕
ƵƟůŝnjĂƌĞŵŽƐ͕ ĂŽ ůŽŶŐŽ ĚĞƐƚĞ ĞŶƐĂŝŽ͕ Ă ƚĞƌŵŝŶŽůŽŐŝĂ ƉƌŽƉŽƐƚĂ ƉŽƌ ůĨƌĞĚŽ
50 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
Margarido (1980, p. 8-9), correspondente a “Literaturas das nações africanas em/
ĚĞůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕͟ĞdžƉƌĞƐƐĆŽĂĚŽƚĂĚĂƉĞůĂŵĂŝŽƌƉĂƌƚĞĚŽƐĐƌşƟĐŽƐĐŽŶƚĞŵ-
porâneos, como, por exemplo, Inocência Mata (1992), Fernanda Cavacas (1999)
ou Ana Mafalda Leite (2012).
ƐƐŝŵĐŽŵŽƐƵĂƐŝƌŵĆƐůƵƐſĨŽŶĂƐʹĂĚŵŝƟŵŽƐ͕ĚĞƐĚĞůŽŐŽ͕ƋƵĞƚĂůƚĞƌŵŽ
;ůƵƐſĨŽŶŽ΀Ă΁ͬ ůƵƐŽĨŽŶŝĂͿ ƚĞŵ ƐŝĚŽ ĂůǀŽ ĚĞ ŽďũĞĕƁĞƐ Ğ ŶĆŽ Ġ ĚĞ ƵƐŽ ƉĂĐşĮĐŽ ĞŶ-
tre os estudiosos das literaturas africanas de/em língua portuguesa –, a literatura
moçambicana – na concepção de uma literatura nacional – ganha corpo e autono-
mia como uma recusa à literatura e ao pensamento colonial. Suas obras – como
ĂƐĚĞŽƵƚƌĂƐĚĞŵĂŝƐĞdžƉƌĞƐƐƁĞƐůŝƚĞƌĄƌŝĂƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐĞŵĨƌŝĐĂʹŵŽƐƚƌĂǀĂŵƵŵͬĂ
outro/a povo/história, denunciando o colonialismo e sua realidade, de maneira
ƋƵĞŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞŶĆŽĚĞǀĞƌŝĂƐĞƌǀŝƐƚŽŵĞƌĂŵĞŶƚĞĐŽŵŽƚĞƌƌĂƋƵĞĂĚĞŶƚƌĂƌĂŶĂ
ŚŝƐƚſƌŝĂĂƉĂƌƟƌĚĂŝŶƚĞƌǀĞŶĕĆŽĚŽƐʹŽƵĚĞƐƵĂĚĞƐĐŽďĞƌƚĂƉĞůŽƐʹĞƵƌŽƉĞƵƐ͕ŵĂƐ
ĐŽŵŽĚŽŶŽĚĞƚŽĚĂƵŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽĞƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽŶĂŚŝƐƚſƌŝĂŐůŽďĂů͘
Quando, em suas primeiras experiências, os escritores moçambicanos – tal
ĐŽŵŽŽƵƚƌŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĚŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ĚĞŶƚƌĞŽƐƋƵĂŝƐ͕ŶŽĐĂƐŽĞƐƉĞĐşĮĐŽĚŽ
universo lusófono, podem-se destacar, imediatamente, os angolanos – desconstro-
em o discurso colonial – ou, retomando Albert Memmi, seu retrato construído pelo
outroʹ͕ĞůĞƐƉĂƌƚĞŵƉĂƌĂƵŵƉƌŽĐĞƐƐŽĐŽŶơŶƵŽĚĞƌĞĞƐĐƌŝƚĂĞƌĞŝŶǀĞŶĕĆŽ͕ƋƵĞƐĞ
ŝŶŝĐŝĂĞŵŵĞĂĚŽƐĚŽƐĠĐƵůŽy/yĂŶƚĞƐ͕ŵĞƐŵŽ͕ĚĂĐŽŶƐƟƚƵŝĕĆŽĚŽƐƐƚĂĚŽƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐ
;>ZE:/Z͕ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϭϴϱͿ͘ŽďƌĂĚĞƐƐĞƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĐŽŶƚƌŝďƵŝƵƉĂƌĂĂĨŽƌũĂĚĞƵŵĂ
ŝĚĞŝĂĚĞŶĂĕĆŽ͕ŵƵŝƚĂƐǀĞnjĞƐ͕ĐŽŵƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĚĞŽĚĞăĂĨƌŝĐĂŶŝĚĂĚĞ͕ƐĞũĂĞŵƌĞƐŐĂƚĞ
ĚĞǀĂůŽƌĞƐĚŽƉĂƐƐĂĚŽ͕ƐĞũĂŶĂĂĮƌŵĂĕĆŽĚĞĐŽŶǀŝĐĕƁĞƐĂĚƋƵŝƌŝĚĂƐŶŽƉƌĞƐĞŶƚĞ͘
Se, por um lado, essas literaturas de que falamos possuem suas semelhan-
ĕĂƐʹƚĂůǀĞnj͕ĂůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂĐŽŵŽŚĞƌĂŶĕĂƐĞũĂĂŵĂŝƐĨŽƌƚĞĞŵĂŝƐǀŝƐşǀĞůĚĞůĂƐ
–, por outro, possuem diferenças, caminhos trilhados, que lhes acrescentaram suas
ƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐ͘ƐƐĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƐƐƵĞŵ͕ƚĂŶƚŽŶŽƋƵĞƐĞƌĞĨĞƌĞăĨĂƐĞĐŽůŽŶŝĂů͕
quanto ao período pós-colonial, elementos em comum, mas seus desdobramentos
ƉĞƌŵŝƟƌĂŵƵŵĂŵĂŝŽƌƚƌŽĐĂĚĞŝŶĨŽƌŵĂĕƁĞƐĞŽƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽĚĞƚƌĂĚŝĕƁĞƐĐƌşƟĐŽͲĐƵů-
ƚƵƌĂŝƐƉĂƌƟĐƵůĂƌĞƐĂĐĂĚĂƵŵĂĚĞůĂƐʹĞƐƐĞĨĞŶƀŵĞŶŽŶĆŽĞůŝŵŝŶĂŶĞŵĂƉƌŽƉƌŝĞ-
dade histórica de cada uma, nem a singularização contemporânea que assumiram
uma face à outra.
ŶƚĞƐĚĂĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐĞĞĨĞƟǀĂƌ͕ĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂĞƌĂ
ʹ Ğ ĐŽŶƟŶƵĂ ƐĞŶĚŽ͕ Ğŵ ŐƌĂŶĚĞ ƉĂƌƚĞ͕ ĂƉĞƐĂƌ ĚĞ ƚŽĚŽ Ž ĞƐĨŽƌĕŽ ĚĂƐ ĂƵƚŽƌŝĚĂĚĞƐ
coloniais em suplantar as culturas autoctones ʹĄŐƌĂĨĂ͕ďĂƐĞĂŶĚŽͲƐĞĞŵƚƌĂĚŝĕƁĞƐ
orais das etnias que habitavam aqueles territórios. Mesmo após a imposição da le-
tra – palavra escrita, em contraponto à palavra antes apenas falada – pelos coloniza-
ĚŽƌĞƐ͕ĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĚĞƚƌĂĚŝĕĆŽŽƌĂůĐŽŶƟŶƵŽƵƐĞĚĞƐĞŶǀŽůǀĞŶĚŽʹĞŵŵƵŝƚŽƐĐĂƐŽƐ͕
ĐŽŵŽĨŽƌŵĂĚĞƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂʹĂƚĠŽƐĚŝĂƐĚĞŚŽũĞ͕ĚĞǀŝĚŽĂŽĨĂƚŽĚĞƵŵĂŵĂŝŽƌŝĂŽƵ
não falar o português, ou não o ter como primeira língua, ou não dominar a escrita,
ƚƌĂŶƐŵŝƟŶĚŽƐƵĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐŽƌĂůŵĞŶƚĞ͕ƉŽƌŵĞŝŽĚĞŵŝƚŽƐ͕ůĞŶĚĂƐ͕ĐƌĞŶĕĂƐ͕ĂĚŝǀŝ-
nhas e provérbios.
ISBN 978-85-8199-013-2 51
João Olinto Trindade Junior
Nesse processo, a língua dos colonizadores foi imposta aos colonizados, que,
ƉŽƌ ĨŽƌĕĂ͕ ĂƐƐƵŵŝƌĂŵͲŶĂ ƉĂƌĐŝĂůŵĞŶƚĞ͕ ĂŽ ŵĞŶŽƐ Ğŵ ƐƵĂƐ ĞƐĨĞƌĂƐ ĂĚŵŝŶŝƐƚƌĂƟǀĂ
ĞŝŶƚĞƌƐŽĐŝĂů͕ĂĐƌĞƐĐĞŶƚĂŶĚŽͲůŚĞƐĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐůŽĐĂŝƐ;,>͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϭϴͿ͘
Embora uma língua, como organismo vivo, tenha sua origem em determinado con-
ƚĞdžƚŽĐƵůƚƵƌĂů͕ƐƵĂƵƟůŝnjĂĕĆŽŶĆŽĠĚĞĮŶŝĚĂƉĞůŽƐƉĂĚƌƁĞƐĚĞŽŶĚĞƐĞŽƌŝŐŝŶĂ͕ĞĚŝƐƐŽ
deu exemplo a literatura hispano-americana, escrita em espanhol, e, ainda, a brasi-
leira, em português.
Apropriadas pelos povos da terra, as línguas europeias passaram a fazer par-
ƚĞĚĞƐƐĞŵŽƐĂŝĐŽĐƵůƚƵƌĂů͕ƐĞŶĚŽƌĞŵŽĚĞůĂĚĂƐʹĞĂŝŶĚĂĐŽŶƟŶƵĂŵƐĞŶĚŽʹƉĂƌĂ
servirem às necessidades ĐƵůƚƵƌĂŝƐĞůŝŶŐƵşƐƟĐĂƐĚŽƐĂƉƌŽƉƌŝĂĚŽƌĞƐ . Construído com
ďĂƐĞĞŵƵŵĂůşŶŐƵĂĚĞĐƵůƚƵƌĂʹƚĞƌŵŽƵƐĂĚŽĂƋƵŝŶĆŽĞŵƐĞŶƟĚŽĚĞǀĂůŽƌ͕ŵĂƐĚĞ
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ƐŽƐĐŽƟĚŝĂŶŽƐ͕ƋƵĞƐĞǀĞŝĐƵůĂŵĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐůşŶŐƵĂƐ͕ĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĞƐĞƌĚŝĂůĠƟĐŽ͕
ĂŽĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌĂŚĞƚĞƌŽŐĞŶĞŝĚĂĚĞĚŽŵĞŝŽƐŽĐŝĂů͘KĚŝƐĐƵƌƐŽůŝƚĞƌĄƌŝŽĂƌƟĐƵůĂͲƐĞĚĞ
acordo com as contribuições externas, pois o meio em si é marcado por elementos
que criam uma relação entre o tempo vivido e o espaço habitado. Assim, segundo
,ŽŵŝŚĂďŚĂ͕ŶĞƐƐĞĞƐƉĂĕŽĚĞĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐ͕͞ŚĂďŝƚĂƵŵĂƋƵŝĞƚƵĚĞĚŽƚĞŵƉŽĞƵŵĂ
estranheza de enquadramento que cria a imagem discursiva na encruzilhada entre
história e literatura, unindo a casa e o mundo” (1998, p. 35).
ƚĠ ŵĞĂĚŽƐ ĚŽƐ ĂŶŽƐ ĚĞ ϭϵϴϬ͕ ŽƐ ƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐ ĂĮƌŵĂƌĂŵͲƐĞ͕
ƉůĞƚŽƌĂŵĞŶƚĞ͕ĐŽŵŽƉĄƚƌŝĂĚĞƉŽĞƚĂƐ;EK͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϮϴϰͿ͘^ĞŐƵŶĚŽDŝĂŽƵƚŽ͕ƋƵĞ͕
ƉĂƌĂĂůĠŵĚĞƐƵĂŽďƌĂĮĐĐŝŽŶĂů͕ƚĞŵĚĞĚŝĐĂĚŽĞƐƉĂĕŽƉĂƌĂƐĞƵƚĞdžƚŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽ͕Ž
ŝŶĐŽŶĮĚĞŶƚĞdŽŵĄƐŶƚƀŶŝŽ'ŽŶnjĂŐĂĠĚĞŐƌĞĚĂĚŽƉĂƌĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ŽŶĚĞĨƵŶĚŽƵ
o primeiro núcleo de poetas e escritores da ilha de Moçambique, na época, capital
ĚĂĐŽůƀŶŝĂ;ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϭϬϯͿ͘dĂŶƚŽ&ĞƌŶĂŶĚŽƌŝƐƚſǀĆŽʹĞŵƐĞƵŝĐŝŽŶĄƌŝŽdĞŵĄƟĐŽĚĂ
Lusofonia (2005, p. 634) – quanto Ana Mafalda Leite (2012), apontam para a existên-
cia desses núcleos terem sido formados, evanescentemente, por uma elite letrada,
ĐŽŵƉŽƐƚĂƉŽƌĨƵŶĐŝŽŶĄƌŝŽƐƉƷďůŝĐŽƐƚĞŵƉŽƌĄƌŝŽƐʹŽƌŝƵŶĚŽƐĚĞŽƵƚƌŽƐƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐƉŽƌ-
ƚƵŐƵĞƐĞƐʹĞĞƐĐĂƐƐŽƐ͕ƚĞŶĚŽĞŵǀŝƐƚĂŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽƚĂƌĚŝŽĚŽĞŶƐŝŶŽŶĂĐŽůƀŶŝĂ͘
ŽŵĂŝŶƚƌŽĚƵĕĆŽ͕Ğŵϭϴϵϰ͕ĚĂƟƉŽŐƌĂĮĂŶĂĐŽůƀŶŝĂĞŽĐŽŶƐĞƋƵĞŶƚĞŶĂƐĐŝ-
ŵĞŶƚŽĚŽƐũŽƌŶĂŝƐůŽĐĂŝƐ͕ĂĂƟǀŝĚĂĚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂŐĂŶŚĂŶŽǀĂĚŝŵĞŶƐĆŽ͘ŝŵƉƌĞŶƐĂ͕ĚĞ
fato, sempre ocupa espaço como fator importante para a divulgação de uma cultura
ĞƐĐƌŝƚĂ͕ĞĂƐƉƌŝŵĞŝƌĂƐŐĞƌŵŝŶĂĕƁĞƐĚĞƵŵŶĂĐŝŽŶĂůŝƐŵŽůŝƚĞƌĄƌŝŽĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕
como em outras localidades, em todo o mundo, valeu-se de seu incremento. Pires
>ĂƌĂŶũĞŝƌĂŶĆŽĚĞŝdžĂĚĞĂƉŽŶƚĂƌĞƐƐĞŵĠƌŝƚŽĚĂƐƉƌŝŵĞŝƌĂƐĞůŝƚĞƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂƐĞŵ
ƉƌŽĐƵƌĂƌĐŽŶƐƚƌƵŝƌƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞŶĂĐŝŽŶĂůĂƚƌĂǀĠƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͗
 ĞĚŝĮĐĂĕĆŽ ĚĂƐ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ ĂĨƌŝĐĂŶĂƐ ĚĞ ůşŶŐƵĂ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ
ĂĐŽŵƉĂŶŚĂ Ă ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ĚĞ Ƶŵ ŶŽǀŽ ƉŽĚĞƌ ƉŽůşƟĐŽ͕ ƉƌŝŵĞŝƌŽ
ĐůĂŶĚĞƐƟŶŽĞ͕ĚĞƉŽŝƐ͕ƚƌŝƵŶĨĂŶƚĞ͘KƐŚŽŵĞŶƐƋƵĞĞƐĐƌĞǀĞŵƐĆŽ
ŽƐŵĞƐŵŽƐƋƵĞƉĞŶƐĂŵĞƋƵĞƉŽůŝƟĐĂŵ͘ĨĂnjĞŵͲŶŽĞŵƉŽƌƚƵ-
ŐƵġƐ͕ĚŽŵĞƐƟĐĂŶĚŽĂůşŶŐƵĂĞŵĨƵŶĕĆŽĚĂƐƐƵĂƐǀŝƌƚƵĂůŝĚĂĚĞƐ
ĞĮŶĂůŝĚĂĚĞƐ͕ĐƌŝĂŶĚŽůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐŶƵŵĂůşŶŐƵĂŝŶƚĞƌŶĂ-
cional. (2001, p. 14)
52 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƐƐĂĞůŝƚĞůĞƚƌĂĚĂʹĞŵĐŽŶƚƌĂƉĂƌƟĚĂĂƵŵĂŵĂŝŽƌŝĂĂŶĂůĨĂďĞƚĂʹƚĞŵƐƵĂ
ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂ ŶŽ ĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ ĚĞ ƵŵĂ ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ ŶĂĐŝŽŶĂů ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ ƋƵĞ
se aprofunda no conceito abordado por Benedict Anderson (2008) sobre as comu-
nidades imaginadas, reforçando como as primeiras gerações dessa intelligentsia
ŝŶŇƵĞŶĐŝĂƌĂŵŶĂďƵƐĐĂĚĞƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĞŵƵŵƚĞƌƌŝƚſƌŝŽŽŶĚĞĂŶĂĕĆŽƐſƚĞǀĞ
ƐƵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽƉŽƐƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞăĐŽŶĮŐƵƌĂĕĆŽĚŽƐƚĂĚŽ͘ƐƉƌŝŵĞŝƌĂƐŐĞƌĂĕƁĞƐ
ĚĞƐƐĂĞůŝƚĞ͕ĨŽƌŵĂĚĂƐŶŽƐŝƐƚĞŵĂĐŽůŽŶŝĂůʹŝŶƚĞƌŶŽĞĞdžƚĞƌŶŽʹƟǀĞƌĂŵĐŽŶƚĂƚŽĐŽŵ
um conceito de história nacional, sob uma visão mundial, e dos princípios de uma
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĞƐĐƌŝƚĂŶĂĐŝŽŶĂůʹĞŵĐŽŶƚƌĂƉĂƌƟĚĂăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŽƌĂůʹ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽĂƐ-
pecto importante no surgimento e evolução da literatura moçambicana.
WĂƚƌŝĐŬŚĂďĂůĞŶĨŽĐĂĐŽŵŽŽƐŵĞŵďƌŽƐĚĂĞůŝƚĞƉĂƐƐĂƌĂŵĂƚƌĂǀĂƌĐŽŶƚĂƚŽ
ĐŽŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵĞƚƌŽƉŽůŝƚĂŶĂĞŵƵŶĚŝĂů;ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϮϭͿ͘ŵƐƵŵĂ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞĂĮƌŵĂ
Chabal, essa relação colonizado/colonizador terminou por criar uma elite local assi-
milada pela cultura e língua do colonizador:
O impacto cultural do colonialismo vincula a gradual expansão
da língua europeia na população africana, a educação nessa lín-
gua e, eventualmente, o desenvolvimento de uma literatura afri-
cana numa língua europeia. Este processo, tal como as posições
coloniais acerca da superioridade cultural da cultura europeia,
ƐŝŐŶŝĮĐĂǀĂŶĞĐĞƐƐĂƌŝĂŵĞŶƚĞƋƵĞĂĐƵůƚƵƌĂŵĞƚƌŽƉŽůŝƚĂŶĂĚĞƐĞŵ-
ƉĞŶŚŽƵ Ƶŵ ƉĂƉĞů ĐŽŶƐŝĚĞƌĄǀĞů Ğŵ ĨƌŝĐĂ ŶĂ ĞǀŽůƵĕĆŽ ĚĞ ƵŵĂ
linguagem escrita de cultura. (1994, p. 20)
Essa elite assimilada foi a precursora da literatura nacional e, embora longe de nutrir
ŽƐŝĚĞĂŝƐĚĞůƵƚĂƉĞůĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͕ƚĞǀĞĂŶĂĕĆŽƉŽƌĚĞƐĞũĂĚĂ͕ƐŽŶŚĂĚĂ͕ĐĂŶƚĂĚĂĞŵ
ƐƵĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂ͘ƐƐŝŵ͕ůĂŶĕĂͲƐĞ͞ĂŽůĂďŽƌŝŽƐŽĂƚŽĚĞĨĂůĂƌĚĂƉƌſƉƌŝĂĐŽůĞƟǀŝ-
ĚĂĚĞ͟;,,͕ϭϵϵϱ͕Ɖ͘ϵͿ͕ŝŵĂŐŝŶĂŶĚŽĂŶĂĕĆŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂǀŝĂĚŝƐĐƵƌƐŽƉŽĠƟĐŽ͘
ŽƌŐĂŶŝnjĂĕĆŽĨĄƐŝĐĂĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ĐŽŶƐŝĚĞƌĂŶĚŽͲƐĞƐĞƵ͞ŶĂƐ-
cimento” como literatura nacional e seu percurso sequencial desde um primeiro
ŵŽŵĞŶƚŽĂƚĠĂĐŽŶƚĞŵƉŽƌĂŶĞŝĚĂĚĞ͕ĠĞůĞŵĞŶƚŽĚĞƉƌŽİĐƵĂĚŝƐĐƵƐƐĆŽ͘ƐƚĄͲƐĞůŽŶ-
ge de se poder propor sua periodização, pois não se chega a um mínimo consenso
ƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽƐƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĞƐ͘EŽŵŽŵĞŶƚŽ͕ŚĄŵĂŝƐĚĞƵŵĐĂŵŝŶŚŽĚĞŽƌŐĂŶŝnjĂĕĆŽ
apontado pelos estudiosos, e, exatamente por essa razão, assumiremos um posicio-
ŶĂŵĞŶƚŽŵŝƐƚŽĞŶƚƌĞĂƐƉƌŽƉŽƐƚĂƐĚĞWĂƚƌŝĐŬŚĂďĂůĞĂƌŵĞŶdŝŶĚſ^ĞĐĐŽ͘
ŽĚŝǀŝĚŝƌĂ͞ũŽǀĞŵ͟ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ŚĂďĂůĂĐůĂƐƐŝĮĐĂĞŵŽůŽŶŝĂů
e em Pós-independência (1994, p. 24). Suas divisões, de cunho mais historicistas,
são convenientes às propostas aqui defendidas – uma vez que as periodizações de
outros pesquisadores, longe de contrariarem os períodos aqui assumidos, acrescen-
ƚĂŵƐƵďĚŝǀŝƐƁĞƐƋƵĞŶĆŽƐĆŽĚĞŶŽƐƐŽŝŶƚĞƌĞƐƐĞ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐĂƟŶŐŝƌ
o momento que a literatura moçambicana, lembrando-nos das palavras de Pires
>ĂƌĂŶũĞŝƌĂƐ͕ĂƟŶŐŝƌĐŽŵĞĕĂĂƐĞĞŵĂŶĐŝƉĂƌ͘EĞůĂƐ͕ŚĂďĂůĚŝǀŝĚĞĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŽĕĂŵ-
ďŝĐĂŶĂĞŵƋƵĂƚƌŽĨĂƐĞƐ͗ƐƐŝŵŝůĂĕĆŽ͕ZĞƐŝƐƚġŶĐŝĂ͕ĮƌŵĂĕĆŽĞŽŶƐŽůŝĚĂĕĆŽ;ϭϵϵϰ͕
p. 24). Na primeira fase, os escritores africanos, basicamente, ao realizarem sua ex-
ISBN 978-85-8199-013-2 53
João Olinto Trindade Junior
ƉĞƌŝŵĞŶƚĂĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂ͕ĐŽƉŝĂǀĂŵĨŽƌŵĂƐƉƌĠͲĚĞĮŶŝĚĂƐĚĞŽƌŝŐĞŵĞƵƌŽƉĞŝĂ͕ŽƵƐĞũĂ͕
͞ŶĂŚŝƐƚſƌŝĂĚĞĐĂĚĂĐŽůƀŶŝĂĞdžŝƐƚĞƵŵŶƷŵĞƌŽĚĞĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƋƵĞĞƐĐƌĞǀĞƵĐŽŵŽŽƐ
europeus” (1994, p. 24). Na segunda fase, o escritor toma para si a responsabilidade
ĚĞĚĞĨĞƐĂĞĚĞƐĐŽďĞƌƚĂĚĂƉĄƚƌŝĂ͕ĐŽŝŶĐŝĚŝŶĚŽĐŽŵŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽĚĞŶĞŐƌŝƚƵĚĞ͘EĂ
ƚĞƌĐĞŝƌĂĨĂƐĞ͕ƚĞŵŽƐĂďƵƐĐĂƉŽƌƵŵĂƚĞŵĄƟĐĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞ͕ŽŚŽŵĞŵŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽͬ
africano na procura do seu lugar na sociedade, em que ele busca não apenas “o
ĞdžŽƌĐŝƐŵŽĚŽŝŵƉĞƌŝĂůŝƐŵŽĐƵůƚƵƌĂů΀͘͘͘΁ŵĂƐƚĂŵďĠŵĚĞĮŶŝƌĂƐƵĂƉŽƐŝĕĆŽŶĂƐƐŽ-
ciedades pós-coloniais em que vive” (CHABAL, 1994, p. 24). Na quarta fase, a con-
temporânea, temos a consolidação dos caminhos perseguidos até então e a busca
dos escritores por novos rumos, experimentando as possibilidades da língua e suas
ĂůƚĞƌŶĂƟǀĂƐ͕ĂůĠŵĚĞƉƌŽĐƵƌĂƌĞŵŐĂƌĂŶƟƌƉĂƌĂƐƵĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐƵŵĞƐƉĂĕŽŶĂŚŝƐƚſ-
ƌŝĂĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƵŶŝǀĞƌƐĂůʹŽƵŐůŽďĂůŽƵŵƵŶĚŝĂů͕ĐŽŵŽĞƐƚĄĞŵǀŽŐĂŶŽŵŽŵĞŶƚŽ͘
ŽŵƉĂƌĂŶĚŽĐƌŝƟĐĂŵĞŶƚĞŽƐĞƐƚƵĚŽƐĚĞWĂƚƌŝĐŬŚĂďĂůĐŽŵĂƐĂŶĄůŝƐĞƐĚĞ
Carmen Tindó Secco, encontramos – nas considerações desta – um período entre a
fase de Assimilação e Resistência, no qual o escritor cantaria as belezas de sua terra,
ŵĂƐ͕ĂŝŶĚĂ͕ĐŽŵƵŵŽůŚĂƌĞdžſƟĐŽ͕ĚĞĞƐƚƌĂŶŚĂŵĞŶƚŽĨƌĞŶƚĞĂŽƋƵĞĐĂŶƚĂ͘EŽƐĞ-
gundo período, temos um acréscimo, por parte da pesquisadora, ao considerar que
ĞƐƐĂĨĂƐĞĚĞ͞ĚĞƐĐŽďĞƌƚĂ͟ƚĞƌŝĂƐŽĨƌŝĚŽŐƌĂŶĚĞŝŶŇƵġŶĐŝĂĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŵŽĚĞƌŶŝƐƚĂ
ďƌĂƐŝůĞŝƌŽĞĚĞƐĞƵŐƌŝƚŽ͞sĂŵŽƐĞƐĐŽďƌŝƌŽƌĂƐŝů͘͟WŽƌĮŵ͕ŽƉĞƌşŽĚŽĂŶƚĞƌŝŽƌăƚĞƌ-
ĐĞŝƌĂĨĂƐĞƐĞƌŝĂďĂƐƚĂŶƚĞŵĂƌĐĂĚŽƉŽƌƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĞŶŐĂũĂĚĂ͕ĐŽŵƵŵĨŽƌƚĞĂƉĞůŽ
de libertação, conhecida como literatura de guerrilha. A respeito desse momento,
WĂƚƌŝĐŬŚĂďĂůĚŝnjƋƵĞ͗
ƉĂƌƟƌĚŽŵŽŵĞŶƚŽ;ĐĞƌĐĂĚĞϭϵϲϬͿĞŵƋƵĞŽƌĞƐƚŽĚĂĨƌŝĐĂ
se tornou independente e a primeira acção nacionalista armada
ĐŽŵĞĕŽƵŶĂĨƌŝĐĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕ĂƉƵďůŝĐĂĕĆŽĚĞƋƵĂůƋƵĞƌůŝƚĞƌĂ-
tura nacionalista foi prescrita, e os escritores encarcerados. O
ĞĨĞŝƚŽĨŽŝĚĞƉŽůŝƟnjĂƌŽƋƵĞĂƚĠĂşƟŶŚĂƐŝĚŽŶĂĐŝŽŶĂůŝƐŵŽĐƵůƚƵ-
ƌĂů͕ŽƵƐĞũĂ͕ĞdžƉƌĞƐƐĆŽĚĂŶŽǀĂĐƵůƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂĞŵĨŽƌŵĂƐůŝƚĞƌĄ-
ƌŝĂƐŵŽĚĞƌŶĂƐ͘ƉĂƌƟƌĚĞĞŶƚĆŽ͕ƵŵĂƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞƉƌŽƉŽƌĕĆŽĚĞ
ƚĞdžƚŽƐůŝƚĞƌĄƌŝŽƐŶĂĐŝŽŶĂůŝƐƚĂƐƚŽƌŶĂƌĂŵͲƐĞĂďĞƌƚĂĞĐŽŶƐĐŝĞŶĐŝŽ-
ƐĂŵĞŶƚĞƉŽůşƟĐŽƐ͕ŝŶƚĞƌĞƐƐĂĚŽƐ͕ƐŽďƌĞƚƵĚŽ͕ĐŽŵ͞Ă͟ŵĞŶƐĂŐĞŵ
ƉŽůşƟĐĂ͘;ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϯϯͿ
Contribuindo para essa discussão de fases, pode-se recorrer a Pires
>ĂƌĂŶũĞŝƌĂ͕ƋƵĞǀġĂƉƵďůŝĐĂĕĆŽĚĞTerra Sonâmbula, em 1992, primeiro romance
de Mia Couto, como sendo um ponto de ruptura no desenvolvimento da literatu-
ƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ĐŽŝŶĐŝĚŝŶĚŽĐŽŵŽƉĞƌşŽĚŽĚĞĂďĞƌƚƵƌĂƉŽůşƟĐĂĚŽƐŶŽǀŽƐƉĂş-
ses, envolvidos em guerras civis, embargos e boicotes que se arrastavam desde
ĂŶƚĞƐĚŽĮŵĚĂ'ƵĞƌƌĂ&ƌŝĂ͘^ĞƌŝĂĠƉŽĐĂĚĞƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨŽƌƚĞŵĞŶƚĞĂƚƌĞůĂĚĂ
ăƐůƵƚĂƐƉĞůĂůŝďĞƌƚĂĕĆŽĞĂŽĚŝƐĐƵƌƐŽƉĂŶŇĞƚĄƌŝŽĚĂƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂ͘ƐƐĞƉĞƌşŽĚŽ͕ƉŽƌ
sinal, coincidiria com a fase em que a literatura moçambicana começou a ganhar
ĐŽŶƚŽƌŶŽƐĚĞĞƐƚĠƟĐĂůŝƚĞƌĄƌŝĂ;>ZE:/Z͕ϭϵϵϱ͕Ɖ͘ϮϲϮͿ͘
Falando do momento em que as elites germinaram a ideia de uma literatura
nacional, podemos destacar os nomes dos irmãos José e João Albasini, fundadores
54 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
do periódico “O Africano” (1908), publicado em português e ronga – língua banta
falada por um grupo étnico do sul de Moçambique ʹ͕ŵĂƐƋƵĞĂŝŶĚĂƵƟůŝnjĂǀĂƉĂ-
ƌĂĚŝŐŵĂƐĞƵƌŽƉĞƵƐĐŽŵŽŵŽĚĞůŽƐ͘KƵƚƌŽũŽƌŶĂůĚĞƉƌŽƉƌŝĞĚĂĚĞĚŽƐĚŽŝƐ͕͞KƌĂĚŽ
ĨƌŝĐĂŶŽ͕͟ĞĚŝƚĂǀĂŽƐƵƉůĞŵĞŶƚŽ͞KƌĂĚŽ>ŝƚĞƌĄƌŝŽ͕͟ŶŽƋƵĂůĞƌĂŵƉƵďůŝĐĂĚŽƐƚĞdž-
tos de autores moçambicanos, como os de Rui de Noronha, considerado um dos
percussores da literatura propriamente dita como moçambicana. Ao observar esse
ƉĞƌşŽĚŽƉƌŽİĐƵŽ͕DŝĂŽƵƚŽĞŶĨŽĐĂĐŽŵŽ͗
nascia em Moçambique uma corrente de intelectuais ocupados
ĞŵƉƌŽĐƵƌĂƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŝĚĂĚĞ͘:ĄĞƌĂ͕ĞŶƚĆŽ͕ĐůĂƌĂĂŶĞĐĞƐƐŝ-
dade de ruptura com Portugal e os modelos europeus. Escritores
como Rui Noronha, Noémia de Souza, Orlando Mendes, Rui
Nogar, ensaiavam uma escrita que fosse mais ligada à terra e à
gente moçambicana. (2005, p. 104)
ƐƐĂŐĞƌĂĕĆŽĐƌŝŽƵ͕ĚĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ĂƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂƐƉĂƌĂŽƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽĚĂƉƌſ-
xima geração de escritores, com destaque para Noémia de Sousa e José Craveirinha.
dĆŽŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƋƵĂŶƚŽăƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂƐƉĂƌĂŽƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽĚĞƵŵĂ
nova geração de escritores foi o fato de se tratar de uma elite de negros, brancos e
ŵĞƐƟĕŽƐƋƵĞ͕ăƐƵĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ĚŝǀƵůŐĂƌĂŵĂŝĚĞŝĂĚĞƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŶĂĐŝŽŶĂů͘KŐƌƵ-
ƉŽƉƌŽĚƵnjŝƵĞŵĐŽŶƚƌĂƐƚĞĐŽŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĐŽůŽŶŝĂů͕ƉƌŽŵŽǀŝĚĂĞŝŶĐĞŶƟǀĂĚĂƉĞůŽ
ĚŝƐƉŽƐŝƟǀŽĞƐƚĂƚĂů͕ĂůĠŵĚĞĂƉŽŝĂĚĂƉĞůŽƐWƌġŵŝŽƐĚĂŐġŶĐŝĂ'ĞƌĂůĚĂƐŽůƀŶŝĂƐ͕
ĐŽŵĂŵĞƚĂĚĞĚŝĨƵŶĚŝƌŽ>ƵƐŽƚƌŽƉŝĐĂůŝƐŵŽ͘ŝĨĞƌĞŶƚĞĚĂƐŽƵƚƌĂƐĐŽůƀŶŝĂƐĚĂƐŶĂĕƁĞƐ
ĞƵƌŽƉĞŝĂƐ͕ĂƐĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐƟǀĞƌĂŵƵŵĂƉƌŽİĐƵĂƉƌŽĚƵĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂĞ͕ĂƉƌĞ-
ƐĞŶƚĂŶĚŽĂĨƌŝĐĂƉĂƌĂĂŵĞƚƌſƉŽůĞĞŽŵƵŶĚŽĂƚƌĂǀĠƐĚĞŽďƌĂƐĐƵũĂƐĞŶƐŝďŝůŝĚĂĚĞ
ĞƐƚĠƟĐĂ͕ĂƉƌŽdžŝŵĂǀĂŵͲƐĞŵĂŝƐĚŽƵŶŝǀĞƌƐŽŵĞƚƌŽƉŽůŝƚĂŶŽ͕ƐĞŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ŵŽƟǀŽĚĞ
polêmica e contestação via critérios e fatores que tornavam sua qualidade textual
ƋƵĞƐƟŽŶĄǀĞů;EK͕ϮϬϬϮ͕ϯϴϵͿ͘
Outro importante centro de nascimento e desenvolvimento dessa literatura
ĨŽŝĂ/͕ĐƌŝĂĚĂƉĞůŽŐŽǀĞƌŶŽƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂĐŽŵŽŽďũĞƟǀŽĚĞƉƌŽŵŽǀĞƌĞĚƵĐĂĕĆŽĞ
formação para as futuras elites coloniais. A CEI torna-se um espaço em que estudan-
ƚĞƐ͕ŽƌŝƵŶĚŽƐĚĞĚŝǀĞƌƐĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ƉŽĚŝĂŵĞŶƚƌĂƌĞŵĐŽŶƚĂƚŽĐŽŵĂƐŵĂŝƐĚŝǀĞƌƐĂƐ
ŝĚĞŝĂƐƉŽůşƟĐĂƐĞůŝƚĞƌĄƌŝĂƐ͕ƉƌŽŵŽǀĞŶĚŽƚƌŽĐĂƐĚĞĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐ͘
Com o lançamento de um suplemento cultural chamado “Msaho” – que con-
tou apenas com o primeiro e único número, diga-se de passagem –, a literatura en-
ƚƌĂĞŵƵŵĂŶŽǀĂĨĂƐĞ͕ĂŽĂďĂƌĐĂƌƋƵĞƐƚƁĞƐůĞŐŝƟŵĂŵĞŶƚĞŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂƐ͕ƉĂƐƐĂŶĚŽ
ĂĂƐƐƵŵŝƌĂǀĂůŽƌŝnjĂĕĆŽĚĂƚĞƌƌĂĞĚĂĐƵůƚƵƌĂůŽĐĂůʹŽƋƵĞWŝƌĞƐ>ĂƌĂŶũĞŝƌĂũĄĂƉŽŶƚĂ
ĐŽŵŽŽƐƉƌŝŵĞŝƌŽƐĞĐŽƐĚĂŶĞŐƌŝƚƵĚĞŶĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂ;ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϭϳͿ͘&Žŝ͕ĚĞĨĂƚŽ͕Ž
primeiro movimento de criação de uma literatura moçambicana desvinculada dos câ-
ŶŽŶĞƐĞƵƌŽƉĞƵƐ͘ŝŶŇƵġŶĐŝĂĚĂĐŽŶƋƵŝƐƚĂĚĂĞƐĐƌŝƚĂ͕ĂƌŵĂĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůŶĂĐŽŶƐĐŝĞŶ-
ƟnjĂĕĆŽĚĂƐĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞƐĐƌŝĂƟǀĂƐĚŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽ͕ůĞǀŽƵăǀĂůŽƌŝnjĂĕĆŽĚĞƐşŵďŽůŽƐƋƵĞ
representassem essa realidade. Os editores do Msaho, Virgílio de Lemos, Domingos de
njĞǀĞĚŽĞZĞŝŶĂůĚŽ&ĞƌƌĞŝƌĂ͞ďƵƐĐĂŵŶĂƐƌĂşnjĞƐĚĂĐƵůƚƵƌĂƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůĞŶŽĚŝĄůŽŐŽĐŽŵ
ŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐĂƌơƐƟĐŽƐĞdžƚĞƌŶŽƐŽƐĐĂŵŝŶŚŽƐĂƐĞƌĞŵƚƌŝůŚĂĚŽƐƉĞůĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŽĕĂŵ-
ISBN 978-85-8199-013-2 55
João Olinto Trindade Junior
bicana” (FONSECA, 2008, p. 43). Teve a colaboração de nomes importantes para a lite-
ratura moçambicana que buscava se emancipar, como Noémia de Sousa e Rui Guerra.
 ĨĂƐĞ ƐĞŐƵŝŶƚĞ͕ ŶŽ ĮŶĂů ĚĂ ĚĠĐĂĚĂ ĚĞ ϭϵϱϬ͕ ĞŶǀŽůǀĞ ƵŵĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ĚĞ
combate – ou de protesto –, que se estende até 1975, ano da independência de
DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͘&ŽŝƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂǀŽůƚĂĚĂƉĂƌĂŽƋƵĞƐƟŽŶĂŵĞŶƚŽĚĂĞdžƉůŽƌĂĕĆŽĐŽ-
ůŽŶŝĂů͕ ƚĂŵďĠŵ ĐŽŶŚĞĐŝĚĂ ĐŽŵŽ ĚĞ ŐƵĞƌƌŝůŚĂ͘  ŶĞƐƐĞ ƉĞƌşŽĚŽ ƋƵĞ ;ƌĞͿŇŽƌĞƐĐĞ Ž
ĚĞƐĞũŽ ĚĞ ĨƵŶĚĂƌ ůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞ Ă ŶĂĕĆŽ ʹ Ƶŵ ĚĞƐĞũŽ ŵĂŝƐ ƉƌŽƉĞŶƐŽ ĚŽ ƋƵĞ ŶĂƐ
ƉƌŝŵĞŝƌĂƐĨĂƐĞƐʹ͕ĚĞĚĞƐǀŝŶĐƵůĂƌ͕ƚŽƚĂůŵĞŶƚĞ͕ĂƉƌŽĚƵĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂĚŽƐƉĂĚƌƁĞƐĞƵ-
ƌŽĐġŶƚƌŝĐŽƐ͘ĞƐƉŽŶƚĂǀĂƵŵĂĨŽƌƚĞƌĞůĂĕĆŽĐŽŵĂƉŽůşƟĐĂĞŐĂŶŚĂǀĂŵǀŝŐŽƌŽƐĞŶĨŽ-
ques com compromisso social.
Ao longo do período que compreende o pós-guerra, a poesia teve lugar de
ĚĞƐƚĂƋƵĞĞŵƐŽůŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͘ŵďŽƌĂŵƵŝƚŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĐŽŶƐĂŐƌĂĚŽƐũĄƉƌŽĚƵ-
njŝƐƐĞŵƉŽĞƐŝĂ͕ĂƉƌŽƐĂʹŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞŽŐġŶĞƌŽĐŽŶƚŽʹĞŵĞƌŐĞĞŵŵĞĂĚŽƐ
dos anos 1990, com, dentre outros, Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto (NOA, 2007,
Ɖ͘ϮϴϰͿ͘ƐƚĞƷůƟŵŽƚĞŵĂůĐĂŶĕĂĚŽŵĂŝŽƌƉƌŽũĞĕĆŽƚĂŶƚŽŝŶƚĞƌŶĂŵĞŶƚĞ͕ƋƵĂŶƚŽŶŽ
ĞdžƚĞƌŝŽƌ͕ĂůĠŵĚĞƵŵĂƉƌŽİĐƵĂƌĞŐƵůĂƌŝĚĂĚĞƉƌŽĚƵƟǀĂ͘ƐĞdžƉůŝĐĂĕƁĞƐƉĂƌĂĞƐƐĂŽƉ-
ĕĆŽ ƉĞůĂ ƉƌŽƐĂ ĐŽŶơƐƟĐĂ Ğŵ ƚĞƌƌĂ ĚĞ ƉŽĞƚĂƐ ƐĆŽ ǀĂƌŝĂĚĂƐ͕ ŵĂƐ ŶŽƐ ĂƚĞƌĞŵŽƐ ăƐ
ĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕƁĞƐĚĞDĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽƐŽďƌĞŽĨĞŶƀŵĞŶŽ͗
EĂĨƌŝĐĂƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͕ĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĂŐƌĂĚĂĞĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƉƌŽĨĂŶĂ
ensinam a adequação entre os homens e o mundo, descrevendo
os contos, as sagas, os provérbios, os gestos fundamentais que
se repetem eternamente. Para Mircea Eliade, os mesmos arqué-
ƟƉŽƐĚŽŵŝƚŽʹŝƐƚŽĠ͕ĂƐŵĞƐŵĂƐĮŐƵƌĂƐĞƐŝƚƵĂĕƁĞƐĞdžĞŵƉůĂƌĞƐ
– sucedem-se indiferentemente nas sagas e nos contos (Eliade
ϭϵϲϯ͕Ɖ͘ϮϰϮͿ͘:Ą:ĂĐƋƵĞƐŚĞďƌŝĞƌĐŽŶƐŝĚĞƌĂƋƵĞŽĐŽŶƚŽƐĞŝŵ-
ƉůŝĐĂŶĂĚĞƐƐĂĐƌĂůŝnjĂĕĆŽƉƌŽŐƌĞƐƐŝǀĂĚŽŵƵŶĚŽŵşƟĐŽ͗ĞŶƋƵĂŶƚŽ
no mito, o sobrenatural ocupa um lugar preponderante, no con-
ƚŽ͕ĂƉĂƌƟůŚĂĞŶƚƌĞŽƌĞĂůĞŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůƚĞŶĚĞĂĞƋƵŝůŝďƌĂƌͲƐĞ͕
tal como se equilibram a emoção, força essencial do mito, e a
ƐĂďĞĚŽƌŝĂ ĚĂ ƌĂnjĆŽ ƉƌĄƟĐĂ ƋƵĞ ĚĞĮŶĞ Ž ĐŽŶƚŽ͕ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽ
este através de diferentes peripécias, as estruturas e as perso-
nagens da sociedade humana (Chevrier, 1974, p. 218). Mircea
Eliade explica ainda que as relações entre os mitos e os contos
se realizam de maneira diferente nas culturas orais em que a
ĚŝƐƚąŶĐŝĂ ƋƵĞ ƐĞƉĂƌĂ ĞƐƚĂƐ ĨŽƌŵĂƐ Ġ ŵĞŶŽƐ ŶşƟĚĂ ĚŽ ƋƵĞ ŶĂƐ
culturas onde existe um grande afastamento entre as classes dos
ůĞƚƌĂĚŽƐĞŽƉŽǀŽ͕ĐŽŵŽĨŽŝŽĐĂƐŽĚŽƉƌſdžŝŵŽͲŽƌŝĞŶƚĞ͕ŶĂĂŶƟ-
guidade, na Grécia ou da idade média europeia (Eliade 1963, p.
244). Assim, o que é deveras importante é o comportamento do
homem no que diz respeito ao sagrado e para Elíade, nem sem-
pre é verdade que o conto marque uma dessacralização do mun-
ĚŽŵşƟĐŽ͖ĠĂŶƚĞƐƵŵĂĚĞŐƌĂĚĂĕĆŽĚŽƐĂŐƌĂĚŽ͘;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϳͿ
O conto oral, transmissor de toda a tradição que se manteve ao longo do pe-
ƌşŽĚŽĐŽůŽŶŝĂů͕ĞƐƚĄĞŶƌĂŝnjĂĚŽŶĂƐŽƌŝŐĞŶƐĚĂĐƵůƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂĞƉŽƐƐƵŝƵŵĂƌŝƋƵĞnjĂ
ƚĞŵĄƟĐĂƋƵĞǀĂŝĚŽŵŽƌĂůĂŽƌĞůŝŐŝŽƐŽ͕ŵĂŶƚĞŶĚŽĂƌĞůĂĕĆŽĞŶƚƌĞĂƐŐĞƌĂĕƁĞƐƉĂƐƐĂ-
56 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĚĂƐĞĂƐĨƵƚƵƌĂƐ͘WŽƌƚĞƌĨƵŶĕĆŽĚŝĚĄƟĐĂ͕ǀŝƐĂŶĚŽĂŽďĞŵĚĂĐŽŵƵŶŝĚĂĚĞ͕ĂďƐŽƌǀĞŽƐ
temas da tradição e cria um universo ambíguo, onde “ombreiam, sem contradição,
ŽƌĞĂůĞŽŝƌƌĞĂů΀͘͘͘΁͕ƐĞŶĚŽͲůŚĞƉĞƌŵŝƟĚŽŝŶƚĞŐƌĂƌƚŽĚĂĂĞƐƉĠĐŝĞĚĞĞůĞŵĞŶƚŽƐ͕ƐĞ-
gundo a fantasia e o talento do contador” (AFONSO, 2004, p. 68).
KĐŽŶƚŽůŝƚĞƌĄƌŝŽĂĨƌŝĐĂŶŽĠƵŵĞdžĞƌĐşĐŝŽĚĞĞůĂďŽƌĂĕĆŽĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͕ĞŵƋƵĞ
ĂďƵƐĐĂƉŽƌƵŵĂĞƐƚĠƟĐĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞĞŶǀŽůǀĞŽƌĞŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽĚŽƉĂƐƐĂĚŽĂƚƌĂǀĠƐĚĂ
ĂƌƚĞ͘&ĂnjͲƐĞƵŵƌĞƐŐĂƚĞĚŽŵƵŶĚŽĂŶƟŐŽ͕ŵĂƐŶĆŽƐĞŵĐŚŽƋƵĞƐ͕ĚĞǀŝĚŽĂŽƐĐŽŶ-
frontos entre valores do passado e da contemporaneidade. Os griots dos tempos
ŵŽĚĞƌŶŽƐŶĆŽƐĞǀĂůĞŵĚĂǀŽnj͕ŵĂƐĚĂĞƐĐƌŝƚĂ͕ĞŵƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞƌĞƐŐĂƚĂƌǀĂůŽƌĞƐ
ĂŶƟŐŽƐĞŵǀŝĂĚĞĞdžƟŶĕĆŽ͘DŝƚŽƐĞƌŝƚŽƐƐĆŽĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞƌĞǀŝǀŝĚŽƐĞƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞ-
ƚĂĚŽƐŶĂŶŽǀĂƚƌĂĚŝĕĆŽʹĂĞƐĐƌŝƚĂʹ͕ŽŶĚĞŽĐŽŶĨƌŽŶƚŽ͞ĐŽŵĂƐůĞŝƐŝŶŇĞdžşǀĞŝƐĚŽƐ
ƌŝƚŽƐĞĂƐŽďƌĞǀŝǀġŶĐŝĂĚĞƐƚĞƐĠƚĆŽƚƌĄŐŝĐĂĐŽŵŽŽƐĞƵŝŶĞdžŽƌĄǀĞůĚĞƐĂƉĂƌĞĐŝŵĞŶƚŽ͟
(AFONSO, 2004, p. 68).
ŶĞƐƐĞƚĞdžƚŽƋƵĞ͕ǀŝĂĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂĕĆŽ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŽƋƵĞǀġʹĞ
ĐŽŵŽ ǀġ ʹ ƐƵďǀĞƌƚĞŶĚŽ ŽƐ ĞƐƟůŽƐ ĂŶƚĞƌŝŽƌĞƐ Ğŵ ŶŽǀĂƐ ĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐ Ğ ďƵƐĐĂŶĚŽ
ĂĞƐƚĠƟĐĂƋƵĞŵĂŝƐůŚĞĂƉƌŽƵǀĞƌ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŽĐŽŶƚĂĚŽƌƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͕ƋƵĞĂŶ-
ƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ ďƵƐĐĂǀĂ ǀĄƌŝŽƐ ŵĞƐƚƌĞƐ ƉĂƌĂ ĂƉƌĞŶĚĞƌ ŚŝƐƚſƌŝĂƐ ĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ Ğ ĞŶƚƌĞƚĞƌ
ŝŐƵĂůŵĞŶƚĞƐĞƵƉƷďůŝĐŽ͕ĂŐŽƌĂĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂǀĂƌŝĂĕƁĞƐ͕ǀŝƐĂŶĚŽĂƵŵĂĞƐƚĠƟĐĂŵĂŝƐ
ĂĚĞƋƵĂĚĂĂŽƋƵĞƉůĂŶĞũĂĂƟŶŐŝƌ͕ŽƋƵĞĨĂnjƚŽŵĂŶĚŽĂĂƌŵĂĚŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌʹĂĞƐĐƌŝ-
ta – e tornando-a sua. Manuel Rui, escritor angolano, em seu texto Eu e o Outro – O
Invasor ;ϭϵϴϳͿʹƚĞdžƚŽĞŵďůĞŵĄƟĐŽĚĞƐƐĂƌĞůĂĕĆŽĚĞĂƉƌŽƉƌŝĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂů͕ŽƋƵĂů
ĂƚĠŚŽũĞŽƌĂĠĂƉŽŶƚĂĚŽƉŽƌĂůŐƵŶƐĐŽŵŽĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽ͕ŽƌĂĐŽŵŽƚĞdžƚŽůŝƚĞƌĄƌŝŽʹ
metaforiza como o colonizado se apropria dessa arma:
YƵĂŶĚŽ ĐŚĞŐĂƐƚĞ ŵĂŝƐ ǀĞůŚŽƐ ĐŽŶƚĂǀĂŵ ĞƐƚſƌŝĂƐ ΀͘͘͘΁͘ K ƚĞdžƚŽ
ŽƌĂů͘΀͘͘͘΁ĞƌĂƚĞdžƚŽƉŽƌƋƵĞŚĂǀŝĂŐĞƐƚŽ͘dĞdžƚŽƉŽƌƋƵĞŚĂǀŝĂĚĂŶ-
ĕĂ͘dĞdžƚŽƉŽƌƋƵĞŚĂǀŝĂƌŝƚƵĂů͘dĞdžƚŽĨĂůĂĚŽŽƵǀŝĚŽǀŝƐƚŽ͘ĐĞƌƚŽ
que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais
velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar
ŽƐĐĂŶŚƁĞƐ͘΀͘͘͘΁DĂŝƐƚĂƌĚĞǀŝƌŝĂĂĐŽŶƐƚĂƚĂƌƋƵĞĚĞƟŶŚĂƐŵĂŝƐ
outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também
ƐŝƐƚĞŵĂƟĐĂŵĞŶƚĞŶŽƚĞdžƚŽƋƵĞĨĂnjŝĂƐĞƐĐƌŝƚŽŝŶǀĞŶƚĂǀĂƐĚĞƐƚƌƵŝƌ
ŽŵĞƵƚĞdžƚŽŽƵǀŝĚŽĞǀŝƐƚŽ͘΀͘͘͘΁DĂƐĂŐŽƌĂƐŝŶƚŽǀŽŶƚĂĚĞĚĞŵĞ
ĂƉŽĚĞƌĂƌĚŽƚĞƵĐĂŶŚĆŽ͕ĚĞƐŵŽŶƚĄͲůŽƉĞĕĂĂƉĞĕĂ͕ƌĞĨĂnjġͲůŽĞ
disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar
ŵĂƐƉĂƌĂĞdžƚĞƌŵŝŶĂƌĚĞůĞĂƉĂƌƚĞƋƵĞŵĞĂŐƌŝĚĞ͘ĮŶĂůĂƐƐŝŵ
ŝĚĞŶƟĮĐĂŶĚŽͲŵĞ ƐĞŵƉƌĞ ĞƵ͕ ĂƚĠ ƉŽƐƐŽ ĂũƵĚĂƌͲƚĞ ă ďƵƐĐĂ ĚĞ
ƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĞŵƋƵĞƐĞũĂƐƚƵƋƵĂŶĚŽĞƵƚĞŽůŚŽ͕ĞŵǀĞnjĚĞ
seres o outro. Mas para fazer isto eu tenho que transformar e
transformo-me. Assim na minha oratura para além das estórias
ĂŶƟŐĂƐ ŶĂ ŵĞŵſƌŝĂ ĚŽ ƚĞŵƉŽ ĞƵ ǀŽƵ ƉĂƐƐĂƌ Ă ŝŶĐůƵŝƌͲƚĞ͘ sŽƵ
ŝŶǀĞŶƚĂƌŶŽǀĂƐĞƐƚſƌŝĂƐ͘΀͘͘͘΁ĂŐŽƌĂŽŵĞƵƚĞdžƚŽƐĞĞůĞƚƌŽƵdžĞ
Ă ĞƐĐƌŝƚĂ͍ ΀͘͘͘΁ ^Ğ ĞƵ ƉĞƌĐŽ Ă ĐŽƐŵŝĐŝĚĂĚĞ ĚŽ ƌŝƚŽ ƉĞƌĐŽ Ă ůƵƚĂ͘
΀͘͘͘΁  ĞƵ ŶĆŽ ƉŽƐƐŽ ƌĞƟƌĂƌ ĚŽ ŵĞƵ ƚĞdžƚŽ Ă ĂƌŵĂ ƉƌŝŶĐŝƉĂů ͘ 
ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͘^ĞŽĮnjĞƌĚĞŝdžŽĚĞƐĞƌĞƵĞĮĐŽŽƵƚƌŽ͕ĂůŝĄƐ͕ĐŽŵŽŽ
ŽƵƚƌŽƋƵĞƌ͘ŶƚĆŽǀŽƵƉƌĞƐĞƌǀĂƌŽŵĞƵƚĞdžƚŽ͕ĞŶŐƌŽƐƐĄͲůŽŵĂŝƐ
ainda de cantos guerreiros. Mas a escrita? A escrita. Finalmente
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apodero-me dela. E agora? Vou passar o meu texto oral para a
ĞƐĐƌŝƚĂ͍EĆŽ͘ƋƵĞĂƉĂƌƟƌĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽĞŵƋƵĞĞƵŽƚƌĂŶƐĨĞ-
ƌŝƌƉĂƌĂŽĞƐƉĂĕŽĚĂĨŽůŚĂďƌĂŶĐĂ͕ĞůĞƋƵĂƐĞŵŽƌƌĞ͘΀͘͘͘΁EĆŽƚĞŵ
ƌŝƚƵĂů͘΀͘͘͘΁KƚĞdžƚŽƐĆŽďŽĐĂƐŶĞŐƌĂƐŶĂĞƐĐƌŝƚĂƋƵĂƐĞƌĞĚƵŶĚĂŵ
ŶƵŵŵƵƟƐŵŽƐŽďƌĞĂĨŽůŚĂďƌĂŶĐĂ͘KƚĞdžƚŽŽƌĂůƚĞŵǀĞnjĞƐƋƵĞ
ƐſƉŽĚĞƐĞƌĨĂůĂĚŽƉŽƌĂůŐƵŶƐĚĞŶſƐ͘ŚĄƉĂůĂǀƌĂƐƋƵĞƐſĂů-
guns de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este
ĐſĚŝŐŽĂŐůƵƟŶĂĚŽƌ͘KƵƚƌĂĂƌŵĂƐĞĐƌĞƚĂƉĂƌĂĐŽŵďĂƚĞƌŽŽƵƚƌŽĞ
ŝŵƉĞĚŝƌƋƵĞĞůĞŵĞĚĞƐĐŽĚŝĮƋƵĞƉĂƌĂĚĞƉŽŝƐŵĞĚĞƐƚƌƵŝƌ͘ŽŵŽ
escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca?
Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e subme-
ƚĞŶĚŽͲŵĞĂŽƌŝŐŽƌĚŽĐſĚŝŐŽƋƵĞĂĞƐĐƌŝƚĂũĄĐŽŵƉŽƌƚĂ͍΀͘͘͘΁EĆŽ
posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a
arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto.
/ŶǀĞŶƚŽŽƵƚƌŽƚĞdžƚŽ͘/ŶƚĞƌĮƌŽ͕ĚĞƐĞƐĐƌĞǀŽƉĂƌĂƋƵĞĐŽŶƋƵŝƐƚĞĂ
ƉĂƌƟƌĚŽŝŶƐƚƌƵŵĞŶƚŽĚĞĞƐĐƌŝƚĂƵŵƚĞdžƚŽĞƐĐƌŝƚŽŵĞƵ͕ĚĂŵŝŶŚĂ
ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͘KƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĚŽŵĞƵƚĞdžƚŽƚġŵĚĞƐĞŵŽǀŝŵĞŶ-
tar como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma
ƚĞŵŽƐ ĚĞ ƐĞƌ ŶſƐ͘ ͞EſƐ ŵĞƐŵŽƐ͘͟ ƐƐŝŵ ƌĞĨŽƌĕŽ Ă ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ
com a literatura. (Rui, apud MEDINA, 1987, p. 308-310)
ƐƐŝŵ͕ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĠƉŝĐĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹǀŝƐůƵŵďƌĂĚĂŶŽƐĐŝĐůŽƐĐĂƚĂĐůŝƐŵĄ-
ƟĐŽƐĚĂŶĂƚƵƌĞnjĂ;ƐĞĐĂƐ͕ĐŚĞŝĂƐ͕ƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƐĞƚĐ͘ͿĞĚŽŚŽŵĞŵ;ƉĞƐƚĞƐ͕ƉŽůşƟĐĂ͕
ŐƵĞƌƌĂƐĞƚĐ͘ͿʹƉĞƌŵŝƚĞƵŵĂƚƌĂŶƐƉŽƐŝĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƚĂůƋƵĞ͕ĐŽŶƚĞŵƉůĂŶĚŽŽƐmira-
biliaĚĂƚĞƌƌĂ͕ĨƌƵƚŽĚŽŵŝƐƟĐŝƐŵŽĚŽƐůƵŐĂƌĞƐʹƌŝƚƵĂŝƐ͕ƚƌĂĚŝĕƁĞƐʹĞƌĞŽƌĚĞŶĂĕĆŽ
ĚĂƐ ůŝŶŐƵĂŐĞŶƐ Ğ ĚŽƐ ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƐ͕ ĨŽƌŶĞĐĞŵ ƵŵĂ ĞŶĞƌŐŝĂ ĠƉŝĐĂ͘ ƐƚĂ Ġ ƚƌĂĚƵnjŝĚĂ
ƚĂŶƚŽŶĂĂƟƚƵĚĞƉĞƌĂŶƚĞŽŵĞŝŽĞŶǀŽůǀĞŶƚĞ͕ƋƵĂŶƚŽŶĂƉƌſƉƌŝĂƌĞĐŝƚĂĕĆŽƉŽĠƟĐĂ͘
ƉƌŽƐĂ͕ĞŶƚĆŽ͕ĂǀĂŶĕĂĐŽŵŽŽŐġŶĞƌŽƋƵĞ͕ƉŽƌĞdžĐĞůġŶĐŝĂ͕ĐŽĚŝĮĐĂĂƐĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ
ƌĞĂůŝĚĂĚĞƐĚĂƚĞƌƌĂĞŵƵŵĂĚŝĞŐĞƐĞĚĞŵƷůƟƉůĂƐƚŽŶĂůŝĚĂĚĞƐ͘
Literatura Moçambicana e Real-Animismo
EĂĨĂƐĞĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂ͕ĂŶĂƌƌĂƟǀĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹƐĞƵĞƐƉĂĕŽĚŝƐĐƵƌƐŝǀŽ
ʹƚŽƌŶĂͲƐĞƵŵƉŽŶƚŽĚĞĞŶĐŽŶƚƌŽĚĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƌĞůĂƟǀĂƐăƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂ-
ção, em que interferem elementos oriundos dos sistemas Real-Naturalista e, grosso
modo͕ĨĂŶƚĄƐƟĐŽʹƉŽĚĞƌşĂŵŽƐ͕ƌĞĐŽƌƌĞŶĚŽĂ&ƵƌƚĂĚŽ͕ƌĞĨĞƌŝƌŵŽͲŶŽƐĂƵŵƐŝƐƚĞŵĂ
do “metaempírico” – (AFONSO, 2004, p. 67) . Segundo Maria Fernanda Afonso,
KƐĐŝůĂŶĚŽĞŶƚƌĞŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞŽƌĞĂůŝƐŵŽŵĄŐŝĐŽ͕ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƵů-
ƚƌĂƉĂƐƐĂŽƐůŝŵŝƚĞƐŚĂďŝƚƵĂŝƐĚĂĮĐĕĆŽ͘dĞƌƌŝĮĐĂŶƚĞŽƵĨĂƐĐŝŶĂŶƚĞ͕
ĂǀŝƐĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƉƌŽƉŽƐƚĂĞǀŝĚĞŶĐŝĂĂƌĞĐƵƐĂĐĂƚĞŐſƌŝĐĂĚŽŵƵŶ-
do tal como ele aparece e uma vontade clara da sua reconstru-
ção. Não se trata de uma fuga à realidade, mas de uma dinâmica
ƋƵĞĞƐƟŵƵůĂĂƐĞŶƐŝďŝůŝĚĂĚĞĂƐĞƵƌĞƐƉĞŝƚŽ͘;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϱϱͲϯϱϲͿ
hŵďĞƌƚŽĐŽĂĮƌŵĂƋƵĞ͞ŽƐŵƵŶĚŽƐĮĐĐŝŽŶĂŝƐƐĆŽƉĂƌĂƐŝƚĂƐĚŽŵƵŶĚŽƌĞĂů
58 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
΀͘͘͘΁͚ƉĞƋƵĞŶŽƐŵƵŶĚŽƐ͛ƋƵĞĚĞůŝŵŝƚĂŵĂŵĂŝŽƌƉĂƌƚĞĚĞŶŽƐƐĂĐŽŵƉĞƚġŶĐŝĂĚŽŵƵŶ-
ĚŽƌĞĂůĞƉĞƌŵŝƚĞŵƋƵĞŶŽƐĐŽŶĐĞŶƚƌĞŵŽƐŶƵŵŵƵŶĚŽĮŶŝƚŽ͕ĨĞĐŚĂĚŽ͕ŵƵŝƚŽƐĞŵĞ-
lhante ao nosso” (1994, p. 91). Assim, nesse mundo “semelhante ao nosso”, a litera-
ƚƵƌĂƚŽŵĂĚĞĞŵƉƌĠƐƟŵŽĞůĞŵĞŶƚŽƐƉĂƌĂĞƐƚƌƵƚƵƌĂƌĂƐĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐĚĂĮĐĕĆŽʹĂĕĆŽ͕
personagem, tempo e espaço.
ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƉĞƌĐĞďĞƌŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐĚĞƐƐĞĐŽŶƚĞdžƚŽ͗ŽĞƐĐƌŝƚŽƌĂĨƌŝĐĂŶŽ
ĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞŽʹŽƌŝƵŶĚŽĚĞƵŵƉĂşƐĚĞůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕
Moçambique – tem como herança tanto uma literatura colonial, que não necessaria-
ŵĞŶƚĞŽƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂǀĂ͕ĞƐĐƌŝƚĂƉŽƌƵŵĂĞůŝƚĞĐŝƚĂĚŝŶĂƋƵĞĐĂŶƚĂǀĂƵŵĂŶĂĕĆŽĞdžſƟĐĂ͖
quanto, por outro lado, mas não menos importante, uma outra vertente, envolvida
ĐŽŵŽĞŶŐĂũĂŵĞŶƚŽƉŽůşƟĐŽ͘dĞŶĚŽĞŵŵĞŶƚĞƵŵĂƌĞŶŽǀĂĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂ͕ĞƐƐĞĞƐĐƌŝƚŽƌ
busca um novo viés, experimenta outros caminhos e possibilidades. Ao perceber o
mundo que o rodeia – a realidade africana – ele o tenta traduzir. Em verdade, o pró-
ƉƌŝŽĂƚŽĚĂƉĞƌĐĞƉĕĆŽũĄƉƌĞƐƐƵƉƁĞŽĚĂƚƌĂĚƵĕĆŽ;^Ed>>͕ϭϵϴϯ͕Ɖ͘ϲϴͿ͕ŵĂƐŽ
escritor, de posse de seus instrumentos, ao perceber a realidade ao seu redor, busca
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĄͲůĂůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞĂƚƌĂǀĠƐĚĂƉĂůĂǀƌĂ͘ĞǀĞͲƐĞĨƌŝƐĂƌ͕ĐŽŵŽũĄĂĮƌŵĂDĂƌŝĂ
Fernanda Afonso, que:
o escritor africano opõe-se à representação que o “centro” ela-
ďŽƌŽƵƐŽďƌĞŽŚŽŵĞŵŶĞŐƌŽ͕ŵĂƐƐĂďĞŶĚŽƋƵĞĚĂƐƵĂŝĚĞŶƟ-
dade fazem parte elementos que adquiriu com a presença do
Outro, mostra-se pronto em colaborar num processo recíproco
ĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐĞŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĞŶƚƌĞĐƵůƚƵƌĂƐ͕
relevando com grande imaginação as suas raízes culturais. (A
FONSO, 2007, p. 546)
Ao longo de seu processo de ruptura com a hegemonia dos cânones europeus, essas
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĂĨƌŝĐĂŶĂƐ͕ĞŵƐƵĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞĞŵĞƌŐĞŶƚĞƐ͕ŐĞƌĂŵƵŵĞƐƉĂĕŽŶĂƌƌĂƟǀŽ
ĚĞĞŶĐŽŶƚƌŽĚĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƌĞůĂƟǀĂƐăƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ͘WƌŽĐƵƌĂŶĚŽƐĞůŝďĞƌ-
ƚĂƌʹĞĂƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽƵŵĂŵĂŝŽƌƉƌŽdžŝŵŝĚĂĚĞƐſĐŝŽͲƉŽůşƟĐŽͲĐƵůƚƵƌĂůĐŽŵĂƐůŝƚĞƌĂƚƵ-
ƌĂƐůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂƐʹ͕ĞƐƐĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐƚƌĂnjĞŵăƚŽŶĂƵŵƵŶŝǀĞƌƐŽŽŶĚĞ͞ŽƌĞĂůĞ
o sobrenatural coabitam de forma natural” (AFONSO, 2004, p. 349). A ideia de reno-
ǀĂĕĆŽͬĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂ͕ŽƌĂŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚĂƉĞůĂƐĐŽƌƌĞŶƚĞƐĚĞǀĂŶŐƵĂƌĚĂʹĂ
ĞdžĞŵƉůŽĚĂƐƉƌŽƉŽƐƚĂƐĚĞůĞũŽĂƌƉĞŶƟĞƌ;ϭϵϰϵ͖ϭϵϴϰͿĞ/ƌůĞŵĂƌŚŝĂŵƉŝ;ϭϵϴϬͿʹ
promovem um retorno do escritor moçambicano à sua própria terra, cultura e seus
ĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ͘EĞƐƐĂƚƌĂŶƐƉŽƐŝĕĆŽĚŽƐĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽƐŽƌĂŝƐʹŶĂƌƌĂƟǀĂƐʹƉĂƌĂŽ
plano da escrita, o discurso “coincide com o próprio material verbal que veicula a
ŚŝƐƚſƌŝĂ͕ŽĐŽŶũƵŶƚŽĚŽƐĞůĞŵĞŶƚŽƐůŝŶŐƵşƐƟĐŽƐ͟;Z/^Ğ>KW^͕ϭϵϵϲ͕Ɖ͘ϭϭϭͿ͘DŝĂ
Couto aponta essa preocupação dos escritores moçambicanos contemporâneos,
ďƵƐĐĂŶĚŽ Ƶŵ ŵŝƐƚŽ ĚĞ ĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ ƌĞĂůŝƐŵŽ Ğ ƚƌĂĚŝĕĆŽ Ğŵ ƐƵĂ ĞƐĐƌŝƚĂ͘ ĐĞƌĐĂ
ĚĞƐƐĂĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ĞůĞĚĞĐůĂƌĂƋƵĞ͗
entre o convite ao esquecimento da Europa e o sonho de ser
americano, a saída só pode ser vista como um passo para a
frente. Os intelectuais africanos não têm que se envergonhar da
ƐƵĂĂƉĞƚġŶĐŝĂƉĂƌĂĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵ͘ůĞƐŶĆŽŶĞĐĞƐƐŝƚĂŵĚĞĐŽƌ-
ISBN 978-85-8199-013-2 59
João Olinto Trindade Junior
ƌĞƐƉŽŶĚĞƌăŝŵĂŐĞŵƋƵĞŽƐŵŝƚŽƐĞƵƌŽƉĞƵƐĮnjĞƌĂŵĚĞůĞƐ͘EĆŽ
ĐĂƌĞĐĞŵĚĞĂƌƟİĐŝŽƐŶĞŵĚĞĨĞƟĐŚĞƐƉĂƌĂƐĞƌĞŵĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͘ůĞƐ
são africanos assim mesmo como são, urbanos de alma mista
Ğ ŵĞƐĐůĂĚĂ͕ ƉŽƌƋƵĞ ĨƌŝĐĂ ƚĞŵ ĚŝƌĞŝƚŽ ƉůĞŶŽ ă ŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͕
ƚĞŵĚŝƌĞŝƚŽĂĂƐƐƵŵŝƌĂƐŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐƋƵĞĞůĂƉƌſƉƌŝĂŝŶŝĐŝŽƵĞ
que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica. (Couto, apud
&KE^͖hZz͕ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϰͲϭϱͿ
ŵďŽƌĂĂƋƵĞƐƚĆŽĚĂ͞ĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂ͟;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϲϬͿƐĞũĂĐƌŝ-
ƟĐĂĚĂ͕ĞůĂĠďƵƐĐĂĚĂ͕ĂůŵĞũĂĚĂƉĞůŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͘ŽŵĂĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂĕĆŽĞŵƉƌĞĞŶĚŝĚĂ͕
ǀŝƐĂŶĚŽ Ă Ƶŵ ĂŵĂĚƵƌĞĐŝŵĞŶƚŽ ĞƐƚĠƟĐŽ͕ Ă Įŵ ĚĞ ĂƟŶŐŝƌ ƵŵĂ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ ƌĞĂů
do “nós” africano/moçambicano, esses escritores buscam um reconhecimento, no
ƵŶŝǀĞƌƐŽ ůŝƚĞƌĄƌŝŽ ƋƵĞ ůŚĞƐ ƐĞũĂ ĚĞ ĚŝƌĞŝƚŽ͘ ƐƐĞ ƌĞĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽ͕ ĞŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ ŶĆŽ
pode representar um completo esquecimento da Europa (COUTO, 2005, p. 61), em
ƉƌŽůĚĞƵŵĂ͞ƉƵƌĞnjĂĐƵůƚƵƌĂů͕͟ƉŽŝƐĞƐƐĂƌĞŶŽǀĂĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƉĂƐƐĂ͕ŶĞĐĞƐƐĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕
não apenas pela literatura europeia, mas dialoga com o cânone ocidental em sua
diversidade.
DŝĂŽƵƚŽĂǀĂŶĕĂĞŵƐƵĂƐŽƉŝŶŝƁĞƐĂĐĞƌĐĂĚĞƐƐĞŶŽǀŽĞŶŐĂũĂŵĞŶƚŽůŝƚĞ-
ƌĄƌŝŽ͕ĂĮƌŵĂŶĚŽƋƵĞ
ŽƐ ĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐ ĐƵŵƉƌĞŵ ŚŽũĞ Ƶŵ ĐŽŵƉƌŽŵŝƐƐŽ
de ordem étnica: pensar este Moçambique e sonhar um outro
Moçambique. Correm o risco, como todos os criadores de todos
ŽƐ ŽƵƚƌŽƐ ƉĂşƐĞƐ͕ ĚĞ ƐĞƌĞŵ ĚĞǀŽƌĂĚŽƐ ƉŽƌ ĞƐƐĂ ŵĞƐŵĂ ƉĄƚƌŝĂ
ƋƵĞĞůĞƐĂũƵĚĂƌĂŵĂůŝďĞƌƚĂƌ͟ . (2005, p. 63)
Os escritores experimentam, em seu processo de produção, a necessidade
ĚĞĞŶƌĂŝnjĂŵĞŶƚŽŶĞƐƐĞƵŶŝǀĞƌƐŽŵşƟĐŽͬŵşƐƟĐŽ͕ĚŝǀĞƌƐŽĞŚşďƌŝĚŽ͕ĂĮŵĚĞƐĞƌĞĞŶ-
contrarem com valores telúricos.
DĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽĐŽŵĞŶƚĂĐŽŵŽǀĄƌŝŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĂƐƐƵŵŝƌĂŵĂƐĞƐ-
ƚƌĂƚĠŐŝĂƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹƐĞŶĚŽƋƵĞŵƵŝƚŽƐĂůĂƌŐĂƌĂŵĞŵŽĚŝĮĐĂƌĂŵ͕ŶĂƉƌĄƟĐĂ
ĮĐĐŝŽŶĂů͕ĂƐĞƐƚƌƵƚƵƌĂƐĐŽŶĐĞďŝĚĂƐƉŽƌdŽĚŽƌŽǀ͕ǀŝƐĂŶĚŽăĂĚĂƉƚĂĕĆŽĂƐĞƵƌĞƐƉĞĐ-
ƟǀŽ ĐŽŶƚĞdžƚŽ ƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂů ;ϮϬϬϰ͕ Ɖ͘ ϯϱϳͿ ʹ ƉŽƌ ŝŶŇƵġŶĐŝĂ ĚĂ ĮĐĕĆŽ ĚĂ ŵĠƌŝĐĂ
>ĂƟŶĂ͕ ĐŽŵŽ Ġ Ž ĐĂƐŽ ĚŽ ĞƐĐƌŝƚŽƌ ^ŽŶLJ >ĂǀŽƵ dĂŶƐŝ͕ ŝŶŇƵĞŶĐŝĂĚŽ ƉŽƌ 'ĂƌĐşĂ
DĄƌƋƵĞnj;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϱϴͿ͘
 ŝŶŇƵġŶĐŝĂ ĚŽ ZĞĂůŝƐŵŽ DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ʹ Ğ͕ ƉŽƌ ĐŽŶƐĞŐƵŝŶƚĞ͕ ĚŽ ŶŝŵŝƐƚĂ ʹ͕
ĞŵǀĞƌƚĞŶƚĞƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ƐĞĚĄƉĞůĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ͕ŶŽƉůĂŶŽĚĂĚŝĞŐĞƐĞ͕
ĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ĐŽŵƉƌĞƐĞŶĕĂŵĂƌĐĂŶƚĞ͕ĐŽŵŽĞůĞŵĞŶƚŽŝŶƚĞŐƌĂŶƚĞ
ĚŽ ŵƵŶĚŽ ƉŽƐƐşǀĞů ʹ Ă ĞdžĞŵƉůŽ ĚĂƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ O Segredo da Morta (1979) e Um
Rio Chamado Tempo, uma Casa chamada terra ;ϮϬϬϯͿ͘ dĂů ĨĞŶƀŵĞŶŽ ĂŐŝƌŝĂ ĐŽŵŽ
uma referência mediadora entre o mundo empírico e sua representação metaem-
ƉşƌŝĐĂŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ;&KE^K͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϱϵͿ͘ƐƐĂĐŽŶĐĞƉĕĆŽĚŝĞŐĠƟĐĂ͕ƋƵĞƌĞƷŶĞŽƐ
realia aos mirabilia͕ŶĆŽĂƉĞŶĂƐĞƐƚĄƉƌĞƐĞŶƚĞĞŵĨƌŝĐĂʹŽƵ͕ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕Ğŵ
Moçambique –, mas é resgatada como herança de uma literatura da oralidade, que
se manteve ao longo dos séculos como forma de resistência, e que o escritor resgata
ĐŽŵŽ͞ƌĞŶŽǀĂĕĆŽ͟ĞƐƚĠƟĐĂĞŝĚĞŶƟƚĄƌŝĂ͘
60 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
^Ğ͕ĂĞdžĞŵƉůŽĚĞĂƌƉĞŶƟĞƌ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽǀŽůƚĂͲƐĞƉĂƌĂĂƐŵĂ-
ƌĂǀŝůŚĂƐĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ŽĂĨƌŝĐĂŶŽͬŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽʹĞĂƋƵŝ͕ĠƌĞůĞǀĂŶƚĞƌĞůĞŵďƌĂƌ-
ŵŽƐĂŽďƐĞƌǀĂĕĆŽĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞĨĞŝƚĂƐŽďƌĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞƐĞƌƵŵĂƉĄƚƌŝĂĚĞƉŽĞƚĂƐ
– volta-se para dentro de seu mundo, buscando resgatar, redescobrir ou reinventar
ƐƵĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐ͕ĂĚĂƉƚĂŶĚŽƵŵĂĞƐƚĠƟĐĂĞƐƚƌĂŶŐĞŝƌĂ͕ĂƐƵĂſƟĐĂŝŶĐŽŵƵŵĚĞ
ver o mundo, o que faz observando as maravilhas de sua existência, em sua terra,
ƌĞĐƌŝĂŶĚŽͲĂĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͘
DŝĂŽƵƚŽĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ
DŝĂŽƵƚŽʹƉƐĞƵĚƀŶŝŵŽĚĞŶƚſŶŝŽŵşůŝŽ>ĞŝƚĞŽƵƚŽʹŶĂƐĐĞƵĞŵϬϱĚĞ
ũƵůŚŽĚĞϭϵϱϱ͕ŶĂĐŝĚĂĚĞĚĂĞŝƌĂ͕ƉƌŽǀşŶĐŝĂĚĞ^ŽĨĂůĂ͕ĚĞƐĐĞŶĚĞŶƚĞĚĞƵŵĂ͞ĨĂŵşůŝĂ
de emigrantes portugueses que chegaram a Moçambique no princípio da década de
50” (Couto, apud,>͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϮϳϰͿ͘KĞƐĐƌŝƚŽƌƐĞĚĞĮŶĞĐŽŵŽƉĞƌƚĞŶĐĞŶƚĞĂ
ƵŵĂƚĞƌƌĂ͕ŝĚĞŶƟĮĐĂĚĂƉŽƌĞůĞĐŽŵŽƐĞŶĚŽƵŵ͞ŵŽƐĂŝĐŽĐƵůƚƵƌĂů͕͟ƉŽƌƋƵĞĨŽƌŵĂĚĂ
ƉŽƌ ƚĂŶƚĂƐ ĐƵůƚƵƌĂƐ Ğ ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐ ƋƵĞ ĂĨĞƚĂŵ ĚŝƌĞƚĂŵĞŶƚĞ ƐƵĂ ƉƌŽĚƵĕĆŽ ƚĞdžƚƵĂů͕
conforme explica, em entrevista dada a Chabal:
KŵĞƵƉĂŝ΀&ĞƌŶĂŶĚŽŽƵƚŽ͕ŶĂƚƵƌĂůĚĞZŝŽdŝŶƚŽ͕ĂƌƌĞĚŽƌĞƐĚŽ
WŽƌƚŽ΁ĞƌĂũŽƌŶĂůŝƐƚĂĞƉŽĞƚĂ͘ůĞƉƵďůŝĐŽƵĐŝŶĐŽŽƵƐĞŝƐơƚƵůŽƐ
ĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ƵŵĂƉŽĞƐŝĂƉŽƵĐŽşŶƟŵĂ͕ŵĂƐƚĂŵďĠŵĚŽŝƐ
΀͘͘͘΁ƋƵĞƚĞŶƚĂƌĂŵƐĞƌůŝǀƌŽƐĚĞƉƌĞŽĐƵƉĂĕĆŽƐŽĐŝĂů΀͘͘͘΁ĞŵƋƵĞ
ĂƚĞŵĄƟĐĂĞƌĂŵĂŝƐĂŶƟĨĂƐĐŝƐƚĂ͕ůŝďĞƌĂů͕ĚĞŵŽĐƌĄƟĐĂ͘DĂƐŶĆŽ
ƋƵĞƐƟŽŶĂŶĚŽĂŝŶĚĂĂƋƵĞƐƚĆŽĐŽůŽŶŝĂů͘ĨĂŵşůŝĂĚŽŵĞƵƉĂŝĠ
gente que enriqueceu um pouco no período da guerra, com ga-
ƌĂŐĞƐ͕ĞƟŶŚĂŵƉŽƌƚĂŶƚŽŶĞŐſĐŝŽƐůŝŐĂĚŽƐĂĂƵƚŽŵſǀĞŝƐ͘ƌĂŵ
ĚŽWŽƌƚŽ͘KŵĞƵƉĂŝĨŽŝƉĂƌĂĂĨƌŝĐĂƉŽƌƋƵĞĂĐŚŽƋƵĞĞůĞƋƵĞƌŝĂ
ƐĞŐƵŝƌĂĐĂƌƌĞŝƌĂũŽƌŶĂůşƐƟĐĂĞŶĆŽŚĂǀŝĂŵƵŝƚĂŚŝƉſƚĞƐĞĚĞĞŵ-
prego nessa altura em Portugal, penso que foi por isso. Mas ha-
via também uma sensação de que eles precisavam de mais espa-
ĕŽ͕ƉƌĞĐŝƐĂǀĂŵĚĞĐŽŵĞĕĂƌƵŵĂĐŽŝƐĂŶŽǀĂ͘ŵŝŶŚĂŵĆĞ΀DĂƌŝĂ
ĚĞ:ĞƐƵƐ΁ǀĞŵĚƵŵĂĂůĚĞŝĂĚĞdƌĄƐͲŽƐͲDŽŶƚĞƐ͕ŶĆŽƚĞŵŚŝƐƚſƌŝĂ
porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no
ƉĂƌƚŽĚƵŵĂƉƌſdžŝŵĂŝƌŵĆ͘ůĂĮĐŽƵſƌĨĆ͕ĂďĂŶĚŽŶĂĚĂ͕ĚĞƉŽŝƐĨŽŝ
ĂĐŽůŚŝĚĂƉŽƌƵŵƉĂĚƌĞƋƵĞƐĞĂƉƌĞƐĞŶƚŽƵĐŽŵŽƐĞŶĚŽƟŽĚĞůĂƐ͘
Então o nome dela foi reescrito, foi inventado para ela não ter
uma ligação com a mãe – uma “senhora do pecado”. Penso que
ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai passou...
“distraído”, ela agarrou-o e foram para o Porto. Depois foram
de Portugal para Moçambique e nascemos nós, três irmãos, eu
sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais velho, e o mais
novo, que tem uma diferença de sete anos de mim, chama-se
Armando Jorge. (Couto, apud CHABAL, 1994, p. 274-275)
^ƵĂƐƉĂůĂǀƌĂƐũĄĚĞŶƵŶĐŝĂŵƵŵĐŽŶƚĞdžƚŽĨĂŵŝůŝĂƌƋƵĞĠĐŽŵƵŵĂŵƵŝƚŽƐ
ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐƋƵĞĨŽƌĂŵƉĂƌĂĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ĂƉſƐĂďƌĂĕĂƌĞŵĂƉƌŽƉĂŐĂŶĚĂƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ
ISBN 978-85-8199-013-2 61
João Olinto Trindade Junior
do Império Português no além-mar, coincidindo com a época na qual, segundo o
ũŽƌŶĂůŝƐƚĂ͕ĞƐĐƌŝƚŽƌĞ͕ŶĂĠƉŽĐĂĚĂĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂ͕ĞŶƚĆŽƌĞŝƚŽƌĚĂhŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞdĠĐŶŝĐĂ
de Moçambique, José Luís Cabaço:
A crise mundial de 1929 criaria escassez de emprego nos territó-
ƌŝŽƐƵůƚƌĂŵĂƌŝŶŽƐ΀͘͘͘΁͘ƐŽƉŽƌƚƵŶŝĚĂĚĞƐĚĞƌŝƋƵĞnjĂƐƵƌŐŝƌĂŵĐŽŵ
a elevação dos preços internacionais das matérias-primas duran-
ƚĞŽĐŽŶŇŝƚŽĞŶŽƐĂŶŽƐƋƵĞŝŵĞĚŝĂƚĂŵĞŶƚĞƐĞůŚĞƐĞŐƵŝƌĂŵ͘K
ŶƷŵĞƌŽĚĞĐŽůŽŶŽƐƋƵĞĐŽŵĞĕŽƵĂĞŵďĂƌĐĂƌƉĂƌĂĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕
principalmente Angola e Moçambique, aumentou visivelmente
΀͘͘͘΁͘KƐĐŽůŽŶŽƐƋƵĞĐŚĞŐĂǀĂŵĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞǀŝŶŚĂŵŝŵďƵşĚŽƐ
ĚĂ͞ŵşƐƟĐĂĚŽŝŵƉĠƌŝŽ͕͟ĂƌƌĂŝŐĂĚĂƉĞůĂƉƌŽƉĂŐĂŶĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞ
e reforçada, quer pela sua natureza pequeno-burguesa (os que
provinham dos minifúndios das Beiras, centro de Portugal, ou
ĚĂƐĐĂŵĂĚĂƐďĂŝdžĂƐĚŽƚĞƌĐŝĄƌŝŽͿ͕ƋƵĞƌƉĞůĂŝŶŇƵġŶĐŝĂĚŽĐĂƚŽ-
ůŝĐŝƐŵŽŵĂŝƐƌĞƚƌſŐƌĂĚŽĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ;ŽƐƋƵĞĐŚĞŐĂǀĂŵĚĞdƌĄƐͲ
ŽƐͲDŽŶƚĞƐͿ͘KĐƵůƚŽĂ^ĂůĂnjĂƌ͕ŽĞƐƚĂĚŝƐƚĂƋƵĞŽƌŐĂŶŝnjĂƌĂĂƐĮ-
ŶĂŶĕĂƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐĞŵĂŶƟǀĞƌĂWŽƌƚƵŐĂůĨŽƌĂĚŽĐŽŶŇŝƚŽŵƵŶĚŝĂů͕
estava então no seu apogeu. (2007, p. 131-132)
Era essas a realidade da família Couto ao chegar a Moçambique em bus-
ca de novas oportunidades e a “nação portuguesa” na qual cresceram ele e seus
ŝƌŵĆŽƐ͘KĂŵďŝĞŶƚĞĨĂŵŝůŝĂƌƋƵĞŚĂďŝƚŽƵŝŶŇƵĞŶĐŝŽƵďĂƐƚĂŶƚĞƐƵĂƌĞůĂĕĆŽĐŽŵĂ
ƚĞƌƌĂ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞ͕ĐŽŵŽĞdžĞŵƉůŽ͕ƉƀĚĞĐŽŶƚĞŵƉůĂƌĂĂƟƚƵĚĞĚĞƐĞƵƐƉĂŝƐƋƵĞ͕
ao observarem o tratamento dado aos negros, promoviam uma postura oposta a
ĚĞƐĞƵƐĐŽŵƉĂƚƌŝŽƚĂƐ͘&ĂůĂŶĚŽĚĞƐƵĂŚŝƐƚſƌŝĂ͕DŝĂŽƵƚŽĚŝnj͗͞ĞŵŵŝŶŚĂĐĂƐĂ΀͘͘͘΁
havia este ensinamento de que não pode ser assim, não deve ser assim” (apud
,>͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϮϳϱͿ͘ĚĞĮŶĞƐƵĂĨŽƌŵĂĕĆŽ͕ĞŵƉĂƌƚĞ͕ƉĞůŽĂŵŽƌĂŽƐŚŽŵĞŶƐ
independentemente da origem, mas, também, pelo amor à literatura.
Criado na Beira – não a portuguesa, mas a de Moçambique –, descobriu a mul-
ƟƉůŝĐŝĚĂĚĞĚĞƉĂşƐĞƐĚĞŶƚƌŽĚĞƵŵŵĞƐŵŽƉĂşƐ͕ĞƐĞƵƐƵŶŝǀĞƌƐŽƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĞƐŽĐŝĂŝƐ
(COUTO, 2005, p. 150), além de aprender muito com a convivência ali, entre os brancos
portugueses e os negros da terra. Resumiu, assim, sua infância, ao dizer que “na rua
ĐŽŵĞĕĂǀĂĂĨƌŝĐĂ͕ĞŵĐĂƐĂĞƐƚĂǀĂĂƵƌŽƉĂ͟;ŽƵƚŽapud CHABAL, 1994, p. 275), frase
que aparece parafraseada em Vinte e zinco, na fala da personagem Margarida, viúva
de Joaquim de Castro, o agente da PIDE que comandava as ações em Vila Moebase,
em que se passa a história, também mãe de Lourenço de Castro, sucedâneo do pai,
ŝŐƵĂůŵĞŶƚĞ ĂŐĞŶƚĞ W/͕ ĮŐƵƌĂ ĐĞŶƚƌĂů ŶŽ ĚĞƐĞŶƌŽůĂƌ Ğ ŶŽ ĚĞƐĨĞĐŚŽ ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ͘
DĂƌŐĂƌŝĚĂĚĞĂƐƚƌŽ͕ĞŵĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽŵŽŵĞŶƚŽ͕Ěŝnj͞ĨƌŝĐĂĐŽŵĞĕĂǀĂůŽŐŽĂůŝ͕ŶŽ
sopé da varanda. Não se podia facilitar” (COUTO, 2004, p. 48).
DŝĂŽƵƚŽƐĞŵƵĚĂ͕Ğŵϭϵϳϭ͕ƉĂƌĂ>ŽƵƌĞŶĕŽDĂƌƋƵĞƐʹĂŶƟŐŽŶŽŵĞĚĂĐĂ-
ƉŝƚĂůŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ĂƚƵĂůDĂƉƵƚŽʹ͕ĐŽŵŽŝŶƚƵŝƚŽĚĞĞƐƚƵĚĂƌŵĞĚŝĐŝŶĂ͘>Ą͕ƚƌĂǀĂŶĚŽ
ĐŽŶƚĂƚŽĐŽŵŽƐĂƌĞƐƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐŽƐƋƵĞƐŽƉƌĂǀĂŵŶĂĐĂƉŝƚĂůĞ͕ƚĂŵďĠŵ͕ŶŽƐŐƌĂŶĚĞƐ
ĐĞŶƚƌŽƐ ĞĐŽŶƀŵŝĐŽƐ ĚĂƐ ĚĞŵĂŝƐ ĐŽůƀŶŝĂƐ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ Ğŵ ĨƌŝĐĂ͕ Ž ĞƐƚƵĚĂŶƚĞ͕ ŝŶ-
ŇƵĞŶĐŝĂĚŽƉŽƌĞƐƐĞƐĂƌĞƐ͕ĞŶƚƌĂƉĂƌĂĂ&Z>/DK͕ĂďĂŶĚŽŶĂŽĐƵƌƐŽĚĞŵĞĚŝĐŝŶĂĞ
ƉĂƐƐĂĂĞdžĞƌĐĞƌŽũŽƌŶĂůŝƐŵŽĞŶŐĂũĂĚŽĐŽŵŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽƉĞůĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͘
62 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
dĞŵƉŽƐĚĞƉŽŝƐ͕ũĄŶŽĐŽŵĞĕŽĚŽƉĞƌşŽĚŽĚĂƉſƐͲŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂʹůŽŐŽĂƐĞ-
ŐƵŝƌĂŽĮŵĚĂŐƵĞƌƌĂĚĞĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽʹ͕DŝĂŽƵƚŽƐĞĚĞƐůŝŐĂĚĂ&Z>/DK͕ƋƵĞ͕ŶŽ
ƐĞƵĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽ͕ĚĞƐĐŽŶƐŝĚĞƌĂǀĂĂƐĚŝĂůĠƟĐĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĞĂƐĐŽŶĮŐƵƌĂĕƁĞƐƐŽĐŝĂŝƐ
da terra. Nessa mesma época, sua família se dispersa, com retorno a Portugal. A
ŵĂŶĞŝƌĂĐŽŵŽŽĞƐĐƌŝƚŽƌƐĞƌĞĨĞƌĞ͕ŶĂĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂĚĂĚĂĂWĂƚƌŝĐŬŚĂďĂů͕ĂŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞ-
ses no Moçambique liberto, mais propriamente a alguns daqueles que retornaram a
Portugal, e, também, às mudanças vivenciadas nesses espaços, é relevante para nos-
so estudo, pois, em Vinte e zinco, situações semelhantes poderão ser apontadas nas
relações internas à família Castro e em suas relações com o meio, tendo igualmente
por referência o 25 de Abril de 1974.
Naquela entrevista, falando de seus próprios pais, ele comenta como eles
͞ƉĞƌƚĞŶĐĞŵ ăƋƵĞůĂ ŐĞŶƚĞ ƋƵĞ ũĄ ŶĆŽ ƚĞŵ ŵƵŶĚŽ͕ ƉŽƌƋƵĞ ΀͘͘͘΁ WŽƌƚƵŐĂů ũĄ ŶĆŽ Ġ
ĂƋƵĞůĞWŽƌƚƵŐĂůƋƵĞĞůĞƐĚĞŝdžĂƌĂŵ͕ĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞƚĂŵďĠŵũĄŶĆŽĠĂƋƵŝůŽƋƵĞĞůĞƐ
ƟŶŚĂŵĞŶĐŽŶƚƌĂĚŽĞŽŶĚĞƐĂďŝĂŵǀŝǀĞƌ͘WŽƌƚĂŶƚŽĞůĞƐƉĞƌƚĞŶĐĞŵĂƵŵĂƚĞƌƌĂĚĞ
ninguém, não têm mundo” (Couto apud CHABAL, 1994, p. 282).
Tempos depois, Mia Couto retoma os estudos, dedica-se à biologia e entra
para a carreira de biólogo. Sua dedicação à nova carreira reverbera uma necessidade
em (re)conhecer a mosaica realidade moçambicana em pungente mutação, vonta-
ĚĞĚĞŵĞƌŐƵůŚĂƌŶĂƐƌĂşnjĞƐĚĂƋƵĞůĞũŽǀĞŵƉĂşƐ;ŽƵƚŽapud CHABAL, p. 285-286).
O biólogo adentra a imensidão do território moçambicano – a exemplo do moder-
ŶŝƐƚĂDĄƌŝŽĚĞŶĚƌĂĚĞ͕ĂŽĞƐƚƵĚĂƌŽĨŽůĐůŽƌĞďƌĂƐŝůĞŝƌŽĞ͕ĐŽŵŝƐƐŽ͕ƌĞƐŐĂƚĂŵŝƚŽƐ
ŝŶĚşŐĞŶĂƐ͕ ĂĨƌŝĐĂŶŽƐ Ğ ƐĞƌƚĂŶĞũŽƐ ;K^/͕ ϮϬϬϲ͕ ϯϱϭͲϯϱϮͿ ʹ͕ ĚĞ ŐĞŽŐƌĂĮĂ ŚĞƚĞƌŽŐġ-
ŶĞĂ͕ Ğŵ ŵƵŝƚŽ ŵşƟĐĂ͕ Ă ƉĂƌƟƌ ĚĞ ƐĞƵ ŽůŚĂƌ͘ ƐƐŝŵ͕ ƐƵĂ ĞƐĐƌŝƚĂ ƐĞŐƵŝƌĄ Ă ǀŝƐĆŽ ĚĞ
um Moçambique não uno – em que Estado e Nação não se emparelham na repre-
sentação de um mesmo valor histórico, cultural e étnico –, mas plural em todas as
ƐƵĂƐĐŽŵƉůĞdžŝĚĂĚĞƐĞƚĞƌƌŝƚŽƌŝĂůŝĚĂĚĞƐ͕ǀĂƐƟĚĆŽĚĞĐƵůƚƵƌĂƐ͕ŵŝƚŽƐ͕ƌŝƚŽƐ͕ĐƌĞŶĕĂƐĞ͕
ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞ͕ŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐʹDŽĕĂŵďŝƋƵĞĠƵŵƉĂşƐŚşďƌŝĚŽ͘
Seu primeiro livro, Raiz de Orvalho ;ϭϵϴϯ͕ϭǐĞĚŝĕĆŽ͘ϮϬϬϭ͕ĞĚŝĕĆŽĂƋƵŝƵƟ-
ůŝnjĂĚĂͿ͕ƐĞŐƵĞƉĞƌĐƵƌƐŽƐĐŽŶƚƌĄƌŝŽƐăƐƚĞŶĚġŶĐŝĂƐǀŝŐĞŶƚĞƐĚĂĠƉŽĐĂ͕ƋƵĞĞƌĂŵĞŵŝ
ŶĞŶƚĞŵĞŶƚĞƉĂŶŇĞƚĄƌŝĂƐĞĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚĂƐĐŽŵŽƐŝĚĞĂŝƐĚŽĨŽƌũĂĚŽƐƚĂĚŽͲEĂĕĆŽ
ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͕ ƚĞŶŚĂ ƐŝĚŽ͕ ĂŶƚĞƐ͕ ƉĞůĂ ĨŽƌĕĂ ĚŽƐ ĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌĞƐ͕ ƐĞũĂ͕ ĂŐŽƌĂ͕ ƉĞůŽƐ
ideais da nova elite local dominante. Com isso, o escritor assume ser, ele também,
ƵŵŝŶĚŝǀŝĚƵŽŚşďƌŝĚŽ͕ĞŵƵŵƉĂşƐƋƵĞĠ͕ƐŽďƐƵĂſƟĐĂ͕ƵŵŵŽƐĂŝĐŽŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂů͘
Trata-se da necessidade e da obrigação que sente de representar aquelas misturas
ĞŵĐŽŶǀŝǀġŶĐŝĂ͕ŶĞŐĂŶĚŽĂƐŝĚĞŝĂƐĚĞƵŵĂĨƌŝĐĂ͞ƌĞĚƵnjŝĚĂĂƵŵĂĞŶƟĚĂĚĞƐŝŵƉůĞƐ͕
ĨĄĐŝůĚĞĞŶƚĞŶĚĞƌ͕͟ŵĂƐƋƵĞ͕ĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕ƐĞƌŝĂ͕ŶĂǀĞƌĚĂĚĞ͕ƵŵĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͞ĨĞŝƚŽĚĞ
ƉƌŽĨƵŶĚĂĚŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĞĚĞĐŽŵƉůĞdžĂƐŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐ͕ůŽŶŐĂƐĞŝƌƌĞǀĞƌƐşǀĞŝƐŵŝƐƚƵƌĂƐĚĞ
ĐƵůƚƵƌĂƐ͟;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϭϵͿ͘DŝĂŽƵƚŽĞŶdžĞƌŐĂĐŽŵŽĞƐƐĞƐĂŵĄůŐĂŵĂƐĨŽƌŵĂ-
ƌĂŵƵŵŵŽƐĂŝĐŽƋƵĞĠƵŵĚŽƐŵĂŝƐǀĂůŝŽƐŽƐƉĂƚƌŝŵƀŶŝŽƐĚŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞ͘
^ĞƵ ƚƌĂďĂůŚŽ ĐŽŵŽ ďŝſůŽŐŽ ĐŽŵƉůĞŵĞŶƚŽƵ ƐĞƵ ŽİĐŝŽ ĚĞ ĞƐĐƌŝƚŽƌ͕ ĨĂnjĞŶĚŽ
surgir um contador de “estórias” que inventa, ouve, vivencia, além de contar aque-
las que chegam até seus ouvidos por meio dos que não têm voz – silenciados pelos
ISBN 978-85-8199-013-2 63
João Olinto Trindade Junior
ƐƵũĞŝƚŽƐĚŽƉŽĚĞƌ͘^ĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐƌŝĂĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƉĂƐƐĂĂƐĞƌŝŶƚƌŝŶƐĞĐĂŵĞŶƚĞůŝ-
ŐĂĚŽăƐƵĂƉƌŽĮƐƐĆŽ͕ƉŽƌĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌƋƵĞĂĐŝġŶĐŝĂǀŝǀĞĚĂŝŶƋƵŝĞƚĂĕĆŽ͕ĞĂĞƐĐƌŝƚĂĠ
ƵŵĂĨĂůƐĂƋƵŝĞƚƵĚĞ͘Ăş͕ƐĞƌŝĂŵĚƵĂƐĂƟǀŝĚĂĚĞƐƋƵĞ͞ƌĞƐƵůƚĂŵĚĂƌĞĐƵƐĂĚĞĨƌŽŶƚĞŝ-
ƌĂƐ΀͘͘͘΁͕ƵŵƉĂƐƐŽƐŽŶŚĂĚŽƉĂƌĂůĄĚŽŚŽƌŝnjŽŶƚĞ͟;KhdK͕ϮϬϬϱ͕ϰϱͿ͘
Em 1986, Mia Couto lança seu primeiro livro de contos, Vozes Anoitecidas;ϭǐ
ĞĚŝĕĆŽ͖ϭϵϵϵ͕ĞĚŝĕĆŽĂƋƵŝƵƟůŝnjĂĚĂͿ͘WŝƌĞƐ>ĂƌĂŶũĞŝƌĂĐŽŶƐŝĚĞƌĂĞƐƐĂŽďƌĂ͞ĨĂƚŽƌĚĞ
ƵŵĂŵƵƚĂĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕͟ƉŽƌƚĞƌƚƌĂnjŝĚŽĂŽƵŶŝǀĞƌƐŽĚĂĮĐĕĆŽ͞ƵŵĂ
ĂĐĞŝƚĂďŝůŝĚĂĚĞ ƉĂƌĂ Ă ůŝǀƌĞ ĐƌŝĂƟǀŝĚĂĚĞ ĚĂ ƉĂůĂǀƌĂ͕ Ă ĂďŽƌĚĂŐĞŵ ĚĞ ƚĞŵĂƐ ƚĂďƵƐ͕
como o da convivência de raças e mistura de culturas” (1995, p. 262), mas, anterior-
ŵĞŶƚĞ͕ŽŵĞƐŵŽĞƐƚƵĚŝŽƐŽũĄƐĞƌĞĨĞƌŝƌĂ͕ĚĞŵŽĚŽƐĞŵĞůŚĂŶƚĞ͕ăTerra Sonâmbula
;ϭϵϵϮ͕ ϭǐ ĞĚŝĕĆŽ͘ ϮϬϬϮ͕ ĞĚŝĕĆŽ ĂƋƵŝ ƵƟůŝnjĂĚĂͿ͕ ĚĞƐƚĂĐĂŶĚŽ Ž ǀĂůŽƌ ĞƐƐĞŶĐŝĂů ƋƵĞ
essa obra teria para a renovação de uma literatura que se queria verdadeiramente
ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͘ƐƐŝŵ͕ƉŽĚĞͲƐĞĚŝnjĞƌƋƵĞWŝƌĞƐ>ĂƌĂŶũĞŝƌĂǀŝƐůƵŵďƌĂ͕ŶĂŽďƌĂĚĞDŝĂ
ŽƵƚŽ͕ŽĂůǀŽƌĞĐĞƌĚĞŶŽǀĂƐĞĂůǀŝƐƐĂƌĞŝƌĂƐƚĞŶĚġŶĐŝĂƐůŝƚĞƌĄƌŝĂƐĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞʹ
ƉŽƌƋƵĞŶĆŽ͕ĞŵĨƌŝĐĂ͍
Em sua obra, Mia Couto não apenas se volta para Moçambique, mas, ain-
da, para um cidadão moçambicano vivendo em uma sociedade global pós-colonial.
Homi Bhabha, tratando do discurso colonial (1998, p. 105), e Francisco Noa, da co-
ůŽŶŝĂůŝĚĂĚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ;ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϰϵͿ͕ůĞǀĂŵͲŶŽƐĂĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞƌĐŽŵŽ͕ƉĂƌĂŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͕Ž
processo de transformação do modelo anterior só ocorre, a contento, quando este é
ŝŶĐŽƌƉŽƌĂĚŽĂŽƐŵŽĚĞůŽƐƉŽƐƚĞƌŝŽƌĞƐ͕ŽďũĞƟǀĂŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ĂŵƵĚĂŶĕĂĐŽŵŽĐŽŶƐĞ-
ƋƵġŶĐŝĂĚĞƵŵƉůĂŶŽƉĂƌĂĂĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞ͕ƉŽŝƐĂĂƐƐƵŶĕĆŽĚĞƵŵŶŽǀŽŵŽĚĞůŽŶĆŽ
ƉŽĚĞƉƌĞƐĐŝŶĚŝƌĚŽƐĂŶƚĞĐĞƐƐŽƌĞƐ͕ƋƵĞŶĞůĞƚġŵŝŶŇƵġŶĐŝĂƐĞũĂƉŽƌŶĞŐĂĕĆŽ͕ƐĞũĂ
ƉŽƌ ĂĮƌŵĂĕĆŽ͘ WŽƌƚĂŶƚŽ͕ ƐĞŐƵŝŶĚŽͲƐĞ ĞƐƐĞƐ ƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐ͕ Ž ĂƵƚŽƌ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ
ĂĐĂďĂƉŽƌƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂƌĂŶĂƌƌĂƟǀĂĞŵƵŵƉƌŽďůĞŵĂĚĞĂƌƚĞ;dhd/</E͕ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϱϳͿ͘
^ŽďƌĞŝŶŇƵġŶĐŝĂƐƚĂŶƚŽĚĞ>ƵĂŶĚŝŶŽsŝĞŝƌĂ;KhdK͕ϭϵϵϴ͕Ɖ͘ϭϭͲϭϯͿ͕ƋƵĂŶƚŽ
de Guimarães Rosa (COUTO, 2005, p.1 06), Mia Couto promove transgressões lin-
ŐƵşƐƟĐĂƐ͕ĐŽŶƚƌŝďƵŝŶĚŽƉĂƌĂŽƌĞƐŐĂƚĞĚĂƌĞŶŽǀĂĕĆŽĞƐƚĠƟĐĂ͕ĞdžƉůŽƌĂŶĚŽĂƐƉŽƐƐŝ-
ďŝůŝĚĂĚĞƐƋƵĞŽƐŝƐƚĞŵĂůŝŶŐƵşƐƟĐŽůŚĞŽĨĞƌĞĐĞ͕ũŽŐĂŶĚŽĐŽŵĂŽƌĂůŝĚĂĚĞ͕ĂŽƌĂƚƵƌĂ
ʹ ƌĞĐŽůŚĂ ĚĞ ƚĞdžƚŽƐ ĚĞ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ŽƌĂů ĮdžĂĚŽƐ ƉĞůĂ ĞƐĐƌŝƚĂ ƐĞŵ ĂůƚĞƌĂĕĆŽ ƉŽƌ ƉĂƌƚĞ
do pesquisador/escritor, como contos, provérbios, etc. – e com uma escrita que se
ĂĮƌŵĂĐŽŵŽ ŚĞƌĚĞŝƌĂĚĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ŽƌĂů͕ĂŽƌĂůŝƚƵƌĂ͕͞ƉƌŽĚƵĕĆŽ ƋƵĞǀĞŝĐƵůĂ͕ ƚƌĂĚƵnj
ũĄĂĞůĂďŽƌĂĕĆŽĞƌĞĐƌŝĂĕĆŽĚĂƉĂůĂǀƌĂŽƌĂůƋƵĞĂĞƐĐƌŝƚĂĮdžĂ͟;Dd͕ϭϵϵϴ͕Ɖ͘ϱϴͿ͘
^ĞŐƵŝŶĚŽĂƚƌĂĚŝĕĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƋƵĞďƵƐĐĂƌĞƐŐĂƚĂƌĂƐĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐŵĂŝƐƐŝŐŶŝĮĐĂƟ-
ǀĂƐĚĂƋƵĞůĂĐƵůƚƵƌĂŽƌĂů͕ĞůĞŵĞƌŐƵůŚĂŶĂƚƌĂĚŝĕĆŽĞƌĞĐƵƉĞƌĂ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕Ž;ƐͿ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽ;ƐͿƉŽƉƵůĂƌ;ĞƐͿůŽĐĂů;ŝƐͿ͕ĚŝĐŽƚŽŵŝĐĂŵĞŶƚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽƐƵĂƐĨĂĐĞƚĂƐ͕Ğ
ƉĞƌŵŝƟŶĚŽƋƵĞ͕ĞŵŵĞƐĐůĂŐĞŶƐĚĞƉĂƌĂĚŝŐŵĂƐĞƐŝŶƚĂŐŵĂƐĚĂůşŶŐƵĂĚŽĐŽůŽŶŝnjĂ-
dor e das línguas da terra, aproveitem-se muitas das possibilidades existentes nessa
ŝŶƚĞƌͲƌĞůĂĕĆŽĚĞƐŝƐƚĞŵĂƐůŝŶŐƵşƐƟĐŽƐ͕ĞŶǀĞƌĞĚĂŶĚŽƉŽƌĞƐƉĂĕŽƐŵşƟĐŽƐ͕ƋƵĞĂĚĂƉƚĂ
à modernidade.
Vemos, nesse caso – entendendo a língua como uma forma de expressão
ĐƵůƚƵƌĂůĞĚĞŝĚĞŶƟĚĂĚĞʹ͕ƵŵĂƚĞŶƐĆŽĐĂƵƐĂĚĂƉĞůĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĂƐŶĞŐŽĐŝĂĕƁĞƐ
64 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĞŶƚƌĞ ƚƌĂĚŝĕĆŽ Ğ ŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͕ ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ ĨĂůĂŶĚŽ͕ ĞŶƚƌĞ ƵŵĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ĂĨƌŝ-
cana adaptada a uma modernidade não somente ocidental, mas também africana
ʹŽƵƐĞũĂ͕ƋƵĞŶĆŽŶĞŐĂƐĞƵƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐ͕ŵĂƐ͕ĂŶƚĞƐ͕ĂĐĞŝƚĂͲƐĞĐŽŵŽĐŽŶƐĞƋƵġŶ-
ĐŝĂĚĞƚŽĚŽƵŵůŽŶŐŽƉƌŽĐĞƐƐŽƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐŽͲŚŝƐƚſƌŝĐŽ͕ĞŵƋƵĞ͕ůŽŶŐĞĚĞĂƐƐƵŵŝƌĂ
ƚƌĂĚŝĕĆŽ ĐŽŵŽ ĂŶơƚĞƐĞ ĚĂ ŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͕ ƚƌĂƚĂͲƐĞ ĚĂ ƚƌĂĚŝĕĆŽ ƋƵĞ͕ ĂƚƌĂǀĠƐ ĚĞ Ƶŵ
longo processo de transformações, assume a forma de uma modernidade africana,
ƐƵĂĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞ͕ƌĞŶŽǀĂĚĂ͕͘ŶĞƐƐĞĐĞŶĄƌŝŽ͕ƋƵĞƚĞſƌŝĐŽƐĐŽŵŽ ,ŽŵŝŚĂďŚĂĞ
Stuart Hall discutem a visão de apoio mútuo, não apenas como nova forma de co-
lonialismo, mas de imposição histórica, social e cultural, na qual os espaços do eu e
do outro se chocam, em uma visão histórica de superioridade e inferioridade, centro
ĞƉĞƌŝĨĞƌŝĂ͘ƐƐĞŵĞŝŽƉĂƐƐĂĂƐĞƌƵŵĂƐĞůĞĕĆŽŶĂƚƵƌĂů͕ŽŶĚĞĂƐǀĞƌƐƁĞƐŽĮĐŝĂŝƐƐĆŽ
construídas em detrimento das versões marginais.
ŶĞƐƐĞĂŵďŝĞŶƚĞĚĞƚƌŽĐĂƐ͕ƋƵĞDŝĂŽƵƚŽ͕ĞƐĐƌŝƚŽƌŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽĚĞƐĐĞŶ-
ĚĞŶƚĞĚĞĐŽůŽŶŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐʹĐŽŵŽĂŶƚĞƐƐĞƌĞŐŝƐƚƌŽƵʹ͕ƋƵĞƐƟŽŶĂŶĆŽĂƉĞŶĂƐ
as visões únicas da história, mas a imposição de um modelo de cultura e de linha de
ƚƌŽĐĂĚĞŝŶĨŽƌŵĂĕƁĞƐƋƵĞŶĆŽƌĞƐƉĞŝƚĂŽŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽŝŶĞƌĞŶƚĞăƐƵĂƚĞƌƌĂ͘ŵ
Pensatempos: Textos de Opinião, ele declara:
O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de
turno e de executores. O actual colonialismo dispensa colonos e
tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só se naturalizou
como passou a ser cogerido numa parceria entre ex-colonizado-
res e ex-colonizados. (2005, p. 11)
Desse modo, como um dos mais importantes escritores em língua portuguesa da
contemporaneidade – e membro-correspondente da Academia Brasileira de Letras
ʹ͕DŝĂŽƵƚŽƐĞƉŽƐŝĐŝŽŶĂ͕ĂŽĐƌŝƟĐĂƌĞƋƵĞƐƟŽŶĂƌŵŽĚĞůŽƐŝŵƉŽƐƚŽƐĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂ-
ções unilaterais da realidade.
KŵŽƐĂŝĐŽĐƵůƚƵƌĂůƋƵĞŶƵƚƌĞĂĮĐĕĆŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂĠƵƟůŝnjĂĚŽ͕ƉĞůŽĞƐĐƌŝ-
ƚŽƌ͕ĐŽŵŽƉĂŶŽĚĞĨƵŶĚŽĚĞƐƵĂŽďƌĂ͕ĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞŶĚŽĂƐŵƷůƟƉůĂƐĨĂĐĞƐĚŽƋƵĞ
ĐŚĂŵĂĚĞƐƵĂĐƵůƚƵƌĂ͕ĞĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞƌŝĂĂĞƐƚƌĂƚĠŐŝĐĂƐĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂƐĨƌĞŶ-
ƚĞăƐƚĞŶƚĂƟǀĂƐŐůŽďĂůŝnjĂŶƚĞƐĞƵŶŝĮĐĂĚŽƌĂƐĚĞƉĂĚƌƁĞƐĚĞĐƵůƚƵƌĂ͕ĐŝǀŝůŝnjĂĕĆŽĞ
modernidade. Dominique Maingueneau, ao levantar a questão do posicionamento
ĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌʹŶĆŽĚĞDŝĂŽƵƚŽ͕ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ŵĂƐĚŽŽİĐŝŽĚĞĞƐĐƌĞǀĞƌʹ͕ĞdžƉůŝĐĂ
a necessidade da retomada de valores vinculados às marcas legadas pela tradição,
ůĞǀĂŶĚŽĂĐŽŶƐƚƌƵŝƌƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƉƌſƉƌŝĂĞĂĂƐƐƵŵŝƌŽƋƵĞ͕ƉĂƌĂĞůĞ͕ƐĞũĂŽĞdžĞƌ-
ĐşĐŝŽůĞŐşƟŵŽĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ĚĞĮŶŝĚŽƌĚĂǀŝƐĆŽĞĚĂŶĆŽͲǀŝƐĆŽĚŽoutro (2006, p. 163).
ŽŵŽĞƐĐƌŝƚŽƌĞĂƟǀŝƐƚĂ͕DŝĂŽƵƚŽƚĞŵŶŽĕĆŽĚŽƉŽƐŝĐŝŽŶĂŵĞŶƚŽƋƵĞƉƌĞ-
ĐŝƐĂĂƐƐƵŵŝƌƉĂƌĂĚĞĮŶŝƌƐƵĂǀŝƐĆŽĚĞŵƵŶĚŽĞƐĞƌƌĞƐƉĞŝƚĂĚŽƋƵĂŶƚŽĂŽƐƉŽƐŝĐŝŽ-
namentos que assume. Isso tem começo em sua maneira de escrever, o que faz em
uma língua originalmente não “da terra” – o português, língua do colonizador –,
mas, ao se valer da “língua de cultura”, respeitando as tradições vigentes, passa ser
lido de forma mais abrangente e por um público mais vasto, e, principalmente, ser
reconhecido – destaque-se que o português é uma língua que possui, em maior ou
ISBN 978-85-8199-013-2 65
João Olinto Trindade Junior
ŵĞŶŽƌƋƵĂŶƟĚĂĚĞ͕ĨĂůĂŶƚĞƐĞŵƚŽĚŽƐŽƐĐŽŶƟŶĞŶƚĞƐ͘
'ŝůůĞƐĞůĞƵnjĞĞ&Ġůŝdž'ƵĂƩĂƌŝ͕Ğŵ<ĂŅĂ͗ƉĂƌĂƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵĞŶŽƌ (2003),
ĚŝƐĐŽƌƌĞŵƐŽďƌĞĂůşŶŐƵĂƋƵĞƵŵĂŵŝŶŽƌŝĂĐŽŶƐƚƌſŝŶƵŵĂůşŶŐƵĂŵĂŝŽƌ;>h͖
'hddZ/͕ϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϯϴͿ͕ŶĆŽĞŵƵŵƐĞŶƟĚŽĚĞŵĞŶŽƌƋƵĂůŝĚĂĚĞŽƵŵĞŶŽƌŝŶƚĞŶ-
ƐŝĚĂĚĞ͕ ŵĂƐ ŶĂ ĂĐĞƉĕĆŽ ĚĂ ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ʹ ůŝƚĞƌĄƌŝĂ ʹ ĚĞ ŽƵƚƌĂ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ ƐŽĐŝŽĐƵů-
ƚƵƌĂů Ğŵ ƵŵĂ ůşŶŐƵĂ ƋƵĞ ŽƌŝŐŝŶĂƌŝĂŵĞŶƚĞ ŶĆŽ ƐĞƌŝĂ Ă ĚĂƋƵĞůĂ ĐƵůƚƵƌĂ ĞƐƉĞĐşĮĐĂ͘
Podemos observar que, ao misturar a língua portuguesa com as línguas nacionais
de Moçambique, Mia Couto faz um uso “menor” da língua, que seria mais coerente
ĐŽŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞŚĂďŝƚĂ͕ĞŽĨĂnjŵĞƐĐůĂŶĚŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƐĞƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞƐ͕ĐŽŵŽ
que enriquece a língua global de que se vale, seguindo as normas para recontar à
ƐƵĂŵĂŶĞŝƌĂĞĐƌŝĂŶĚŽŶĞŽůŽŐŝƐŵŽƐʹĐŽŵŽ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͕ŽƉƌſƉƌŝŽơƚƵůŽĚĞƵŵĚŽƐ
seus livros, Pensatempos͕ĨĞŶƀŵĞŶŽǀĞƌŝĮĐĂĚŽ͕ĂŝŶĚĂ͕ŶĂŵĂŝŽƌƉĂƌƚĞĚĞƐƵĂƐŽďƌĂƐ͕
ƐĞũĂĞŵĐƌƀŶŝĐĂƐ͕ĐŽŶƚŽƐ͕ƌŽŵĂŶĐĞƐĞ͕ĂŝŶĚĂ͕ŽƵƚƌŽƐơƚƵůŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽʹĞ͕ŵĞƐŵŽ͕
ĚĞƉƌŽǀĠƌďŝŽƐĐŽůŽĐĂĚŽƐŶĂďŽĐĂĚĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĂŽůŽŶŐŽĚĞŵƵŝƚĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐ͘
&ĞƌŶĂŶĚĂĂǀĂĐĂƐĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƵŵĞdžƚĞŶƐŽĞƐƚƵĚŽƐŽďƌĞĂƚĞŵĄƟĐĂ͕Mia Couto: pen-
satempos e improvérbios (2000), realizando o ato de recolha dos provérbios que o
ĞƐĐƌŝƚŽƌƵƟůŝnjĂĞŵƐƵĂƐŽďƌĂƐ͘
Como exemplo, temos a sabedoria expressa nas falas de Jessumina, persona-
gem de Vinte e zinco͕ƋƵĂŶĚŽĞƐƚĂ͕ĞŵĐŽŶǀĞƌƐĂĐŽŵDĂƌŐĂƌŝĚĂ͕ĂĮƌŵĂƋƵĞ͞ƋƵĞŵ
não tem viagem, é escolhido pela loucura” (COUTO, 2004, p. 68) e “O besouro, antes
ĚĞĞŶƚƌĂƌ͕ĚĄĚƵĂƐǀŽůƚĂăƚŽĐĂ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϳͿ͘ŽƋƵĞƐƟŽŶĂƌƐƵĂĂǀſƐŽďƌĞŽŵŽƟ-
vo do suicídio de sua mãe, em Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
(2003), Dito Mariano recebe como resposta um provérbio que resgata todo o univer-
ƐŽĐƵůƚƵƌĂůĚŽƐŵŽƌĂĚŽƌĞƐĚĂŝůŚĂ͕ĂĮƌŵĂŶĚŽƋƵĞĞůĂŶĆŽĂĚĞŶƚƌĂƌĂŶŽƌŝŽƉĂƌĂŵŽƌ-
ƌĞƌ͕ŵĂƐƋƵĞ͕Ɛŝŵ͕͞ĄŐƵĂĞƌĂŽƋƵĞĞůĂĞƌĂ͕ŵĞƵŶĞƚŽ͘^ƵĂŵĆĞĠŽƌŝŽ͕ĞƐƚĄĐŽƌƌĞŶĚŽ
ƉŽƌĂş͕ŶĞƐƐĂƐŽŶĚĂƐ͟;KhdK͕ϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϭϬϱͿ͘EĂŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ŽƐƉƌŽǀĠƌďŝŽƐ
ĂƉĂƌĞĐĞŵ ƐƵďǀĞƌƟĚŽƐ͕ ŝŶǀĞƌƚĞŶĚŽͲƐĞ ƐĞƵ ĐĂƌĄƚĞƌ ĐŽŶƐĞƌǀĂĚŽƌ
ĞĐŽŶĨŽƌŵŝƐƚĂ͕ƐĞŶĚŽĐŽŶƚĞdžƚƵĂůŝnjĂĚŽƐŶĂƚƌĂŵĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŵƵŝ-
ƚĂƐǀĞnjĞƐĐŽŵĂĂƵƚŽƌŝĂĂƚƌŝďƵşĚĂăƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ͘ZĞƐƉŽŶƐĄǀĞŝƐ
ƉŽƌƚŽƋƵĞƐĚĞŚƵŵŽƌƐƵƟůŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƚĂŝƐĐŽŶƐƚƌƵĕƁĞƐĐƌŝĂŵ
um repertório de leitura que sugere soluções discursivas advin-
ĚĂƐĚĂĐƵůƚƵƌĂƉŽƉƵůĂƌ͕ĚĂĐƌŝĂĕĆŽĚĂŐĞŶƚĞƐŝŵƉůĞƐ͘;&KE^͖
hZz͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϮϱϯͿ͘
ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƐƐĂƉĂƌƟĐƵůĂƌĞƐĐƌŝƚĂĚĂůşŶŐƵĂĚĞĞdžƉƌĞƐƐĆŽĚĞƋƵĞƐĞǀĂůĞ͕ƋƵĞ
Mia Couto não apenas apresenta a realidade ao seu redor, mas também se posi-
ĐŝŽŶĂ ŶĂ ĚĞĨĞƐĂ ĚŽ ŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽ ŝŶĞƌĞŶƚĞ ă ƚĞƌƌĂ Ğ ă ŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞ ĚĂƐ ƚƌŽĐĂƐ
culturais tanto dentro da cultura moçambicana, quanto entre essa cultura e a de
ŽƵƚƌŽƐƉŽǀŽƐ͘:ĂŶĞdƵƟŬŝĂŶ͕ƚƌĂƚĂŶĚŽĚĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐƋƵĞĞŶǀŽůǀĞŵĞƐƐĞƉƌŽĐĞƐ-
ƐŽĞƐƚĠƟĐŽ͕ŽďƐĞƌǀĂƋƵĞ͗
Se, por um lado, o trabalho de subversão da linguagem resulta
ŶĂƐƵĂƉŽĞƟnjĂĕĆŽ͕ƉŽƌŽƵƚƌŽ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂĂŽƉƌŽĐĞƐƐŽ
colonizador, contribuindo na introdução do insólito como acon-
66 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƚĞĐŝŵĞŶƚŽŶĂƚƵƌĂůĞĐŽƟĚŝĂŶŽŶĂŽďƌĂĞŶƵŵĂĐƵůƚƵƌĂĐƵũĂƚƌĂĚŝ-
ĕĆŽĞƐƚĄĐĂůĐĂĚĂŶŽŵŝƚŽ͘ƋƵĂŶĚŽ͕ĞŵDŝĂŽƵƚŽ͕ŽƉƌĞƐĞŶƚĞ
ƌĞƚŽŵĂĂĐŽŶƐĐŝġŶĐŝĂŵşƟĐĂ͕ďƵƐĐĂŶĚŽƌĞĐƵƉĞƌĂƌĐĞƌƚŽƐǀĂůŽƌĞƐ
ĂƵƚſĐƚŽŶĞƐĚĞƌĂşnjĞƐĞƐƉĞĐşĮĐĂƐ͕ĐĂƉĂnjĞƐĚĞĐůĂƌŝĮĐĂƌĂĐŽŶƐĐŝ-
ġŶĐŝĂŽƵŝĚĞŶƟĚĂĚĞŶĂĐŝŽŶĂů͘ş͕ŵŝƚŽĞƌĞĂůŝĚĂĚĞĨŽƌŵĂŵƵŵ
todo coerente e denunciador, opondo-se ao discurso do poder.
(2006, p. 59)
ŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽ͕ŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůʹƚĞƌŵŽŐĞŶĠƌŝĐŽ
ƋƵĞƐĞǀĞŵƵƟůŝnjĂŶĚŽƉĂƌĂĚĂƌĐŽŶƚĂĚĞǀĂƌŝĂĚĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĚŽŶĆŽ͞ƌĞĂů͕͟ĚŽ
ƋƵĞŶĆŽĠĐŽĞƌĞŶƚĞĐŽŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĞŵƉşƌŝĐĂĞİƐŝĐĂ͕ŵĂƐƋƵĞ͕ĂďĞŵĚĂǀĞƌĚĂĚĞ͕
ŶĆŽƐŝŶƚĞƟnjĂĚĞŵĂŶĞŝƌĂĐŽŵƉůĞƚĂĞĐŽŵƉůĞdžĂĂĚŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĚĞĨĞŶƀŵĞŶŽƐƋƵĞĞŶ-
ǀŽůǀĞŵĞƐƐĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐŶŽƵŶŝǀĞƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ƉŽĚĞŶĚŽ͕ƚĂůǀĞnjŵĂŝƐĂƉƌŽƉƌŝĂĚĂ-
ŵĞŶƚĞ͕ƐĞƌƐƵďƐƟƚƵşĚŽƉŽƌŝŶƐſůŝƚŽ͕ŽƋƵĞ͞ŶĆŽƐſŝĂĐŽŶƚĞĐĞƌ͟ʹŶĆŽƉŽĚĞƐĞƌǀŝƐƚĂ
exclusivamente sob as premissas todorovianas – nem sob premissas exclusivas de
ŽƵƚƌŽƐĞƐƚƵĚŝŽƐŽƐĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂʹ͕ƉŽƌƋƵĞĞůĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƵŵůĞƋƵĞĚĞƉŽƐ-
ƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐƋƵĞƌĞŇĞƚĞŵƚƌĂĕŽƐŝĚĞŶƟƚĄƌŝŽƐĚŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƚĞůƷƌŝĐŽ͕ƌĞƉůĞƚŽĚĞŵŝƚŽƐ͕
ůĞŶĚĂƐ͕ĐƌĞŶĕĂƐĞƚƌĂĚŝĕƁĞƐ͕ƉĞƌŵŝƟŶĚŽĂĐĞƐƐĂƌĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐǀŝĞƐĞƐĚĂƐŝĚĞŝĂƐĚŽƋƵĞ
ƐĞũĂĂŶĂĕĆŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹƚĞƌƌĂ͞ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂ͘͟
Ao reaproveitar as falas das camadas populares moçambicanas e resgatar o
ĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽŽƌĂů͕ĂŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂƉƌŽŵŽǀĞƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐƁĞƐŽƵ͕ŵĂŝƐĚŽƋƵĞŝƐƐŽ͕
ƌĞŶŽǀĂĂůşŶŐƵĂ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŝnjĂŶĚŽƵŵ͞WŽƌƚƵŐƵġƐDŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͘͟ŶĞƐƐĞƉŽƌƚƵŐƵġƐ
ƋƵĞŽĂƵƚŽƌŝŵƉƌŝŵĞƐĞƵŐġŶŝŽĐƌŝĂƟǀŽ͕ƉƌŽĐĞƐƐŽƐĚĞŶĞŐŽĐŝĂĕƁĞƐ͕ŵŝƐƚƵƌĂƐĞŚŝďƌŝ-
dismos, os quais apresentam espaços e lógicas que se “contrapõem à racionalidade
ĚĂǀŝƐĆŽĚĞŵƵŶĚŽĞƵƌŽƉĞŝĂ͟;&KE^͖hZz͕ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϮϭͿ͘ŵƐƵĂŽďƌĂ͕ĂƌĞĂ-
ůŝĚĂĚĞ ĞŶǀŽůǀĞͲƐĞ ĐŽŵ ĂƐ ƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐƁĞƐ ĚŽ ƐĂďĞƌ ƉŽƉƵůĂƌ͕ ŵŽƐƚƌĂŶĚŽ ƵŵĂ ͞ĨĞƌƟůŝ-
ĚĂĚĞƌĞŇĞdžŝǀĂƉĂƌĂĂƉƌĞĞŶƐĆŽĚĞĞƐƉĂĕŽƐƚĂŵďĠŵĚĂŵĂƌŐĞŵĐŽŵŽŽƐĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͟
;&KE^͖hZz͕ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϮϯͿ͘
KĞǀĞŶƚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ƋƵĞŝƌƌŽŵƉĞŶŽƐĞŝŽĚĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂƐ͕ƚĞŵƐƵĂ
ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĚĞƐĚĞŽƉƌŝŶĐŝƉŝŽĂƚĠŽĮŵ͕ƐĞŶĚŽĞƐƐĞŶĐŝĂůĂŽƐĞƵĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ͘
Na literatura de Mia Couto, o insólito tem, via de rega, relações com os elementos
ĚĂ dĞƌƌĂ ʹ Ăƌ͕ ƚĞƌƌĂ͕ ĄŐƵĂ Ğ ĨŽŐŽ ʹ͕ Ğŵ ƐƵĂƐ ĐŽƌƌĞůĂĕƁĞƐ ĐŽŵ ŽƐ ǀĂůŽƌĞƐ ĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕
Ğŵ ƐĞŶƟĚŽ ůĂƚŽ͘ ŵ Terra Sonâmbula, os homens se encontram presos em uma
ŝŶĮŶŝƚĂĞƐƚƌĂĚĂƋƵĞƐĞŵƉƌĞŽƐůĞǀĂĚĞǀŽůƚĂĂƚĠŽůƵŐĂƌĚĞŽƌŝŐĞŵ͕ŶĆŽŽƐůŝďĞƌƚĂŶĚŽ
enquanto não conseguirem resgatar o passado daquele lugar onde as pessoas de-
ambulam. Em Um Rio Chamado Tempo, uma casa Chamada Terra (2003), a terra se
fecha, impedindo o enterro de Dito Mariano enquanto não forem solucionados os
mistérios envolvendo sua morte. Esses são, apenas, dois exemplos de manifestações
essenciais do insólito, vinculados a traços telúricos, presentes em dois romances
ĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͘ŵƐƵĂŽďƌĂĐŽŶơƐƟĐĂ͕ŚĄŝŶƷŵĞƌŽƐĞdžĞŵƉůŽƐŵĂŝƐĚŝǀĞƌƐŝĮĐĂĚŽƐ͕ďĞŵ
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ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞŽďƐĞƌǀĂƌŵŽƐĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞƵŵĂƌĞůĂĕĆŽĞŶƚƌĞĂƚƌĂŶƐŐƌĞƐ-
ƐĆŽƐŽĨƌŝĚĂƉĞůĂdĞƌƌĂʹĚĞƉŽƐŝƚĄƌŝĂĚĞǀĂůŽƌĞƐ͕ĐŽƐƚƵŵĞƐ͕ǀŝƐĆŽĚĞŵƵŶĚŽ͕ŵŝƚŽƐ
ISBN 978-85-8199-013-2 67
João Olinto Trindade Junior
e ritos – e o acontecimento insólito que nela irrompe. Temos exemplos disso em
KjůƟŵŽǀŽŽĚŽ&ůĂŵŝŶŐŽ(2008), em que os soldados da ONU explodem, restan-
do, deles, apenas o órgão genital. Quando, em uma realidade animista, na qual
realia e mirabilia convivem harmoniosamente, ocorre um evento da ordem que
ƉĞƌƚƵƌďĞĞƐƐĂĐŽŶǀŝǀġŶĐŝĂŶŽƵŶŝǀĞƌƐŽĚŝĞŐĠƟĐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĚĞǀĞŵŽƐ͕ĞŶƚĆŽʹ
Ğ͕ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞ͕ŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂʹĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌĂƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐĆŽĚĂƚĞƌƌĂ
ĐŽŵŽƵŵĂ͞ǀŝŽůġŶĐŝĂ͟ĐŽŶƚƌĂĞƐƉĂĕŽ͕ĐƵůƚƵƌĂ͕ƚƌĂĚŝĕƁĞƐ͕ĞŶĮŵ͕ĐŽŶƚƌĂĞůĞŵĞŶƚŽƐ
ĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞƐĚĞƵŵĞƐƉĂĕŽͬƌĞĂůŝĚĂĚĞƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂůʹŽƵ͕ĞŵƐşŶƚĞƐĞ͕Ă͞ǀŝŽůġŶĐŝĂ
ƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂů͕ƌĞƐƵůƚĂŶƚĞĚŽƉƵƌŽĞƐŝŵƉůĞƐĂƌďşƚƌŝŽĚĞƵŵƉŽĚĞƌ͟;^KZ͕ϮϬϬϮ͕Ɖ͘
ϭϮͿ͕ĞŵƐƵĂƌĞůĂĕĆŽƉĂƌĂƐŝƚĄƌŝĂĐŽŵŽŵƵŶĚŽĞŵƉşƌŝĐŽ͕ĐŽŵŽǀĂƌŝĞĚĂĚĞĚŽĞƐƉĂĕŽ
vivido (GAMA-KHALIL, 2012, p. 30).
ĨĂƚŽƋƵĞĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůŶĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂŶĆŽƐĞ
ĚĄĂƉĞŶĂƐƉĞůĂƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐĆŽ͕ĂĞdžĞŵƉůŽĚŽĐŽŶƚŽ͞EĂƐĄŐƵĂƐĚŽƚĞŵƉŽ͟;KhdK͕
ϭϵϵϲ͕Ɖ͘ϵͲϭϯͿ͕ŶŽƋƵĂůŽĂǀƀƉĞĚĞĂũƵĚĂĂŽƐĂŶƚĞƉĂƐƐĂĚŽƐĞ͕ĚƵƌĂŶƚĞŽƉƌŽĐĞƐƐŽ
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dizia a mãe do menino, os mirabiliaĐĂŵŝŶŚĂǀĂŵŶĂƚĞƌƌĂũƵŶƚŽĐŽŵŽƐrealia, e o
ŶĞƚŽŶĆŽƚĂƌĚĂĂĂĮƌŵĂƌƋƵĞĂƐƉĂůĂǀƌĂƐĚŽĂǀƀƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂǀĂŵĂǀĞƌĚĂĚĞƉĂƌĂĞůĞĞ
todos os miúdos (COUTO, 1996, p. 11).
Em alguns casos, o mito é revivido na história narrada, como em A Chuva
Pasmada (COUTO, 2011), onde os moradores convivem com a falta de uma chuva
que não cai, mas permanece parada no ar, pasmada. Os moradores, em visão ani-
ŵŝƐƚĂ ĚŽ ŵƵŶĚŽ͕ ůŽŶŐĞ ĚĞ ĚƵǀŝĚĂƌĞŵ ĚŽƐ ŵŽƟǀŽƐ ĚĂ ƉĂƐŵĂĐĞŝƌĂ ĚĂ ĐŚƵǀĂ ʹ ŽƵ
ƐĞũĂ͕ ƋƵĞƐƟŽŶĂƌĞŵ Ž ĞǀĞŶƚŽ ŝŶƐſůŝƚŽ ʹ͕ ŶĆŽ ƚĂƌĚĂŵ Ă ũƵƐƟĮĐĄͲůŽ͕ ă ƐƵĂ ŵĂŶĞŝƌĂ͕
ŝŶĐŽƌƉŽƌĂŶĚŽͲŽĂŽĐŽƟĚŝĂŶŽʹŽƋƵĞĨĂnjĞŵĐĂůĐĂĚŽƐĞŵĐƌĞŶĕĂƐĞĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ͕
próprios de seu universo sociocultural. Na medida em que a história se desenrola e
ĂůĞŶĚĂĚĂĂŶĐĞƐƚƌĂůĞŵşƟĐĂEƚŽǁĞŶŝʹĂǀſĚĂĂǀſĚŽƉƌŽƚĂŐŽŶŝƐƚĂʹĠƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞ-
tada no presente, o problema encontra sua solução. Os realia͕ƚĂůƋƵĂůŶĂĞƐƚĠƟĐĂ
ĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽʹĞŵƐƵĂǀĞƌƚĞŶƚĞĂŶŝŵŝƐƚĂ͕ĂŵďŝĞŶƚĂĚĂĞŵĨƌŝĐĂʹĐŽŶǀŝǀĞŵ
com os mirabilia͕ĞŶƌŝƋƵĞĐĞŶĚŽŽƵŶŝǀĞƌƐŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ͘
Outro exemplo, seria o enterro de Dito Mariano, em Um Rio Chamado
Tempo, Uma Casa Chamada Terra (2003), impedido de acontecer pelo fato de os
ancestrais terem endurecido toda a terra da ilha de Luar-do-Chão, não podendo,
assim, ser cavada. Os moradores da ilha, naturais de um espaço onde real empí-
ƌŝĐŽĞƌĞĂůŝĚĂĚĞŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐĂĐŽĂďŝƚĂŵƉĂĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ƚƌĂƚĂŵůŽŐŽĚĞƋƵĞƐƟŽŶĂƌ
DĂƌŝĂŶŝŶŚŽ ʹ ŶĞƚŽ Ğ͕ ĂŽ ŵĞƐŵŽ ƚĞŵƉŽ͕ ƉŽƐƐşǀĞů ĮůŚŽ ĚŽ ĂŶĐŝĆŽ͕ ĐŽŶĨŽƌŵĞ ũŽŐŽ
ĮĐĐŝŽŶĂůƉƌŽƉŽƐƚŽŶŽƚĞdžƚŽʹ͕ƋƵĞƌĞŶĚŽƐĂďĞƌŽƋƵĞĞůĞƚĞƌŝĂĨĞŝƚŽƉĂƌĂƉĞƌƚƵƌďĂƌ
ŽƐĂŶĐĞƐƚƌĂŝƐ͘YƵĂŶĚŽ͕ĮŶĂůŵĞŶƚĞ͕ĐƵŵƉƌĞŽƐĚĞƐşŐŶŝŽƐĚŽĂǀƀ͕ĞŽƐĂŶĐĞƐƚƌĂŝƐƉĞƌ-
ŵŝƚĞŵƋƵĞŽĂŶĐŝĆŽƐĞũĂĞŶƚĞƌƌĂĚŽ͕ĞůĞŽĨĂnjƌĞĞŶĐĞŶĂŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ŽŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽĚŽ
primeiro homem nascido de um caniço, de maneira que o evento insólito, incorpo-
rado à realidade dos moradores daquela ilha, contribui para a restauração da ordem
vigente (COUTO, 2003, p. 240).
ƐƐĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽƚŽƌŶĂŵĂŝƐƉĞƌĐĞƉơǀĞůƵŵĂƐŝƚƵĂĕĆŽʹĂŝŶĚĂ
68 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƋƵĞŝŶƵƐƵĂů͕ŝŶĐŽŵƵŵĞŝŶĞƐƉĞƌĂĚĂʹƋƵĞĨĂnjƉĂƌƚĞĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞʹĞŵƐĞƵĐĂƌĄ-
ƚĞƌƉůƵƌĂůʹ͕ŽƵ͕ĞŵƵŵĂĂŶĄůŝƐĞƚŽĚŽƌŽǀŝĂŶĂ͕ƚŽƌŶĂŵĂŝƐƉĞƌĐĞƉơǀĞůĂƐƐŝƚƵĂĕƁĞƐ
ĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞʹƐĞũĂĞůĂƀŶƟĐĂŽƵŽŶƚŽůſŐŝĐĂʹ͕ŝŶĚŝĐĂŶĚŽĐŽŵŽĞůĂ
ƐĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĞŵƷŶŝĐĂĂůƚĞƌŶĂƟǀĂĚĞƐŽůƵĕĆŽƉĂƌĂĂƋƵĞƐƚĆŽƋƵĞĂĚĞƐĞƐƚĂďŝůŝnjĂ
– ainda que não se explique de maneira lógica e racional, conforme os padrões
ĞƵƌŽĐġŶƚƌŝĐŽƐ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽƐ͕ŶŽƐĞŝŽĚĂĮĐĕĆŽ͕ƉĞůŽŽůŚĂƌĚŽoutro, construído,
ǀŝĂĚĞƌĞŐƌĂ͕ƐŽďͬƐŽďƌĞƵŵĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͕ĞŵĨƵŶĕĆŽĚĞŶĂƌƌĂƚĄƌŝŽŝŶƚƌĂƚĞdžƚƵĂů͕
ĐŽŵŽƐĞƌŝĂŵŽƐĐĂƐŽƐ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͕ĚĞDĄƐƐŝŵŽZŝƐŝ͕ŝƚĂůŝĂŶŽ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶƚĞĚĂ
ONU, em KƷůƟŵŽǀŽŽĚŽŇĂŵŝŶŐŽ (COUTO, 2005), ou de Izidine Naíta, o inspetor
“retornado” à sua terra depois de mais de 20 anos fora, na Europa, em A varanda
do frangipani (COUTO, 2007).
ZĞƚŽƌŶĂŶĚŽ ĂŽƐ ƉƌŝŶĐşƉŝŽƐ ĂĐĞƌĐĂ ĚŽ ZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͕ ŶĂ ŽďƌĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ
ŽƐŵŽƌƚŽƐŶĆŽĂƉĞŶĂƐƉĂƌƟĐŝƉĂŵĚŽŵƵŶĚŽĚŽƐǀŝǀŽƐ͕ŵĂƐƚĂŵďĠŵƐĆŽƌĞƐƉŽŶ-
ƐĄǀĞŝƐƚĂŶƚŽƉĞůŽƐĞƵĚĞƐƟŶŽ͕ƋƵĂŶƚŽƉĞůĂĞůƵĐŝĚĂĕĆŽĚĞƐĞƵƐƉƌŽďůĞŵĂƐ͕ŝŶƚĞƌĨĞ-
ƌŝŶĚŽĞŵƐƵĂƐǀŝĚĂƐ͘ŽĐĂƐŽĚĞŝƚŽDĂƌŝĂŶŽ͕ĞŵUm Rio Chamado Tempo, Uma
Casa Chamada Terra ;ϮϬϬϯͿ͖:ŽĂƋƵŝŵĚĞĂƐƚƌŽ͕ĞŵVinte e zinco ;ϮϬϬϰͿ͖ƌŵĞůŝŶĚŽ
Mucanga, em A Varanda do Frangipani ;ϮϬϬϳͿ͖ǀƀĞůĞƐƟĂŶŽ͕ĞŵMar me Quer
;ϮϬϬϭͿ͖Ğ͕ĚĞŶƚƌĞŽƵƚƌŽƐ͕ZŽŵĆŽWŝŶƚŽ͖ĞŵTerra Sonâmbula (2002) etc.
ƐƐŝŵ͕ĞƐƐĞƵŶŝǀĞƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂůĂƉƌĞƐĞŶƚĂƵŵĂŵĂŶĞŝƌĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞĚĞolhar –
ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĠ͕ĞƟŵŽůŽŐŝĐĂŵĞŶƚĞ͕ĚĞƌŝǀĂĚŽĚĞŵŝƌĂƌ͖ĞŵŝƌĂƌƐŝŐŶŝĮĐĂ͕ĞŵƐşŶƚĞƐĞ͕
͞ŽůŚĂƌĐŽŵĂƚĞŶĕĆŽ͕ĐŽŵĐƵŝĚĂĚŽ͟ʹŽŵƵŶĚŽ͕ĚĞƐŽŶĚĂƌĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͕ƚƌĂŶƐĮŐƵƌĂŶ-
ĚŽͲĂ͕ĂůŝŵĞŶƚĂŶĚŽͲƐĞĚĞĨĂƚŽƐĐŽƟĚŝĂŶŽƐ͕ĞŶĆŽĂŶĞŐĂŶĚŽ͕ĐŽŵŽƉĂƌĞĕĂƐĞƌ͘ƚƌĂǀĠƐ
da irrupção do evento insólito, a desorganização do mundo – encenado no universo
ĚŝĞŐĠƟĐŽʹĚĄůƵŐĂƌĂƵŵƌĞĐŽŵĞĕŽ͕ĂƵŵƟƉŽĚĞƚĞƐƐŝƚƵƌĂƚĞdžƚƵĂůƋƵĞƐĞĚĞƐĞŶǀŽů-
ve entre a realidade e o sonho, na qual “Mia Couto instaura a desmesura do invisível
ŶŽǀŝƐşǀĞůĞƌĞĂĮƌŵĂĂĚŝŵĞŶƐĆŽŵşƟĐĂĚĂĐƌŝĂƟǀŝĚĂĚĞŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ƉƌŽŶƚĂ͕ĨĂĐĞ
às maiores calamidades, a recriar o mundo” (AFONSO, 2007, p. 548).
O sobrenatural, apontado conforme as concepções de Todorov – quando
ƚƌĂƚĂ ĚŽ &ĂŶƚĄƐƟĐŽ ĐůĄƐƐŝĐŽ ŽƵ ƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů ŽƵ͕ ŵĞƐŵŽ͕ ĚĞ Ƶŵ ƉƌŽǀĄǀĞů Ğ ƉŽƐƐşǀĞů
&ĂŶƚĄƐƟĐŽŵŽĚĞƌŶŽ͕ƋƵĞƉƌĞŶƵŶĐŝĂĞŵ<ĂŅĂʹ͕ĂƌƉĞŶƟĞƌŽƵŚŝĂŵƉŝ͕ƐŽĨƌĞƵŵĂ
ŶĂƚƵƌĂůŝnjĂĕĆŽŐƌĂĚĂƟǀĂ͕ĚĞƐĚĞŽKŝƚŽĐĞŶƚŽƐĞŵĚŝƌĞĕĆŽăŽŶƚĞŵƉŽƌĂŶĞŝĚĂĚĞ͕ĨĂ-
zendo com que realia e mirabiliaĐŽŶǀŝǀĂŵŵĂŝƐĐŽŵƵŵĞŶƚĞʹĠŶĞƐƐĞĐĞŶĄƌŝŽĚĞ
transformações que se tem o boom da literatura hispano-americana, em que o Real-
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ŐĂŶŚĂ ŵƵŶĚŽ͕ ƚĞŶĚŽ ƉŽƌ ŵĂƌĐŽ͕ ĂƉŽŶƚĂĚŽ ƉĞůĂ ĐƌşƟĐĂ͕ Ă ƉƵďůŝĐĂĕĆŽ
de Cem anos de solidão͕ĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌĐŽůŽŵďŝĂŶŽ'ĂďƌŝĞů'ĂƌĐşĂDĄƌƋƵĞnj͕Ğŵϭϵϲϳ͘
EĆŽƐĞƚƌĂƚĂ͕ŵĂŝƐ͕ĚĞ͞ĐƌĞƌŶŽƌĞĂůƉĂƌĂƌĞĐŽŶŚĞĐĞƌŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽ͕ŵĂƐƚŽŵĂƌƉŽƌ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽŽƌĞĂůƋƵĞƌĞĐƵƐĂŵŽƐĂƐƐƵŵŝƌ;:K^&͕ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϮϭϱͿ͘
ŵDŝĂŽƵƚŽ͕Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹƋƵĞ͕ŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚĂƐĐŽŶĐĞƉĕƁĞƐŐĞ-
nológica ou modal, depende essencialmente da manifestação do insólito para se
ĐŽŶĐƌĞƟnjĂƌʹ͕ŝƌƌŽŵƉĞ͕ŚşďƌŝĚŽ͕ĐŽŵŽĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĚĞƋƵĞƐĞŶƵƚƌĞƉĂƌĂƐŝƚĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕
também ela híbrida. E o faz, em diferentes níveis, envolvendo línguas – falares in-
dianos e bantos, por exemplo – e crenças – oriundas de religiões bíblicas e animis-
ISBN 978-85-8199-013-2 69
João Olinto Trindade Junior
ƚĂƐʹ͕ƋƵĞƐĞŵŝƐƚƵƌĂŵ͘ŽŵŽĂƉŽŶƚŽƵDĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽ͕ƐĆŽ͞ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƐĞ
cosmogonias que impregnam o racionalismo ocidental do poder sobrenatural dos
espíritos” (2007, p. 549).
Na obra desse escritor moçambicano, a realidade não é maravilhosa apenas
pelo que ela é, mas, principalmente, pelas possibilidades que oferece. Realidade em
ƋƵĞƉƌŽĚşŐŝŽƐƚƌĂŶƐŝƚĂŵĞŶƚƌĞŽƐŵƵŶĚŽƐĞŵƉşƌŝĐŽĞŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͖ƋƵĞƐĞĐŽŶƐƚƌſŝ
ƚĂŶƚŽŶĂƐĂĕƁĞƐ͕ƋƵĂŶƚŽŶĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ͖ƋƵĞƐĞĞŶĐĞŶĂƐĞũĂŶŽĞƐƉĂĕŽ͕ƐĞũĂŶŽ
ƚĞŵƉŽ͖ŽƵ͕ĂŝŶĚĂ͕ŶĂĞĨĂďƵůĂĕĆŽ͕ĚĞŵŽĚŽƋƵĞŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůƚŽƌŶĂͲƐĞƵŵĂǀĂƌŝĂŶ-
te de percepção do homem e do mundo.
A fantasmagórica presença de Deolinda, em Venenos de Deus, Remédios do
Diabo ;ϮϬϬϴͿ͕ăŵĞĚŝĚĂƋƵĞĞdžŝƐƚĞͬĚĞƐĞdžŝƐƚĞʹĞƐƚĄŶŽĞŶƚƌĞůƵŐĂƌĚĞƐĞƌĞƉĂƌĞĐĞƌ
ʹ͕ĨƵŶĐŝŽŶĂĐŽŵŽƵŵĂŝŶƐſůŝƚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ͕ůĞǀĂŶĚŽĂŶĂƌƌĂƟǀĂĂƚƌĂŶƐŝƚĂƌĞŶƚƌĞŽ
ƌĞĂůʹĚĞƌĞĨĞƌġŶĐŝĂİƐŝĐĂʹĞŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͘ĞŽůŝŶĚĂƉĂƌĞĐĞƵŵĂŵŽƌƚĂ͕ƚĂůǀĞnjŶĞŵ
ŵŽƌƚĂ͕ŶĞŵǀŝǀĂ͕ŽĐƵƉĂŶĚŽĂƐŵĞŵſƌŝĂƐĚĞ^ŝĚƀŶŝŽͬ^ŝĚŽŶŚŽ͕Ğ͕ĂŝŶĚĂ͕ĂŐŝŶĚŽĐŽŵŽ
um repositório das memórias dos moradores de Vila Cacimba (COUTO, 2008). Nesse
ƚĞdžƚŽ͕DŝĂŽƵƚŽƌĞƐŐĂƚĂŽũŽŐŽĚĂŽƌĂůŝĚĂĚĞĞŵƋƵĞŽĚŝƚŽĠƌĞǀŝǀŝĚŽĞƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂ-
do para resolver um problema da/na comunidade, como um missosso pós moderno
;W/>,͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϯϵͲϰϬͿ͘ŵƐƵŵĂ͕ŶĂƐƉĂůĂǀƌĂƐĚŽƉƌſƉƌŝŽĞƐĐƌŝƚŽƌ͕͞Ž&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞ
o inusitado estão na realidade africana e fazem parte da nossa cultura” (Couto, apud
&KE^͖hZz͕ϮϬϬϴ͕Ɖ͘ϭϮϲͿ͘
^ĞŶĚŽůĞŐşƟŵĂƐĞƐƐĂƐƉƌŽƉŽƐƚĂƐĚĞĂƉƌŽdžŝŵĂĕĆŽ͕ƚĂŵďĠŵƐĞƌĄůĞŐşƟŵŽůĞƌŽ
corpusĮĐĐŝŽŶĂůĞůĞŝƚŽ͕Vinte e zinco͕ƐŽďĂƐƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƐĐƌşƟĐŽͲƚĞſƌŝĐĂƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕
ĞŵƐĞŶƟĚŽůĂƚŽ͕ŝůƵŵŝŶĂŶĚŽĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĚŽŝŶƐſůŝƚŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ƋƵĞŶĞůĞƐĞƉŽĚĞŵ
ĂƉŽŶƚĂƌ͕ Ğ ĂƉƌŽdžŝŵĂŶĚŽͲŽ ĚĞ Ƶŵ ƌĞĂů ĂĚũĞƟǀĂĚŽ͕ ƋƵĞ͕ ƐĞŐƵŶĚŽ Ă ƚƌĂĚŝĕĆŽ ǀŝŐĞŶƚĞ͕
ƐĞƌŝĂZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ŵĂƐƋƵĞ͕ũĄƐĞĂĚŵŝƟŶĚŽĂĂƉƌŽƉƌŝĂĕĆŽĚŽĐŽŶĐĞŝƚŽăƌĞĂůŝ-
ĚĂĚĞ ĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ ƉĂƐƐĂƌŝĂ Ă ƐĞƌ ZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͘ ƵĂƐ ŶŽŵĞŶĐůĂƚƵƌĂƐ ƉƌſdžŝŵĂƐ͕ ĚŝƐƟŶ-
ƚĂƐ ĂƉĞŶĂƐ ƉĞůĂ ĂĚũĞƟǀĂĕĆŽ ƋƵĞ ĚĄ ĐŽŶƚĂ ĚĞ Ƶŵ ŵĞƐŵŽ ĐŽŶĐĞŝƚŽ͕ ƌĞĨĞƌĞŶƚĞ Ă Ƶŵ
ĐŽŶũƵŶƚŽ ĚĞ ĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ͕ ƉĂƌƟĐƵůĂƌŝnjĂĚĂƐ ƉĞůĂ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ ůŽĐĂů ĚĞ ƋƵĞ ƐĆŽ
ƉĂƌĂƐŝƚĂƐ͕ĐŽŵŽƌĞĐƵƌƐŽĚĞĞůĂďŽƌĂĕĆŽĚŝƐĐƵƌƐŝǀĂ͘WŽĚĞͲƐĞƐŝŶƚĞƟnjĂƌĂƐƐƵŵŝŶĚŽƋƵĞŽ
ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽƐĞũĂƉƌſƉƌŝŽĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ĞŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͕ĚĞĨƌŝĐĂʹĞŵ
ŶŽƐƐŽĐĂƐŽŵĂŝƐĞƐƉĞĐşĮĐŽ͕ĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͘
70 ISBN 978-85-8199-013-2
Em direção ao Real-Animismo em Vinte e zinco
Um livro não é moral ou imoral. Os livros são bem ou mal es-
critos. Eis tudo.
Oscar Wilde
Em Vinte e zinco, Mia Couto, recorrendo ao universo telúrico moçambica-
ŶŽ͕ƌĞƐŐĂƚĂ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕ƵŵƉĞƌşŽĚŽƋƵĞƉĞƌƉĂƐƐĂĚŝĂƐŝŵĞĚŝĂƚĂŵĞŶƚĞĂŶƚĞ-
riores e posteriores à Revolução dos Cravos em Portugal – iniciando, no dia 19 de
abril e terminando no dia 30 –, quando se deu a queda do regime salazarista, em
ϮϱĚĞďƌŝůĚĞϭϵϳϰ͘^ĞƵƚĞdžƚŽĞƐƚĄůŽŶŐĞĚĞƐĞƉƌĞŶĚĞƌ͕ĂƉĞŶĂƐ͕ăƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞ
ĞdžƉŽƌ͞ƵŵĂ͟ǀĞƌƐĆŽĚĞƐƐĞĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽŚŝƐƚſƌŝĐŽʹŽƵƐĞũĂ͕ĂǀŝƐĆŽĚŽĞƉŝƐſĚŝŽ
sob o ponto de vista moçambicano –, que se trata de uma obra feita sob enco-
menda – como parte da coleção “Caminhos de Abril”, em comemoração aos vinte
ĞĐŝŶĐŽĂŶŽƐĚŽϮϱĚĞďƌŝů͘ĨĞƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ŚŽƵǀĞĐĞƌƚĂƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽ
ĞƐĐƌŝƚŽƌĨƌĞŶƚĞăƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞĞƐĐƌĞǀĞƌĞƐƐĂŽďƌĂ͕ũĄƋƵĞ͕ĂƐĞƵǀĞƌ͕ĂĚĂƚĂĞŵ
ƐŝŶĆŽƟŶŚĂ͕ƉĂƌĂŽƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐ͕ŽŵĞƐŵŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƋƵĞĂŽůĞĕĆŽůŚĞĚĂǀĂ͘
O escritor moçambicano, valendo-se do arcabouço lúdico proveniente
ĚĞƐƵĂƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůʹƉŽĞƚĂ͕ƉƌŽƐĂĚŽƌ͕ĚƌĂŵĂƚƵƌŐŽ͕ĐƌşƟĐŽ͘͘͘ʹ͕ƐŽŵĂĚŽăƐ
ƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐ ĞƐƚĠƟĐĂƐ ŽĨĞƌĞĐŝĚĂƐ ĂŽ ůŽŶŐŽ ĚŽ ƉƌŽĐĞƐƐŽ ĚĞ ƌĞƐŐĂƚĞ ƐŽĐŝŽĐƵůƚƵ-
ral – não apenas o 25 de Abril, mas todo o processo de dominação lusitana dos
ƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐĞŵĨƌŝĐĂ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĐŽŵŽƉĂƌ-
ƟĐŝƉĂŶƚĞĚŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĨŽƌŵĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂůʹ͕ĐŽŶƚĂƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂŽŶĚĞ͞mirabilia
também são legíveis como naturalia” (CHIAMPI, 1980, p. 61).
A novela, que ora avança, ora retrocede em sua narração, apresenta-nos a fun-
ĕĆŽĚĂĐĂƐĂƐĞŶŚŽƌŝĂůĚŽƐĂƐƚƌŽʹŽƐŝŶƚĞŐƌĂŶƚĞƐĚĂĨĂŵşůŝĂ͖ƐƵĂƐƌĞůĂĕƁĞƐĐŽŵĨƌŝĐĂ͖
sua condição de outros que negam, interagem e, às vezes, mesclam-se com as culturas
da terra, como é o caso mais explícito de Irene – e das demais personagens que transi-
ƚĂŵĂŽƐĞƵƌĞĚŽƌ͕ƐĞũĂŶĂĮŐƵƌĂĚĞŶĞŐƌŽƐ͕ƐĞũĂŶĂĚĞĂůŐƵŶƐďƌĂŶĐŽƐ͕ĞƐƚĞƐ͕ĂƐƐŝŵŝůĂĚŽƐ
ŽƵŶĆŽ͘ƐƐĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐũƵŶƚĂƐʹŵĞƐŵŽƋƵĞ͕ĂŶŽƐƐŽǀĞƌ͕ĞƐƚĞũĂŵ͕ĞŵĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽƐ
momentos, em lados opostos, como representação da dualidade colonial –, caminham
ƉĂƌĂĂĂƉŽƚĞſƟĐĂĐĞŶĂŝŶƐſůŝƚĂƋƵĞƐĞŝŶƐƚĂƵƌĂĐŽŵĂĂƐĐĞŶƐĆŽĚŽEĂƉŽůŽʹ͞ĐŽďƌĂǀŽ-
ĂĚŽƌĂ͕ƚƌĂnjĞĚŽƌĂĚĞƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƐĞƌĞůąŵƉĂŐŽƐ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϰͿ͕ĐƌŝĂƚƵƌĂŵşƟĐĂͬ
ŵşƐƟĐĂƋƵĞƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂŶŽƐĚŽŝƐŵŽŵĞŶƚŽƐŵĂŝƐŵĂƌĐĂŶƚĞƐĚĂǀŝĚĂĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĚĞ
ĂƐƚƌŽ͕ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵĐĞŶƚƌĂů͕ĞŵƚŽƌŶŽĚĂƋƵĂůŽĨĞŝdžĞŶĂƌƌĂƟǀŽƐĞǀĂŝĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƌʹĞĂ
ƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƋƵĞĐĂŝĂŽĮŶĂů͕ŵĂŶĐŚĂŶĚŽĂƚĞƌƌĂăƐǀĠƐƉĞƌĂƐĚŽϮϱĚĞďƌŝů͘
João Olinto Trindade Junior
Seguiremos, genericamente, as considerações de Irlemar Chiampi, acerca
do Real-Maravilhoso como manifestação de toda e qualquer literatura comprome-
ƟĚĂĐŽŵĚŝƐĐƵƌƐŽƐĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽƐʹĂƋƵĞůĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƋƵĞĂƚƵĂĐŽŵŽĨŽƌŵĂ
ĚĞĞdžƉƌĞƐƐĆŽĚĞŵŝŶŽƌŝĂƐ͕ĚĞĐƵůƚƵƌĂƐŶĆŽǀĂůŽƌŝnjĂĚĂƐĂŽůŽŶŐŽĚĂŚŝƐƚſƌŝĂ͕ƐƵũĞŝ-
ƚĂƐ Ă ƚĞŶƚĂƟǀĂƐ ĚĞ ͞ĂƐƐŝŵŝůĂĕĆŽ͟ Ğŵ ďůŽĐŽƐ ƐƵƉŽƐƚĂŵĞŶƚĞ ŚŽŵŽŐġŶĞŽƐ͘ EĞƐƐĂ
literatura, a representação dos realia age como suporte para a representação dos
mirabilia͕ŽĐŽƌƌĞŶĚŽŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞŶĞŐĂĕĆŽĚĂĚŝƐũƵŶĕĆŽĚĞƚĞƌŵŽƐĐŽŶƚƌĂĚŝƚſƌŝŽƐ
(C HIAMPI, 1980, p. 155).
ƐƐĂƌĞůĂĕĆŽ͞ƐŝŵĞŶĆŽ͟ĠĞdžƉĞƌŝĞŶĐŝĂĚĂĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟ-
ǀĂ͘ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ>ŽƵƌĞŶĕŽĚĞĂƐƚƌŽĞdžĞŵƉůŝĮĐĂŵƵŝƚŽďĞŵĂŶĞŐĂĕĆŽĚĞƐƐĞƉƌŝŶĐş-
ƉŝŽĚĂĐŽŶƚƌĂĚŝĕĆŽ͕ĐŽŵŽƐĞƉŽĚĞǀĞƌŝĮĐĂƌƉĞůĂƉĂƐƐĂŐĞŵĞŵƋƵĞŽŶĂƌƌĂĚŽƌĐŽŶƐƚĂ-
ta que “a Lourenço de Castro irritava era esse sim e nãoĚŽƐĂƐƐƵŶƚŽƐĞŵĨƌŝĐĂ͘ƐƐĞ
pode ser e não ser, essa líquida fronteira que separa o possível do impossível, como
ƐĞĂǀĞƌĚĂĚĞ͕ŶŽƐƚƌſƉŝĐŽƐ͕ƐĞƚŽƌŶĂƐƐĞĞŵĐŽŝƐĂŇƵşĚĂ͕ĞƐĐŽƌƌĞŐĂĚŝĂ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕
p. 95 – grifos nossos ).
ƐƐĂŇƵŝĚĞnjĠƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐƌĞůĂĕƁĞƐ
estabelecidas entre as personagens. A fronteira que separa o eu lusitano e o outro
africano por vezes se confunde, confundindo as percepções do indivíduo entre onde
ĞůĞĞƐƚĄĞĐŽŵŽĞůĞĞƐƚĄ͘KĐŽƌƌĞ a mesclagem das culturas díspares, de maneira que
as relações – e diferenciações – ĞŶƚƌĞƵŵƉŽƌƚƵŐƵġƐĞŵĨƌŝĐĂʹŶĂƐĐŝĚŽĞĂĚĞƉƚŽ
dos valores culturais portugueses –, um português africano – como o primeiro, mas
adepto dos valores da terra, um assimilado “às avessas” –, um moçambicano portu-
guês – um assimilado “tradicional ou correto” – e um moçambicano “africano” – a
ĞdžĞŵƉůŽ͕ƌĞƐƉĞĐƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ĚĞDĂƌŐĂƌŝĚĂ͕/ƌĞŶĞ͕ŚŝĐŽ^ŽĐŽͲ^ŽĐŽĞdĐŚƵǀŝƐĐŽʹƐĞ
confundem, como uma fronteira transpassada onde, em determinado momento,
ĐŽůŽŶŽƐĞĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƐŶĆŽƐĞĚŝĨĞƌĞŶĐŝĂŵ͖ŽƉƌŝŵĞŝƌŽ͕ĨĂnjĚĞĨƌŝĐĂƐĞƵƋƵŝŶƚĂů͘K
segundo, ƉĂƐƐĂĂǀĞƌŶŽƉƌŝŵĞŝƌŽƚƌĂĕŽƐĞƐƐĞŶĐŝĂŝƐĚĞƐƵĂĨŽƌŵĂĕĆŽͬĐŽŶĮŐƵƌĂĕĆŽ͘
ŵďŽƌĂDĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽƵƟůŝnjĞĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽZĞĂůŝƐŵŽDĄŐŝĐŽ;ϮϬϬϰ͕
Ɖ͘ϯϰϴͿƉĂƌĂƚƌĂƚĂƌĚĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂƵƟůŝnjĂĚĂƐƉŽƌ
ĐŽŶƟƐƚĂƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐʹĞŵĞƐƉĞĐŝĂů͕ƉŽƌDŝĂŽƵƚŽʹ͕ƐƵĂƐŽďƐĞƌǀĂĕƁĞƐĞŵƌĞůĂ-
ĕĆŽĂĞƐƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞĮĐĐŝŽŶĂůŶĆŽĐŽŶƚƌĂĚŝnjĞŵŶŽƐƐĂŽƉĕĆŽƚĞƌŵŝŶŽůſŐŝĐĂƉŽƌZĞĂůͲ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽŽƵZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ͕ŶƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞŶŽŵĞĂƌĂƚĞŶĚġŶ-
ĐŝĂůŝƚĞƌĄƌŝĂůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂ͕ĂƉƌŽƉƌŝĂĚĂĞŵĨƌŝĐĂ͘ŽŶĨŽƌŵĞŚŝĂŵƉŝ͗
quanto à incorporação de mitos, tradições ou situações de con-
ƚĞƷĚŽŵĄŐŝĐŽ͕ƚŽƌŶĂͲƐĞĚĞƐŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽƌĞĐŽƌƌĞƌĂŽƚĞƌŵŽŵĂŐŝĂ͕
ĚĞ ŽƵƚƌŽ ąŵďŝƚŽ ĐƵůƚƵƌĂů͕ ƉĂƌĂ ƋƵĂůŝĮĐĂƌ Ž ĞůĞŶĐŽ ĚĞ ŵŽƟǀŽƐ
ƋƵĞĂƐĐƵůƚƵƌĂƐŶĂƟǀĂƐƉƌŽǀġŵăůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĚĞĮĐĕĆŽ͘΀͘͘͘΁ƋƵĂŶĚŽ
ŽƐ ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ ĞŶǀŽůǀĞŵ Ă ƉƌĄƟĐĂ ŵĄŐŝĐĂ͕ Ă ĞƐƉĠĐŝĞ ͞ŵĂ-
gia” subsuma-se à categoria do Maravilhoso. (1980, p. 47)
Mia Couto, em um universo cercado de mitos, crenças e tradições, torna
visível o invisível e (tenta) traduz(ir), no plano da diegese, a realidade telúrica que
o cerca, recuperando, pela via das trocas culturais ao longo dos séculos, pressu-
72 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƉŽƐƚŽƐ ĚĞƐĞŶǀŽůǀŝĚŽƐ ĂĐĞƌĐĂ ĚĂƐ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐ ůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂƐ ƉĂƌĂ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌ
Moçambique em sua obra.
A casa África e a casa em África: entre a varanda e o quintal
Em Vinte e zinco͕DŝĂŽƵƚŽƚƌĂďĂůŚĂ͕ƌĞŶŽǀĂŶĚŽĞƐƚĞƟĐĂŵĞŶƚĞʹĐŽŶƐŝĚĞ-
ƌĂŶĚŽͲƐĞĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĂƌơƐƟĐĂůŽĐĂůʹ͕ĐŽŵĂƋƵĞƐƚĆŽĚĂĐƵůƚƵƌĂĞ͕ĞŵĞƐƉĞĐŝĂů͕ĚĂ
ƉƌſƉƌŝĂ,ŝƐƚſƌŝĂĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĞŵƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƐƐŝŶĐƌƀŶŝĐĂĞĚŝĂĐƌƀŶŝĐĂ͘KĂƵƚŽƌ
ĂƉƌĞƐĞŶƚĂ͕ĚĞĨŽƌŵĂůƷĚŝĐĂ͕ƵŵĂĐƌşƟĐĂăZĞǀŽůƵĕĆŽĚŽƐƌĂǀŽƐ͕ŽĐŽƌƌŝĚĂ͕ĞŵϮϱĚĞ
Abril de 1974, em terras lusitanas. Em Portugal, esse acontecimento representou
ƵŵŐƌĂŶĚĞŵĂƌĐŽĚĞůŝďĞƌĚĂĚĞ͕ƉŽŶĚŽĮŵĂŽƐůŽŶŐŽƐĂŶŽƐĚŽƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͘
Contudo, para os moçambicanos, o fato não teve o mesmo valor que para os portu-
ŐƵĞƐĞƐʹĮĐĂĂƋƵŝ͕ĚĞƉƌŽŶƚŽ͕ƵŵĂƋƵĞƐƚĆŽƋƵĞ͕ĂĚŝĂŶƚĞ͕ƐĞƌĄĚĞƐĞŶǀŽůǀŝĚĂ͕ƉŽŝƐĂ
família Castro, ainda que portuguesa, quando do evento, estava em terras moçam-
bicanas, onde ocupava postos de poder em nome do regime colonial, pois, tanto
Joaquim quanto Lourenço eram agentes da PIDE.
DŝĂŽƵƚŽ͞ďƌŝŶĐĂ͟ĐŽŵĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ĂƉĂƌƟƌĚĞƐĞƵĞĨĞŝƚŽƐŽŶŽƌŽ͕ĐŽŶƐƚƌƵŝŶ-
ĚŽƵŵơƚƵůŽƋƵĞĨĂnjĂůƵƐĆŽăĚĂƚĂĚŽĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽʹƋƵĞůŚĞĞŵƉƌĞƐƚĂŶŽŵĞʹ͕
ŵĂƐƐƵďƐƟƚƵşŽŶƵŵĞƌĂů͞ĐŝŶĐŽ͕͟ĚĂĚĂƚĂʹ͞ǀŝŶƚĞĞĐŝŶĐŽ͟ʹƉĞůŽƐƵďƐƚĂŶƟǀŽ͞njŝŶĐŽ͟
ʹƋƵĞĚĞƐŝŐŶĂŽƟƉŽĚĞŵĞƚĂůĐŽŵŽƋƵĂůƐĞĨĂďƌŝĐĂǀĂŵĂƐĐŽďĞƌƚƵƌĂƐĚĂƐĐĂƐĂƐĚŽƐ
ŶĂƟǀŽƐ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞĚŝnjĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ , ao se referir às “casas de madeira
e zinco” (COUTO, 2004, p. 11). Com isso, o escritor denuncia a permanência de um
ƌĞŐŝŵĞŵĂƐƐŝĮĐĂĚŽƌƋƵĞƵůƚƌĂƉĂƐƐĂĂƋƵĞůĞŵŽŵĞŶƚŽĞŵďůĞŵĄƟĐŽƉĂƌĂŽƉŽǀŽƉŽƌ-
tuguês: o 25 de Abril.
WŽĚĞŵŽƐ ƌĞƐƐĂůƚĂƌ͕ ĂŝŶĚĂ͕ ĚƵĂƐ ĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ ĂďŽƌĚĂŐĞŶƐ ƉĂƌĂ Ă ƐŝŐŶŝĮĐĂĕĆŽ
desse acontecimento, que, para os portugueses em geral, foi índice de liberdade
imediata frente ao regime opressor salazarista, mas, para os moçambicanos, na re-
ĂůŝĚĂĚĞ͕ŶĆŽĨŽŝƚĆŽŝŵĞĚŝĂƚĂŵĞŶƚĞƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂŶĂ-
ĐŝŽŶĂůƐſǀŝƌŝĂĂƐĞĚĂƌĞŵϮϱĚĞũƵŶŚŽĚĞϭϵϳϱ;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϱϴͿ͕ŵĂŝƐĚĞƵŵ
ĂŶŽĚĞƉŽŝƐ͘ƐƐŝŵ͕ĂŶĂƌƌĂƟǀĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂƉĞƌŵŝƚĞƋƵĞƐĞǀĞũĂŵŽƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐ
ŶĆŽĐŽŵŽŵĞƌŽƐĐŽĂĚũƵǀĂŶƚĞƐĚĂƐŵĂŶŽďƌĂƐůƵƐŝƚĂŶĂƐ͕ŵĂƐĐŽŵŽƐĞŶŚŽƌĞƐĚĞƵŵ
futuro por vir – ainda que mais tarde, novamente, conforme palavras de Jessumina,
quando diz que “este vinte e cinco ainda não é nada. Hão-de vir outros vinte e cin-
ĐŽƐ͕ŵĂŝƐŶŽƐƐŽƐ͕ĚĞƐƐĞƐĞŵƋƵĞƐſŚĄĂŶƚĞƐĞĚĞƉŽŝƐ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϴͿ͘
ŶĞƐƐĞĐŽŶƚĞdžƚŽƋƵĞƐƵƌŐĞƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂƉĞƌŵĞĂĚĂĚĞĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐŝŶĐŽ-
ŵƵŶƐ͕ƚƌĂnjĞŶĚŽăƚŽŶĂĂƋƵĞƐƚĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ŽƵƐĞũĂ͕ŽƋƵĞŶĆŽĠƵƐƵĂůŽƵĞƐƉĞƌĂ-
ĚŽ͕ŶĆŽƉŽĚĞƐĞƌĞdžƉůŝĐĂĚŽĂƉĂƌƟƌĚŽƐĞŶƐŽĐŽŵƵŵ͕ŶĆŽƌĞŵĞƚĞĂŐĞŶĞƌĂůŝnjĂĕƁĞƐ
ƉƌĞĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐ͘ƚƌĂŵĂĨĂnj͕ĞŶƚĆŽ͕ĞŵĞƌŐŝƌʹŶŽƉůĂŶŽĚĂĮĐĐŝŽŶĂůŝĚĂĚĞʹŝƌƌƵƉĕƁĞƐ
que a levam para o universo do Real-Maravilhoso – em sua vertente animista, ter-
ŵŽƉŽƌŶſƐĂƐƐƵŵŝĚŽĐŽŵŽĂƚƵĂůŝnjĂĕĆŽĚĂĐŽƌƌĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶĂĞŵ
espaços africanos –, de maneira que a realidade representada ultrapassa os limites
ISBN 978-85-8199-013-2 73
João Olinto Trindade Junior
ŚĂďŝƚƵĂŝƐĚĂĮĐĕĆŽĚĞŵĂƟnjZĞĂůͲEĂƚƵƌĂůŝƐƚĂ͕ŽŶĚĞ͞ĂǀŝƐĆŽůŝƚĞƌĄƌŝĂƉƌŽƉŽƐƚĂĞǀŝ-
dencia a recusa categórica do mundo tal como ele aparece e uma vontade clara da
sua reconstrução. Não se trata de uma fuga à realidade, mas de uma dinâmica que
ĞƐƟŵƵůĂĂƐĞŶƐŝďŝůŝĚĂĚĞĂƐĞƵƌĞƐƉĞŝƚŽ͟;&KE^K͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϱϱͲϯϱϲͿ͘
,Ą͕ ŶĂ ƉƌŽĚƵĕĆŽ ĮĐĐŝŽŶĂů ĚĞ DŝĂ ŽƵƚŽ͕ Ƶŵ ĞŶĨŽƋƵĞ ĚĂ ĐŽŶĚŝĕĆŽ ŚşďƌŝĚĂ
desse país e de sua situação atual, o que nos levou a eleger, como fonte primordial
ĚĞĞƐƚƵĚŽƐ͕ƚĞdžƚŽƐƋƵĞƚĞŵĂƟnjĂŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽ͕ƐƵĂ
ƉƌſƉƌŝĂĨŽƌŵĂĕĆŽ͕ĂƐĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂƐĚĂ'ƵĞƌƌĂŽůŽŶŝĂůʹƉĞƌşŽĚŽŶŽƋƵĂůĂƐĞdžͲĐŽůƀ-
nias portuguesas lutaram pela sua independência – e da Guerra da Desestabilização.
ŵďŽƌĂ ƐĞũĂ ĐŽŵƵŵ Ž ƚĞƌŵŽ ͞ŐƵĞƌƌĂ Đŝǀŝů͟ ƉĂƌĂ ƐĞ ƌĞĨĞƌŝƌ Ă ĞƐƐĞ ĞǀĞŶƚŽ
bélico que se inicia logo após Moçambique ter conquistado sua independência,
ƵƟůŝnjĂƌĞŵŽƐ Ž ƚĞƌŵŽ ƉƌŽƉŽƐƚŽ ƉŽƌ :ŽƐŝůĞŶĞ ^ŝůǀĂ ĂŵƉŽƐ͕ Ğŵ ƐƵĂ ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ ĚĞ
Mestrado, As representações da Guerra Civil e a construção da Nação Moçambicana
nos romances de Mia Couto (1992 – 2000) (2009): “Guerra da Desestabilização”.
ƉƌĞĐŝƐŽĂƚĞŶƚĂƌŵŽͲŶŽƐƉĂƌĂŽƐĞŐƵŝŶƚĞĨĂƚŽ͗>ŽŐŽĂƉſƐŽƉĞƌşŽĚŽĞŵƋƵĞ
lutaram pelas suas independências, Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau, adentra-
ram em outro período de confrontos militares conhecido como Guerra Civil, en-
volvendo os grupos militares que tomaram parte da guerra de independência e,
ĂŐŽƌĂ͕ůƵƚĂǀĂŵĞŶƚƌĞƐŝƉĂƌĂĚĞĮŶŝƌƋƵĞŵĚĞƚĞƌŝĂŽĐŽŶƚƌŽůĞĚŽŐŽǀĞƌŶŽ͘ŵŶŐŽůĂ͕
os envolvidos foram o MPLA, a UNITA - ŽƐĚŽŝƐƉƌŝŵĞŝƌŽƐĐŽŵƉĂƌƟĐŝƉĂĕĆŽŵĂŝƐ
ƐŝŐŶŝĮĐĂƟǀĂʹ͕ĞĂ&E>͘ĂďŽsĞƌĚĞĞ'ƵŝŶĠŝƐƐĂƵ͕ĂƉſƐĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͕ĨŽƌĂŵ
ŐŽǀĞƌŶĂĚŽƐ ƉĞůŽ ŵĞƐŵŽ ƉĂƌƟĚŽ͕ Ž W/'͕ ĚĞ ŽƌŝĞŶƚĂĕĆŽ ŵĂƌdžŝƐƚĂ͕ ƐĞŶĚŽ ƋƵĞ ŽƐ
ƉůĂŶŽƐĚĞƵŶŝĮĐĂĕĆŽƉŽůşƟĐĂĞŶƚƌĞŽƐĚŽŝƐƉĂşƐĞƐĨƌĂĐĂƐƐŽƵ͕ŐĞƌĂŶĚŽƵŵĐŝƐŵĂŶĂĂůĂ
cabo-verdiana do PAIGC, criando a PAICV.
Em Moçambique, com o surgimento da FRELIMO, em 25 de Junho de 1962
;DWK^͕ ϮϬϬϵ͕ Ɖ͘ ϰϲͿ͕ ŽĐŽƌƌĞ Ă ƵŶŝĮĐĂĕĆŽ ĚĞ ƚƌġƐ ŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐ ƋƵĞ͕ ă ĠƉŽĐĂ͕ ũĄ
ůƵƚĂǀĂŵƉĞůĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂĚŽĨƵƚƵƌŽƉĂşƐ͘ƌĂŵŽhEDKʹhŶŝĆŽĞŵŽĐƌĄƟĐĂ
Nacional de Moçambique –, o MANU - DŽnjĂŵďŝƋƵĞĨƌŝĐĂŶEĂƟŽŶĂůhŶŝŽŶʹĞ
o UNAMI – União Nacional Africana de Moçambique Independente –. O primeiro
ƉƌĞƐŝĚĞŶƚĞĚŽƉĂƌƟĚŽĨŽŝĚƵĂƌĚŽDŽŶĚůĂŶĞ͘
&Z>/DK͕ƉĂƌƟĚŽŽĮĐŝĂůĚĞƚĞŶƚŽƌĚŽƉŽĚĞƌŝŵĞĚŝĂƚĂŵĞŶƚĞĂƉſƐĂŝŶĚĞ-
pendência, entra em combate interno contra a RENAMO, causando a desestabiliza-
ĕĆŽĚĂͬŶĂũĄĨƌĄŐŝůĞĐŽŶŽŵŝĂĚŽũŽǀĞŵƉĂşƐ͘,ŽƵǀĞƵŵƐŝůġŶĐŝŽƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽƐƚĂĚŽ
em relação à guerra civil moçambicana, tratada pelos governantes “apenas” como
guerra de desestabilização (CAMPOS, 2009, p. 96), uma vez que não se tratava de
uma luta entre forças internas. Devido ao fato das guerras coloniais – por assim
dizer, o mundo pós-Segunda Guerra Mundial – estarem inseridas no contexto da
Guerra Fria – em suma, o mundo bipolar durante a disputa entre EUA e URSS por
njŽŶĂƐĚĞŝŶŇƵġŶĐŝĂʹ͕DŽĕĂŵďŝƋƵĞǀŝƵͲƐĞůĂŶĕĂĚŽĞŵƵŵĂŐƵĞƌƌĂĞŶƚƌĞĂ&Z>/DK
(de tendência marxista-leninista) e a RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana
(de tendência liberal-capitalista) –.
ZEDK͕ŽƌŝŐŝŶĂůŵĞŶƚĞŽƌŝƵŶĚŽĚĂZŽĚĠƐŝĂ͕ŵƵĚĂƐƵĂďĂƐĞƉĂƌĂĂĨƌŝĐĂĚŽ
74 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
Sul, recebendo muito apoio do governo em seus ataques. Isso obrigou o governo mo-
çambicano a direcionar importantes recursos para guerra, desestabilizando ĂũĄĨƌĄŐŝů
ĞĐŽŶŽŵŝĂĚŽũŽǀĞŵƉĂşƐ͘ƐƐĂŐƵĞƌƌĂĚƵƌŽƵĂƚĠϮϬϬϮ͕ƋƵĂŶĚŽ͕ĂƉſƐǀĄƌŝĂƐƚĞŶƚĂƟǀĂƐ͕
acordos de paz foram assinados. Ironicamente – poderíamos, talvez, dizer que seria
ƵŵĂƉĞƌĨĞŝƚĂŝƌŽŶŝĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂʹ͕ĂǀŝƷǀĂĚĞ^ĂŵŽƌĂDĂĐŚĞů͕'ƌĂĕĂ^ŝŵďŝŶĞDĂĐŚĞů
- que, dentre outras atribuições, fora a primeira primeira-dama de Moçambique –, é
desposada em segundas núpcias por Nelson Mandela, à época – durante o embate
entre FRELIMO e RENAMO, e anterior à primeira edição de Vinte e zinco, em 1999 –,
ƉƌŝŵĞŝƌŽƉƌĞƐŝĚĞŶƚĞĚĂĨƌŝĐĂĚŽ^ƵůƉſƐͲƉĂƌƚŚĞŝĚ͘
ƐƐĂƐƚĞŶƐƁĞƐŝŶƚĞƌŶĂƐ͕ĞŵĚŝĄůŽŐŽƐĐŽŵĂƐĞdžƚĞƌŶĂƐ͕ƋƵĞĐŽŶƚƌŝďƵşƌĂŵƉĂƌĂ
Ž ĐĂƌĄƚĞƌ ŚşďƌŝĚŽ ĚĂ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŝĚĂĚĞ͕ ŵŽƐĂŝĐĂŵĞŶƚĞ ĞŶƚĂůŚĂĚĂ ƉŽƌ DŝĂ ŽƵƚŽ͕
ĠƵŵĚŽƐŽďũĞƚŽƐĂƐĞƌŽďƐĞƌǀĂĚŽŶĞƐƚĞƉƌĞƐĞŶƚĞĞŶƐĂŝŽ͕ƉŽŝƐĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĚĂƋƵĂů
Vinte e zincoƐĞĨĂnjƉĂƌĂƐŝƚĄƌŝĂĠĚĞŵĂƌĐĂĚĂƉŽƌĞƐƐĞƉĞƌşŽĚŽ͘
Evidenciam-se, desse modo, a importância da existência de recorrentes ques-
ƟŽŶĂŵĞŶƚŽƐĂƌĞƐƉĞŝƚŽĚĂŚŝƐƚſƌŝĂĚĞƵŵƉŽǀŽĞĂĨŽƌŵĂĐŽŵŽŽƉƌŽĐĞƐƐŽŚŝƐƚſƌŝĐŽ
ŝŶĐŝĚĞƐŽďƌĞĂĨŽƌŵĂĕĆŽĚĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐ͘ůşŶŐƵĂ͕ŽƐƌŝƚƵĂŝƐĞŽƐĐŽƐƚƵŵĞƐ
das inúmeras etnias da terra foram resgatados por diversos escritores que buscaram
ƌĞŽƌŝĞŶƚĂƌŽƐƉĞƌĐƵƌƐŽƐĚĞĚĞĮŶŝĕĆŽĚĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŝĚĂĚĞ͕ƐĞŶĚŽ͕DŝĂŽƵƚŽ͕Ƶŵ
ĚĞůĞƐ͘ŵƐƵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ƌĞůĞŶĚŽĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐĞ͕ŵƵŝƚĂƐǀĞnjĞƐ͕ƋƵĞƐƟŽŶĂŶĚŽͲĂƐ͕ĞůĞ
passeia por mitos, lendas, crenças, ritos, sonhos, infâncias, velhices e desfaz, dessa
ŵĂŶĞŝƌĂ͕ŽƐĞŶƟĚŽƐſůŝƚ;ĚͿŽĚŽƉƌĞƐĞŶƚĞĞŵŶŽŵĞĚĞƵŵĂůŝďĞƌĂĕĆŽĨƵƚƵƌĂ͘
Com o intento de exprimir o que crê possa ser a realidade de Moçambique,
ĞƐƐĞĞƐĐƌŝƚŽƌĂƌƟĐƵůŽƵ͕ĞŵƐĞƵƐƚĞdžƚŽƐ͕ŵĂƌĐĂƐĚĞǀĂůŽƌĞƐĞĐŽƐƚƵŵĞƐĂŶĐĞƐƚƌĂŝƐĞ
ĚĞĂƐƉĞĐƚŽƐĚĂĐŽŶƚĞŵƉŽƌĂŶĞŝĚĂĚĞ͘ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞ͕ĂŝŶĚĂ͕ĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞƌŽĐŽŶƚĞdžƚŽ
ŚŝƐƚſƌŝĐŽ ĚĞ DŽĕĂŵďŝƋƵĞ ĐŽŵ Ă ĮŶĂůŝĚĂĚĞ ĞƐƉĞĐşĮĐĂ ƚĂŶƚŽ ĚĞ ĞŶƚĞŶĚĞƌ Ž ƉĂŝŶĞů
ŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂůĞdžŝƐƚĞŶƚĞʹŶĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞĞ͕ŵĞƐŵŽ͕ŶĂƐƐƵĂƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐĂƌơƐƟĐĂƐ͕
ĚĞŶƚƌĞĞůĂƐ͕ĂůŝƚĞƌĄƌŝĂʹ͕ƋƵĂŶƚŽĚĞŽďƐĞƌǀĂƌŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽƋƵĞWŽƌƚƵŐĂů
imprimiu, tentando sufocar os ritos e os costumes desse povo.
/ƐƐŽĞŵĞƌŐĞŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂĚĞDŝĂŽƵƚŽĐŽŵŽĂƋƵŝůŽƋƵĞŶĆŽĠĐŽŵƵŵ͕ŵĂƐ
ƐĞƚŽƌŶĂ͕ĂƉĞƐĂƌĚĞŝŶƐſůŝƚŽ͕ƌĞƉĞƟĚĂŵĞŶƚĞƉƌĞƐĞŶƚĞ͕ĚĞƐǀĞůĂŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ƐĞƵĐĂƌĄƚĞƌ
ŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽ͕ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽĞƚĐ͘ƐƐĂŝƌƌƵƉĕĆŽ͕ ƌĞƐŐĂƚĂŽƋƵĞũĄĨŽƌĂ
dito por Maria Fernanda Afonso (2004, p. 355-356) e amplia a percepção de um
fato que compõe determinado universo, de maneira que a manifestação do insólito
clareia a noção de dado evento, revelando a subversão da realidade, apresentada
ĐŽŵŽƷŶŝĐĂƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞƌĞƐƉŽƐƚĂĂƵŵŵƵŶĚŽĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚŽ͘
ŽƐĞǀĂůĞƌĚĂƐƉƌĞǀŝƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĚŽƐŝƐƚĞŵĂƉĂƌĂƵƟůŝnjĂƌĂůşŶŐƵĂăƐƵĂŵĂŶĞŝ-
ƌĂ͕ĂŶĂƌƌĂƟǀĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂĐŽŶƐƚƌſŝĞŽĐƵƉĂƵŵĂĨĠƌƟůĞŵĞŶŽƐƌĂŶĐŽƌŽƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞ
ƉĂƌĂͬĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹĞ͕ƉŽƌƋƵĞŶĆŽĚŝnjĞƌ͕ĂĨƌŝĐĂŶĂ
ĞŵůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͘ƌĞůĞǀĂŶƚĞƌĞůĞŵďƌĂƌŵŽƐĂƐĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕƁĞƐĂƉŽŶƚĂĚĂƐĂĐĞƌ-
ca do posicionamento do escritor (MAINGUENEAU, 2006, p. 163) e a capacidade
que este tem de ampliar uma “língua de cultura” com elementos de dada sociedade,
ƌĞŶŽǀĂŶĚŽͲĂĞĂŵƉůŝĂŶĚŽƐĞƵƐƐĞŶƟĚŽƐ͘DŝĂŽƵƚŽŶĆŽĂƉĞŶĂƐ͞ďƌŝŶĐĂ͟ŶĂͬĐŽŵĂ
ISBN 978-85-8199-013-2 75
João Olinto Trindade Junior
literatura, mas, através da mesma brincadeira de palavras, exorciza velhos fantas-
ŵĂƐ͕ƐŽďƵŵĂſƟĐĂĞŵƋƵĞrealia e mirabilia harmonizam-se para dar uma visão
ĐƌŝƐƚĆ ŽƵ ĂŶŝŵŝƐƚĂ ʹ ŝƐŽůĂĚĂŵĞŶƚĞ ŽƵ ƌĞƵŶŝĚĂƐ ĞŶƚƌĞ Ɛŝ͕ ŽŶĚĞ Ž ĐĂƌĄƚĞƌ ĐƌŝƐƚĆŽ ƐĞ
amalgama ao animista – de um acontecimento histórico.
DŝĂŽƵƚŽƚĞŵƉŽƌƌĞĨĞƌĞŶƚĞŽĚŝĄůŽŐŽĞŶƚƌĞŽƉĞƌşŽĚŽĐŽůŽŶŝĂůĞĂŐƵĞƌƌĂĚĞ
ĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽ͕ŵŽŵĞŶƚŽƐĚŽƉƌŝŵĞŝƌŽŐŽǀĞƌŶŽƉſƐͲŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂ͕ĂĮŵĚĞƐŝŵ-
ďŽůŝnjĂƌĂŚĞŐĞŵŽŶŝĂĐĞŶƚƌĂůĞƐƵĂƐƌĞƐƉĞĐƟǀĂƐƚĞŶĚġŶĐŝĂƐƉĂƌĂĚŽdžĂŝƐ͕ăŵĞĚŝĚĂƋƵĞ
Ă ƌĞůĂĕĆŽ ŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂů ƚŽƌŶĂǀĂͲƐĞ ĞǀŝĚĞŶƚĞ͘ WŽĚĞŵŽƐ ŝƌ ĂůĠŵ͕ ƉŽŝƐ͕ Ğŵ ƐƵĂ ŽďƌĂ͕
ŶĆŽŚĄĂƉĞŶĂƐŽĚŝĄůŽŐŽĐŽŵĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹĐŽůŽŶŝĂůŽƵƉſƐͲĐŽůŽŶŝĂů
ʹŵĂƐ͕ĂŝŶĚĂ͕ƚĞŶƚĂƟǀĂƐʹƉŽĚĞƌşĂŵŽƐ͕ƚĂůǀĞnj͕ĨĂůĂƌĚĞ͞ĞdžŽƌĐŝnjĂĕĆŽ͟ʹĚĞƌĞŶŽǀĂƌ
sua escrita, desvinculando-a de uma tendência de ver/produzir as literaturas pós-
ͲĐŽůŽŶŝĂŝƐƉŽƌƵŵǀŝĠƐƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐŽĞdžƉůşĐŝƚŽ͘ŵƐƵĂƐĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂĕƁĞƐ͕ĂƋƵĞƐƚĆŽ
ƉŽůşƟĐĂ Ġ ƵŵĂ ŵĂƌĐĂ ƌĞĐŽƌƌĞŶƚĞ͕ ŵĂƐ ĐŽŵŽ ĨƌƵƚŽ ĚĂƐ ŽƉĕƁĞƐ ĞƐƚĠƟĐĂƐ ƵƟůŝnjĂĚĂƐ
ƉĞůŽĂƵƚŽƌƉĂƌĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌĂŶĂĕĆŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂĞŵƐƵĂƐŵƷůƟƉůĂƐĐŽŶƐƚƌƵĕƁĞƐ͕
ƐĞũĂŚŝƐƚſƌŝĐĂ͕ĐƵůƚƵƌĂůĞ͕ĚĞŶƚƌĞƚĂŶƚĂƐǀŝƐƁĞƐƋƵĂŶƚŽƉŽƐƐşǀĞů͕ƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐĂ͘
 ŶĞƐƐĞ ĐŽŶƚĞdžƚŽ͕ ĐŽŵŽ ĂŶƚĞƐ ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐ͕ ƋƵĞ ƐĞ ƐŝƚƵĂ Ž ĚĞƐĞŶƌŽůĂƌ ĚŽƐ
acontecimentos apresentados em Vinte e zinco, situados em uma sequência de 12
dias marcantes – anteriores e posteriores – à Revolução dos Cravos, tendo o 25 de
Abril por data central. Os atos de tortura abordados na obra visam não apenas explo-
rar os extremos da relação eu/outro, mas, também, abordar como certos fantasmas
não são expurgados ou resolvidos pelo simples esquecimento, mas, pela lembrança
ĞĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽ͘ĚĂƚĂĞŵďůĞŵĄƟĐĂĚĂZĞǀŽůƵĕĆŽĚŽƐƌĂǀŽƐŶĆŽĠĨŽƌŵĂĚĂ͕ŶĂ
ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƉĞůŽĚŝĂϮϱ͕ŵĂƐƉŽƌƚĂŶƚŽƐƋƵĂŶƚŽƐĨŽƌĞŵƉŽƐƐşǀĞŝƐĚĞůŝƐƚĂƌŽƐĞǀĞŶƚŽƐ
ocorridos ao longo da dominação portuguesa, dos quais, o autor destaca 12 dias.
As perguntas que não são feitas pelos idealizadores da Coleção “Caminhos
de Abril” acabam resgatadas por Mia Couto, em Vinte e zinco͕ŽŶĚĞĞůĞĂŵƉůŝĮĐĂŽ
ƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĚĂĚĂƚĂ͕ĨƵŐŝŶĚŽʹŽƵƚĞŶƚĂŶĚŽĨƵŐŝƌ͕ŶŽƋƵĞƐĞůŚĞƉĞƌŵŝƚĞʹĚĂŵĂŶŝƉƵ-
lação do novo poder estabelecido, após a Revolução dos Cravos e a queda do regime
salazarista, tanto em Portugal, quanto no além-mar, ao longo da pregação de uma
harmonia do “espírito da lusofonia” (WILLIAMS, 2003, p. 168).
YƵĞƌĂƚŽƌƚƵƌĂƐŽĨƌŝĚĂƉĞůŽƐŶĂƟǀŽƐ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϵͿ͕ƋƵĞůƵƚĂǀĂŵƉŽƌ
uma Moçambique livre – falando, aqui, não do “Estado”, mas da “Nação” –, o des-
respeito por suas tradições – a exemplo de Joaquim que, ao lançar os torturados
ĞŵĂůƚŽͲŵĂƌ͕ŶĞŐĂǀĂͲůŚĞƐŽƐĚĞǀŝĚŽƐƌŝƚŽƐĨƵŶĞƌĄƌŝŽƐ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϭͿʹ͕ƋƵĞƌ
ŽƐĞdžƚƌĞŵŽƐĚŽƐĂďƵƐŽƐİƐŝĐŽƐʹŵƵŝƚŽƐĞŵĂŝƐŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƐĚĞůĞƐĚĞŽƌĚĞŵƐĞdžƵĂů
ʹĐŽŵĞƟĚŽƐ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϰͿ͕ƚƌĂƚĂŵͲƐĞ͕ƚŽĚŽƐĞƐƐĞƐ͕ĚĞĞdžĞŵƉůŽƐĚĞ͞ĨĂŶƚĂƐ-
mas” que precisam ser resgatados, inclusive, aqueles que se referem aos excessos
ĐŽŵĞƟĚŽƐƉĞůŽƐƉƌſƉƌŝŽƐŶĂƟǀŽƐăĠƉŽĐĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϵϬͿ͘
A coleção da qual faz parte a novela pretendia cantar as “glórias” do 25 de
Abril, mas, ao se ter a personagem Tchuvisco pintando, diariamente, as paredes da
sala de tortura para disfarçar os horrores que ali ocorriam (COUTO, 2004, p. 84),
Mia Couto desvela versões da história encobertas, como as manchas de sangue nas
76 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƉĂƌĞĚĞƐƐĞŵƉƌĞƌĞƉŝŶƚĂĚĂƐĚĞďƌĂŶĐŽ͘ŽƌĞƉŝŶƚĂƌĂƐĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂƐƵƟůŝnjĂĚĂƐƉĞůŽ
PIDE, na ilusão de encobrir a realidade, Tchuvisco “sente que a prisão, a cada pince-
lada, se vai dissolvendo” ( 2 004, p. 101), como se apagassem suas paredes, permi-
ƟŶĚŽ͕ĚĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ƵŵŵĞůŚŽƌĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽĚŽƐĨĂŶƚĂƐŵĂƐƋƵĞƉƌĞĐŝƐĂǀĂŵƐĞƌ
exorcizados.
Ao resgatar o mito do Napolo – uma vez que é através do resgate de mitos de
ŽƌŝŐĞŵƋƵĞŽƐƉŽǀŽƐĚĞƐƉƌŝǀŝůĞŐŝĂĚŽƐĐŽŶĐĞďĞŵĞĞdžƉƌĞƐƐĂŵƚĂŶƚŽƐĞƵƌĞƐƐĞŶƟŵĞŶ-
ƚŽ͕ƋƵĂŶƚŽƐƵĂƐĂƟƐĨĂĕĆŽĞŵƚĞƌŵŽƐŝŶƚĞůŝŐşǀĞŝƐʹĠƉŽƐƐşǀĞů ͕ĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƌƵŵĂŶĂƌƌĂƟǀĂ
͞ĂƚƌĂǀĠƐĚĂƋƵĂůƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂĂůƚĞƌŶĂƟǀĂŽƵƵŵĂĐŽŶƚƌĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƋƵĞƉƌĞĐĞĚĞăƐƌƵƉ-
ƚƵƌĂƐĚĂĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽ͕ƉŽĚĞƐĞƌĐŽŶƐƚƌƵşĚĂ͘΀͘͘͘΁EŽǀĂƐŶĂĕƁĞƐƐĆŽ͕ĞŶƚĆŽ͕ĨƵŶĚĂĚĂƐƐŽďƌĞ
esses mitos” (HALL, 2004, p. 5).
ŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚŽĮŵĚŽƉƌŽũĞƚŽƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂĞŵĨƌŝĐĂ͕ƐŽďƌĞŽƋƵĞ͕ĚĞŵŽĚŽ
mais direto, trata Vinte e zinco, escritores como Castro Soromenho – em Terra Morta
(1949) – e José-Augusto França – em Natureza Morta;ϭϵϲϭͿʹĚĞŶƵŶĐŝĂŵĞĞŶĨĂƟ-
njĂŵĂƌĞůĂĕĆŽĚĞƌĂŶĐŽƌĞſĚŝŽƋƵĞŽƐĐŽůŽŶŽƐŵĂŶƟŶŚĂŵĐŽŵŽƐƉŽǀŽƐĂƵƚſĐƚŽŶĞƐ͕
ĐƵůƉĂŶĚŽͲŽƐƉŽƌƚƵĚŽŽƋƵĞŚĂǀŝĂĂĐŽŶƚĞĐŝĚŽĚĞŵĂůĠĮĐŽĞŵƐƵĂƐǀŝĚĂƐʹŝŶĐůƵƐŝǀĞĂ
ĚĞƐŝůƵƐĆŽĐŽŵŽƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͘DŝĂŽƵƚŽ͕ĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕ƌĞƐŐĂƚĂ͕ăƐƵĂŵĂŶĞŝƌĂ͕
ƵŵĂĚĞƚĂŶƚĂƐƉŽƐƐşǀĞŝƐŚŝƐƚſƌŝĂƐĚĞƋƵĂŶĚŽŽƐƐŽŶŚŽƐƉĞƌĚĞŵŽƐƐĞƵƐƐĞŶƟĚŽƐʹĂ
respeito dos portugueses, vivendo o sonho do império no além-mar – em um perí-
odo de transição, ou não têm tanto valor – como no caso dos moçambicanos, para
ƋƵĞŵŽϮϱĚĞďƌŝůŶĆŽƟǀĞƌĂĂŵĞƐŵĂŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂƋƵĞƉĂƌĂŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐ͘
ŽŶĨŽƌŵĞũĄĚŝƐƐĞŵŽƐ͕ĂŽƐĞƌĐŽŶǀŝĚĂĚŽƉĂƌĂĞƐĐƌĞǀĞƌƵŵơƚƵůŽƉĂƌĂƵŵĂ
coletânea em comemoração aos 25 anos do 25 de Abril, Mia Couto aceita o convite
e o realiza – daí, temos Vinte e zincoʹ͕ŵĂƐ͕ĐŽŵŽƉƌŽĚƵƚŽ͕ĞƐĐƌĞǀĞƵŵĂŶĂƌƌĂƟǀĂ
que, ao mesmo tempo em que relata o acontecimento histórico, abre brechas para
versões africanas sobre esse mesmo fato, relacionando-as à liberdade da terra, que,
diferentemente da “liberdade” em Portugal, ainda estaria por vir, somente aconte-
cendo no dia 25 de Junho de 1975. Por sinal, tanto Josilene Silva Campos (2009, p.
ϰϲͿƋƵĂŶƚŽ:ŽƐĠ>ƵşƐĂďĂĕŽ;ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϯϵϯͿĂƉŽŶƚĂŵĞƐƐĂĚĂƚĂĐŽŵŽĂĚŽĂŶŝǀĞƌƐĄƌŝŽ
da FRELIMO, fundada em 25 de Junho de 1962. As versões possíveis de serem lidas
na obra de Mia Couto tratam-se de versões construídas sob a lente moçambicana.
KƋƵĞƐĞƚĞŵŶĞƐƐĂŶĂƌƌĂƟǀĂƐĞƌĆŽƉŽŶƚŽƐĚĞǀŝƐƚĂŚşďƌŝĚŽƐ͘KĞdžŽƌĐŝƐŵŽ
ƚĞŵĂƟnjĂĚŽĠĚƵƉůŽ͘^Ğ͕ƉŽƌƵŵůĂĚŽ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƉƁĞĞŵĐŚ eque uma herança do
ƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂĂŽĂďŽƌĚĂƌƵŵƚĞŵĂĚĞůŝĐĂĚŽĞƉŽƵĐŽĞŶĨĂƟnjĂĚŽʹĂƚŽƌƚƵƌĂĞŽƐ
ŵĂƵƐƚƌĂƚŽƐĞŵƉƌĞŐĂĚŽƐƉĞůĂW/ŶĂƐƚĞƌƌĂƐĚĞĨƌŝĐĂ͕ƵŵĂĚĂƐĨĂĐĞƐĚĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ
ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐƋƵĞĂĐĞŶƐƵƌĂƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂŶĆŽƉĞƌŵŝƟĂƋƵĞĐŚĞŐĂƐƐĞĂƚĠĂŵĞƚƌſƉŽůĞ
ʹ͕ ƉŽƌ ŽƵƚƌŽ͕ ƌĞĂĮƌŵĂ͕ ĐŽŶĨŽƌŵĞ ƉĂůĂǀƌĂƐ ĚĞ ůĨƌĞĚŽ DĂƌŐĂƌŝĚŽ͕ Ă ƋƵĞƐƚĆŽ ĚĞ ŽƐ
ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐŶĆŽƚĞƌĞŵƐŝĚŽŽƐƷŶŝĐŽƐĂƚŽƌĞƐƉŽůşƟĐŽƐŶĂŐƵĞƌƌĂĚĞůŝďĞƌƚĂĕĆŽ;ϭϵϴϬ͕
p. 7). Em Vinte e zinco͕ǀġͲƐĞĂǀŝƚſƌŝĂĚŽƐƉƌſƉƌŝŽƐĂĨƌŝĐĂŶŽƐĐŽŵŽƐƵũĞŝƚŽƐĚĂĐĞŶĂ͘
Por não reconhecer seu lugar como coautor de um novo mundo que, grada-
ƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ǀĂŝƐĞĞdžƉƌĞƐƐĂŶĚŽĞŵůşŶŐƵĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕WŽƌƚƵŐĂůŶĆŽĐŽŶƐĞŐƵĞĐŽŵ-
preender que toda a turbulência em seu império tem origem no fato de ele estar no
ISBN 978-85-8199-013-2 77
João Olinto Trindade Junior
coração dessa tempestade insólita – que não consegue compreender –, chamada
ĨƌŝĐĂ͘DŝĂŽƵƚŽ͕ĞŵƵŵĚĞƐĞƵƐƚĞdžƚŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽ͕ĞdžƉůŝĐŝƚĂĐŽŵŽĠƌĞĐŽƌƌĞŶƚĞ͕
para um largo setor da população portuguesa, a opinião de que:
as independências de Moçambique, Angola, São Tomé, Cabo Verde
e Guiné-Bissau foram o resultado do 25 de Abril. Não foi a luta ar-
ŵĂĚĂĚŽƐŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐĚĞůŝďĞƌƚĂĕĆŽƋƵĞ͕ũƵŶƚŽĐŽŵĂůƵƚĂĚŽƉŽǀŽ
português, fez acontecer o 25 de Abril. Não, o que aconteceu, pare-
ce ser essa a leitura da história, foi que os “portugueses libertaram
ŽƐĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͘͟ƐƐĂŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕĆŽƐĞĚŝŵĞŶƚŽƵŶĂƋƵŝůŽƋƵĞŚŽũĞĠĚĞ-
signado em Portugal por “descolonização”. A palavra esconde uma
ďƌŝŐĂĞŵǀŽůƚĂĚĂĚĞĮŶŝĕĆŽĚŽƐƵũĞŝƚŽ͗ƋƵĞŵĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂƋƵĞŵ͍KƐ
africanos resolveram o assunto cirurgicamente: Expulsaram a pala-
ǀƌĂ͞ĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽ͟ĚŽǀŽĐĂďƵůĄƌŝŽ͘;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϱϳͿ
A personagem Lourenço age – dentre outras representações – como meto-
ŶşŵŝĂĚŽƉŽƌƚƵŐƵġƐơƉŝĐŽʹŶŽƉĞƌşŽĚŽĚŽŝŵƉĠƌŝŽĐŽůŽŶŝĂůʹ͕ŝŶĐĂƉĂnjĚĞĞŶƚĞŶĚĞƌŽ
ŵŽƟǀŽĚĂƌĞǀŽůƚĂĚŽƐƉƌŝƐŝŽŶĞŝƌŽƐĞƐƵĂƌĞĐƵƐĂĞŵĐŽůĂďŽƌĂƌ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϰͿ͕
a ponto de – apropriando-nos de um pensamento da personagem Margarida para
ĞdžĞŵƉůŝĮĐĂƌĞƐƐĂŵĞŶƚĂůŝĚĂĚĞĐŽůŽŶŝĂůʹŶĆŽĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞƌŽŵŽƟǀŽĚĞƐƐĞƐŚŽŵĞŶƐ
ĞŵƐĞƌĞĐƵƐĂƌĞŵĂũƵƌĂƌůĞĂůĚĂĚĞăƉĄƚƌŝĂůƵƐŝƚĂŶĂĞŵĚĞƚƌŝŵĞŶƚŽĚĞƵŵĂĚŽĞŶĕĂ
chamada Moçambique (COUTO, 2004, p. 56).
Mesmo ao longo dos acontecimentos que levam tanto à “suposta” morte de
seu pai (COUTO, 2004, p. 21) – numa representação de morrer para o velho modo
de “ser português” –, quanto à sua ascensão como Napolo (COUTO, 2004, p. 65) –
em meio à tempestade –, Lourenço é incapaz de se decidir sobre o que ocorre, ou
ƐĞũĂ͕ĂƐƐƵŵŝƌĚĞǀĞnjƐĞƵƉĂƉĞůĞŵŵĞŝŽĂŽƐĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ͘ƐƐĞƉŽƌƚƵŐƵġƐŶĆŽ
ƌĞĐŽŶŚĞĐĞĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞƵŵƌĞŐŝŵĞʹƋƵĞƉŽĚĞƚĞƌŝŶşĐŝŽ͕ŵĞŝŽĞĮŵ͕ƉŽĚĞƐĞƌ
ƉĞƌŵĂŶĞŶƚĞŽƵƚƌĂŶƐŝƚſƌŝŽʹ͕ŵĂƐĚĞƵŵĂƉĄƚƌŝĂ͞ŝŵƵƚĄǀĞů͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϵͿ͘
ůĞŶĆŽƌĞĐŽŶŚĞĐĞŽĮŵŝŵŝŶĞŶƚĞĚĞƵŵƉĞƌşŽĚŽ͘ŵƐƵĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ƌĞĨĞƌŝŶĚŽͲƐĞĂŽ
25 de Abril: “não acabou aqui, mãe” (COUTO, 2004, p. 75).
ŽĞƐďƌĂǀĞũĂƌ͞ĂďƌƁĞƐ͕ĂŐŽƌĂĠƋƵĞǀĆŽǀĞŶĚĞƌĞƐƚĂŵĞƌĚĂĂŽƐĐŽŵƵŶŝƐ-
tas. Que vendam, que isto tudo se afunde mais os pretos” (COUTO, 2004, p. 79),
Lourenço deixa-nos entrever que não enxerga, somente, sua posição, como, ainda,
diferentemente da proposta de Mia Couto sobre a construção de uma nação mes-
ƟĕĂ͕ ĐŽŵ ŝŶŇƵġŶĐŝĂƐ ĚĞ ƚŽĚŽƐ ŽƐ ĐĂŶƚŽƐ͕ ŶĆŽ ŚĂǀĞƌŝĂ͕ ŶĂ ƐƵĂ ǀŝƐĆŽ ĚĞ ƉŽƌƚƵŐƵġƐ
arraigado aos valores imperialistas do colonizador, futuro para aquela terra sem a
ƉƌĞƐĞŶĕĂĚŽƉŽĚĞƌƉŽƌƚƵŐƵġƐ͘ůĞĂĐƌĞĚŝƚĂƋƵĞĂƐƵĂŐĞŶƚĞ͞ŶĆŽǀĂŝĚĞŝdžĂƌŝƐƚŽĮĐĂƌ
ĂƐƐŝŵ͟ ;KhdK͕ ϮϬϬϰ͕ Ɖ͘ ϴϴͿ͕ ƉŽŝƐ ͞ĨƌŝĐĂ ƚĞǀĞ ĚƵĂƐ ŐƌĂŶĚĞƐ ƚƌĂŐĠĚŝĂƐ͗ ƵŵĂ ĨŽŝ Ă
ĐŚĞŐĂĚĂĚŽƐďƌĂŶĐŽƐ͖ĂŽƵƚƌĂǀĂŝƐĞƌĂƉĂƌƟĚĂĚŽƐďƌĂŶĐŽƐ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϵϳͿ͘
O período retratado em Vinte e zinco é turbulento, no qual, a perda de refe-
renciais – crenças, ideologias ou simbologias – podem acarretar em manifestações
ĞdžƚƌĞŵĂƐƉŽƌƉĂƌƚĞĚŽƐƋƵĞĚĞƐĞũĂŵƉƌĞƐĞƌǀĂƌƉƌŝǀŝůĠŐŝŽƐĚŽƉĂƐƐĂĚŽ͕ŵĂƌĐĂƐŝĚĞŶ-
ƟƚĄƌŝĂƐʹƚĂŶƚŽĂƐĚŽƐŶĂƟǀŽƐ͕ƋƵĂŶƚŽĂƐĚŽƐĐŽůŽŶŽƐʹ͕ǀĂůŽƌĞƐƐŽĐŝĂŝƐ͕ƌĞůŝŐŝŽƐŽƐ͕
78 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƉŽůşƟĐŽƐĞƚĐ͘WŽƌĞƐƐĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂ͕ĂŶĂƌƌĂƟǀĂŶŽƐƉĞƌŵŝƚĞĞŶƚĞŶĚġͲůĂŶĆŽĂƉĞŶĂƐ
como uma história sobre transição e/ou tortura, mas de como os homens precisam
compreender e combater seus ódios interiores.
As personagens de Vinte e zinco podem apenas sonhar, pois só no sonho
ůŚĞƐĠƉŽƐƐşǀĞůƌĞĂůŝnjĂƌĂƐƵďƐƟƚƵŝĕĆŽĚĞƐƐĞůƵŐĂƌŝŵĂŐŝŶĂĚŽ͕ŵĂƐŶĆŽǀŝǀĞŶĐŝĂĚŽ͘
͕ĂŽĮĐĂƌĐĞŐŽ͕ƋƵĞdĐŚƵǀŝƐĐŽ͕ƋƵĞƋƵŝƐĞƌĂƐĞƌĂƐƐŝŵŝůĂĚŽ͕ǀŽůƚĂͲƐĞƉĂƌĂƐŝ͕ĞŵƵŵ
ŵƵŶĚŽĚĞƐŽŵďƌĂƐ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϲͿ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞ͕ĂŽĂĮƌŵĂƌƋƵĞŽƐŽƵƚƌŽƐ
͞ǀĞĞŵŽƐǀŝǀŽƐ͕ĞƵǀĞũŽĂǀŝĚĂ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϬͿ͕ĚĞƐĞŶŚĂ͕ŶĂĂƌĞŝĂʹĚŝĂŶƚĞ
da maçaniqueira onde foram enterrados Marcelino e Custódio –, mulheres que
ƉĂƌĞĐŝĂŵ ĚĂŶĕĂƌ ƌŝƚƵĂůŝƐƟĐĂŵĞŶƚĞ Ğŵ ƌĞƐƉĞŝƚŽ ĂŽƐ ͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂĚŽƐ͟ ŶĂ ĄƌǀŽƌĞ
(COUTO, 2004, p. 31-32).
Irene, se por um lado vai cumprir os devidos respeitos aos falecidos (COUTO,
2004, p. 57), por outro, agindo como se procurasse resgatar o amante morto – em
ƵŵĂ͞ďƌŝŶĐĂĚĞŝƌĂ͟ĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌĐŽŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽŽƌĂůĚĂƋƵĂůĞůĞĂĮƌŵĂƋƵĞƐƵĂůŝƚĞƌĂ-
ƚƵƌĂĠƚƌŝďƵƚĄƌŝĂ͕ŽŶĚĞŽŵŝƚŽĠƌĞĞŶĐĞŶĂĚŽ͕ĞŽƉĂƐƐĂĚŽĠƌĞǀŝǀŝĚŽĂƚƌĂǀĠƐĚĂŚŝƐ-
ƚſƌŝĂ;ƌĞͿĐŽŶƚĂĚĂʹ͕͞ĞƐĐƌĞǀĞ͟DĂƌĐĞůŝŶŽĞŵƐĞƵĐŽƌƉŽĂŽǀŝƐŝƚĂƌƐƵĂĂŶƟŐĂŽĮĐŝŶĂ
ĞƐĞƐƵũĂƌĚĞſůĞŽ͕͞ĨĂnjĞŶĚŽĚĞĐŽŶƚĂƋƵĞŽŽƵƚƌŽĂŝŶĚĂĐŽŶƐƚĂǀĂĞŶƚƌĞǀŝǀĞŶƚĞƐ͟
(COUTO, 2004, p. 58).
A morte, transformada pelo advento da civilização cristã em algo temido
Ğ͕ŶŽŐĞƌĂů͕ŝŶĚĞƐĞũĂĚŽ͕ƌĞƚŽŵĂ͕ŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƐĞƵƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƉƌŝŵĞŝƌŽĞŵĨƌŝĐĂ͕
ĐŽŵŽ ĂůŐŽ ƉŽƐŝƟǀŽ͕ ƉĞƌŵŝƟŶĚŽ ƋƵĞ ƐĞ ĞdžŽƌĐŝnjĞŵ ŵĞĚŽƐ Ğ ĨĂŶƚĂƐŵĂƐ͕ ůŽŶŐĞ ĚĞ
ĞƐƋƵĞĐġͲůŽƐ͘ŽƋƵĞĚĞŶƵŶĐŝĂ/ƌĞŶĞ͕ĂĐĞƌĐĂĚĂŵŽƌƚĞĚĞƵƐƚſĚŝŽĞDĂƌĐĞůŝŶŽ͕
“terem encontrado residência e não desvairarem sem pouso como esse seu mal-
fadado cunhado, Joaquim de Castro. Quem não tem parentesco com a vida não
chega nunca a morrer devidamente” (COUTO, 2004, p. 57).
K͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂƌͲƐĞ͕͟ĨĞŶƀŵĞŶŽƌĞĐŽƌƌĞŶƚĞŶĂŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ŶŽƐĞŶƟĚŽ
ĚĞŝƌĐŽƌƌĞƚĂŵĞŶƚĞƉĂƌĂ͞ĂƐĞƚĞƌŶŝĚĂĚĞƐ͕͟ĠƵŵĂƉŽƐƐşǀĞůŵĂƌĐĂĚĂǀĞƌƚĞŶƚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂ
do Real-Animismo, onde, por vezes, encontram-se personagens de velhos que não
ƉŽĚĞŵ͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂƌ͟ĂŶƚĞƐĚĞƌĞƐŽůǀĞƌƐƵĂƐƉĞŶĚġŶĐŝĂƐŶŽŵƵŶĚŽĚŽƐǀŝǀŽƐ͕ŽƵ
ŶĆŽĨŽƌĂŵ͕ƌŝƚƵĂůŝƐƟĐĂŵĞŶƚĞ͕͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂĚŽƐ͟ĚĞŵĂŶĞŝƌĂĚĞǀŝĚĂ͘
ŽŵŽĞdžĞŵƉůŽĚŽƉƌŝŵĞŝƌŽĐĂƐŽ͕ƚĞŵŽƐƚĂŶƚŽŽǀƀĚŽĐŽŶƚŽ͞EĂƐŐƵĂƐĚŽ
Tempo”, das Estórias Abensonhadas (COUTO, 1996, p. 43-46), quanto Dito Mariano
de Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (2003). Ambos não podem
ser promovidos à categoria de ancestrais. De modo semelhante ao ancião Mariano,
:ŽĂƋƵŝŵĚĞĂƐƚƌŽĠƵŵ͞ĚĞƐŵŽƌƚŽ͕͟ũĄƋƵĞ͕ŶĂŝŵƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞƐĞĞŶĐŽŶƚƌĂƌƐĞƵ
ĐŽƌƉŽ͕ŶĆŽƉŽĚĞƐĞƌĚĞǀŝĚĂŵĞŶƚĞĞŶƚĞƌƌĂĚŽ͘ŵƵŵĂĐŽŶĐĞƉĕĆŽĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ĞůĞĮĐŽƵ
ocupando o entrelugar dos vivos e dos mortos.
Como exemplo do segundo caso, temos Ermelindo Mucanga, de A Varanda
do Frangipani (COUTO, 2007), que fora enterrado sem receber devidamente os ritos
ĨƵŶĞƌĄƌŝŽƐƉƌſƉƌŝŽƐĚĞƐƵĂĐƵůƚƵƌĂĠƚŶŝĐŽͲƌĞůŝŐŝŽƐĂ͕ƐĞŶĚŽƉĞƌƚƵƌďĂĚŽƉĞůĂƐĐŽŵĞ-
morações do governo e necessitando de um novo enterro (COUTO, 2007, p. 11).
WĂƌĂƚĂŶƚŽ͕DƵĐĂŶŐĂ͕ŶĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞdžŝƉŽĐŽʹĐŽŶĨŽƌŵĞĂĮƌŵĂĂƉƌſƉƌŝĂƉĞƌƐŽŶĂ-
ISBN 978-85-8199-013-2 79
João Olinto Trindade Junior
gem, espécie de “fantasma”, uma alma que vagueia “de paradeiro em desparadei-
ƌŽ΀͘͘͘΁͘^ĞŵƚĞƌƐŝĚŽĐĞƌŝŵŽŶŝĂĚŽĂĐĂďĞŝƵŵŵŽƌƚŽĚĞƐĞŶĐŽŶƚƌĂĚŽĚĂƐƵĂŵŽƌƚĞ͟
;KhdK͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϭϬͿʹƉŽƐƐƵŝ͕ƉŽƌŝŶƚĞƌǀĞŶĕĆŽĚŽŚĂůĂŬĂǀƵŵĂʹŵĂŵşĨĞƌŽŵşƟĐŽ
ƋƵĞŚĂďŝƚĂĐŽŵŽƐŵŽƌƚŽƐ͕ǀŝŶĚŽĚŽĐĠƵƉĞůĂƐĄŐƵĂƐĚĂĐŚƵǀĂƉĂƌĂƚƌĂnjĞƌŶŽǀŝĚĂĚĞƐ
;KhdK͕ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϭϯͿʹŽĐŽƌƉŽĚĞ/njŝĚŝŶĞEĂşƚĂĂĮŵĚĞƌĞƐŽůǀĞƌĞƐƐĂĨĂůƚĂĞĂƟŶŐŝƌ
ƐĞƵĞƐƚĄŐŝŽĚĞdžŝĐƵĞŵďŽʹƋƵĞƐĞƉŽĚĞĂƉƌŽdžŝŵĂƌĚŽ͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂĚŽ͕͟ŽƵƐĞũĂ͕ĚĂ-
quele espírito que, depois da passagem, transcendeu para a categoria de ancestral,
ƚĞŶĚŽƌĞĐĞďŝĚŽƚŽĚŽƐŽƐƌŝƚŽƐĨƷŶĞďƌĞƐŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽƐ͘
ZĞŵĞŵŽƌĂƌĂŐƵĞƌƌĂĠƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞ;ƌĞͿǀŝƐŝƚĂƌŽƉĂƐƐĂĚŽĞƌĞĞƐĐƌĞǀĞƌ
ĂŚŝƐƚſƌŝĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚĂĚŝƚĂŽĮĐŝĂů͘ĞƐĐƌŝƚĂĚĞDŝĂŽƵƚŽŶĆŽďƵƐĐĂĂĮƌŵĂƌ
ƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƵŶŝƚĄƌŝĂ͕ŽƋƵĞ͕ƉŽƌƐŝŶĂů͕ƐĞƌŝĂĞdžĐůƵŝƌƚƵĚŽŽƋƵĞĞƌĂ͞ƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͟
como contraste da “modernidade”, contrariando essa representação – o que o pró-
prio escritor denuncia ora em entrevistas (Couto, apud &KE^͖ hZz͕ ϮϬϬϴ͕ Ɖ͘
ϭϰͲϭϱͿ͕ŽƌĂĞŵƐĞƵƐĂƌƟŐŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽ;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϱϵͲϲϯͿ͘
Outros escritores, surgidos no mesmo período – como, por exemplo, a tam-
bém moçambicana Paulina Chiziane tanto em Niketche – Uma História de Poligamia
;ϮϬϬϯͿ͕ĐƌŝƟĐĂŶĚŽŽĂĚǀĞŶƚŽĚĞǀĂůŽƌĞƐŽĐŝĚĞŶƚĂŝƐĞŵĐŚŽƋƵĞĂŽƐĚĞǀĂůŽƌĞƐŝŶĚşŐĞ-
ŶĂƐĞŶǀŽůǀĞŶĚŽŽŵĂƚƌŝŵƀŶŝŽ͕ƋƵĂŶƚŽĞŵO Alegre Canto da Perdiz (2008), obra que
abrange tanto os períodos colonial quanto pós-colonial, abordando a (des)assimila-
ĕĆŽĞĂĂůŝĞŶĂĕĆŽĐŽůŽŶŝĂůĐŽŵŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĨŽƌŵĂĕĆŽĚĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐŶĂĐŝŽŶĂŝƐʹ͕
ƚĞŶƚĂŵƌĞƐŐĂƚĂƌ͕ƌĞŵĞŵŽƌĂƌĞ͕ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞ͕ƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂƌĞƐƐĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐăůƵnj
de uma sociedade moçambicana contemporânea. Mia Couto, em sintonia com seu
tempo, integra essa corrente de escritores.
Vinte e zinco͕ĐŽŵŽŵĞƚŽŶşŵŝĂĚĞƵŵĂƐŝƚƵĂĕĆŽĐŽůŽŶŝĂůŝƐƚĂǀŝǀŝĚĂĞŵĨƌŝĐĂ͕
é a encenação de uma insólita realidade de sangue – a exemplo de Lourenço, que
ƐĞŵƉƌĞĞƐƚĄůĂǀĂŶĚŽĂƐŵĆŽƐƐƵũĂƐĚĞƐĂŶŐƵĞ͕ĂƉƌŝŵĞŝƌĂĐŽŝƐĂƋƵĞĨĂnjĂŽĐŚĞŐĂƌă
ĐĂƐĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϰͿ͕ĞŵďŽƌĂ͕ĞŵĐĂƐĂ͕ŵƵŝƚĂƐǀĞnjĞƐ͕ĞƐƐĞƐĂŶŐƵĞƐĞũĂŵĂŝƐ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽĚŽƋƵĞƌĞĂů͕ĂƉŽŶƚŽĚĞŽŵĞƐŵŽǀĞƌƐĂŶŐƵĞĞƐĐŽƌƌĞŶĚŽƉĞůĂƐƉĞƌŶĂƐ
quebradas do seu brinquedo (COUTO, 2004, p. 47) . Ao dar sua visão pessoal sobre
ŐƵĞƌƌĂ͕ĚĞƐƚƌƵŝĕĆŽĞŵŽƌƚĞʹĐŽŵŽŝŶƚĞůĞĐƚƵĂů͕ũŽƌŶĂůŝƐƚĂ͕ĂƌƟƐƚĂ͕ĞƐĐƌŝƚŽƌ͕ŚŽŵĞŵĚĂ
ƚĞƌƌĂ͘͘͘ʹ͕DŝĂŽƵƚŽŽĨĂnjĐŽŵŽƐŵĞƐŵŽƐƌĞĐƵƌƐŽƐƵƟůŝnjĂĚŽƐŶŽĐŽŶƚŽƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů
ĂĨƌŝĐĂŶŽ͘ŵƐƵĂƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐ͕ƌĞƐŐĂƚĂŽƉĂƐƐĂĚŽĞƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂŽƉƌĞƐĞŶƚĞ͕ƚƌĂnjĞŶĚŽ͕
assim, harmonia para a sociedade (PADILHA, 2007, p. 22).
^ƵƌŐĞŵ͕ŶĂŚŝƐƚſƌŝĂ͕ĞůĞŵĞŶƚŽƐŝŶĞdžƉůŝĐĄǀĞŝƐ͕ĐŽŵŽ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͕/ƌĞŶĞ͕Ă
ďƌĂŶĐĂĂƐƐŝŵŝůĂĚĂĂŽĂǀĞƐƐŽʹŽƵƚƌĂŵĂƌĐĂƌĞĐŽƌƌĞŶƚĞĚĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕
ŽĂƐƐŝŵŝůĂĚŽ͞ĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕͟ĂƋƵĞůĞƋƵĞ͕ŽƌŝƵŶĚŽĚĂŶĂĕĆŽĐŽůŽŶŝĂůŝƐƚĂ͕ƐĞĂƐƐŝŵŝůĂ
ăĐƵůƚƵƌĂĚŽƉŽǀŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽ͘,ĄŵĂŝƐĚĞƵŵĞdžĞŵƉůŽ͕ĞŵDŝĂŽƵƚŽ͕ĚĞƐƐĂĂƐƐŝ-
ŵŝůĂĕĆŽĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͘yŝĚŝŵŝŶŐŽͬŽŵŝŶŐŽƐDŽƵƌĆŽ͕ĞŵA Varanda do Frangipani
(2007), é um exemplo desse recurso.
KƵƚƌŽĞůĞŵĞŶƚŽĂƉĂƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞŝŶĞdžƉůŝĐĄǀĞůĠŽĐĞŐŽƋƵĞĚĞƐĞŶŚĂʹŶĆŽƚĆŽ
cego quanto se pensava, pois enxergava sombras, e seus desenhos possuíam uma
ǀŝǀĂĐŝĚĂĚĞƚĂŵĂŶŚĂƋƵĞƐĞůĞǀĂǀĂĂũƵƌĂƌƐĞƌĞŵŵƵůŚĞƌĞƐĚĂŶĕĂŶĚŽŶĂĂƌĞŝĂ͘ƐƐĞƐ
80 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
eventos, por se realizarem segundo a concepção africana, fogem à compreensão da
personagem que representa o colonizador, não-assimilada ou não-inteirada do que
ƌĞĂůŵĞŶƚĞĠƐĞƌͬĞƐƚĂƌĞŵĨƌŝĐĂ͘
Esse estranho ŵƵŶĚŽŶĆŽĨĂnjƐĞŶƟĚŽƉĂƌĂŽ outro, como se percebe pe-
las palavras do inspetor da ONU, o italiano Massimo Risi, que se deslocara para
Tizangara, em KhůƟŵŽsŽŽĚŽ&ůĂŵŝŶŐŽ(2008). Ele adverte seu interlocutor, um
ŚŽŵĞŵĚŽůŽĐĂů͕ĚĞƐŝŐŶĂĚŽƉĂƌĂƐĞƌƐĞƵƚƌĂĚƵƚŽƌ͕ĚƵƌĂŶƚĞĂƐŝŶǀĞƐƟŐĂĕƁĞƐ͕ĚŝnjĞŶĚŽ
que “eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é
este mundo” (COUTO, 2008, p. 15). A mentalidade Real-Naturalista – se podemos
ƵƟůŝnjĂƌ Ž ƚĞƌŵŽ ŶĞƐƐĂ ĐŽŶĐĞƉĕĆŽ͕ ƋƵĂŶƚŽ ă ƉĞƌĐĞƉĕĆŽ ĚŽ ŵƵŶĚŽ ĂŽ ƐĞƵ ƌĞĚŽƌ ʹ
choca-se, nessas obras, com a Real-Animista.
KƵŶŝǀĞƌƐŽƚĞůƷƌŝĐŽ͕ŶĂǀŝƐĆŽĚĞǀĄƌŝŽƐƚĞſƌŝĐŽƐƋƵĞƐĞƉƌŽƉƁĞŵĂĚŝƐĐƵƟƌ
a literatura dos PALOP, é visto como comum e real pelos povos indígenas, mas, na
visão do outro͕ĠǀŝƐƚŽĐŽŵŽůƵŐĂƌŶĆŽͲĐŽŵƵŵ͘>ŽŐŽ͕ŶĞƐƐĂǀĞƌƚĞŶƚĞĮĐĐŝŽŶĂů͕ŽŝŶ-
ƐſůŝƚŽƐĞĂƉƌĞƐĞŶƚĂĂƉĂƌƟƌĚĂůĞŝƚƵƌĂ͘KƐĂŶŐƵĞƋƵĞƉĂƌĞĐĞŶƵŶĐĂƐĂŝƌĚĂƐŵĆŽƐĚĞ
>ŽƵƌĞŶĕŽĞĂŚŝƉſƚĞƐĞĚĂŝŶĨĂŶƟůŝĚĂĚĞƚĞƌƐŝĚŽĐĂƵƐĂĚĂƉĞůŽƐƉŽĚĞƌĞƐĚŽƐŶĂƟǀŽƐ
;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ ϭϰͲϭϱͿ͖ŽƐ ƉŽĚĞƌĞƐĚĂ ŶLJĂŶŐĂ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ ĂŽƐ ƋƵĂŝƐ ĂƚĠŵĞƐŵŽ
DĂƌŐĂƌŝĚĂƐĞƌĞŶĚĞ;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϰϴͲϱϯͿ͖ĂŶĆŽĂĐĞŝƚĂĕĆŽĚĂƚĞƌƌĂ͕ĂŽŶĆŽƐĞĞŶƚĞƌƌĂƌ
Joaquim (COUTO, 2004, p. 24) são acontecimentos insólitos que se apresentam ao
longo da obra, mas perfeitamente inseridos nos valores daquela terra.
Embora, por vezes, esses acontecimentos insólitos não envolvam necessa-
ƌŝĂŵĞŶƚĞĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂŝƐʹĐŽŵŽŽĐĂŶŚĆŽŶĂŝŐƌĞũĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕
Ɖ͘ϱϳͿŽƵŽŶĞŐƌŽŶƵƉĞĚŝŶĚŽĂĞƵƐƋƵĞŽ͞ĚĞƐďĂƟnjĞ͕͟ƚŽƌŶĂŶĚŽͲƐĞĂƐƐŝŵƵŵďŝ-
cho sem alma (COUTO, 2004, p. 58-59) –, eles explicitam uma maior capacidade
ĚĞƐĞŶƟƌ͕ƉĞůĂƐǀŝĂƐĚŽĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽʹƐŝŶƀŶŝŵŽĚĞŝŶƐſůŝƚŽ͕ĐŽŶũƵŶƚŽĚĞĞǀĞŶƚŽƐ
metaempíricos – aquele momento representado no texto.
Dessa forma, os mirabilia se manifestam em Mia Couto, relacionando histó-
ƌŝĂĞĮĐĕĆŽ͕ƚƌĂĚŝĕĆŽĞŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͕ŽƌĂůŝĚĂĚĞĞĞƐĐƌŝƚĂ͖ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽŶĆŽĂƉĞŶĂƐ
Ă ĨƵƐĆŽ ĚĞ ĚŽŝƐ ŵƵŶĚŽƐ͕ ŵĂƐ ƵŵĂ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ ũĄ ŚŝƐƚŽƌŝĐĂŵĞŶƚĞ ŵĞƐƟĕĂ͕ ŵŽƐĂŝĐĂ͕
embora, ainda assim, inconcebível aos olhos do outro, cristão-branco-europeu, ar-
rancando-o das generalizações pré-concebidas pela sociedade ocidental.
ŽŵŽ ĂĮƌŵĂ /ƌůĞŵĂƌ ŚŝĂŵƉŝ͕ ĂƉſƐ ĂŶĂůŝƐĂƌ ŽƐ ƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐ ĚĞ
ĂƌƉĞŶƟĞƌƐŽďƌĞĂƌĞĂůŝĚĂĚĞŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂĚĞŝdžĂƌĚĞƐĞƌƵŵĂĐƌŝĂĕĆŽ͕ŵĂƐ͕ƐĞƌƵŵ
ĞůĞŵĞŶƚŽŶĂƚƵƌĂůĚĂŚŝƐƚſƌŝĂĞĐƵůƚƵƌĂĚĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͕ƉŽĚĞŵŽƐƌĞĂĮƌŵĂƌŶŽƐ-
ƐŽƐ ĂƉŽŶƚĂŵĞŶƚŽƐ ĂĐĞƌĐĂ ĚĂ ĂƉƌŽdžŝŵĂĕĆŽ ĞŶƚƌĞ Ă ŵĠƌŝĐĂ >ĂƟŶĂ Ğ Ž ŽŶƟŶĞŶƚĞ
ĨƌŝĐĂŶŽ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ĂĨƌŝĐĂ>ƵƐſĨŽŶĂ͘
ŚŝĂŵƉŝ͕ǀĂůĞŶĚŽͲƐĞĚŽƚĞƌŵŽ͞ƵŶŝĚĂĚĞĐƵůƚƵƌĂů͕͟ĚĞĨĞŶĚĞƋƵĞĂĞƐƚĠƟĐĂĚŽ
ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ŶĆŽ ƐĞũĂ ĞdžĐůƵƐŝǀĂ ĚĂ ŵĞƌŝĐĂ >ĂƟŶĂ͕ ŵĂƐ ƉƌſƉƌŝĂ ĚĞ ƚĂŶƚŽƐ ĞƐ-
ĐƌŝƚŽƌĞƐƋƵĂŶƚŽƐĐŽŵĞůĂƐĞŝĚĞŶƟĮƋƵĞŵ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϵϮͿ͕ĞŶſƐĂĚĞƌŝŵŽƐĂĞƐƐĞŵĞƐ-
ŵŽƉŽƐŝĐŝŽŶĂŵĞŶƚŽ͘^ĞŐƵŶĚŽŚŝĂŵƉŝ͕͞ĂĚĞĮŶŝĕĆŽůĞdžŝĐĂůĚĞŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĨĂĐŝůŝƚĂĂ
conceituação do Realismo Maravilhoso, baseada na não contradição com o natural.
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĠŽ͚ĞdžƚƌĂŽƌĚŝŶĄƌŝŽ͕͛Ž͚ŝŶƐſůŝƚŽ͕͛ŽƋƵĞĞƐĐĂƉĂĂŽĐƵƌƐŽŽƌĚŝŶĄƌŝŽĚĂƐĐŽŝ-
ISBN 978-85-8199-013-2 81
João Olinto Trindade Junior
sas e do humano” (1980, p. 48).
Mesmo ao “não-terrar” temas polêmicos – optando por escrever acerca de
certos assuntos, como a assimilação e a tortura –, Mia Couto não os aborda à manei-
ra europeia – ou europeizante, para ser mais abrangente –, mas realiza – fugindo de
ƵŵĂƚĞŶĚġŶĐŝĂůŝƚĞƌĄƌŝĂƉĂŶŇĞƚĄƌŝĂͬĐĂŶƚĂůƵƟƐƚĂ;ƋƵĞĚŝǀƵůŐĂĂƐŐůſƌŝĂƐĚŽŐŽǀĞƌŶŽ͕
como se convocasse o povo a pegar em armas para a luta, de maneira que o escritor,
ĂƐƐŝŵ͕ĐŽŵďĂƚĞůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞŽĐŽůŽŶŝĂůŝƐŵŽƉŽƌƚƵŐƵġƐͿʹ͕ĚĞĨŽƌŵĂĞƐƚĞƟĐĂŵĞŶƚĞ
africana, a promoção da realidade maravilhosa local.
^Ğ Ž ƚĞdžƚŽ ůŝƚĞƌĄƌŝŽ ĂŵƉůŝĂ ĂƐ ĐŽŶĐĞƉĕƁĞƐ ĚĞ ŚŝƐƚſƌŝĂ Ğ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ͕ Ž ĂƵƚŽƌ
ĐŽŶĨĞƌĞͲůŚĞƐŶŽǀŽƐƐĞŶƟĚŽƐĂŽƉƌŽƉŽƌͲŶŽƐƵŵĂŽƵƚƌĂůĞŝƚƵƌĂĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂ͕
ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕ĂƐƐƵŵŝŶĚŽŽǀŝĠƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹĞŵƐĞŶƟĚŽůĂƚŽ
ʹ͕ŶĆŽĐŽŵŽƵŵĂǀŝƐĆŽĞdžſƟĐĂĚĂƋƵĞůĞŵƵŶĚŽ͕ŵĂƐ͕ũƵƐƚĂŵĞŶƚĞ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƵŵĂ
ŚĞƐŝƚĂĕĆŽŝŶƐſůŝƚĂĨƌĞŶƚĞĂƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞ͕ĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂ͕ŶŽƐůĞǀĂĂƋƵĞƐƟŽŶĂƌŽ
próprio mundo.
^ĞƌĄ/ƌĞŶĞ͕ĂůŽƵĐĂŽƵĂĂƐƐŝŵŝůĂĚĂ , que adentra a casa dos Castro, mostran-
ĚŽƵŵĂĨƌŝĐĂƋƵĞŶĆŽƐĞĚĞƟŶŚĂŶŽƋƵŝŶƚĂů͍^ĞƌĄ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ƵŵĂƉĞƐƐŽĂ͕ĚŽĞŶƚĞ
em face às cobranças impostas por ser um PIDE, “em pleno mato africano” (COUTO,
2004, p. 13), ou um homem possuído pelo espírito do próprio pai (2004, p. 50-51)?
Seria, talvez, o Napolo, representação do poder dos negros – pretos, conforme
>ŽƵƌĞŶĕŽ ƐĞ ƌĞĨĞƌĞ Ă ĞůĞƐ ;KhdK͕ ϮϬϬϰ͕ Ɖ͘ ϭϱͿ ʹ͕ ŽƵ ƉƌŽǀĂ ŝŶĚŝƐĐƵơǀĞů ĚŽ ƌĞŶĂƐ-
cimento de Joaquim de Castro (COUTO, 2004, p. 64)? Esse e outros elementos são
marcas de uma realidade africana colonial – insólita –, que representam, no seio da
ŶŽǀĞůĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞũĄŵĞƐƟĕĂ͘
No coração da tempestade
Optamos por falar de EŽĐŽƌĂĕĆŽĚĂƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞ͗ƵŵĂƌĞŇĞdžĆŽƐŽďƌĞŽŝŶƐſůŝ-
to em Vinte e zinco. Mas, por que tempestade e não tormenta, provavelmente muito
mais coerente com a situação de sofrimento de que aqui tratamos ao estudar essa
ŶĂƌƌĂƟǀĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͍Tormentos ƉŽƌƋƵĞƉĂƐƐĂŵŽƐĂƐƚƌŽ͕ƚƵƌďƵůġŶĐŝĂƐƐĞŶƟĚĂƐ
pelo império lusitano, sofrimentos impostos aos colonizados em meio a uma ditadu-
ra colonial? À resposta.
ƐƐĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ Ġ͕Ă ŶŽƐƐŽ ǀĞƌ͕ ƵŵĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ŶĆŽ ƌĂŶĐŽƌŽƐĂ ʹ
em comparação com outras vertentes da literatura africana de língua portuguesa
ƋƵĞ͕ŶŽƐƷůƟŵŽƐƚĞŵƉŽƐ͕ƚġŵƐĞĚĞĚŝĐĂĚŽĂĂďŽƌĚĂƌƵŵǀŝĠƐƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐŽ͕ĞŵƐƵĂ
ŵĂŝŽƌŝĂ͕ ƚĞĐĞŶĚŽ ĐƌşƟĐĂƐ ĂŽ ƋƵĞ Ă ƐŽĐŝĞĚĂĚĞ ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ ĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂ ͞ĚĞŝ-
džŽƵĚĞƐĞƚŽƌŶĂƌ͘͟ůĞdžƐĂŶĚƌĂDĂĐŚĂĚŽũĄĂĮƌŵĂƌĂ͕ĞŵƐƵĂŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ͕ŝŶƟƚƵůĂĚĂ
ĂŵŝŶŚŽƐĚĂDĞŵſƌŝĂ͗ƵŵĂƌĞŇĞdžĆŽƐŽďƌĞĐŽŶƚŽƐĞĐƌƀŶŝĐĂƐĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌDŝĂŽƵƚŽ,
ƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌĚĞƐĞũĂŽƵďƵƐĐĂƵŵĨƵƚƵƌŽŵĞůŚŽƌƉĂƌĂƐƵĂƉĄƚƌŝĂͬƚĞƌƌĂ;ϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϳͿ͘
Seguindo uma das tendências dos modernistas brasileiros da terceira fase – a cha-
82 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ŵĂĚĂ͞ǀĂŶŐƵĂƌĚĂĞdžƉĞƌŝŵĞŶƚĂů͟;K^/͕ϮϬϬϲ͕ϯϴϴͿʹ͕ŶĂƋƵĂůĂƉĂůĂǀƌĂĠŽŽďũĞƚŽĚĞ
ƚƌĂďĂůŚŽ͕DŝĂŽƵƚŽƌĞĐƌŝĂ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕ƵŵĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞŵĂŝƐ͞ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͟
ʹŶŽǀĂŵĞŶƚĞ͕ƵƟůŝnjĂŵŽƐŽƐĚĞƚĞƌŵŝŶĂŶƚĞƐŶŽĨĞŵŝŶŝŶŽƉĂƌĂŶŽƐƌĞĨĞƌŝƌăŶĂĕĆŽŵŽ-
çambicana, tendo em vista que o Estado não corresponde, originariamente, a uma
EĂĕĆŽ͕ŵĂƐƐŝŵĂ͞ŶĂĕƁĞƐ͕͟ĂďƌĂŶŐĞŶĚŽǀĄƌŝĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĞƐŽĐŝĞĚĂĚĞƐĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝ
;,>>͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϱͿ͘ĂDŽĕĂŵďŝƋƵĞůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞŵĂŝƐ͞ŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕͟ƋƵĞƌĞƐ-
ƉĞŝƚĂ͕ŶĂƵƚŽƉŝĂĮĐĐŝŽŶĂů͕ĂƐĚŝǀĞƌƐĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝ͕ƋƵĞƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐĂďŽƌĚĂƌ͘
EĞƐƐĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŽŶĚĞŽƐmirabiliaĐĂŵŝŶŚĂŵũƵŶƚŽĂŽƐrealia, o (f)ato insóli-
ƚŽƉĞƌƚƵƌďĂĂĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞŚŝƐƚſƌŝĐĂ͕ƐĞŵĚĞŝdžĂƌĚĞĨĂnjĞƌƉĂƌƚĞĚĞůĂ͕ĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌĐƌŝĂ
ƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽƋƵĞ͕ĂŽŵĞƐŵŽƚĞŵƉŽĞŵƋƵĞƌĞƐŐĂƚĂŽƐƉĂĚƌƁĞƐ
branco-ocidentais, subverte-os a seu favor. Símbolos, outrora desvirtuados pela ins-
ƚĂůĂĕĆŽĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞďƌĂŶĐŽͲĐƌŝƐƚĆ͕ƐĆŽĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞƌĞƐŐĂƚĂĚŽƐ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞ
ĂƚĠŵĞƐŵŽĐŽŶĐĞŝƚŽƐ͕ŽƵƚƌŽƌĂĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚŽƐŶĞŐĂƟǀŽƐƉĞůŽƐƉĂĚƌƁĞƐĞƵƌŽĐġŶƚƌŝĐŽƐ
ʹŵŽƌƚĞ͕ĞŶǀĞůŚĞĐŝŵĞŶƚŽĞƚĐ͘ʹ͕ƐĆŽĂĨƌŝĐĂŶĂŵĞŶƚĞƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƐ͘ŽŶĐĞŝƚŽƐ͕ƉĂƌĂ
nós, considerados abstratos sofrem o mesmo tratamento, como o tempo ou ele-
ŵĞŶƚŽƐĚĂŶĂƚƵƌĞnjĂ͕ĚĞŶƚƌĞĞůĞƐ͕ĂĄŐƵĂ͕ĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞƌĞƐŐĂƚĂĚĂĐŽŵŽƐşŵďŽůŽ
de renovação para Mia Couto.
Em Vinte e zinco͕:ĞƐƐƵŵŝŶĂĚĞƐĂƉĂƌĞĐĞŶĂƐĄŐƵĂƐĚŽůĂŐŽEŬƵůƵŝŶĞ͕ŽŶĚĞ͕
durante sete anos, aprende “os segredos de um outro saber” (COUTO, 2004, p. 48).
WŽƌ ƐƵĂ ǀĞnj͕ ĂƐ ĄŐƵĂƐ ƋƵĞ ĞŶĐŚŝĂŵ Ž ůĂŐŽ ŶĆŽ ĞƌĂŵ ƉƌŽǀĞŶŝĞŶƚĞƐ ĚĂ ĐŚƵǀĂ͕ ŵĂƐ
ĚŽƐƌĞůąŵƉĂŐŽƐ͕ĚĂůƵnj͕ĞĞƌĂĞƐƐĂĄŐƵĂƋƵĞ͕ƉŽƌƐĞƌƐĂŐƌĂĚĂ͕ƚƌĂnjŝĂŵĞŵſƌŝĂƐĚĞ
outras vidas para a Nyanga (2004, p. 49). Do fundo do lago, durante o período em
ƋƵĞĞƐƚĞǀĞůĄ͕ŽƐƉĄƐƐĂƌŽƐƉĂƌĞĐŝĂŵƉĞŝdžĞƐ͕ĞŽĐĠƵƉĂƌĞĐŝĂĐŽŵŽƵŵƌŝŽ͕ŽŶĚĞĂƐ
nuvens eram “a espuma de sua ondeação” (2004, p. 49). Curiosamente, assim que o
corpo de Joaquim cai sobre o mar – sem fazer o barulho do choque –, surgem “pe-
nas dispersas como saídas de um buraco de nuvem” (COUTO, 2004, p. 21-22). Irene
ĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞǀŝƐŝƚĂăƐůĂŐŽĂƐŽŶĚĞ:ĞƐƐƵŵŝŶĂĞƐƚĄůŽĐĂůŝnjĂĚĂ͕ƚƌĂnjĞŶĚŽƉĂƌĂĚĞŶ-
ƚƌŽĚĞĐĂƐĂƵŵůşƋƵŝĚŽĞŵƋƵĞ͞ŽƐĂďƌƵƚĞƐůĂǀĂǀĂŵŽƐŽůŚŽƐ΀ŽƋƵĂů΁ĂƉƵƌĂǀĂǀŝƐƁĞƐ
de quem delas carecia. E ela pedira aquele líquido para lavar os olhos de Tchuvisco,
ŽĐĞŐŽƐĞƵĂŵŝŐŽ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϯͿ͘ŶĂŵĞƐŵĂůĂŐŽĂ͕ĂŽĮŶĂůĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ;ϮϬϬϰ , p.
ϭϬϬͿ͕ƋƵĞĞůĂĂĚĞŶƚƌĂƉƌĂĐŽŵƉůĞƚĂƌƐĞƵĐŝĐůŽŝŶŝĐŝĄƟĐŽĞ͕ƚĂůĐŽŵŽ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ƌĞĐĞ-
ber outros saberes. Outra personagem, Dona Graça – suspeita de ser, dentre as pos-
ƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĚĞƐƐĞũŽŐŽĚĞƐŝŵĞŶĆŽƉƌŽƉŽƐƚŽƚĂŶƚŽƉĞůŽƐŝƐƚĞŵĂĚŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ
ƋƵĂŶƚŽƉĞůĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ĂǀĞƌĚĂĚĞŝƌĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĚĞ:ĞƐƐƵŵŝŶĂʹ͕ŵĆĞĚĞ
DĂƌĐĞůŝŶŽĞŝƌŵĆĚĞƵƐƚſĚŝŽ͕ƟŶŚĂƵŵĚĞĨĞŝƚŽ͗
ƐĞƵƐŽůŚŽƐŶĆŽƉĂƌŝĂŵůĄŐƌŝŵĂƐ͘ƌĂŵŝŶĨĠƌƚĞŝƐĚĞĄŐƵĂ΀͘͘͘΁͘KƋƵĞ
ĞůĂŽďƐĐƵƌĂŵĞŶƚĞĨĂnjŝĂƉĂƌĂǀĂnjĂƌƐƵĂƐƚƌŝƐƚĞnjĂƐĞƌĂĚĞŝƚĂƌͲƐĞ͕ůĄ
fora, em noites de chuva. Ficava amparada no chão e deixava o
ƌŽƐƚŽƐĞŝŶƵŶĚĂƌĚĞŐŽƚĂƐ͕ĂŽƐĐŽƌĚƁĞƐ͘ƌĂŵĞƐƐĂƐĂƐƐƵĂƐůĄŐƌŝ-
mas, aquelas, lhe rosariando pelas faces(COUTO , 2004, p. 38-39).
>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ƐĞŵƉƌĞƋƵĞƌĞƚŽƌŶĂƉĂƌĂĐĂƐĂ͕ůĂǀĂƐƵĂƐŵĆŽƐĐŽŵĄŐƵĂ͕ƚĞŶƚĂŶ-
ĚŽƐĞůŝŵƉĂƌĚĞƵŵƐĂŶŐƵĞŵĂŝƐŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƋƵĞƌĞĂů;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϰͲϭϱͿ͕ƐĂŶŐƵĞĞƐƐĞ
ISBN 978-85-8199-013-2 83
João Olinto Trindade Junior
que enxerga até mesmo em seus brinquedos e no pano que usa para dormir (2004,
p. 47). Devido ao trauma gerado por presenciar a morte do pai, recusasse a ligar o
ǀĞŶƟůĂĚŽƌ͕ƐƵĂŶĚŽŵƵŝƚŽƉŽƌŝƐƐŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϯͲϮϰͿ͘ŶƋƵĂŶƚŽƚŽĐĂǀĂŽĐŽƌƉŽ
ĚĞƐƵĂƟĂʹĞŶƋƵĂŶƚŽĞůĂĚŽƌŵŝĂʹ͕>ŽƵƌĞŶĕŽƐĞŶƚĞŽƉĞŝƚŽ͞ŵĂŝƐƌĞǀŽůƚŽƋƵĞŽŵĂƌ
ĞŵƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϴͿ͕ĂƚĠƐĞŶƟƌƵŵůşƋƵŝĚŽĞŶƚƌĞŽƐƉƌſƉƌŝŽƐĚĞĚŽƐʹƋƵĞ
DĂƌŐĂƌŝĚĂ͕ŵĂŝƐĂĚŝĂŶƚĞ͕ƌĞǀĞůĂƐĞƌ͕ƌĞĂůŵĞŶƚĞ͕ƐĂŶŐƵĞʹ͖ĞŶƋƵĂŶƚŽƌĞĐĞďĞĂŶŽơĐŝĂ
ĚĂƋƵĞĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞ͕ĞůĞǀġŽĐŽƌƉŽĚŽƉĂŝĐĂŝŶĚŽŶĂƐĄŐƵĂƐ͕ŵĂƐĂƐĞƐƉƵŵĂƐƋƵĞƐĞ
levantam são vermelhas, e o corpo do pai boiava como “um lenço recobrindo todo o
1ŶĚŝĐŽ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϵͿ͘KƉƌſƉƌŝŽŶĆŽƌĞĐŽŶŚĞĐĞƐƵĂŵĆĞƋƵĂŶĚŽĞƐƚĂĞƐďƌĂǀĞũĂƋƵĞ͕
ƉŽƌŵĂŝƐƋƵĞƐĞůĂǀĂƐƐĞŵ͕ŶĆŽŚĂǀĞƌŝĂĄŐƵĂƋƵĞůŝŵƉĂƐƐĞƐĞƵƉĂƐƐĂĚŽ;ϮϬϬϰ , p. 70).
ŵƵŵĚŽƐŵŽŵĞŶƚŽƐ͞ĐůŝŵĄƟĐŽƐ͟ĚĂŽďƌĂ͕ŽĐĞŐŽŶĚĂƌĠdĐŚƵǀŝƐĐŽʹƐĞƵ
ŶŽŵĞũĄĠƵŵƌĞƐŐĂƚĞĚĂƐŝŵďŽůŽŐŝĂĚĂĄŐƵĂ͕ƐĞŶĚŽĞƐƚĂƵŵĐŽŵƉŽŶĞŶƚĞĞƐƐĞŶ-
ĐŝĂůĚĂĐŚƵǀĂʹ͕ŐƌŝƚĂŶĚŽŽŶŽŵĞĚĞDŽŝƐĠƐʹĮŐƵƌĂŝŵƉŽƌƚĂŶơƐƐŝŵĂƉĂƌĂĂĐƵůƚƵƌĂ
ũƵĚĂŝĐŽͲĐƌŝƐƚĆ͕ĚĞǀŝĚŽăƐƵĂĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽĐŽŵĂĄŐƵĂ͕ĚŽƐĞƵŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽĂƚĠŽĄƉŝĐĞ
da fuga do Egito, quando abre o mar -, anunciando terríveis visões em que
ŽƌŝŽĞƐƚĄƉĂƌĂƐĞĚĞƐƉƌĞŶĚĞƌĚŽůĞŝƚŽ͕ĐĂŶƐĂĚŽĚĂŵĂƌŐĞŵ͕ůĄ
ŽŶĚĞĞůĂĠƉĞĚƌĂĂŵŽŶƚĂŶŚĂĚĂ΀͘͘͘΁͘ZŝŽ͘KƵ͕ƚĂůǀĞnjĠŽƚĞŵƉŽ΀͘͘͘΁͘
ƵǀĞũŽŽƌŝŽ͕ƚŽĚŽĂďĂƌƌŽƚĂĚŽĚĞĄŐƵĂƐ͕ĂĂĨƵŶĚĂƌƚƵĚŽŝƐƚŽ΀͘͘͘΁͘
sĞũŽŽƐĐĂŵƉŽƐƐĞŶĚŽĂƌƌĂƐƚĂĚŽƐ͘ǀĞũŽĂƐĄŐƵĂƐ͕ĞƐĐƵƌĂƐ͕ůĂ-
ŵĂĕŽƐĂƐ͘ƐĄŐƵĂƐƚġŵĂŐŽƌĂŵĂŝƐƚĞƌƌĂƋƵĞĂĞƐƚƌĂĚĂ;KhdK
, 2004, p. 60-62).
>ŽŐŽĂƉſƐ:ĞƐƐƵŵŝŶĂĐŽůŚĞƌƵŵĂůĄŐƌŝŵĂʹ͞ĄŐƵĂĞƐĐƵƌĂƋƵĞůŚĞďƌŽƚĂĚŽƐ
olhos. Igual a do rio em que ele, em delírio, via estrondear sobre as quietas mar-
gens, a inundação engolindo o universal mundo” (COUTO, 2004, p. 63) – do cego e
ĐŽŵƉĂƌƟůŚĂƌĚĂǀŝƐĆŽƋƵĞĞůĞƟǀĞƌĂ͕ŶĚĂƌĠůĂŶĕĂƐƵĂďĞŶŐĂůĂĂŽƐĐĠƵƐ͕ĂƋƵĂůƐĞ
metamorfoseia no Napolo, o qual faz a chuva cair (COUTO, 2004, p. 63-64).
Poderíamos, aqui, comentar a ocorrência do signo “chuva”, visando ampliar
sua representação no que convenientemente chamamos de literatura do Real-
ŶŝŵŝƐŵŽ͘EĂŵĞƐŵĂŽďƌĂĞŵƋƵĞŶſƐŵĞƐŵŽƐ͕ĞƚŽĚĂĂƚƌĂĚŝĕĆŽĐƌşƟĐĂ͕ĨŽŵŽƐ
buscar o termo-conceito que nomeia essa “vertente”, Lueji – O Nascimento de um
Império;WWd>͕ϭϵϵϳͿ͕ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐĐŽŵŽĂƌĂŝŶŚĂ>ƵĞũŝŶĆŽƉŽĚĞƌŝĂ͕de fato,
ĂƐƐƵŵŝƌŽƉŽĚĞƌĚŽƌĞŝŶŽĚĂ>ƵŶĚĂ͕ĞŶƋƵĂŶƚŽŶĆŽĨŽƐƐĞĐĂƉĂnjĚĞĨĂnjĞƌĐŚŽǀĞƌ͘
ƋƵĂŶĚŽ͕ŝŶƐƚƌƵşĚĂƉŽƌ<ĂŶĚĂůĂʹƐĄďŝŽƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞůƉŽƌŝŶƐƚƌƵŝƌĂƌĞĐĠŵͲĞŵƉŽƐƐĂĚĂ
rainha nas tradições da terra e nas artes de governar –, ela resgata a tradição de seu
ƉŽǀŽƉĂƌĂƵƟůŝnjĂƌŽ>ƵŬĂŶŽʹƐşŵďŽůŽĚŽƉŽĚĞƌŵĄdžŝŵŽĚĂƌĂŝŶŚĂ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽ
ƐĞƵƐƉŽĚĞƌĞƐŵşƟĐŽƐͬŵşƐƟĐŽƐʹĞĐŽŶǀĞƌƐĂĐŽŵŽƐĞƐƉşƌŝƚŽƐĚŽƐŵŽƌƚŽƐ͕ƐĞƵƐĂŶƚĞ-
passados – em especial, com o espírito de Kondi, seu pai –, pedindo que intercedam
ƉŽƌĞůĂĚŝĂŶƚĞĚĞdĐŚLJĂŶnjĂEŐŽŵďĞ͕ƐĞƌƉĞŶƚĞŵşƟĐĂĚĂƋƵĂůƚĞƌŝĂƐĞŽƌŝŐŝŶĂĚŽŽ
povo Lunda. Tão logo ela realiza esse ritual, a chuva não tarda a cair, provando, para
todos os muatas – chefes locais, os “nobres” da Lunda –, que era a detentora do po-
ĚĞƌŚĞƌĚĂĚŽĚŽ>ƵŬĂŶŽĞƉŽƌƚĂĚŽƌĂĚŽĂƉŽŝŽĚŽƐĞƐƉşƌŝƚŽƐĚŽƐĂŶƚĞƉĂƐƐĂĚŽƐ͕ůŽŐŽ͕
84 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
que estava apta para governar (PEPETELA, 1997, p. 60-64).
O termo Realismo Animista – por opção nossa, assumido como Real-
ŶŝŵŝƐŵŽ ʹ͕ ƉŽƌ ŶſƐ ƵƟůŝnjĂĚŽ͕ ĚĞƐƉŽŶƚĂ Ğŵ Lueji – O Nascimento de um
Império ;ϭϵϵϬ͕ ϭǐ ĞĚŝĕĆŽ͖ ϭϵϵϳ͕ ĞĚŝĕĆŽ ƵƟůŝnjĂĚĂ ŶĞƐƚĞ ĞŶƐĂŝŽͿ͕ ƉƌŽƉŽƐƚŽ ƉŽƌ
WĞƉĞƚĞůĂĞůŽŐŽĂƉƌŽƉƌŝĂĚŽƉĞůŽƐĐƌşƟĐŽƐĐŽŵŽƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞĐŽŶĐĞŝƚƵĂƌĂŵĂŶŝ-
ĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽŶĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐĚŽƐW>KW͕ƚĞƌŵŽĞƐƐĞƋƵĞũĄĂƐƐƵŵŝŵŽƐĐŽŵŽ
uma vertente da corrente do Real-Maravilhoso em terras africanas.
Assim, ao nos apropriar das teorias de Irlemar Chiampi para desenvolver
apontamentos que indicassem as diferenças geradas por essa atualização animista,
ƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐŽďƐĞƌǀĂƌŶĆŽĨĂŶƚĂƐŝĂƐ͕ĞdžŽƟƐŵŽƐŽƵŝŶǀĞŶĕƁĞƐĚŽŶĂƌƌĂĚŽƌ;,/DW/͕
ϭϵϴϬ͕ Ɖ͘ ϯϮͿ͕ ŵĂƐ Ž ĐŽŶũƵŶƚŽ ĚĞ ŽďũĞƚŽƐ Ğ ĞǀĞŶƚŽƐ ƋƵĞ ƐŝŶŐƵůĂƌŝnjĂŵ ĨƌŝĐĂ͕ ŵĂŝƐ
ĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͘dƌĂƚĂͲƐĞĚĞƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĠƉŝĐĂůŝƚĞƌĄƌŝĂĂĨƌŝĐĂŶĂ͕
ǀŝƐůƵŵďƌĂĚĂŶŽƐĐŝĐůŽƐĐĂƚĂĐůŝƐŵĄƟĐŽƐĚĂŶĂƚƵƌĞnjĂʹĐŽŵŽĂƐƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƐʹĞĚŽ
ŚŽŵĞŵʹĐŽŵŽĂŐƵĞƌƌĂĞĂƉŽůşƟĐĂʹ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĠĂƚƌĂǀĠƐĚĂƚƌĂŶƐƉŽƐŝĕĆŽ
ůŝƚĞƌĄƌŝĂĚĞƐƐĞƐƌŝƚƵĂŝƐ͕ƋƵĞůŝŐĂŵŽƐǀŝǀŽƐĂŽƐŵŽƌƚŽƐʹĞůĞŵĞŶƚŽĞƐƐĞŶĐŝĂůƉĂƌĂƵŵ
ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĂĚŝƟǀĂĚŽƉŽƌƵŵǀŝĠƐĂĨƌŝĐĂŶŽʹ͕ƋƵĞ>ƵĞũŝŝŶǀŽĐĂƐĞƵƐ͞ĂŶƟŐĂ-
mentados” para trazer a chuva e garante seu domínio sobre o povo da Lunda.
,ĄƵŵĂƌĞůĂĕĆŽŶĞƐƐĂƌĞĂůŝĚĂĚĞůŝƚĞƌĄƌŝĂĂŶŝŵŝƐƚĂĞŶƚƌĞĂĐŚƵǀĂĞŽƐŵŽƌƚŽƐ
ʹŶĆŽŶŽƐĞŶƟĚŽďƌĂŶĐŽͲŽĐŝĚĞŶƚĂů͕ŵĂƐŶŽĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ĂƉŽŶƚĂŶĚŽƉĂƌĂĂĐŽŶĚŝĕĆŽ
ĚĞ ͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂĚŽƐ͟ ʹ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ ƋƵĞ͕ ŶĂ ŽďƌĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ ƚĞŵŽƐ ĞdžĞŵƉůŽƐ
como A Chuva Pasmada (COUTO, 2011), onde, na maior parte da história, a chuva
permanece parada no ar, pasmada.
Embora os moradores da região – a população pobre, habitante de casas com
telhado de zinco;KhdK͕ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϲ͕ŐƌŝĨŽŶŽƐƐŽͿʹ͕ƚĞŶƚĂƐƐĞŵũŽŐĂƌƚĞƌƌĂŶĂĐŚƵǀĂ
ƉĂƌĂƋƵĞĞůĂĐĂşƐƐĞ;KhdK͕ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϴͿ͕ĞůĂĐŽŶƟŶƵĂǀĂŝŶĞƌƚĞ͕ƐŽďƐƵƐƉĞŝƚĂĚĞƐĞ
ƚƌĂƚĂƌĚĞĨĞŝƟĕŽŽƵŵĂůĚŝĕĆŽ͘ĐŚƵǀĂƐſƚŽƌŶĂĂĐĂŝƌăŵĞĚŝĚĂƋƵĞŽƐƉƌŽďůĞŵĂƐƋƵĞ
perturbavam os moradores do local são expostos e caminham para resolução. A mãe
ĚŽŵĞŶŝŶŽĠĂďƵƐĂĚĂƉĞůŽĚŽŶŽĚĞƵŵĂĨĄďƌŝĐĂĂůŝŝŶƐƚĂůĂĚĂ͕ƋƵĞůĂŶĕĂĨƵůŝŐĞŶƐĞƐĐƵ-
ras no céu (COUTO, 2011, p. 71). A origem da família em torno da qual gira a história,
bem como a do nascimento de um rio, através do resgate – e reinterpretação – da
ůĞŶĚĂĚĂĂŶĐĞƐƚƌĂůEƚŽǁĞŶŝ;KhdK͕ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϯϴͲϰϯͿ͕ĂǀſĚĂĂǀſĚŽƉƌŽƚĂŐŽŶŝƐƚĂ͕Ġ
ƌĞůĂƚĂĚĂ͘^ŽŵĞŶƚĞĂƉſƐŽƌŝŽĚĞƌƌŽƚĂƌŽƐŵŽƚŽƌĞƐĚĂĨĄďƌŝĐĂ;KhdK͕ϮϬϭϭ͕Ɖ͘ϳϭͿĞ
ŽĐŽƌƌĞƌŽ͞ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĂƌ͟ĚŽĂǀƀʹŽƋƵĂůŶĂǀĞŐĂĞŵƵŵĂĐĂďĂĕĂĂƚĠĚŝƐƐŽůǀĞƌͲƐĞŶŽ
ŚŽƌŝnjŽŶƚĞ;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϳϰͿʹ͕ũĄŶŽĮŶĂůĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŝƌƌŽŵƉĞ͕ŶŽĐĠƵ͕ƵŵĂƐĞƌƉĞŶƚĞĚĞ
ĄŐƵĂƉƌĂƚĞĂĚĂ͕ƚŽƌŶĂŶĚŽ͕ĞŶƚĆŽ͕ĂĐĂŝƌăĐŚƵǀĂ͘
Em Vinte e zinco, ĠůŽŐŽĂƉſƐ>ŽƵƌĞŶĕŽĞŶƚĞŶĚĞƌƋƵĞĂĮŐƵƌĂǀŝƐƚĂƉŽƌĞůĞŶŽ
ĐĠƵƉŽĚĞƌŝĂƐĞƌƵŵĂŵĄůŐĂŵĂĚŽƉĂŝĐŽŵŽEĂƉŽůŽʹƋƵĂŶĚŽĚĂŵŽƌƚĞĚĞ:ŽĂƋƵŝŵ͕
ĞůĞ͕ĚĞ͞ŽůŚŽƐĞƐďƵŐĂůŚĂĚŽƐ͕ǀŝƵŽƉĂŝƐĞƌĞũĞĐƚĂĚŽĚŽŚĞůŝĐſƉƚĞƌŽ͘^ƷďŝƚŽ͕ůŚĞƉĂƌĞĐĞ
ĞĐůŽĚŝƌƵŵƉĄƐƐĂƌŽ͕ĐŽŵƉŽƐƚŽĞŵĂƐĂƐĞƉůƵŵĂƐ͘DĂƐŶĂĚĂƚŽŵďĂƌĂƐŽďƌĞŽŵĂƌ͘
Flutuavam penas dispersas como saídas de um buraco de nuvem” (COUTO, 2004, p.
21-22), e, ao presenciar Tchuvisco lançar sua bengala ao ar, esta transforma-se no
͞EĂƉŽůŽ͕ĂĐŽďƌĂǀŽĂĚŽƌĂ͕ƚƌĂnjĞĚŽƌĂĚĞƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƐĞƌĞůąŵƉĂŐŽƐ΀͘͘͘΁͘>ŽƵƌĞŶĕŽ
ISBN 978-85-8199-013-2 85
João Olinto Trindade Junior
descobrira os seus fantasmas naquele instantâneo céu. Aquela era a ave que, anos
antes, ele vira emergir do helicóptero e se desfazer, depois, em penas e penugens”
(COUTO, 2004, p. 63-64) –, que a chuva cai.
ƉſƐĚŝƐƉĂƌŽƐĚĞƵŵĚŽƐĂŐĞŶƚĞƐĚĂWŝĚĞʹĂĚũƵŶƚŽĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽʹ͕ĐŽŶƚƌĂĂ
criatura em que se transforma a bengala de Tchuvisco, o Napolo, este se desfaz em
poeira e cinza. Ocorre, imediatamente a seguir, uma forte e assustadora tempesta-
ĚĞ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞƌĂŝŽƐƐƵũĂŵĂƚĞƌƌĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϳͿ͕ĐŚŽǀĞŶĚŽĞŵƚŽĚŽƐŽƐ
cantos. Lourenço, temendo pelo acontecimento insólito, que ele não entende, grita
ƋƵĞĐŚĂŵĞŵ͕ĞŵƐĞƵƐŽĐŽƌƌŽ͕ŽƉĂĚƌĞZĂŵŽƐ͕ŵĂƐũĄĠƚĂƌĚĞ͕ƉŽŝƐ͞ĐŚŽǀĞĞŵƚŽĚĂ
ĂǀĂƐƟĚĆŽĚŽŵƵŶĚŽ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϱͿ͘
EĆŽŶŽƐĞƐĐĂƉĂŽďƐĞƌǀĂƌŽĨĂƚŽĚĞƋƵĞŽĂƵƚŽƌ͕ĞŵƐƵĂǀĂƐƚĂŽďƌĂ͕ĐŽŵƉƀƐ
ƵŵůŝǀƌŽĐŽŶǀĞŶŝĞŶƚĞŵĞŶƚĞŝŶƟƚƵůĂĚŽTradutor de Chuvas (2011). Assim, ao resga-
ƚĂƌŵŽƐŽĐŽŶĐĞŝƚŽĚŽƉĂĐƚŽĮĐĐŝŽŶĂůĚĞhŵďĞƌƚŽĐŽ͕ĂŽĨĂůĂƌĚĞĐŽŵŽĂƵƚŽƌͲŵŽĚĞ-
ůŽĞůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽĂŶĚĂŵĚĞŵĆŽƐĚĂĚĂƐƉĞůŽďŽƐƋƵĞĚĂĮĐĕĆŽ;K͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϴϭͿ͕
ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐĐŽŵŽĂŶĂƌƌĂƟǀĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂʹĞ͕ĞŵĞƐƉĞĐŝĂů͕Vinte e zinco – valendo-
ͲƐĞĚĞĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐʹƉĂĐƚŽƐƉƌĠͲĞƐƚĂďĞůĞĐŝĚŽƐŶĂͬĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂʹƉĂƌĂĐŽŶǀŝĚĂƌŽůĞŝƚŽƌ
a adentrar em sua “brincriação” (CAVACAS, 1999, p. 49-50), apresenta elementos do
ĐŽƟĚŝĂŶŽƉĂƌĂƐĞĂůŝŵĞŶƚĂƌĞƌĞĂůŝnjĂƌƐƵĂƐƐĞŵŝŽƐĞƐʹŽƐĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐƐĞŶƟĚŽƐƉƌŽĚƵ-
njŝĚŽƐĂŽůŽŶŐŽĚĞƐƵĂ;ƚĞŶƚĂƟǀĂĚĞͿƚƌĂĚƵĕĆŽ͘
As personagens apresentadas na trama, por sua vez, são frutos dessas (ten-
ƚĂƟǀĂƐĚĞͿƐĞŵŝŽƐĞƐ͕ƉŽƌƐŝŶĂů͕ŵĂŝƐĚĞƵŵĂ͕ũĄƋƵĞĐĂĚĂƵŵĂĚĞůĂƐĞŶĐĂƌŶĂŵƷůƟ-
plas imagens – a exemplo de Lourenço de Castro, que pode ser tanto louco, como
ĚŽĞŶƚĞ͕ƋƵĂŶƚŽƉŽƐƐƵşĚŽ͕ĂƉĂŝdžŽŶĂĚŽƉĞůĂƟĂŽƵ͕ŵĂŝƐĂŝŶĚĂ͕ƵŵĂƐĞŵŝŽƐĞĨŽƌŵĂ-
da pela mescla de todas essas imagens.
ƌĞůĞǀĂŶƚĞŽďƐĞƌǀĂŵŽƐ͕ĂŝŶĚĂ͕ ƋƵĞ͕ŶĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞƚƌĂĚƵƚŽƌͬĐƌŝĂĚŽƌ͕DŝĂ
Couto resgata, em Vinte e zinco͕ƵŵŶŽǀŽƐĞŶƟĚŽƉĂƌĂŽƐŝŐŶŽ͞ĐŚƵǀĂ͘͟WĂƌĂĨƌĂƐĞĂŶĚŽ
hŵďĞƌƚŽĐŽ͕ĂƐƉĂůĂǀƌĂƐƚġŵƵŵƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĚĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵĂƐĚĞĮŶŝĕƁĞƐĞƐƚĂďĞůĞ-
ĐŝĚĂƐƉĞůŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐ͕ĂƐƋƵĂŝƐƉŽĚĞŵƉŽƐƐƵŝƌŵƵŝƚŽƐƉŽƐƐşǀĞŝƐƐĞŶƟĚŽƐĂŶƚĞƐƋƵĞ
ƐĞũĂŝŶƐĞƌŝĚŽĞŵƵŵĐŽŶƚĞdžƚŽĞĨĂůĞĚĞƵŵŵƵŶĚŽĞƐƉĞĐşĮĐŽ;ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϱϭͿ͘
ŵƐşŶƚĞƐĞ͕ŽƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƐƐŝŵďſůŝĐŽƐĚĂĄŐƵĂʹĞůĞŵĞŶƚŽĞƐƐĞŶĐŝĂůĚĂĐŚƵ-
ǀĂʹƉŽĚĞŵƐĞƌƌĞƐƵŵŝĚŽƐĞŵƚƌġƐ͗ǀŝĚĂ͕ƉƵƌŝĮĐĂĕĆŽĞƌĞŐĞŶĞƌĂĕĆŽ͘ĐŚƵǀĂ͕ĞŶƚĆŽ͕
ƐĞƌŝĂ͞ƵŵƐġŵĞŶƵƌĂŶŝĂŶŽƋƵĞǀĞŵĨĞĐƵŶĚĂƌĂƚĞƌƌĂ͟;,s>/Z͖'hZZEd͕
ϭϵϴϮ͕Ɖ͘ϰϭͿ͘WĂƌĂDŝĂŽƵƚŽ͕ĂĐŚƵǀĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĂĨĞƌƟůŝĚĂĚĞĚĂŶĂƚƵƌĞnjĂʹĞƐĞƵ
ƌĞƚŽƌŶŽ ʹ Ğŵ ĐŽŶƚƌĂƐƚĞ ĐŽŵ Ă ƐĞĐĂ͘ EĞƐƐĂ ƚƌĂŶƐŝĕĆŽ ĮĐĐŝŽŶĂů͕ ŚĄ ƵŵĂ ƌĞůĂĕĆŽ ĚĞ
ƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĞƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞƋƵĞĂƉŽŶƚĂƉĂƌĂĂƉƵƌŝĮĐĂĕĆŽĞƌĞŐĞŶĞƌĂĕĆŽĚĂƚĞƌƌĂʹĞ
suas representações.
hŵ ĚĞƐƐĞƐ ƐĞŶƟĚŽƐ ĞƐƚĄ ŶŽ ĐŽŶƚŽ ͞ŚƵǀĂ͕ Ă ďĞŶƐŽŶŚĂĚĂ͕͟ ƋƵĞ ŝŶƚĞŐƌĂ
Estórias Abensonhadas (COUTO, 1996, p. 43-46), lançado, segundo o autor, em co-
memoração à assinatura de acordos de paz, encerrando a guerra civil, que durou
ĚĞϭϵϳϲĂϭϵϵϮ͘EŽƚĞdžƚŽ͕ĞůĞĂĮƌŵĂƋƵĞ͕͞ĞŵƚŽĚŽŽDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĂŐƵĞƌƌĂĞƐƚĄ
ƉĂƌĂƌ͘^ŝŵ͕ĂŐŽƌĂũĄĂƐĐŚƵǀĂƐƉŽĚĞŵƌĞĐŽŵĞĕĂƌ͘dŽĚŽƐĞƐƚĞƐĂŶŽƐ͕ŽƐĚĞƵƐĞƐŶŽƐ
ĐĂƐƟŐĂƌĂŵĐŽŵĂƐĞĐĂ͘KƐŵŽƌƚŽƐ͕ŵĞƐŵŽŽƐŵĂŝƐǀĞƚĞƌĂŶŽƐ͕ũĄƐĞƌĞƐƐĞƋƵŝĂŵůĄŶĂƐ
86 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
profundezas” (COUTO, 1996, p. 44).
 ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂ ĚŽƐ ĐŝĐůŽƐ ĐĂƚĂĐůŝƐŵĄƟĐŽƐ ĚĂ ŶĂƚƵƌĞnjĂ ʹ ƐĞĐĂƐ͕ ĐŚĞŝĂƐ͕ ƚĞŵ-
ƉĞƐƚĂĚĞƐĞƚĐ͘ʹĞĚŽŚŽŵĞŵʹƉĞƐƚĞƐ͕ƉŽůşƟĐĂ͕ŐƵĞƌƌĂƐĞƚĐ͘ʹƉĂƌĂĂĐŽŵƉŽƐŝĕĆŽĚĂ
realidade moçambicana, que fornecem energia épica para a literatura, produzindo,
ĂƐƐŝŵ͕ƵŵĂĚĞŐƌĂĚĂĕĆŽĚŽƐĂŐƌĂĚŽ;&KE^K͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϳͿ͕ĞƐƚĄƉƌĞƐĞŶƚĞĞŵVinte
e zinco͘džĞŵƉůŽŝůƵƐƚƌĂƟǀŽĚĞƐƐĂƉƌĞƐĞŶĕĂƐĞĚĄĞŵƵŵĚŽƐŵŽŵĞŶƚŽƐĞƐƐĞŶĐŝĂŝƐ
da obra – a metamorfose do Napolo –, gerando, então, um signo que representa um
ŵƵŶĚŽƋƵĞƐĞƌĞŶŽǀĂĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͗͞DĂƐĠƚĂƌĚĞ͘EƵŵŝŶƐƚĂŶƚĞ͕ŽĐĠƵƐĞŝŶǀŝĂďŝ-
ůŝnjĂƉĂƌĂƉĄƐƐĂƌŽƐ͕ĂƚĞƌƌĂƐĞĨĞĐŚĂƉĂƌĂĞŶĐĂŶƚĂĕƁĞƐ͘ŚŽǀĞĞŵƚŽĚĂĂǀĂƐƟĚĆŽĚŽ
mundo. Menos sobre a maçaniqueira, ali onde Custódio Juma e o mulato Marcelino
descansam suas eternidades” (COUTO, 2004 , p. 65).
ƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞ͕ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ĠǀŝĚĂ͕ĐƌŝĂĕĆŽ͘ŽĂĐŽƌĚŽĞŶƚƌĞŽŵƵŶĚĂŶŽĞŽ
divino, um pacto de paz. Retomando a pergunta feita anteriormente, à qual vimos
tentando responder, voltamos à palavra tormenta, que, se, por um lado, tem sig-
ŶŝĮĐĂĚŽƉƌſdžŝŵŽĂŽĚĞtempestade͕ƐĞŵĂŶƟĐĂŵĞŶƚĞĞƐƚĄĂƐƐŽĐŝĂĚĂăĚĞƐƚƌƵŝĕĆŽ͕
desordem e morte, e, d ĞƐƐĞƐĞŶƟĚŽ͕ƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐŶŽƐĚŝƐƚĂŶĐŝĂƌĞŵŶŽƐƐŽƐĞƐƚƵĚŽƐ͘
A tempestade, por sua vez, como elemento criador, não apenas resgata os símbo-
los esquecidos, como recupera os que estão ao seu redor, apropriando-se deles.
WŽĚĞƌşĂŵŽƐ͕ƚĂůǀĞnj͕ƵƐĂƌĂŵĞƚĄĨŽƌĂĚŽĐƌŝƐƚĂů͕ŽƋƵĂůǀĂŝĂďƐŽƌǀĞŶĚŽ͕ŐƌĂĚƵĂůŵĞŶƚĞ͕
ĂƐĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐĚŽƐĞůĞŵĞŶƚŽƐƋƵĞŽĐĞƌĐĂŵ͕ĚĂŶĚŽƵŵƐĞŶƟĚŽĚĞ͞ŵŽǀŝŵĞŶƚŽ͕͟
ĚĞĂůŐŽƋƵĞŶĆŽĠŝŵƵƚĄǀĞů͕ůĞǀĂŶĚŽͲŶŽƐĚŝƌĞƚĂŵĞŶƚĞƚĂŶƚŽăƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůʹĞ
ĂƌƟŐŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽʹĚĞDŝĂŽƵƚŽ͕ƋƵĂŶƚŽăƐŝĚĞŝĂƐƐŽďƌĞŚŝďƌŝĚĞnjĐƵůƚƵƌĂůĚĞĨĞŶĚŝ-
das, por exemplo, por Homi Bhabha (1998, p. 22).
ĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ĞŵĚĞƚƌŝŵĞŶƚŽĚŽơƚƵůŽNo olho da tormenta – que poderia
representar um olhar de fora, com visão pré-concebida, observando apenas aspec-
ƚŽƐŶĞŐĂƟǀŽƐĐŽŵŽŵŽƌƚĞĞĂƚƌĂƐŽʹ͕ŽƉƚĂŵŽƐƉŽƌNo coração da tempestade, de
maneira que o outroʹŽƋƵĞŽƌŝŐŝŶĂůŵĞŶƚĞŶĆŽĞƌĂĚĂƋƵĞůĂƚĞƌƌĂʹĞƐƚĄ͕ĞůĞƚĂŵ-
ďĠŵ͕ŶŽĐĞŶƚƌŽĚŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞŵĞƐƟĕĂŐĞŵ͕ŵŝƐĐŝŐĞŶĂĕĆŽ͕ŚŝďƌŝĚŝƐŵŽ͕ĐƌŝĂĕĆŽĚĞ
ƐĞŶƟĚŽƐĚĞƋƵĞƐĞĐŽŶƐƟƚƵŝĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŝĚĂĚĞĮĐĐŝŽŶĂůŝnjĂĚĂƉŽƌDŝĂŽƵƚŽ͕͘ƐĞ
não toma parte por completo desse processo, pelo menos, aproxima-se dele.
Compreendemos essa tempestade insólita – longe da ideia de uma tormenta
insólita, uma vez que o termo, a nosso ver, concordaria com uma visão eurocêntrica
ĚĞƋƵĞĂĐŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƐſĐŚĞŐŽƵăĨƌŝĐĂĚĞƉŽŝƐĚĂĐŚĞŐĂĚĂĚŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĞĚĞƋƵĞ
estes estariam fadados ao sofrimento naqueles “cus de Judas” – como um processo
no qual tanto branco, quanto negro, europeu e africano, cristão e animista, reinven-
ƚĂŵͲƐĞăŵĞĚŝĚĂƋƵĞĂĐĞŝƚĂŵʹŽƵƐĞĂƉƌŽdžŝŵĂŵĚĞƐĞƵƐƉĂƉĠŝƐ͕ƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂŶĚŽͲƐĞ
mutuamente, durante o processo, e renovando-se, conforme adentram uma mo-
ĚĞƌŶŝĚĂĚĞŵşƟĐĂĞŵĞƐƟĕĂ͘
ĞƐƐĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵŚŝďƌŝĚĂ , que aceita ou não seus papéis, que vive/sente
ŽƐĞƌͬĞƐƚĂƌĞŵĨƌŝĐĂ͕no coração da tempestade͕ŶĂĚĂƚĂŵşƟĐĂĚŽϮϱĚĞďƌŝůĚĞ
1974, data da queda do regime salazarista, a Revolução dos Cravos, com repercus-
ƐƁĞƐĞŵƚŽĚŽŽŵƵŶĚŽƉŽƌƚƵŐƵġƐ͘ƐƐĞŵŽƐĂŝĐŽĐƵůƚƵƌĂůĠƌĞƐŐĂƚĂĚŽĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ
ISBN 978-85-8199-013-2 87
João Olinto Trindade Junior
por Mia Couto através de sua escrita – referimo-nos, então, ao que Irlemar Chiampi
ĂƉŽŶƚĂĐŽŵŽ͞ĂĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞĚĞĞdžƉƌĞƐƐĂƌƵŵĞƐƉĂĕŽĐƵůƚƵƌĂů͕ƵŵĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ΀͘͘͘΁
ĐŽŵƵŵĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂŶĆŽĚŽĐƵŵĞŶƚĂů͕ŵĂŝƐŝŶƚĞŐƌĂĚŽƌĂĚĂƐǀĄƌŝĂƐĨĂĐĞƐĚŽƌĞĂů͟
;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϭϯϱͿʹ͕ŽƋƵĂůĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞĂƐŵƷůƟƉůĂƐĨĂĐĞƐĚŽƋƵĞĂƵƚŽƌĐŚĂŵĂĚĞƐƵĂ
ĐƵůƚƵƌĂ͘ŚŝĂŵƉŝƐŝŶƚĞƟnjĂ͗
ƐƐŝŵ͕ Ž ŝĚĞŽůŽŐĞŵĂ ĚĂ ŵĞƐƟĕĂŐĞŵ ʹ ƌĞĚƵnjŝĚŽ ƉĂƌĂ ĞĨĞŝƚŽƐ
operacionais à unidade cultural “Real-Maravilhoso” – serviu para
reintroduzir a noção de referente do realismo maravilhoso como
ƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĂƌƟĐƵůĂĚŽĐŽŵŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽďĄƐŝĐŽĚĂŶĆŽĚŝƐũƵŶ-
ĕĆŽ͘΀͘͘͘΁ĐŽŶĨŽƌŵŝĚĂĚĞĚŽƌĞĂůŝƐŵŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĐŽŵƵŵƌĞĂů
ũĄĞƐĐƌŝƚŽŽƌŝĞŶƚĂĂŐŽƌĂăŝŶĚĂŐĂĕĆŽĚŽƐĞƵŵŽĚŽĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ
ƐĞŵąŶƟĐĂĚŽƐƐŝƐƚĞŵĂƐƌĞĂůĞŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĂŽŶşǀĞůĚŽĞŶƵŶĐŝĂ-
ĚŽ͕ĐƵũŽĞƐƚĂƚƵƚŽůſŐŝĐŽƐĞƌĄĞdžĂŵŝŶĂĚŽŶŽƐƚĞƌŵŽƐĚĂĐŽƌƌĞůĂĕĆŽ
ĐŽŵŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĐƵůƚƵƌĂůĚĂŶĆŽĚŝƐũƵŶĕĆŽ͘;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϭϯϴͿ
ŵĞƐƟĕĂŐĞŵ͕ĞŶƚĆŽ͕ĂŐĞcomo pano de fundo de Vinte e zinco, em uma
ĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂ ĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂ ĨƌĞŶƚĞ ă ƚĞŶƚĂƟǀĂ ŐůŽďĂůŝnjĂŶƚĞ Ğ ƵŶŝĮĐĂĚŽƌĂ ƉĂƌĂ Ž
ƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽ ĚĞ Ƶŵ ƉĂĚƌĆŽ ĚĞ ĐƵůƚƵƌĂ͕ ĐŝǀŝůŝnjĂĕĆŽ Ğ ŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞ͘ ĮƌŵĂͲƐĞĐŽŵŽ
força de resistência e preservação desse mosaico, aos seus moldes, em suma,
ĂƉƌŽƉƌŝĂͲƐĞ ĚŽƐ ƉƌĞĐĞŝƚŽƐ ĚŽ ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ ƉĂƌĂ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌ͕ ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕
ĞƐƐĂ ŵĞƐƟĕĂŐĞŵ ĐƵůƚƵƌĂů͕ ĐŽŶƐƚƌƵŝŶĚŽ͕ ƉŽƌƚĂŶƚŽ͕ ŝŵĂŐĞŶƐ ƉůƵƌŝǀĂůĞŶƚĞƐ ĚŽ ƌĞĂů
(CHIAMPI, 1980, p. 21). Valendo-nos – e adaptando para o contexto sociocultural
africano/moçambicano – das observações de Chiampi (1980, p. 39), podemos apon-
tar como, ao expor uma ideia de africanidade, Mia Couto oferece possibilidades de
ƐƵƉĞƌĂĕĆŽĚŝĂůĠƟĐĂĞŶƚƌĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĐƵůƚƵƌĂƐ͘ƐƐĂƐƵƉĞƌĂĕĆŽĠĚĞŵŽŶƐƚƌĂĚĂ͕ƉĂƵ-
ůĂƟŶĂŵĞŶƚĞ͕ŶĂĚŝĞŐĞƐĞ͘
^Ğ͕ Ğŵ Ƶŵ ŵŽŵĞŶƚŽ͕ ŚĄ Ž ƚĞŵŽƌ ĚŽƐ ďƌĂŶĐŽƐ ʹ ŶĂ ĮŐƵƌĂ ĚĞ DĂƌŐĂƌŝĚĂ Ğ
Lourenço – em relação aos poderes dos negros (COUTO, 2004, p. 17), essa relação de
medo caminha para uma solução quando a matriarca dos Castro visita Jessumina e
ĂĐĞŝƚĂĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞƉŽĚĞƌĞƐŵĞƚĂİƐŝĐŽƐƋƵĞƉƵĚĞƐƐĞŵƌĞƐŽůǀĞƌŽƐƉƌŽďůĞŵĂƐĚŽ
ĮůŚŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϰϴͿ͘KEĂƉŽůŽ͕ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ĞŵƐƵĂƌĞůĂĕĆŽĚĞƐĞŵŝŽƐĞĞŶƚƌĞ
os símbolos de dentro e de fora – pois resgata tanto a forma de um Basilisco, criatura
da cultura Greco-romana, quanto a da serpente voadora, que traz as tempestades,
ĚĂĐƵůƚƵƌĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂʹĠŽƋƵĞŵĞůŚŽƌŝůƵƐƚƌĂĂƐƵƉĞƌĂĕĆŽĚŝĂůĠƟĐĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂ͘
Deambulando por espaços de mirabilia em 25 de Abril
/ŵ portante observar a localização espacial em que se desenvolve a trama
de Vinte e zinco para discorrer acerca de seus processos de semiose. A história se pas-
sa em Vila Moebase, longe dos grandes centros urbanos, no interior de Moçambique,
no meio do mato, onde o pé do branco – fora aqueles que ocupam centros de poder
ĞƐƉĞĐşĮĐŽ͕ĐŽŵŽŽƐW/ĞƐƵĂĨĂŵşůŝĂ͕ŽĐůĠƌŝŐŽ͕ŽĂĚŵŝŶŝƐƚƌĂĚŽƌĞŽĚĞŶƟƐƚĂʹŶƵŶĐĂ
pisou. Entre a cidade – de formação europeia – e o campo – espaço por excelência
88 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĚĞŵşƐƟĐĂƌƵƌĂůŝƐƚĂʹ͕ŽƐƵďƷƌďŝŽŽĐƵƉĂƐĞƵůƵŐĂƌĐŽŵŽ͞ĞŶĐƌƵnjŝůŚĂĚĂĚĞŝŵĂŐŝŶĄ-
ƌŝŽƐ͟;EK͕ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϭϵϴͿ͕ƐĞŶĚŽŽƉŽŶƚŽĚĞŵĂŝŽƌĐŽŶŇƵġŶĐŝĂĞŶƚƌĞĂůſŐŝĐĂZĞĂůͲ
Naturalista e o animismo da terra.
YƵĂŶĚŽƉĞŶƐĂŵŽƐĞŵůŽĐĂůŝnjĂĕĆŽŶĂĚŝĞŐĞƐĞ͕ĐŽƌƌĞŵŽƐŽƌŝƐĐŽĚĞǀŝƐƵĂůŝnjĄ-
-la apenas como espaço onde a trama se desenvolve, mas ignoramos sua importân-
ĐŝĂĐŽŵŽĞůĞŵĞŶƚŽĞƐƐĞŶĐŝĂůƉĂƌĂŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘:ĄŶŽƐĂůĞƌƚĂƌĂ
António Lopes, ao abordar essa questão, que o espaço:
ƉƌĞƐĞŶƚĂͲƐĞ͕ũƵŶƚĂŵĞŶƚĞĐŽŵŽƚĞŵƉŽ͕ĐŽŵŽĂĐĂƚĞŐŽƌŝĂŶĂƌ-
ƌĂƟǀĂĚĞŵĂŝŽƌƌĞůĞǀŽƉĂƌĂĂĂŶĐŽƌĂŐĞŵĚĞƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞĂĐ-
ĕƁĞƐŶƵŵƵŶŝǀĞƌƐŽƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂůĚĂĚŽ͘EƵŵĂƋƵĂůƋƵĞƌŶĂƌƌĂƟǀĂ͕
ĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞƐƚĂďĞůĞĐĞŵƐĞŵƉƌĞƵŵĐŽŶũƵŶƚŽĚĞƌĞůĂĕƁĞƐİ-
ƐŝĐĂƐĞĂĨĞĐƟǀĂƐĐŽŵŽƐŽďũĞĐƚŽƐƋƵĞĐŽŵƉƁĞŵŽĞƐƉĂĕŽĮĐơĐŝŽ͕
ĨŽƌĕŽƐĂŵĞŶƚĞĚŝƐƟŶƚŽƐĚĂƋƵŝůŽƋƵĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŵ͘;>KW^͕ϮϬϭϮ )
KĞƐƉĂĕŽŶĆŽĂŐĞĐŽŵŽƐŝŵƉůĞƐĚĞƚĂůŚĞƉĂƌĂŝŶĐƌĞŵĞŶƚĂƌĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŵĂƐ
como importante elemento em sua composição. Atentamos, desse modo, para as
ĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕƁĞƐ ĚĞ DĂƌŝƐĂ DĂƌƟŶƐ 'ĂŵĂͲ<ŚĂůŝů͕ ƋƵĂŶƚŽ ĞƐƚĂ ĞŶƚƌĞůĂĕĂ ĂƐ ƌĞůĂĕƁĞƐ
ĞŶƚƌĞ Ž &ĂŶƚĄƐƟĐŽ Ğ ƐĞƵ ƵŶŝǀĞƌƐŽ ĮĐĐŝŽŶĂů͕ Ž ƋƵĂů ƐĞ ĂůŝŵĞŶƚĂ ĚŽ ĞƐƉĂĕŽ ǀŝǀŝĚŽ͕
tornando-se, assim, uma variante dele (GAMA-KHALIL, 2012, p. 30). Em uma nar-
ƌĂƟǀĂƋƵĞƉŽƐƐƵŝ͕ĞŶƚƌĞŽƵƚƌĂƐƉĂƌƟĐƵůĂƌŝĚĂĚĞƐ͕ĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽĚŽĞƐƉĂĕŽ͕ĞƐƐĂ
estratégia interfere profundamente em seu desenrolar. Veremos a obra como cons-
ƚƌƵĕĆŽʹŶĂƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂĨƵƌƚĂĚŝĂŶĂ;ϭϵϴϬͿʹ͕ĞŵƋƵĞŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽĚŽĞƐƉĂĕŽ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽʹŶĆŽƉƌĞƚĞŶĚĞŵŽƐĚŝƐƟŶŐƵŝƌŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽĚĞĮĐĐŝŽŶĂů͕ƵƟůŝnjĂŶĚŽĂŵďŽƐ
ŽƐƚĞƌŵŽƐ͕ŐĞŶĞƌŝĐĂŵĞŶƚĞ͕ĐŽŵŽƐŝŶƀŶŝŵŽƐʹƚŽŵĂƉĂƌƚĞŶĂĐƌŝĂĕĆŽͬĞƐƚĂďĞůĞĐŝŵĞŶ-
to da ambiguidade a ela inerente.
Em Vinte e zinco, temos um espaço onde realia e mirabilia interagem.
Podemos, desse modo ͕ƉĂƌĂĚĂƌĐŽŶƚĂĚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƌĞĐŽƌƌĞƌăƐƉĂůĂǀƌĂƐ
ĚĞhŵďĞƌƚŽĐŽ͕ƋƵĂŶĚŽĂĮƌŵĂƋƵĞ͞ŽůĞŝƚŽƌƉƌĞĐŝƐĂĂĐĞŝƚĂƌƚĂĐŝƚĂŵĞŶƚĞƵŵĂĐŽƌĚŽ
ĮĐĐŝŽŶĂů͟ Ğ ͞ƐĂďĞƌ ƋƵĞ Ž ƋƵĞ ĞƐƚĄ ƐĞŶĚŽ ŶĂƌƌĂĚŽ Ġ ƵŵĂ ŚŝƐƚſƌŝĂ ŝŵĂŐŝŶĄƌŝĂ͕ ŵĂƐ
ŶĞŵƉŽƌŝƐƐŽĚĞǀĞƉĞŶƐĂƌƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƚĄĐŽŶƚĂŶĚŽŵĞŶƟƌĂƐ͟;K͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϴϭͿ͘
Esse espaço – retornando à percepção de Furtado (1980) –, que mantém relação
ĐŽŵŽƚĞŵƉŽĚĞƐĚĞŽƉƌŝŶĐŝƉŝŽĚĂŽďƌĂ͕ŐƵŝĂŽůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽƉĞůŽƐďŽƐƋƵĞƐĮĐĐŝŽ-
ŶĂŝƐĚĞsŝůĂDŽĞďĂƐĞ͕ĚŝƐƚĂŶƚĞĚŽƐŐƌĂŶĚĞƐĐĞŶƚƌŽƐĞĐŽŶƀŵŝĐŽƐĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞĞ
ůŽĐĂůŝnjĂĚĂ͕ƐĞŐƵŶĚŽDŝĂŽƵƚŽ͕͞ĞŵƉůĞŶŽŵĂƚŽĂĨƌŝĐĂŶŽ͕ůĄŽŶĚĞŽƉĠĚĞďƌĂŶĐŽ
nunca assentou” (2004, p. 13).
A Vila age tanto como elemento de construção da manifestação do insóli-
ƚŽŶŽƚĞdžƚŽ͕ƋƵĂŶƚŽĂƚĞŶĚĞăƉĂƌƚĞĚŽƌĞƋƵŝƐŝƚŽĚĞŝŶƐƚĂƵƌĂĕĆŽĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĂŽ
ĞǀŽĐĂƌƵŵĞƐƉĂĕŽŚşďƌŝĚŽĞŝŶĚĞĮŶŝĚŽ͕ŽƋƵĂůĂƉĂƌĞŶƚĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌŽŵƵŶĚŽƌĞĂů
ŶƵŵĂŵďŝĞŶƚĞĐŽƟĚŝĂŶŽĞĨĂŵŝůŝĂƌ͕ĐŽŶƚĞŶĚŽŝŶĚşĐŝŽƐĚĂƉƌſƉƌŝĂƐƵďǀĞƌƐĆŽĚĞƐƚĞ
e deixando insinuar-se aos poucos (FURTADO, 1980, p. 133). Podemos avançar na
questão com outra observação de Gama-Khalil:
ŶƚĞŶĚĞŵŽƐƋƵĞŽĞƐƉĂĕŽĮĐĐŝŽŶĂůĠŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞŶĆŽƐſƉĂƌĂĂ
ISBN 978-85-8199-013-2 89
João Olinto Trindade Junior
interpretação de sua polissemia e a caracterização das persona-
ŐĞŶƐ͕ŽƵƉŽƌůŽĐĂůŝnjĂƌŽůĞŝƚŽƌŶŽƐŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐŶĂƌƌĂƟǀŽƐ͕ŵĂƐ
ĞƐƐĞŶĐŝĂůŵĞŶƚĞ ƉŽƌƋƵĞ͕ ƉĞůŽƐ ĞƐƉĂĕŽƐ ůŝƚĞƌĄƌŝŽƐ͕ ĂƐƐŝŵ ĐŽŵŽ
ƉĞůŽƐ ĞƐƉĂĕŽƐ ĐŽƟĚŝĂŶŽƐ͕ ƉŽĚĞŵŽƐ ĞŶƚĞŶĚĞƌ ŵĞůŚŽƌ ĂůŐƵŵĂƐ
ƚĄƟĐĂƐŝĚĞŽůſŐŝĐĂƐ͘;ϮϬϭϮď͕Ɖ͘ϮϮϮͿ
ŽŵŽũĄĚŝƐƐĞƌĂDĂƌŝĂ&ĞƌŶĂŶĚĂĨŽŶƐŽ͕ŽĞƐƉĂĕŽĠŽůƵŐĂƌŽŶĚĞƐĞĚĄ͕ŶŽ
ƉůĂŶŽĚĂĚŝĞŐĞƐĞ͕Ž͞ĞŶĐŽŶƚƌŽĚĞĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƌĞůĂƟǀĂƐăƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĞ
polos ĚŝƐƟŶƚŽƐĚĂĐŽŶĚŝĕĆŽ͗ŽƐŽŶŚŽĞĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϰϴͿ͘ŵVinte e zinco,
ŝŶĐŽƌƉŽƌĂŵͲƐĞĂƐŶƵĂŶĐĞƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞůƉŽƌƚƌĂŶƐŵŝƟƌ͕ĂŽůĞŝƚŽƌͲĐŽŵƵŵ͕
a percepção da transformação do meio ao seu redor e sua relação direta entre o
homem e o espaço no qual ele interfere, de lógica animista, que mescla elementos
do antes e do depois.
A obra de Mia Couto apresenta elementos dessa manipulação espacial dis-
cursiva, onde o fator incomum do meio – a sociedade moçambicana, surgida após
ůŽŶŐŽƐƉĞƌşŽĚŽƐĚĞŐƵĞƌƌĂƐʹƉƌĞĐŝƐĂƐĞƌĞŶĐĂƌĂĚŽĐŽŵŽŝŶĞƌĞŶƚĞăƐƵĂĐŽŶƐƟƚƵŝĕĆŽ͘
ŶŽƌŵĂůŝĚĂĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂŶĂŽďƌĂʹƐĞƵƐŚĂďŝƚĂŶƚĞƐ͕ŚŽŵĞŶƐ͕ĞůĞŵĞŶƚŽƐĐŽŶƐƟ-
ƚƵŝŶƚĞƐʹĠ͕ƉŽƌĚĞĮŶŝĕĆŽ͕ĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕ƐĞŶĚŽŝƐƐŽ͞ĂƌĞŐƌĂ͕ŶĆŽĂĞdžĐĞĕĆŽ͟;dKKZKs͕
ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϭϴϭͿ͘ůĞĂďŽƌĚĂĂƐŝŶĐŽŶƐŝƐƚġŶĐŝĂƐĚŽĐŽƟĚŝĂŶŽĞƐƵĂƐĐŽŶƚƌĂĚŝĕƁĞƐ͕ƋƵĞ
ĐĂƵƐĂŵƵŵĂƉĞƌƉůĞdžŝĚĂĚĞĂĐĞŝƚĂĞŶĆŽĚŝƐĐƵƟĚĂ͘ĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͕ŽĂƵƚŽƌĐŽŶĐĞďĞ͕Ğŵ
ƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐƌŝĂĕĆŽ͕ƵŵĐĞŶĄƌŝŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽĞŵƋƵĞŽƌĞĂůĞŽŶĆŽͲƌĞĂůĐŽŶ-
ǀŝǀĞŵ͕ĨĂǀŽƌĞĐĞŶĚŽĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĚŽŝŶƐſůŝƚŽĮĐĐŝŽŶĂů͘'ĂŵĂͲ<ŚĂůŝůƚƌĂƚĂĚĞƐƐĂ
ƋƵĞƐƚĆŽ͕ĂŽĂĮƌŵĂƌƋƵĞ͗
Ž ĞƐƉĂĕŽ ĮĐĐŝŽŶĂů ƉŽƐƐƵŝ ĂĚŵŝƌĄǀĞů ƌĞůĞǀąŶĐŝĂ ŶĂ ĐŽŶƐƟƚƵŝĕĆŽ
ĚĞƐĞŶƟĚŽƐĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂůŝƚĞƌĄƌŝĂ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞŽƐĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶ-
ƚŽƐĮĐĐŝŽŶĂŝƐƐſĐŽŶƐĞŐƵĞŵĞĚŝĮĐĂƌͲƐĞƉŽƌŝŶƚĞƌŵĠĚŝŽĚĞƵŵĂ
ůŽĐĂůŝnjĂĕĆŽ ƋƵĞ ůŚĞƐ Ěġ ƐƵƉŽƌƚĞ Ğ ƐĞŶƟĚŽ͘  ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂ ĚĂƐ
ĞƐƉĂĐŝĂůŝĚĂĚĞƐĮĐĐŝŽŶĂŝƐƉŽĚĞƐĞƌĞŶƚĞŶĚŝĚĂ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͕ƉŽƌ
ŵĞŝŽĚĞŶĂƌƌĂƟǀĂƐƋƵĞĂƉŽŶƚĂŵƉĂƌĂŽĚĞƐĞŶŚŽĞƐƉĂĐŝĂůĚĞƐĚĞ
ŽƐĞƵƟƚƵůŽ , como é o caso, por exemplo, de “a casa do girassol
vermelho”, de Murilo Rubião. (2012, p. 30)
Em Vinte e zinco, esse fundamento é encarnado, pois suas personagens deambulam
ĞŵƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞƋƵĞƚƌĂŶƐŝƚĂĞŶƚƌĞŽƌĞĂůĞŽŶĆŽͲƌĞĂůʹƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐĚĞİƐŝĐŽ
ĞŵĞƚĂİƐŝĐŽ͕ĞŵƉşƌŝĐŽĞŵĞƚĂĞŵƉşƌŝĐŽʹ͕ŶŽƋƵĂůŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĠƵŵĂƋƵĞƐƚĆŽƋƵĞ
emana de sua própria existência.
ƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂƐŚĂďŝƚĂŵƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞŇƵƚƵĂŶƚĞĞŶƚƌĞĐƌŝƐĞ
e esperança, em uma sociedade despedaçada por seguidas guerras, onde se faz
ŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂĂƌĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚŽĞƐƉĂĕŽĐĂƉĂnjĚĞĐŽŶĐŝůŝĂƌƵŵƉĂƐƐĂĚŽĞŵďƵƐĐĂĚĞ
ƵŵĨƵƚƵƌŽƉĂƌĂŐĂƌĂŶƟƌĂĞƐƚĂďŝůŝĚĂĚĞĚŽƉƌĞƐĞŶƚĞ͕ĚĞĨŽƌŵĂƋƵĞŽŝŶĚŝǀşĚƵŽƉƌĞ-
ĐŝƐĂƚƌĂnjĞƌăŵĞŵſƌŝĂĂƋƵŝůŽƋƵĞůŚĞĚĄĞƐƉĞƌĂŶĕĂ͘/ƌŽŶŝĐĂŵĞŶƚĞʹĂƚƌĂǀĠƐĚĂĂŵ-
ďŝŐƵŝĚĂĚĞĐŽŶƐƚƌƵşĚĂĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂʹ͕/ƌĞŶĞ͕ăŵĞĚŝĚĂƋƵĞƋƵĞƌĞƐƋƵĞĐĞƌ
DĂƌĐĞůŝŶŽ ƉĂƌĂ ƉĂƌĂƌ ĚĞ ƐŽĨƌĞƌ͕ Ɛſ ĞŶĐŽŶƚƌĂ ĂůĞŐƌŝĂ ĂŽ ƌĞůĞŵďƌĄͲůŽ͕ ĂŽ ƌĞĨĂnjĞƌ ŽƐ
ƉĂƐƐŽƐĚĞƋƵĂŶĚŽŽĂŵĂŶƚĞĞƌĂǀŝǀŽ͕ǀŝƐŝƚĂŶĚŽƐƵĂŽĮĐŝŶĂ͕ƐƵũĂŶĚŽͲƐĞĚĞſůĞŽ͞ƉĂƌĂ
90 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
fazer de conta que o outro ainda constava entre viventes” (COUTO, 2004, p. 58). Ela
ƉƌĞƐƚĂĂƐĚĞǀŝĚĂƐŚŽŵĞŶĂŐĞŶƐʹăŵĂŶĞŝƌĂĂĨƌŝĐĂŶĂʹĂŽŵƵůĂƚŽĞĂƐĞƵƟŽ;KhdK͕
2004, p. 57), transitando cada vez mais entre uma espacialidade Real-Naturalista –
através de sua herança na condição de branca-europeia-cristã – e animista – cada
vez mais assimilada com os saberes e poderes da terra.
Desse modo, o autor reage e denuncia os males de uma modernidade oci-
ĚĞŶƚĂůƋƵĞŶĆŽƌĞƐƉĞŝƚĂĂƐĐŽŵƉůĞdžŝĚĂĚĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĚĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞŚşďƌŝĚĂĞŵŽƐĂŝĐĂ
ĚĞDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ƚŽŵĂĚŽ͕ĂƋƵŝ͕ĐŽŵŽŵĞƚŽŶşŵŝĂĚĞƚŽĚŽŽĐŽŶƟŶĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶŽ͘
ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞƐƐĞĞƐƉĂĕŽŵĞƐƟĕŽĞŵşƟĐŽ͕ƋƵĞƉƌŽĐƵƌĂƐĞƌŽƵĠĐŽŶƐƚƌƵşĚŽĐŽŵŽ
ƉĂƚƌŝŵƀŶŝŽŚŝƐƚſƌŝĐŽʹĚĞĚĞŶƚƌŽĞĚĞĨŽƌĂʹ͕ŽĐŽƌƌĞ͕ĐŽŵŽĚŝnjŶĂDĂĨĂůĚĂ>ĞŝƚĞ͕ĚĂ
seguinte maneira:
As literaturas africanas emergentes procedem, de certa forma,
ĚŽŵĞƐŵŽŵŽĚŽ͖ƌĞĐŽƌƌĞŵĂŽƐƐĞƵƐƉƌſƉƌŝŽƐĞƐƉĂĕŽƐĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕
periféricos do ponto de vista do centro, em busca não de uma
ŵşƟĐĂŽƵƉƌĞƚĞŶƐĂ͞ĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͟ƉƌĠͲĐŽůŽŶŝĂů͕ŵĂƐĚŽŵĂƚĞƌŝĂů
ƉŽĠƟĐŽ ŶĂƟǀŽ͕ ƉĂƐƐĂĚŽ Ğ ƉƌĞƐĞŶƚĞ ;Ğ ƐƵũĞŝƚŽ ă ĚĞƐĐƌŝĕĆŽ Ğ ƌĞ-
ͲŽƌŝĞŶƚĂĕĆŽͿ͕ƋƵĞůŚĞƐŐĂƌĂŶƚĂĂ͞ŝŶǀĞŶĕĆŽ͟ĚĞƵŵĐĂŵƉŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ
ĚŝĨĞƌĞŶƚĞ͕ƐƵũĞŝƚŽăƌĞĐƵƉĞƌĂĕĆŽ͕ŝŶƚĞŐƌĂĕĆŽĞĞǀĞŶƚƵĂůŚŝďƌŝĚĂĕĆŽ
também de modelos outros, estrangeiros. (2012, p. 145-146)
K ƚĞŵƉŽ ʹ ĐĂƚĞŐŽƌŝĂ ƚĆŽ ĐĂƌĂ Ă ĞƐƐĂƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ ĂĨƌŝĐĂŶĂƐ ĐŽŶƚĞŵƉŽƌą-
ŶĞĂƐ͕ƋƵĞ͕ĞŵďƵƐĐĂĚĞƵŵĂĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ƐĞĚŝnjĞŵŚĞƌĚĞŝƌĂƐĚĞƵŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽ
oral, reinterpretando constantemente o mito na modernidade –, representado na
ŽďƌĂ͕ ƐĞũĂ ĚŽ ƉŽŶƚŽ ĚĞ ǀŝƐƚĂ ŚŝƐƚſƌŝĐŽ ʹ ƉŽƌ ĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞƌ ă ĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚĂ ĠƉŽĐĂ
em que passa a história, o período colonial, com seus acontecimentos marcantes
– ou cronológico – por apresentar a sequência dos dias que serão fundamentais
para entender a relação entre a Revolução dos Cravos e sua importância na vida
das personagens da obra – ou, ainda também, psicológico – “maneira pela qual o
ƚĞŵƉŽĠƐƵďũĞƟǀĂŵĞŶƚĞǀŝǀĞŶĐŝĂĚŽƉĞůĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐƋƵĞƉŽǀŽĂŵĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽ
ŵƵŶĚŽƉŽƐƐşǀĞů͟;DWdK͕ϮϬϭϮͿʹ͕ƌĞƐŐĂƚĂŽũŽŐŽƚĞdžƚƵĂůƵƟůŝnjĂĚŽĨƌĞƋƵĞŶƚĞ-
mente pelo escritor. Assim, se, por um lado, a novela avança cronologicamente –
ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐ͕ĚĂƚĂƐĞŚŽƌĄƌŝŽƐʹ͕ĞůĂƌĞƚŽƌŶĂ͕ƐĞŐƵŝĚĂƐǀĞnjĞƐ͕ƉƐŝĐŽůŽŐŝĐĂŵĞŶƚĞ͕
ao passado das personagens para explicar melhor suas relações com Vila Moebase
e rever o registro histórico.
Em Vinte e zinco͕ Ž ŶĂƌƌĂĚŽƌ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ ĐŽƐƚƵƌĂ͕ ĂƚƌĂǀĠƐ ĚŽ ĞŶƌĞĚŽ͕ ĂƐ
ações das personagens no tempo e no espaço. Embora possua todos os elementos
apreciados em sua literatura, como o forte animismo das personagens, os neolo-
gismos e a ambiguidade inerente a cada capítulo , fruto do espaço aberto para a
polifonia transcultural (CHIAMPI, 1980, p. 128), essa obra é muito pouco estudada
ƉĞůŽƐĐƌşƟĐŽƐ;t/>>/D^͕ϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϭϲϴͿ͘
Mesmo tratando da tortura sofrida pelos guerrilheiros durante a guerra de
libertação, Mia Couto – que declara ter aceitado a tarefa de escrever para a Coleção
͞ĂŵŝŶŚŽƐĚĞďƌŝů͕͟ĚĞƐĚĞƋƵĞƟǀĞƐƐĞůŝďĞƌĚĂĚĞĐŽŵŽďĞŵĞŶƚĞŶĚĞƐƐĞ;ϮϬϬϱ͕Ɖ͘
ISBN 978-85-8199-013-2 91
João Olinto Trindade Junior
58) – aproveita e brinca com a simbologia do 25 de Abril, contando uma história –
ou, em suas palavras, “estória” – que mostra um outro 25, uma outra versão que
propõe ser manifestada por outras vozes. Dessa forma, ele faz uma interpretação
͞ŵĞŶŽƌ͟ʹĚĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐĚĞ'ŝůůĞƐĞůĞƵnjĞĞ&Ġůŝdž'ƵĂƩĂƌŝ;ϮϬϬϯͿ
ʹĚĞƐƐĞĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽŚŝƐƚſƌŝĐŽ͕ƉĞƌŵŝƟŶĚŽͲŶŽƐĐŽŶŚĞĐĞƌĂƐŝƚƵĂĕĆŽƐŽĐŝŽƉŽůşƟĐĂ
ůŽĐĂůĂƉĂƌƟƌĚĞŽƵƚƌĂƐǀŝƐƁĞƐ͕ŶĂǀŽnjĚĞŽƵƚƌŽƐƐƵũĞŝƚŽƐ͕ĂŶƚĞƐƐŝůĞŶĐŝĂĚŽƐ͘
Ao apresentar aspectos mais elementares daquele período, Mia Couto cons-
trói o discurso em nome de uma minoria – os colonizados, maioria numérica, po-
ƌĠŵ͕ŵŝŶŽƌŝĂƐŽĐŝŽͲƉŽůŝƟĐŽͲĞĐŽŶƀŵŝĐĂ –, mas em uma língua “maior” – a do colo-
nizador, ainda que em minoria numérica –, mostrando outra faceta do escritor: não
ĂĚŽĚĞĨĞŶƐŽƌĚĂĐƵůƚƵƌĂĚĂƚĞƌƌĂ͕ŵĂƐŽĚĞƵŵĨĞƌŽnjĐƌşƟĐŽĚĞĞǀĞŶƚŽƐǀĞƌŐŽŶŚŽƐŽƐ
na história do Império Português. Tal como Camões cantou as bravuras de Vasco da
Gama, que, “por mares nunca dantes navegados” (CAMÕES, 1979, p. 29), leva, até o
outro lado do mundo, a cristandade e a glória lusitana, Mia Couto, “por vozes nunca
dantes escutadas”, permite-nos uma outra leitura da Revolução dos Cravos, desde a
experiência vivida em Moçambique, naquele momento.
^ĞŶĚŽŽϮϱĚĞďƌŝůĐŽŵĞŵŽƌĂĚŽĚĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵŽƐƌĞŐŝƐƚƌŽƐŽĮĐŝĂŝƐ͕ĐƵũĂ
ŵĂŶƵƚĞŶĕĆŽĠĨĞŝƚĂƉŽƌŝŶƐƟƚƵŝĕƁĞƐƌĞĐŽŶŚĞĐŝĚĂŵĞŶƚĞĚĞĚŝƌĞŝƚŽ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƐĞŐƵĞ
o caminho inverso, mesclando o que é conhecido e preenchendo as lacunas com
relatos de indivíduos fora do poder. Essa estratégia é frequente não apenas em seus
textos, mas na literatura que se diz herdeira da tradição oral, onde histórias conta-
das entre grupos étnicos são transportadas para outra tradição – a da escrita. Com
ďĂƐĞŶĞƐƐĂŽďƐĞƌǀĂĕĆŽ͕ĠƌĞůĞǀĂŶƚĞƌĞŇĞƟƌƐŽďƌĞĂŽƉŝŶŝĆŽĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌĂĐĞƌĐĂĚĞƐƐĂ
ĚĂƚĂʹϮϱĚĞďƌŝůʹ͕ƋƵĞ͞ĨŽŝƌĞĐĞďŝĚĂĞŵDŽĕĂŵďŝƋƵĞĐŽŵƵŵƐĞŶƟŵĞŶƚŽŵĞƐĐůĂ-
ĚŽĚĞĂůĞŐƌŝĂĞĂƉƌĞĞŶƐĆŽ΀͘͘͘΁ĂĂůĞŐƌŝĂŐĞŶƵşŶĂĚŽƐƋƵĞƐŽĨƌĞƌĂŵĂĚƵƉůĂĐĂƌŐĂĚŽ
fascismo e do colonialismo” (COUTO, 2005, p. 51).
hŵĂĚĂƐʹǀĄƌŝĂƐʹůĞŝƚƵƌĂƐĚĞVinte e zinco permite, dessa forma, vislum-
ďƌĂƌ͕ƉĞůŽǀŝĠƐĚĂŵĞƚĂĮĐĕĆŽŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĄĮĐĂ͕ƵŵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŽƋƵĞƉŽĚĞƌŝĂƚĞƌ
ĂĐŽŶƚĞĐŝĚŽ͘ZĞĐŽƌƌĞŶĚŽĂŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽʹĂƚƌĂǀĠƐĚĂŝƌƌƵƉĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽĂŽůŽŶŐŽĚĂ
ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƉĞƌŵŝƚĞ͕ĂƐƐŝŵ͕ƵŵĂŵĞůŚŽƌƉĞƌĐĞƉĕĆŽĚĂƋƵĞůĞƉĞƌşŽĚŽŚŝƐƚſƌŝĐŽʹ͕ĞƐƐĂ
ǀĞƌƚĞŶƚĞƐĞǀĂůĞĚŽŝŶĐŽŵƵŵ͕ĚŽŝŶƵƐƵĂů͕ĚŽ͞ŝŶƐŽĞƌ͟ƉĂƌĂƋƵĞƐƟŽŶĂƌĂŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĂ-
ĮĂƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůĞŽĮĐŝĂů͘
ŽŵŽĂĮƌŵĂ>ŝŶĚĂ,ƵƚĐŚĞŽŶ͕ĂWſƐͲDŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞĐŽŶƚĞƐƚĂŽƉĂƐƐĂĚŽ͕ŶĆŽ
ŽĚĞƐƚƌƵŝŶĚŽ͕ŵĂƐŽůŚĂŶĚŽͲŽĚĞĨŽƌŵĂĐƌşƟĐĂ;ϭϵϵϭ͕Ɖ͘ϭϰϮͿ͘ĂƚƌĂǀĠƐĚĂŵĞƚĂĮĐ-
ĕĆŽŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĄĮĐĂƋƵĞĞůĞʹŽĞƐĐƌŝƚŽƌʹŶĆŽĂƐƉŝƌĂĐŽŶƚĂƌĂǀĞƌĚĂĚĞƚĂŶƚŽƋƵĂŶƚŽ
contar a história de alguém, aproveitando-se das vozes silenciadas para construir
ƐĞƵĚŝƐĐƵƌƐŽ͘ŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚŽƋƵĞĂĐŽůĞĕĆŽ͞ĂŵŝŶŚŽƐĚĞďƌŝů͟ʹƋƵĞƉƌŽƉƀƐĂ
Mia Couto a publicação – pretendia divulgar, que seriam as glórias da Revolução dos
ƌĂǀŽƐ͕ĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐŶĆŽƉŽĚŝĂŵƉĞƌĮůĂƌƐƵĂƐǀŽnjĞƐĐŽŶũƵŶƚĂŵĞŶƚĞ͕
pois não ganharam sua independência com a queda do regime salazarista, ou me-
ůŚŽƌ͕ŶĆŽŽďƟǀĞƌĂŵ͕ĐŽŵŽŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐƐĞƌĞĨĞƌŝĂŵ͕ĂĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽ͘
DŝĂŽƵƚŽĞǀĄƌŝŽƐŽƵƚƌŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĐŚĂŵĂŵĂƋƵĞůĞŵŽŵĞŶƚŽĚĞŐƵĞƌƌĂĐŽ-
92 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
lonial, indo contra o pressuposto de que os portugueses foram os únicos atores polí-
ƟĐŽƐĚĂŝŶĚĞƉĞŶĚġŶĐŝĂĚĂƐĐŽůƀŶŝĂƐ͕ƋƵĂŶĚŽĂŐƵĞƌƌĂĨŽŝ͕ĚĞĨĂƚŽ͕ƵŵĂůƵƚĂĚĂƋƵĞůĞƐ
ƉŽǀŽƐƉŽƌƐƵĂĞŵĂŶĐŝƉĂĕĆŽƉŽůşƟĐĂ͕ĐƵůƚƵƌĂů͕ĞĐŽŶƀŵŝĐĂĨƌĞŶƚĞăŶĂĕĆŽƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͕
ĞŶĆŽĂƉĞŶĂƐĐŽŶƚƌĂŽƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͘ƐƐĂŝŶĐŽĞƌġŶĐŝĂĮĐĂĞdžƉůşĐŝƚĂŶĂĚĞŶƷŶĐŝĂ
que o autor faz acerca do processo de produção da obra:
Em 1994 a minha editora em Portugal quis comemorar os 20
anos do 25 de Abril. Pediram-me um texto para um livro. Eu
ƌĞƐŝƐƟ͘ĞdžƉůŝƋƵĞŝͲŵĞ͗ŽŶŽƐƐŽϮϱĞƌĂŽƵƚƌŽ͕ĂŶŽƐƐĂĨĞƐƚĂŵĂŝŽƌ
ĞƌĂŽƵƚƌĂ͘ƟǀĞƋƵĞƌĞƉĞƟƌĂĞdžƉůŝĐĂĕĆŽƉĂƌĂǀĄƌŝŽƐſƌŐĆŽƐĚĞ
informação portugueses. Nem sempre fui bem entendido. Havia
ĂƋƵĞůĞƐƋƵĞĮĐĂǀĂŵŵĂŐŽĂĚŽƐĞůĞǀĂǀĂŵĂƉĞŝƚŽ͘ĐƌĞĚŝƚĂǀĂŵ
ƋƵĞŚĂǀŝĂŶĂŵŝŶŚĂƌĞƐĞƌǀĂƵŵĂƉŽŶƚĂĚĞƌĞƐƐĞŶƟŵĞŶƚŽ͘DĂƐ
não. Não se pode pretender que os povos africanos reajam da
mesma maneira que os portugueses face à celebração do 25 de
Abril. Aquela festa também é nossa, é verdade. E celebramo-la,
com o respeito de quem não é dono da festa, mas apenas con-
vidado. Também nós esperamos que os portugueses celebrem
a festa da independência do mesmo modo como nós o fazemos.
De qualquer forma, escrevi o romance e chamei-o de Vinte e
zinco͕ ŝŶĨĞůŝnjŵĞŶƚĞ Ġ ĚŝİĐŝů ƋƵĞ ƚƌĂĚƵĕƁĞƐ ƉĂƌĂ ŽƵƚƌĂƐ ůşŶŐƵĂƐ
ŐƵĂƌĚĞŵĂƌĞŝŶǀĞŶĕĆŽůĞdžŝĐĂůŽƉĞƌĂĚĂĞŵƉŽƌƚƵŐƵġƐ͘KũŽŐŽĚĞ
palavras em português marca, porém, o distanciamento de dois
universos que olham de forma diversa uma mesma efeméride.
KƐƋƵĞǀŝǀŝĂŵŶŽƐďĂŝƌƌŽƐĚĞnjŝŶĐŽ;ŽƐƐƵďƷƌďŝŽƐƉŽďƌĞƐͿĮnjĞ-
ƌĂŵĨĞƐƚĂƚŽƚĂůŶŽĚŝĂϮϱĚĞũƵŶŚŽĚĞϭϵϳϱ͕ĚĂƚĂĚĂŝŶĚĞƉĞŶ-
dência nacional. Sorriram no 25 de Abril de 1974 mas cantaram
e dançaram no 25 de Junho de 1975. Mesmo que, na altura,
lhes pesassem a leve suspeita de que a libertação da miséria é
ƵŵƉƌŽĐĞƐƐŽƋƵĞĚĞŵŽƌĂĂŝŶĚĂǀĄƌŝĂƐŐĞƌĂĕƁĞƐ͘;KhdK͕ϮϬϬϱ͕
p. 58 – grifo nosso)
WĂƌĂĞdžĞŵƉůŝĮĐĂƌƐĞƵƉŽŶƚŽĚĞǀŝƐƚĂʹĂƉŽůŝĨŽŶŝĂŝŶĞƌĞŶƚĞăƐƵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ
–, o núcleo principal da trama em Vinte e zinco é composto pela família Castro,
ĨŽƌŵĂĚĂ ƉŽƌ >ŽƵƌĞŶĕŽ ĚĞ ĂƐƚƌŽ͕ DĂƌŐĂƌŝĚĂ ʹ ŵĆĞ ĚĞ >ŽƵƌĞŶĕŽ ʹ͕ /ƌĞŶĞ ʹ ƟĂ ĚĞ
Lourenço e irmã de Margarida – e pelo pintor agregado da família, o negro cego
Andaré Tchuvisco.
Como agente da PIDE, Lourenço segue os passos de seu pai, Joaquim de
Castro, também agente da PIDE, que, ao empurrar alguns presos, em um helicópte-
ro em voo, para a morte certa em alto mar, é arrastado por eles, morrendo. A morte
é suposta, uma vez que não houve corpo para ser enterrado, tampouco o som do
ĐŚŽƋƵĞĚŽĐŽƌƉŽĐŽŶƚƌĂŽŵĂƌĚŝĂŶƚĞĚŽƐŽůŚŽƐĚŽĮůŚŽ͕ƋƵĞĂƚƵĚŽĂƐƐŝƐƚĞ͕ŝŵƉĂƐƐş-
ǀĞů͕ƐĞŵĐŽŶƐĞŐƵŝƌĨĂnjĞƌŶĂĚĂƉĂƌĂƐŽĐŽƌƌĞƌŽƉĂŝ͘KĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽĠĞŵďůĞŵĄƟĐŽ
para toda a vida de Lourenço, como se percebe:
Referia-se, todos sabiam, à morte de seu pai, Joaquim de Castro.
ůĞĂƐƐŝƐƟƌĂĂƚƵĚŽŶŽŚĞůŝĐſƉƚĞƌŽ͘KƉĂŝĞƐƚĂǀĂĨĂƌĚĂĚŽĞŵĂŶ-
ƟŶŚĂͲƐĞĚĞƉĠ͕ůƵƚĂŶĚŽĐŽŶƚƌĂŽďĂůĂŶĕŽ͘^ĞƵƐŐƌŝƚŽƐ͕ĄƐƉĞƌŽƐ͕
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João Olinto Trindade Junior
sobrepunham-se ao ruído do motor. Mandava que os presos, de
mãos atadas, se chegassem à porta aberta do aparelho. Depois,
com um pontapé ele os fazia despenhar sobre o oceano.
Daquela vez, o pai decidira que Lourenço o devia acompanhar
ƉĂƌĂǀĞƌĞƐƐĞĞƐƉĞƚĄĐƵůŽ͘ŝnjŝĂ͗ĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐĚĂƋƵĞůĂƐĠƋƵĞĞŶ-
durecem o verdadeiro homem.
ʹsŽĐġǀĂŝǀĞƌ͕ĮůŚŽ͗ŽƐĐĂďƌƁĞƐĞƐďƌĂĐĞũĂŵŶŽĂƌĐŽŵŽƐĞƋƵŝ-
sessem ganhar asas.
ŶŝĐŚĂĚŽŶŽĐĂŶƚŽĚŽĂƉĂƌĞůŚŽ͕>ŽƵƌĞŶĕŽƐŽĨƌŝĂĚĞĞŶũŽŽ͘DĂƐ
ele não podia confessar essa fraqueza quase feminina. Passava-
se ali prova tão macha e ele esverdeava, na iminência do vómito?
Forte, ser forte que os fracos não gozam a História. Palavras do
ǀĞůŚŽĂƐƚƌŽĞƐĐŽŶũƵƌĂŶĚŽŽƐŵŝŵŽƐĚĞDĂƌŐĂƌŝĚĂ͘DĂƌŝƋƵŝĐĞƐ͕
ŝƐƐŽĠƋƵĞĚĄĐĂďŽĚĞƵŵŚŽŵĞŵ͘>ŽƵƌĞŶĕŽĂŶƐŝĂǀĂĐŽŵƉƌŽǀĂƌ
suas habilidades para bravezas. Por isso, ali no helicóptero, ele
se esforçava por não dar parte do frouxo.
De repente, um emaranhado de pernas se cruzou em redor de
Joaquim de Castro. Como tesouras de carne os membros inferio-
res dos presos enredaram o corpo do português. Os prisioneiros
lutavam, arrumados em prévia combinação. Cairiam eles, mas o
ĂƐƚƌŽŝƌŝĂũƵŶƚŽ͘KƉŽƌƚƵŐƵġƐŐƌŝƚŽƵ͕ƉĞĚŝƵĂũƵĚĂĂŽĮůŚŽ͘DĂƐ
ĞƐƚĞŶĞŵƐĞŵĞdžĞƵ͘KůŚŽƐĞƐďƵŐĂůŚĂĚŽƐ͕ǀŝƵŽƉĂŝƐĞƌĞũĞĐƚĂĚŽ
ĚŽŚĞůŝĐſƉƚĞƌŽ͘^ƷďŝƚŽ͕ůŚĞƉĂƌĞĐĞĞĐůŽĚŝƌƵŵƉĄƐƐĂƌŽ͕ĐŽŵƉŽƐƚŽ
em asas e plumas. Mas nada tombara sobre o mar. Flutuavam
penas dispersas como saídas de um buraco de nuvem. Essas plu-
mas embaladas em hesitante brisa eram a única memória que
lhe restara daquele momento. (COUTO, 2004, p. 20-22)
EĞƐƐĞǀŽŽ͕ŽƉĂŝƟŶŚĂŽŝŶƚƵŝƚŽĚĞĚĂƌͲůŚĞ͞ĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐƋƵĞĞŶĚƵƌĞĐĞŵŽǀĞƌĚĂ-
deiro homem” (COUTO, 2004, p. 21), que se transformariam nos alicerces, pilares,
símbolos e referenciais da vida que Lourenço seguiria. Se, antes, nas palavras do pai,
ŽĮůŚŽĞƐƚĂǀĂăŵĞƌĐġĚŽƐŵŝŵŽƐĚĞDĂƌŐĂƌŝĚĂ͕ĂƉſƐĞƐƐĞĞƉŝƐſĚŝŽ͕ĞůĞĂƐƐƵŵĞĂ
representação do velho Castro, encarnando-a daí para diante.
ĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵLJŐŵƵŶƚĂƵŵĂŶ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞĂĐŽŶƐĐŝġŶĐŝĂĚĞƉĞƌƚĞŶĐŝ-
ŵĞŶƚŽĞŝĚĞŶƟĚĂĚĞĂͬĐŽŵĂůŐŽŶĆŽĠƵŵĂĐŽŝƐĂŐĂƌĂŶƟĚĂƉĂƌĂĂǀŝĚĂƚŽĚĂ͕ƉŽĚĞŶ-
ĚŽƐĞƌŝŶĐůƵƐŝǀĞŶĞŐŽĐŝĄǀĞůĂƐƵĂŵƵĚĂŶĕĂ͕ƐĆŽĂƐĚĞĐŝƐƁĞƐ͕ŽƐĐĂŵŝŶŚŽƐĞĂŵĂŶĞŝƌĂ
como um indivíduo age que são os “fatores cruciais tanto para o pertencimento
ƋƵĂŶƚŽƉĂƌĂĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͟;ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϭϳͿ͘ƐĂƟƚƵĚĞƐĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽŽĚĞĮŶŝƌĆŽĐŽŵŽ
ŽơƉŝĐŽƉŽƌƚƵŐƵġƐƋƵĞĚĞĨĞŶĚĞĂƐŐůſƌŝĂƐĚĂƉĄƚƌŝĂůƵƐŝƚĂŶĂŶŽĂůĠŵͲŵĂƌ͕ĂƐƐƵŵŝŶ-
ĚŽƉĂƌĂƐŝŽƐǀĂůŽƌĞƐŝĚĞŶƟƚĄƌŝŽƐĚĞƐĞƵƉĂŝƋƵĞ͕ƉŽƌĞdžƚĞŶƐĆŽ͕ĞƌĂŵŽƐĚŽƐƚĂĚŽ
ƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͕ŝŵĂŐĞŵĚĞƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞŶĂĐŝŽŶĂůĐŽŶƐƚƌƵşĚĂƉŽƌƵŵƐƚĂĚŽƋƵĞĞdžŝ-
ŐŝĂĂĚĞƐĆŽŝŶĞƋƵşǀŽĐĂĞĮĚĞůŝĚĂĚĞĞdžĐůƵƐŝǀĂ͕ŶĆŽĂĚŵŝƟŶĚŽĐŽŵƉĞƟĚŽƌĞƐ͕ŵƵŝƚŽ
menos opositores (BAUMAN, 2005, p. 28). Segundo Homi Bhabha, o Estado atua
͞ŶŽ͚ƚĞŵƉŽǀĂnjŝŽŚŽŵŽŐġŶĞŽ͛ĚŽWŽǀŽͲĐŽŵŽͲhŵƋƵĞĮŶĂůŵĞŶƚĞƉƌŝǀĂĂƐŵŝŶŽƌŝĂƐ
ĚĂƋƵĞůĞƐĞƐƉĂĕŽƐŵĂƌŐŝŶĂŝƐ͕ůŝŵŝŶĂƌĞƐ͕ĂƉĂƌƟƌĚŽƐƋƵĂŝƐĞůĞƉŽĚĞŝŶƚĞƌǀŝƌŶŽƐŵŝƚŽƐ
fundadores e totalizadores da cultura nacional” (1998, p. 344).
ŝĨĞƌĞŶƚĞĚĞƵŵƌŽŵĂŶĐĞŚŝƐƚſƌŝĐŽ͞ƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂů͟ʹŽƵƐĞũĂ͕ŶŽƐŵŽůĚĞƐĚŽ
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No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƐĠĐƵůŽy/y͕ĐŽŵƉƌŽŵĞƟĚŽĐŽŵŽƐŝƐƚĞŵĂůŝƚĞƌĄƌŝŽZĞĂůͲEĂƚƵƌĂůŝƐƚĂʹ͕ŽƚĞdžƚŽĚĞDŝĂ
Couto pode ser interpretado como um romance histórico pós-moderno – ou, antes
ĂŶƚĞĐŝƉĂĚŽƉŽƌŶſƐ͕ĐŽŵŽƵŵĂǀĞƌƚĞŶƚĞĚĂŵĞƚĂĮĐĕĆŽŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĄĮĐĂʹ͕ĂƉƌŽǀĞŝƚĂŶ-
ĚŽͲƐĞŶĆŽĂƉĞŶĂƐĚĞǀĞƌƐƁĞƐĚĂŚŝƐƚſƌŝĂŽĮĐŝĂů͕ŵĂƐ͕ƚĂŵďĠŵ͕ĚĞǀĞƌƐƁĞƐŶĆŽŽĮ-
ĐŝĂŝƐ͘hƟůŝnjĂŶĚŽͲƐĞĚĞƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĚĂĠƉŽĐĂƉĂƌĂĚĂƌǀĞƌŽƐƐŝŵŝůŚĂŶĕĂăŶĂƌƌĂƟǀĂ͕
ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƌĞǀŝƐŝƚĂŽƉĂƐƐĂĚŽĞŽƌĞƐƐĞŵĂŶƟnjĂ͗ĚŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚĂŐůſƌŝĂĚŽŐƌĂŶĚĞ
ĞǀĞŶƚŽƋƵĞŝŶĂƵŐƵƌĂĂůƵƐŽĨŽŶŝĂ;s>Ed͕ϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϭϮϳͲϭϮϴͿ͕ƐƵĂŶĂƌƌĂƟǀĂĞdžƉůŝĐŝƚĂ
a sensação de abandono e desgarramento dos portugueses no além-mar.
KƐĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐƋƵĞĞůĞƌĞƐŐĂƚĂĞŵƐƵĂŶĂƌƌĂƟǀĂƚŽƌŶĂŵͲƐĞĨĂƚŽƐʹŽƵ
ƐĞũĂ͕ƐĆŽĂƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽƐĐŽŵŽĨĂƚƵĂŝƐ͕ŶŽƵŶŝǀĞƌƐŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ůŽŐŽ͕ƚŽŵĂĚŽƐĐŽŵŽ
reais –, simplesmente por serem contados. Em culturas de tradição oral, o velho é
o transmissor do conhecimento e, quando conta uma história, não apenas a repe-
ƚĞ͕ŵĂƐƌĞŵĞŵŽƌĂ͕ƌĞǀŝƐŝƚĂŶĚŽŽƉĂƐƐĂĚŽƉĂƌĂƌĞǀŝǀġͲůŽŶŽƉƌĞƐĞŶƚĞ͘EĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕
ĞƐƐĞƉĂƐƐĂĚŽĐŽůŽŶŝĂůĚĞĚŽƌĞƐŽĨƌŝŵĞŶƚŽƉĂƐƐĂĂĞdžŝƐƟƌĞŶƋƵĂŶƚŽŽŶĂƌƌĂĚŽƌǀĂŝ
recriando-o no presente, de acordo com sua necessidade, pelas perguntas feitas
aos acontecimentos (HUTCHEON, 1991, p. 162).
Ao expressar um ponto de vista “menor”, Mia Couto informa-nos sobre ou-
tras possibilidades de leitura do ocorrido, apresentando-nos questões “maiores”,
ĐŽŵŽĂĨƌĂŐŝůŝĚĂĚĞĚŽŝŵƉĠƌŝŽůƵƐŝƚĂŶŽ͕ŽŶĚĞŽ͞ŵĞŶŽƌ͟ʹĂĐŽůƀŶŝĂʹŝŶĨŽƌŵĂƐŽďƌĞ
Ž͞ŵĂŝŽƌ͟ʹĂŵĞƚƌſƉŽůĞ͘KĚĞƐŐĂƐƚĞĐŽŵĂŐƵĞƌƌĂĐŽůŽŶŝĂůʹƵŵĚŽƐŵŽƟǀŽƐƋƵĞ
envolve a Revolução dos Cravos –, a ponto de haver um canhão na entrada de uma
ŝŐƌĞũĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϴͿ͕ĚĞŵŽŶƐƚƌĂŽƐĞdžƚƌĞŵŽƐƋƵĞĂŵĞƚƌſƉŽůĞĞŶĨƌĞŶƚĂǀĂ͕
em uma vila isolada, que pouco sabia do que acontecia no resto do mundo.
Negando o pensamento da “descolonização”, Mia Couto posiciona-se, ao
ĂĮƌŵĂƌƋƵĞ͞ŶĆŽƐĞƉŽĚĞƉƌĞƚĞŶĚĞƌƋƵĞŽƐƉŽǀŽƐĂĨƌŝĐĂŶŽƐƌĞĂũĂŵĚĂŵĞƐŵĂŵĂ-
neira que os portugueses face à celebração do 25 de Abril” (COUTO, 2005, p. 58). O
escritor, na fala da personagem Jessumina, acerca dessa ocorrência – menor em sig-
ŶŝĮĐĂĚŽƉĂƌĂŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐ͕ŵĂƐŵĂŝŽƌƉĂƌĂŽƐDŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐʹ͕ƚƌĂƚĂŶĚŽĚĞƵŵ
outro 25, apresenta vozes anteriormente suprimidas, que contam outras histórias.
A Casa dos Castro e o quintal
DŝĂ ŽƵƚŽ ƌĞĐŽƌƌĞ Ă ƚĠĐŶŝĐĂƐ ƋƵĞ ůŚĞ ƉĞƌŵŝƚĞŵ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌ͕ ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶ-
te, a coexistência entre o real e os elementos insólitos de sua cultura, que (tenta)
ƚƌĂĚƵnj;ŝƌͿ͕ĐƌŝĂŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕ƵŵĂŵďŝĞŶƚĞŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽͬĂŶŝŵŝƐƚĂƋƵĞĨĂnjƉĂƌƚĞĚŽĐŽƟ-
diano moçambicano.
Às vésperas da Revolução dos Cravos, golpe que derrubaria, em 25 de Abril
de 1974, o regime salazarista, as personagens de Vila Moebase presenciam o perí-
odo de transição entre dois momentos, entre a exposição da fragilidade do estado
ůƵƐŝƚĂŶŽĞĂƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞƐƵƌŐŝŵĞŶƚŽĚĞŽƵƚƌŽ͕ĂŽƐŵŽůĚĞƐĚŽƉŽǀŽĚĂƚĞƌƌĂ͘
ŶĞƐƐĞĞƐƉĂĕŽƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌʹƋƵĞƐĞĚĞĮŶĞĐŽŵŽƵŵƐĞƌĞŶƚƌĞŵĂƌŐĞŶƐĞĨƌŽŶƚĞŝ-
ISBN 978-85-8199-013-2 95
João Olinto Trindade Junior
ƌĂƐ͕ƉĞƌƚĞŶĐĞŶƚĞĂŵƷůƟƉůĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĞŵŵĞŝŽĂƵŵŵŽƐĂŝĐŽĐƵůƚƵƌĂůʹĞdžƉƁĞĂ
ŵĞƐƟĕĂŐĞŵĐƵůƚƵƌĂůĞĂŝŵƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƉƵƌĂ͘
 ŶĂƌƌĂƟǀĂ ŶŽƐ ƉĞƌŵŝƚĞ ƌĞĂůŝnjĂƌ ƵŵĂ ʹ ĚĞŶƚƌĞ ǀĄƌŝĂƐ ʹ ůĞŝƚƵƌĂ ĚĞ Ƶŵ ĚŽƐ
ĐŽŶĨƌŽŶƚŽƐ ŵĂŝƐ ƐŝŐŶŝĮĐĂƟǀŽƐ ƉĂƌĂ Ă ŝĚĞŶƟĚĂĚĞ ŶĂĐŝŽŶĂů͗ Ž ĐŚŽƋƵĞ ĐŽŵ Ž outro.
Quando confrontado por eventos insólitos, em espaços de lógica animista e contra-
ͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂ͕ŽŚŽŵĞŵŵŽĚĞƌŶŽƐĞĚĄĐŽŶƚĂĚĞƐƵĂǀƵůŶĞƌĂďŝůŝĚĂĚĞ͕ƚĞŶĚŽŽĞƐƚƌĂ-
ŶŚĂŵĞŶƚŽĐŽŵŽƌĞĂĕĆŽƉƌŝŵĄƌŝĂĨƌĞŶƚĞĂŽĚĞƐĐŽŶŚĞĐŝĚŽ͘ŶĂŽŶƚĞŵƉŽƌĂŶĞŝĚĂĚĞ
que, diante de mudanças e desconstruções, o homem se vê confrontado diaria-
mente com os medos produzidos por uma modernidade líquida, na qual “a frus-
tração das esperanças acrescenta ao dano da insegurança o insulto da impotência”
(BAUMAN, 2008, p. 170), de maneira que eventos ditos normais têm a capacidade
ĚĞƌĞƐŐĂƚĂƌƵŵƐĞŶƟŵĞŶƚŽĚĞĂŶŐƷƐƟĂĞĚĞƐĞƐƉĞƌŽ͘
dĞŶĚŽĐŽŵŽƉŽŶƚŽĚĞƉĂƌƟĚĂŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐĚĞƐƐĞĐŽŶĨƌŽŶƚŽ͕ŽůĞŝƚŽƌͲŵŽ-
ĚĞůŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ͕ŶĞƐƐĞĞƚĞƌŶŽũŽŐŽĚĞůĞŝƚƵƌĂƐĞƌĞůĞŝƚƵƌĂƐ͕ĞŶĐŽŶƚƌĂĞĞdžƉĞƌŝĞŶĐŝĂ
a ambiguidade das personagens – construídas, via poiesis, pelo autor real para rea-
ůŝnjĂƌĂƐƐĞŵŝŽƐĞƐĚŽŝŶƐſůŝƚŽʹ͕ĞŵƵŵĂĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƵƟůŝnjĂĚĂ͕ĚĞĂŶƚĞŵĆŽ͕ƉĞůŽĂƵƚŽƌ-
ͲŵŽĚĞůŽ͕ƉĂƌĂŐƵŝĄͲůŽ;K͕ϭϵϵϰ͕Ɖ͘ϮϭͿ͘
ĂƚƌĂǀĠƐĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽƋƵĞĐŽŶŚĞĐĞŵŽƐĂW/ĞĂǀŝƐĆŽƋƵĞƐĞƵƐ ĂŐĞŶƚĞƐ
ƚġŵĚĞŵĄdžŝŵŽƐĚĞĨĞŶƐŽƌĞƐĚĂƉĄƚƌŝĂ͘KĐŚĞĨĞĚŽƐĂƐƚƌŽŐůŽƌŝĮĐĂƵŵWŽƌƚƵŐĂůƋƵĞ
ŶĆŽ ĞdžŝƐƚĞ͕ ĐƌĠĚƵůŽ Ğŵ ƵŵĂ ƌĞĂůŝĚĂĚĞ ĂůŚĞŝĂ ă ƋƵĞ ŚĂďŝƚĂ͘ ^ĞŵŝŽƟĐĂŵĞŶƚĞ͕ ƚĂŶƚŽ
Joaquim, em um primeiro momento, quanto Lourenço, como sua consequência e
ĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞ͕ƐĆŽĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŽƐƷůƟŵŽƐĚŝĂƐĚŽƌĞŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͘ƐƉĞƌƐŽ-
nagens desse gênero – ou modo discursivo –, segundo Flavio García, “raramente são
personagens individuo ΀͘͘͘΁ĞůĂƐĐŽƐƚƵŵĂŵƐĞƌĐŽŶƐƚƌƵşĚĂƐĐŽŵŽƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐƟƉŽ͕
ƐĞŶĚŽ͕ƚĂŵďĠŵ͕ĐŽŵƵŵĞŶƚĞ͕ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐƉůĂŶĂƐ΀͘͘͘΁ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶĚŽƵŵĞƐƚƌĂƚŽƐŽ-
ĐŝŽĐƵůƚƵƌĂůƉƌĠͲĚĞĮŶŝĚŽ͟;ϮϬϬϵ͕Ɖ͘ϰͿ͘
ŽŵŽĂĮƌŵĂ:ŽƐĠ,ĞƌŵĂŶŽ^ĂƌĂŝǀĂ͕ŽƐĂƐƚƌŽƐƐĆŽƵŵĂƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂůĞĂŶƟŐĂ
ĨĂŵşůŝĂ ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ ƋƵĞ ƌĞƐŐĂƚĂ ƐĞƵ ŶŽŵĞ ĚĞ ĂŶƟŐĂƐ ĐŽŶƐƚƌƵĕƁĞƐ ĨŽƌƟĮĐĂĚĂƐ ƉŽƌ
muralhas, com casas de pedra situadas em pontos altos escolhidos com preocupa-
ĕƁĞƐĚĞĨĞŶƐŝǀĂƐ͘ĞƐƐĂŝŵĂŐĞŵĚĞƌŝŐŝĚĞnj͕ĚƵƌĞnjĂĞŝŵƉůĂĐĂďŝůŝĚĂĚĞƋƵĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ
ĞŶĐĂƌŶĂĞŵƌĞůĂĕĆŽĂŽǀĞůŚŽƉĂŝ͕ĚĞĨĞŶĚĞŶĚŽĂƉĄƚƌŝĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂŶŽĂůĠŵͲŵĂƌʹĂŽ
ƌĞĂĮƌŵĂƌƐĞƵƐǀĂůŽƌĞƐŝĚĞŶƟƚĄƌŝŽƐʹĞĐĂƐƟŐĂŶĚŽĂƉƌĞƚĂůŚĂĚĂ͕ĂƋƵĂůŽĚĞŝĂ͕ŵĂƐ͕
paradoxalmente, teme.
Curiosa – talvez – é a relação que Mia Couto, ao transitar pelas categorias
ĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ŵĂŝƐĞƐƉĞĐŝĮĐĂŵĞŶƚĞ͕ĂĚĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ͕ŝŵƉƁĞĂ>ŽƵƌĞŶĕŽ͘KĂƵƚŽƌ
apresenta, em sua construção, elementos que a colocam na fronteira entre o sólito
e o insólito, o real e o maravilhoso. Seu sobrenome resgata uma construção atribu-
şǀĞů ƟƉŝĐĂŵĞŶƚĞ Ă ĨŽƌƚĂůĞnjĂƐ ƌĞŵĂŶĞƐĐĞŶƚĞƐ ĚŽ ƉĞƌşŽĚŽ ŵĞĚŝĞǀĂů͕ ƋƵĞ ĚĄ ŽƌŝŐĞŵ
ao nome de uma família oriunda dos primórdios do nascimento de Portugal – em
ƐƵŵĂ͕ƚƌĂnjăƚŽŶĂƵŵƐĞŶƟŵĞŶƚŽĚĞƌĂŝnjĚĂŶĂĐŝŽŶĂůŝĚĂĚĞ͕ŽƋƵĞ͕ƉŽƌƐŝŶĂů͕ĠƌĞ-
ƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽǀĄƌŝĂƐǀĞnjĞƐƉĞůĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵĞŵƐĞƵĂŵŽƌƉĞůĂƉĄƚƌŝĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕
Ɖ͘ ϵϴͿ͘ ^ĞƵ ŶŽŵĞ ƌĞŵĞƚĞ ĚŝƌĞƚĂŵĞŶƚĞ ă >ŽƵƌĞŶĕŽ DĂƌƋƵĞƐ͕ ĂŶƟŐŽ ƚŽƉƀŶŝŵŽ ĚĂ
96 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
capital de Moçambique, agora, Maputo. Essa combinação que o autor incrementa
ĞŵƐƵĂĞƐĐƌŝƚĂʹĐŽŵŽũĄĂďŽƌĚĂĚŽĞŵhŵďĞƌƚŽĐŽĂĐĞƌĐĂĚŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĚĂƐƉĂůĂ-
ǀƌĂƐ;ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϱϭͿʹĞŽƐƐĞŶƟĚŽƐƋƵĞĞůĞůŚĞƐŝŵƉƌĞŐŶĂ͕ƚŽƌŶĂŵͲƐĞƵŵĂŵĂƌĐĂĚĂ
ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͘ &ĞƌŶĂŶĚĂ ĂǀĂĐĂƐ ĚĞƐĞŶǀŽůǀĞ Ƶŵ ĞdžƚĞŶƐŽ ĞƐƚƵĚŽ ƐŽďƌĞ Ă
ƚĞŵĄƟĐĂ͕Mia Couto: brincriação vocabular (1999).
/ŶƐŽůŝƚĂŵĞŶƚĞ͕ĂĮŐƵƌĂĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĠĐĂƌƌĞŐĂĚĂĚĞƵŵĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞĨĞƌŽnj
Ğ ŐƌŽƚĞƐĐĂ͘ KƌĂ͕ Ġ Ƶŵ ƌşŐŝĚŽ Ğ ƉĂǀŽƌŽƐŽ ĂƐƚƌŽ ŶĂ ƌƵĂ͖ ŽƌĂ͕ ƵŵĂ ƌŝĚşĐƵůĂ ĐƌŝĂŶĕĂ
ƋƵĞƵƐĂĚĞƉĂŶŽƐĞĐĂǀĂůŝŶŚŽƐĚĞŶƚƌŽĚĞĐĂƐĂ͕ĐŚŽƌĂŶĚŽƉŽƌĂĐŚĂƌƋƵĞŚĄƐĂŶŐƵĞ
nas mãos (COUTO, 2004, p. 14). Procura demonstrar uma macheza que seu pró-
ƉƌŝŽ ƉĂŝ ƉƌŽĐƵƌŽƵ ĞƐƟŵƵůĂƌ͕ ŽďũĞƟǀĂŶĚŽ ĞdžƉƵƌŐĂƌ ƵŵĂ ĨĞŵŝŶŝůŝĚĂĚĞ ĐĂƵƐĂĚĂ͕ ŶĂ
ŽƉŝŶŝĆŽĚŽĨĂůĞĐŝĚŽ͕ƉŽƌDĂƌŐĂƌŝĚĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϭͿ͘ZĞĐƌŝŵŝŶĂĂƐĂƟƚƵĚĞƐĚĂ
ƟĂ͕ĂĐƵƐĂŶĚŽͲĂĚĞŵĂŶĐŚĂƌŽŶŽŵĞĚĂĨĂŵşůŝĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϱͿ͕ĞŶƵƚƌĞ͕ƉŽƌ
ĞůĂ͕ƚĂŶƚŽƌĂŝǀĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϮͿ͕ƋƵĂŶƚŽĠƚŽŵĂĚŽƉŽƌĚĞƐĞũŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕
p. 69). Odeia e, ao mesmo tempo, teme os pretos – como a eles se refere –, reco-
nhecendo seus poderes.
ĚŵƵŶĚ ƵƌŬĞ͕ ĮůſƐŽĨŽ ĂŶŐůŽͲŝƌůĂŶĚġƐ͕ ĂŽ ĂŶĂůŝƐĂƌ ĂƐ ŝĚĞŝĂƐ ĚŽ ďĞůŽ Ğ ĚŽ
sublime, observa que a diferença entre a dor e o terror reside no fato de que uma
afeta o espírito através do corpo, e a outra, o corpo através do espírito, de maneira
ƋƵĞĂŵďĂƐ͕ĚĞƵŵũĞŝƚŽŽƵĚĞŽƵƚƌŽ͕ƉƌŽĚƵnjĞŵƵŵĂƚĞŶƐĆŽ͕ĐŽŶƚƌĂĕĆŽĞͬŽƵĞdžĐŝ-
ƚĂĕĆŽǀŝŽůĞŶƚĂĚŽƐŶĞƌǀŽƐ;hZ<͕ϭϵϵϯ͕Ɖ͘ϭϯϴͿ͘KƚĞŵŽƌĚŽƐŶĞŐƌŽƐ͕ƐĞŶƟĚŽƉŽƌ
>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ĞdžĞŵƉůŝĮĐĂĞƐƐĂŽďƐĞƌǀĂĕĆŽ͕ĐŽŶƐƚƌƵşĚĂĐŽŵĞƐƐĞƉƌŽƉſƐŝƚŽ͗
– A mãe pode espreitar-me?
– Outra vez o umbigo, Lourencinho?
ʹƐƚĄͲŵĞĂĐƌĞƐĐĞƌ͕ŵĆĞ͘ƐĠƌŝŽ͕ĚĞƐƚĂǀĞnjĠĂƐĠƌŝŽ͘ƚĠũĄĞƐƚŽƵ
ĂƐĞŶƟƌŽĐŽƌĚĆŽƵŵďŝůŝĐĂůĂƐĂŝƌͲŵĞ΀͘͘͘΁/ƐƚŽƐſƉŽĚĞƐĞƌĨĞŝƟĕŽ
da pretalhada. (COUTO, 2004, p. 16-17)
ƐƐĂĂƌƟĐƵůĂĕĆŽĞŶƚƌĞŽƌĞĂůĞŽŝƌƌĞĂů͕ƉŽƐƐşǀĞůŶŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ƌĞĂůŝnjĂ-
ͲƐĞĚĞǀŝĚŽĂŽĐŽŶũƵŶƚŽĚĞĐƌĞŶĕĂƐƋƵĞƉĞƌƉĂƐƐĂŵƵŵĂĚĂĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͘KƐĂƐƚƌŽ͕
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĂ͞ƌĞĂůŶĂƚƵƌĂůŝĚĂĚĞ͟ĞŵĨƌŝĐĂ͕ŶĆŽƐĆŽĞdžĐĞĕĆŽ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞ͕ĂŽƐ
poucos, eles começam a acreditar nos “poderes dos pretos”, envoltos pelos ritos,
ƉƌĄƟĐĂƐ Ğ ŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐ ƌĞůŝŐŝŽƐĂƐͬƉĞĚĂŐſŐŝĐĂƐ ĚĞ Ƶŵ ĐŽŶƟŶĞŶƚĞ ƋƵĞ ĂƚĠ ĞŶƚĆŽ
lhes era estranho. Observamos, aqui, a questão da fé – a qual poderíamos, talvez,
ĐŚĂŵĂƌ ĚĞ ͞ƉƌĞŵŝƐƐĂ ĐĂƌƉĞŶƟĂŶĂ͕͟ ŽƵ͕ ƉĂƌĂĨƌĂƐĞĂŶĚŽ ŽƌŐĞƐ͕ Ă ͞ĨĠ ƉŽĠƟĐĂ ƋƵĞ
ƐƵďƐƟƚƵŝĂĚƷǀŝĚĂƐƵƐƉĞŶĚŝĚĂ͟;ŽƌŐĞƐ͕apud CHIAMPI, 1980, p. 61) – para a irrup-
ção dos mirabilia. Nas palavras de Irlemar Chiampi, esse processo:
ƉƌŽǀŽĐĂĚŽƉĞůĂƉĞƌĐĞƉĕĆŽĚĂĐŽŶƟŐƵŝĚĂĚĞĞŶƚƌĞĂƐĞƐĨĞƌĂƐĚŽ
real e do irreal – pela revelação de uma causalidade onipresen-
ƚĞ͕ ƉŽƌ ŵĂŝƐ ǀĞůĂĚĂ Ğ ĚŝĨƵƐĂ ƋƵĞ ĞƐƚĞũĂ͘ ΀͙΁͘  ĨĠ ŶĂ ƚƌĂŶƐĐĞŶ-
ĚġŶĐŝĂĚĞƵŵĞƐƚĂĚŽĞdžƚƌĂŶĂƚƵƌĂů͕ŶĂƐůĞŝƐŵĞƚĂͲĞŵƉşƌŝĐĂƐ͘΀͘͘͘΁
os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam
ũĂŵĂŝƐ ĚŝĂŶƚĞ ĚŽ ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ ŶĞŵ ŵŽĚĂůŝnjĂŵ Ă ŶĂƚƵƌĞnjĂ ĚŽ
acontecimento insólito. (1980, p. 61)
ISBN 978-85-8199-013-2 97
João Olinto Trindade Junior
Para Lourenço de Castro, um “branco-ocidental” em terras africanas, a cons-
ƚƌƵĕĆŽĚŽŶĞŐƌŽĐŽŵŽĮŐƵƌĂƋƵĞŝŶƐƉŝƌĂƚĞŵŽƌʹƋƵĞƚĞŵƉŽĚĞƌĞƐʹŶĆŽĠƌĞĐĞŶƚĞ͕
ƉŽŝƐƌĞƐŐĂƚĂƚŽĚĂƵŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽƐŽďƌĞŽĂƐƐƵŶƚŽ͘ĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵ:ĞīƌĞLJŽŚĞŶ͕͞Ž
processo pelo qual a exageração da diferença cultural se transforma em aberração
monstruosa é bastante familiar” (2000, p. 4). A exemplo das navegações por novas
ƚĞƌƌĂƐŶŽƉĞƌşŽĚŽĐŽůŽŶŝĂů͕͞ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌƵŵĂĐƵůƚƵƌĂƉƌĠǀŝĂĐŽŵŽŵŽŶƐƚƌƵŽƐĂũƵƐƟ-
ĮĐĂƐĞƵĚĞƐůŽĐĂŵĞŶƚŽŽƵĞdžƚĞƌŵşŶŝŽ͕ĨĂnjĞŶĚŽĐŽŵƋƵĞŽĂƚŽĚĞĞdžƚĞƌŵşŶŝŽĂƉĂƌĞĕĂ
como heroico” (COHEN, 2000, p. 4). Uma vez que a raça é um elemento recorrente
para a criação de monstros – tanto quanto a cultura, o gênero e a sexualidade –,
Ă ĨƌŝĐĂ ŶĆŽ ƚĂƌĚĂ Ă ƐĞƌ ǀŝƐƚĂ ĐŽŵŽ Ž Outro do Ocidente. Entre o mito grego de
Phaeton, sobre sua pele ter sido queimada pelo sol, e a retórica de Paulinos de Nota,
sobre a pele ter sido queimada pelo pecado e pelo vício (Friedman apud COHEN,
ϮϬϬϬ͕Ɖ͘ϲͿ͕ŽĐĂƌĄƚĞƌŶĞŐĂƟǀŽʹĞŵƐƵŵĂ͕ƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůʹĚĂƉĞůĞŶĞŐƌĂƉĞƌƉĂƐƐĂŽ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽĐƌŝƐƚĆŽ͘^ĞŐƵŶĚŽŽŚĞŶ͕ŶĆŽƉŽƌŵĞŶŽƐ͕
ƉĞůĞŶĞŐƌĂĞƐƚĂǀĂĂƐƐŽĐŝĂĚĂĐŽŵŽĨŽŐŽĚŽŝŶĨĞƌŶŽ͕ƐŝŐŶŝĮĐĂŶ-
do, assim, na mitologia cristã, uma proveniência demoníaca.
KƉĞƌǀĞƌƟĚŽĞĞdžĂŐĞƌĂĚŽĂƉĞƟƚĞƐĞdžƵĂůĚŽƐŵŽŶƐƚƌŽƐĞƌĂ͕Ğŵ
ŐĞƌĂů͕ƌĂƉŝĚĂŵĞŶƚĞĂƚƌŝďƵşĚŽĂŽĞơŽƉĞ͖ĞƐƐĞǀşŶĐƵůŽĞƌĂĂƉĞŶĂƐ
reforçado por uma reação xenófoba à medida que as pessoas
de pele escura eram levadas, de forma forçada, para a Europa,
ŶŽŝŶşĐŝŽĚĂZĞŶĂƐĐĞŶĕĂ͘EĂƌƌĂƟǀĂƐĚĞŵŝƐĐŝŐĞŶĂĕĆŽƐƵƌŐŝĂŵĞ
ĐŝƌĐƵůĂǀĂŵƉĂƌĂƐĂŶĐŝŽŶĂƌƉŽůşƟĐĂƐŽĮĐŝĂŝƐĚĞĞdžĐůƵƐĆŽ͖ĂZĂŝŶŚĂ
ůŝnjĂďĞƚŚĠĨĂŵŽƐĂƉŽƌƐƵĂĂŶƐŝĞĚĂĚĞƌĞůĂƟǀĂŵĞŶƚĞĂŽƐ͞ŵŽƵ-
ros negros” e sua suposta ameaça ao “progresso do povo de nos-
sa própria nação”. (2000, p. 6-7)
^Ğ͕ĂŶƟŐĂŵĞŶƚĞ͕ĞƐƚĂƌƐŽnjŝŶŚŽĞƌĂƉĞƌŝŐŽƐŽ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŽďƌŝŐĂǀĂĂƐƉĞƐ-
ƐŽĂƐĂĨŽƌŵĂƌĞŵǀŝůĂƐŽƵĐŽŵƵŶŝĚĂĚĞƐ͕ǀŝƐĂŶĚŽăƐƵĂƐŽďƌĞǀŝǀġŶĐŝĂ͖ŵŽƌĂƌĞŵƵŵĂ
vila isolada, povoada por uma maioria negra e por uma minoria branca (COUTO,
2004, p. 13), que se odeiam, torna-se algo igualmente perigoso. Mia Couto, ao citar
Alfred Metraux, na epígrafe da novela, acerca do fato de que “o Homem nunca é
ĐƌƵĞůĞŝŶũƵƐƚŽĐŽŵŝŵƉƵŶŝĚĂĚĞ͗ĂĂŶƐŝĞĚĂĚĞƋƵĞĐƌĞƐĐĞŶĂƋƵĞůĞƐƋƵĞĂďƵƐĂŵĚŽ
ƉŽĚĞƌĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞƚŽŵĂĂĨŽƌŵĂĚĞƚĞƌƌŽƌĞƐŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƐĞŽďƐĞƐƐƁĞƐĚĞŵĞŶ-
tes” (COUTO, 2004, p. 9 ), dialoga diretamente tanto com os temores de Lourenço,
quanto com sua resposta frente ao pedido de sua mãe para soltar os presos, achan-
ĚŽƋƵĞĂƐƐŝŵĞůĞƐŽƉĞƌĚŽĂƌŝĂŵ͘>ŽƵƌĞŶĕŽŶĆŽƚĂƌĚĂĂĂĮƌŵĂƌƋƵĞ͞ĞƐƐĂŐĞŶƚĞŶƵŶ-
ca vai esquecer. Nunca” (COUTO, 2004, p. 76).
ĐŽŶŇŝƚƵŽƐĂƌĞůĂĕĆŽſĚŝŽͬƚĞŵŽƌĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĐŽŵĂ͞ƉƌĞƚĂůŚĂĚĂ͟ƉĞƌƉĂƐƐĂ
toda a obra, na qual o constante contato com esse universo diferente – segundo
DĂƌŐĂƌŝĚĂ͕ĞƐƚĂǀĂŵŚĄϮϬĂŶŽƐĞŵĨƌŝĐĂŵĂƐ͕ĚŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚŽĮůŚŽ͕ŶĆŽƟǀĞƌĂ
contato com essa cultura (COUTO, 2004, p. 48) – promove as diferenciações e o cho-
que com o outro͖ĂƐƚĞŶƐƁĞƐŐĞƌĂĚĂƐĚĞƐƐĞĞŶĐŽŶƚƌŽĞŶƚƌĞŽeu e o outro, em um
ĞƐƉĂĕŽĚĞůſŐŝĐĂĂŶŝŵŝƐƚĂ͘KĄƉŝĐĞĚĞƐƐĞƐĐŽŶĨƌŽŶƚŽƐƐĞĚĄĐŽŵŶĚĂƌĠdĐŚƵǀŝƐĐŽ͕
negro supostamente cego, que pintava as paredes da cadeia e fazia esculturas na
areia, e Irene, branca “assimilada” que adere as crenças da terra, invadindo sua casa.
98 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ƐƐĂƚĞŶƐĆŽǀĂŝƐĞŶĚŽĐŽŶƐƚƌƵşĚĂ͕ƉĂƵůĂƟŶĂŵĞŶƚĞ͕ĂƉĂƌƟƌĚĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵ
>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ŵĞƐŵŽĞŵƌĞůĂĕĆŽĂƉĞƋƵĞŶĂƐĐŽŝƐĂƐ͘WĂƌĂƵƌŬĞ͕ŽƋƵĞĠƚĞƌƌşǀĞůăǀŝ-
são independe de suas dimensões, pois “é impossível considerar algo que possa ser
ƉĞƌŝŐŽƐŽĐŽŵŽŝŶƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞŽƵĚĞƐƉƌĞnjşǀĞů͟;ϭϵϵϯ͕Ɖ͘ϲϱͲϲϲͿ͘hŵĞdžĞŵƉůŽƐŝŐŶŝĮ-
ĐĂƟǀŽĚŝƐƐŽĠĂĂǀĞƌƐĆŽĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽʹƉŽƌŵĂŝƐĐĂůŽƌƋƵĞĨĂĕĂʹĂŽǀĞŶƟůĂĚŽƌ͕ĨƌƵƚŽ
do trauma gerado quando da morte do pai, pois, em meio a um corpo que supos-
ƚĂŵĞŶƚĞŶĆŽƚŽŵďĂƌĂƐŽďƌĞŽŵĂƌ͕ǀġƐƵƌŐŝƌƵŵƉĄƐƐĂƌŽĚĞ͞ƉůƵŵĂƐĞŵďĂůĂĚĂƐĞŵ
ŚĞƐŝƚĂŶƚĞďƌŝƐĂ΀͘͘͘΁ƉĂƌĂĂůĠŵĚŽďĂƌƵůŚŽĚĂƐŚĠůŝĐĞƐ͕ƐŽďƌĞĂĐĂďĞĕĂ͘EƵŶĐĂŵĂŝƐ
haveria de suportar ventoinha. Fizesse calor de torrar, a ventoinha estava interdita”
(COUTO, 2004, p. 23-24).
Ao atentarmos para as observações de Filipe Furtado sobre o sobrena-
ƚƵƌĂů ŶĞŐĂƟǀŽ ;ϭϵϴϬ͕ Ɖ͘ ϮϮͿ͕ ĮĐĂͲŶŽƐ ĐůĂƌŽ ƐƵĂ ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂ ƉĂƌĂ Ă ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ĚŽ
&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞŵVinte e zinco͕͘ũƵƐƚĂŵĞŶƚĞ͕ĚĞǀŝĚŽăŝŶƚĞƌĂĕĆŽĚŽŶĞŐĂƟǀŽ͕ƋƵĞƐĞ
ƌĞĂůŝnjĂĂŝŶƚĞƌĂĕĆŽĞŶƚƌĞƵŵŵƵŶĚŽĂĐĞŝƚĄǀĞůĞŽƵƚƌŽĐŽŶŇŝƚƵŽƐŽ͘dƌĂƚĂͲƐĞĚĞƵŵ
mundo de lógica animista, no qual até mesmo os Castro começam a reconhecer a
existência de poderes ocultos – mas não completamente, a exemplo da dúvida de
Lourenço acerca da cegueira de Tchuvisco (COUTO, 2004, p. 32) ou da hesitação de
DĂƌŐĂƌŝĚĂĨƌĞŶƚĞăĚŽĞŶĕĂŽƵƉŽƐƐĞƐƐĆŽĚĞƐĞƵĮůŚŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϮͿʹ͕ŶŽƋƵĂů
o espírito de Joaquim age como um contraventor da ordem “natural”.
ŽŵŽ ĂĮƌŵĂƌĂ ůĂŝƌĞ tŝůůŝĂŵƐ͕ ĞƐƐĂ ŽďƌĂ Ġ ƉŽƵĐŽ ĞƐƚƵĚĂĚĂ ƉĞůŽƐ ĐƌşƟĐŽƐ
devido ao teor que enfoca e aos temas que aborda (2003, p. 168): como um espí-
ƌŝƚŽƌĂŶĐŽƌŽƐŽĚŽƐƷůƟŵŽƐŵŽŵĞŶƚŽƐĚĞƵŵŝŵƉĠƌŝŽƋƵĞƐĞƌĞĐƵƐĂĂĂƐƐƵŵŝƌƐƵĂ
falência, Joaquim vai afetar diretamente – e até indiretamente – a vida das pessoas
ao seu redor, a ponto de Irene se referir a ele como monstro (COUTO, 2004, p. 24).
:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ĂŶLJĂŶŐĂʹĞƐƉĠĐŝĞĚĞƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂʹĂǀŝƐĂƋƵĞ͞>ŽƵƌĞŶĕŽĨŽƌĂƉŽƐƐƵşĚŽ
pela sua própria vida. Sem nunca chegar a ser ele próprio” (COUTO, 2004, p. 50-51).
Devemos, entretanto, atentar para o que aponta Irlemar Chiampi, acerca dessa rela-
ĕĆŽƉƌŽƉŽƐƚĂƉĞůŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĐŽŵŽƵŵĞŵďĂƚĞĞŶƚƌĞŽĞŵĞŽDĂů͗
ƉƌŽďůĞŵĂƟnjĂĕĆŽĚŽƌĞĂůŶŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĂƐƐƵŵĞ͕ŶĞƐƚĞƐĞŶƟĚŽ͕
Ž ĐĂƌĄƚĞƌ ĚĞ ƵŵĂ ůƵƚĂ ƉƌŝŵŽƌĚŝĂů ĞŶƚƌĞ ĨŽƌĕĂƐ ĂŶƚĂŐƀŶŝĐĂƐ͕ ĚĂ
qual saem vitoriosos os valores que o pensamento logocêntrico
ĂĐĞŝƚĂĐŽŵŽƉŽƐŝƟǀŽƐ΀͘͘͘΁͘ŽŵŽĞŵĐŽŶƚƌĂƉĂƌƟĚĂ͕ŽƌĞĂůŝƐŵŽ
maravilhoso propõe um “reconhecimento inquietante”, pois o
papel da mitologia, das crenças religiosas, da magia e tradições
populares consiste em trazer de volta o “Heimliche”, o familiar
ĐŽůĞƟǀŽ͕ŽĐƵůƚŽĞĚŝƐƐŝŵƵůĂĚŽƉĞůĂƌĞƉƌĞƐƐĆŽĚĂƌĂĐŝŽŶĂůŝĚĂĚĞ͘
(1980, p. 67-69)
Em Vinte e zinco, o espírito de Joaquim, fugindo de uma visão maniqueísta
– mas abraçando uma percepção cristã-animista da realidade – se, por um lado,
ŝŶƚĞƌĨĞƌĞŶĞŐĂƟǀĂŵĞŶƚĞŶĂǀŝĚĂĚĂƐĚĞŵĂŝƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ͕ƉŽƌŽƵƚƌŽ͕ƚĂŵďĠŵŽĨĂnj
ĐŽŵŽƉĂƌƚĞĚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞƐƐĞĐĞŶĄƌŝŽ͕ĞŵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞŚĂƌŵŽŶŝnjĂĕĆŽ͕ƉŽŝƐĠũƵƐ-
tamente através do reconhecimento e aceitação dos poderes desse “monstro”, que
ŽƐĂƐƚƌŽƚƌĂnjĞŵăƚŽŶĂƐƵĂƐĐƌĞŶĕĂƐƌĞůŝŐŝŽƐĂƐ͕ƐĞƵ͞ĨĂŵŝůŝĂƌĐŽůĞƟǀŽ͘͟KůƵŐĂƌĚĞ
ISBN 978-85-8199-013-2 99
João Olinto Trindade Junior
Joaquim na mesa ainda é guardado e mantém-se pronto como se ele fosse chegar a
ƋƵĂůƋƵĞƌŵŽŵĞŶƚŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϰͿ͖ƐĞƵůĂĚŽĚĂĐĂŵĂ͕ƉĞƌĨƵŵĂĚŽ͖ĞĂĐƌĞŶĕĂ
ĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĂĐĞƌĐĂĚĞŽƉĂŝŶĆŽƚĞƌƚŽŵďĂĚŽŶŽĐĠƵ͕ŵĂƐĐŽŶƟŶƵĂƌƉĂŝƌĂŶĚŽƉŽƌ
aí (COUTO, 2004, p. 52).
DĂƌŐĂƌŝĚĂĠĂĐůĄƐƐŝĐĂĞƐƉŽƐĂĚĞĨĞŶƐŽƌĂĚĂĐĂƐĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͘ŵƵŵŵŽŵĞŶ-
ƚŽĞŵƋƵĞƚŽĚŽƐŽƐƉĂƉĠŝƐĞƐƚĆŽ;ƐƵƉŽƐƚĂŵĞŶƚĞͿĚĞĮŶŝĚŽƐ͕ĠĂƋƵĞůĂƋƵĞƐĞĞŶĐŽŶƚƌĂ
na encruzilhada dos problemas da família: viúva de Joaquim, mãe de Lourenço e
ŝƌŵĆĚĞ/ƌĞŶĞ͕ŽƌĂƌĞĐůĂŵĂĚŽƐƌĞǀŽůƚŽƐŽƐĐŽŵƐƵĂƐŝĚĞŝĂƐĚĞ͞ƉĄƚƌŝĂŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͟
;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϲͿ͕ŽƌĂƋƵĞƐƟŽŶĂŽŵŽƟǀŽĚĞŽĮůŚŽĂŝŶĚĂĞƐƚĂƌĂůŝĞŵĨƌŝĐĂ͖
ƚĞŶƚĂĐŽŶĐŝůŝĂƌŽĮůŚŽĞĂŝƌŵĆ͕ĐŚĂŵĂŶĚŽĂĂƚĞŶĕĆŽĚĞůĂƉĂƌĂƐĞƵƐŵŽĚŽƐ͕ĞŵďŽƌĂ
ĂĮƌŵĞƋƵĞ͕ĚŝĨĞƌĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚŽƋƵĞĂƐĚĞŵĂŝƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ;ďƌĂŶĐĂƐͿĂĐƌĞĚŝƚĂŵ͕ĞůĂ
não lhe parece ser tão louca assim. Ainda por cima, Margarida passou 20 anos em
ĨƌŝĐĂ͕ƐĞŵƚĞƌĐŽŶƚĂƚŽĐŽŵĂĐƵůƚƵƌĂůŽĐĂůʹ͞ĨƌŝĐĂĐŽŵĞĕĂǀĂůŽŐŽĂůŝ͕ŶŽƐŽƉĠĚĂǀĂ-
randa. Não se podia facilitar” (COUTO, 2004, p. 48) –, e, se, por um lado, repreende as
ĂƟƚƵĚĞƐĚĂŝƌŵĆ͕ƉŽƌŽƵƚƌŽ͕ĂŐĞĚĞŵĂŶĞŝƌĂŝŶƐſůŝƚĂĂŽĐŽŶƚƌĂƌŝĂƌƚŽĚŽƐŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐ-
ƚŽƐƋƵĞĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞďƌĂŶĐĂ͕ĞŵĨƌŝĐĂ͕ĂŐƌĞŐĂǀĂ͕ĞŶĆŽƚĂƌĚĂĂƉƌŽĐƵƌĂƌ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕
ĞŵďƵƐĐĂĚĞĐƵƌĂƉĂƌĂŽƐĞƐƚƌĂŶŚŽƐƐŽŶŚŽƐĞŵĞĚŽƐĚŽĮůŚŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϬͿ͕
contrariando suas crenças de europeia-branca-cristã.
ƐƐĞƐĞƐƉĂĕŽƐ͕ŚşďƌŝĚŽƐĚĞƐĂďĞƌĞƐ͕ĂƌƟĐƵůĂŵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĂƐŝĚĞŶƟĚĂ-
des, eliminam os opostos e os mesclam, assumindo uma imagem de duas frentes
que, aos olhos comuns das personagens – incapazes de aceitarem/chegarem a um
consenso para aceitar a realidade como é, tal como Lourenço –, é “estranha”.
/ƌĞŶĞ͕ ƉŽƌ ƐƵĂ ǀĞnj͕ Ġ Ă ŝŵĂŐĞŵ ĚĞƐƐĂ ŝŶƐſůŝƚĂ ŚŝďƌŝĚĞnj ĮĐĐŝŽŶĂů͗ /ƌŵĆ ĚĞ
DĂƌŐĂƌŝĚĂĞƟĂĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽʹŶŽƋƵĂůĚĞƐƉĞƌƚĂĚĞƐĞũŽƐʹ͕ĠƵŵĞdžĞŵƉůŽĚĞƋƵĞĂƐ
ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐŶĆŽƐĞŐƵĞŵŵĆŽƷŶŝĐĂ͕ŵĂƐƐĆŽǀŝĂĚĞŵĆŽĚƵƉůĂ͘^ĞŶĚŽŽƐ
ĂƐƚƌŽĂƌĞƐŝƐƚġŶĐŝĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂĞŵƚĞƌƌĂƐĚŝƐƚĂŶƚĞƐʹ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ƵŵW/͖DĂƌŐĂƌŝĚĂ͕
ĂĐůĄƐƐŝĐĂĞƐƉŽƐĂĚĞĨĞŶƐŽƌĂĚĂĐĂƐĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂʹ͕ĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚĞƵŵĂ͞ĂƐƐŝŵŝůĂĚĂ ”
causa horror e mal-estar na casa, a ponto de acusarem-na por ter um nome a zelar
(COUTO, 2004, p. 15).
dĞŶĚŽǀŝŶĚŽĂƚĠĨƌŝĐĂƉĂƌĂĨĂnjĞƌĐŽŵƉĂŶŚŝĂăŝƌŵĆ͕ĂƉſƐĂŵŽƌƚĞĚŽĐƵŶŚĂ-
do, Irene se apaixona e inicia um caso com o mulato Marcelino (COUTO, 2004, p.
ϮϬͿ͕ Ž ƋƵĂů ĨĂnjŝĂ ƉĂƌƚĞ ĚŽ ŵŽǀŝŵĞŶƚŽ ĚĞ ůŝďĞƌƚĂĕĆŽ ĚĞ DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͘  ĂƉſƐ ƐƵĂ
ŵŽƌƚĞʹĞůĞĐŽŵĞƚĞƐƵŝĐşĚŝŽ͕ĐŽƌƚĂŶĚŽƐĞƵƐƚĞƐơĐƵůŽƐ͕ĂƉſƐƐĞĕĆŽĚĞƚŽƌƚƵƌĂĐŽŵĂŶ-
dada por Lourenço (COUTO, 2004, p. 76) –, que Irene se entrega de vez às culturas
da terra, tornando-se, como diz Jessumina, uma “branca da terra”. Segundo Bhabha,
K ĐĂƌĄƚĞƌ ĞdžƚƌĞŵŽ ĚĞƐƐĂ ĂůŝĞŶĂĕĆŽ ĐŽůŽŶŝĂů ĚĂ ƉĞƐƐŽĂ ʹ ĞƐƐĞ
Įŵ ĚĂ ͞ŝĚĞŝĂ͟ do individuo – produz uma urgência inquieta
na busca de Fanon por uma forma conceitual apropriada para
o antagonismo social da relação colonial. O corpo de sua obra
ĨĞŶĚĞͲƐĞĞŶƚƌĞƵŵĂĚŝĂůĠƟĐĂŚĞŐĞůŝĂŶŽͲŵĂƌdžŝƐƚĂ͕ƵŵĂĂĮƌŵĂ-
ção fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psica-
ŶĂůşƟĐĂ ĚŽ /ŶĐŽŶƐĐŝĞŶƚĞ͘ ŵ ƐƵĂ ďƵƐĐĂ ĚĞƐĞƐƉĞƌĂĚĂ Ğ ǀĆ ƉŽƌ
ƵŵĂĚŝĂůĠƟĐĂĚĂůŝďĞƌƚĂĕĆŽ͕&ĂŶŽŶĞdžƉůŽƌĂĂĞdžƚƌĞŵŝĚĂĚĞĚĞƐ-
100 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ses modos de pensamento: seu hegelianismo devolve a espe-
ƌĂŶĕĂăŚŝƐƚſƌŝĂ͖ƐƵĂĞǀŽĐĂĕĆŽĞdžŝƐƚĞŶĐŝĂůŝƐƚĂĚŽ͞Ƶ͟ƌĞƐƚĂƵƌĂ
ĂƉƌĞƐĞŶĕĂĚŽŵĂƌŐŝŶĂůŝnjĂĚŽ͖ƐƵĂŵŽůĚƵƌĂƉƐŝĐĂŶĂůşƟĐĂŝůƵŵŝŶĂ
ĂůŽƵĐƵƌĂĚŽƌĂĐŝƐŵŽ͕ŽƉƌĂnjĞƌĚĂĚŽƌ͕ĂĨĂŶƚĂƐŝĂĂŐŽŶşƐƟĐĂĚŽ
ƉŽĚĞƌƉŽůşƟĐŽ͘;ϭϵϵϴ͕Ɖ͘ϳϭͿ
As experiências colonial e pós-colonial resultaram em novas formas de per-
ceber o lugar do eu no mundo. Se o comum, o normal, o aceito, o “soer” (ser comum
acontecer), era a “pretalhada” assimilar a cultura do branco, o insólito – uma vez
ƋƵĞĠƵŵĚŽƐƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞŝƐƉĞůĂƐƌƵƉƚƵƌĂƐŶĂ͞ŚŝƐƚſƌŝĂ͟ĚĂŝůƵƐƚƌĞĨĂŵşůŝĂĚŽƐĂƐƚƌŽ
– ocorre quando Irene, por sua vez, segue o caminho inverso proposto aos negros
na época da colonização, o de “tornarem-se brancos”. Era requisito, dentre outros,
ĨĂůĂƌĂůşŶŐƵĂĚŽďƌĂŶĐŽĞĂĚŽƚĂƌŽƐŵŽĚŽƐĞĐŽƐƚƵŵĞƐĚĞůĞ͕ŐĂŶŚĂŶĚŽƵŵĂŝĚĞŶƟ-
dade – no caso, a de cidadão português – e todas as vantagens que a acompanham.
/ƌĞŶĞĂƐƐŝŵŝůĂͲƐĞ͞ĂŽĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕͟ĂďĂŶĚŽŶĂƐƵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͞ďƌĂŶĐĂ͟ĞŵƉƌŽůĚĞ
ƵŵĂ͞ŶĞŐƌĂ͕͟ĚĂŶĚŽŵŽƐƚƌĂƐĚĞƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘
Diferentemente da moça que era ao chegar a Moçambique, anda com as pernas de
ĨŽƌĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϯͿ͕ĚĞŝdžĂͲƐĞƐƵũĂƌĐŽŵĂůĂŵĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϭϱͿʹĞŵƵŵĂ
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĞƐĞŶƟƌĂƚĞƌƌĂĞƐƵĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĞŵƐĞƵĐŽƌƉŽʹ͕ĚĂŶĕĂ͕ĞŵĐĂƐĂ͕ƵŵĂ
ĚĂŶĕĂĚĞƌŝƚŵŽĂĨƌŝĐĂŶŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϮϮͿĞ͕ĂŽŝŶǀĠƐĚĞĨƌĞƋƵĞŶƚĂƌĂŝŐƌĞũĂ͕ĐŽŶ-
sulta-se com Jessumina, a nyanga, que acompanha o desenrolar dos acontecimentos,
envolvendo os Castro.
O conceito de hibridismo cultural – desenvolvido por Homi Bhabha (1998) –
trata de uma nova maneira de abordagem do outro͕ĞŵƋƵĞŶĆŽŚĄƵŵĂƚĞŶƚĂƟǀĂ
ĚĞ ƐƵƉůĂŶƚĄͲůŽ͕ ƐĞŶĆŽ ƋƵĞ ĚĞ ƐĞ ĂƉƌŽƉƌŝĂƌ Ğ ƐĞ ĂƉŽĚĞƌĂƌ ĚĞůĞ Ğŵ ƐĞƵƐ ƉƌŽĐĞƐƐŽƐ
de construção, abrindo margem, segundo Bhabha, para a “possibilidade de um hi-
bridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta”
(1998, p. 22). Não por menos, Irene entrega-se aos amores da terra, apropriando-se
das imagens de Marcelino em sua formação e aprofundamento na nova cultura.
WĂƵůĂƟŶĂŵĞŶƚĞ͕ĂŵŽĕĂĚĞĨĂŵşůŝĂʹĐŽŵŽƐĞ͕ĂŽǀŽůƚĂƌͲƐĞƉĂƌĂĂůĞŵďƌĂŶĕĂ͕ŝŶĐŽƌ-
porasse o espírito de Marcelino, unindo, assim, “elementos díspares, procedentes
ĚĞĐƵůƚƵƌĂƐŚĞƚĞƌŽŐġŶĞĂƐƋƵĞ΀ƐƵďǀĞƌƚĞŵ΁ŽƐƉĂĚƌƁĞƐĐŽŶǀĞŶĐŝŽŶĂŝƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ
ocidental” (CHIAMPI, 1980, 32) – transforma-se em uma “branca da terra”.
WŽƌĮŵ͕ŶĚĂƌĠdĐŚƵǀŝƐĐŽ͕ŶĞŐƌŽƐƵƉŽƐƚĂŵĞŶƚĞĐĞŐŽ͕ƋƵĞƉŝŶƚĂĂƐƉĂƌĞĚĞƐ
da cadeia e faz esculturas na areia, guarda terríveis segredos sobre o passado de
:ŽĂƋƵŝŵ͘ŐƌĞŐĂĚŽĚĂĨĂŵşůŝĂ͕ŶĚĂƌĠdĐŚƵǀŝƐĐŽĠƵŵĂƉĞƌƐŽŶĂŐĞŵĞŵďůĞŵĄƟĐĂ͕
ƋƵĞ ƉĞƌƉĂƐƐĂ Ă ŽďƌĂ ĐŽŵŽ ĮŐƵƌĂ ĂŵďşŐƵĂ͕ ƉĞƌƉĞƚƵĂŶĚŽ Ă ĚƷǀŝĚĂ ĂĐĞƌĐĂ ĚĞ ƐƵĂ
cegueira, pelo fato de fazer desenhos no chão. Oriundo de Vila Pebane, de onde
viera com os Castro (COUTO, 2004, p. 29), local no qual, na versão deles, o moço
simplesmente adoecera das vistas, e conhecedor do passado da família Castro. Com
ĂĐĞƐƐŽĂŽƐĞƐƉĂĕŽƐĨƌĞƋƵĞŶƚĂĚŽƐƉŽƌ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ĠƚĞŵŝĚŽʹĞĚĞƐĐŽŶĮĂĚŽƉĞůŽW/
–, não apenas por sua suposta cegueira, mas por ser considerado a causa de todos
os infortúnios de sua vida: os pesadelos que tem, seus brinquedos quebrados e o
ƵŵďŝŐŽƋƵĞƉĂƌĞĐĞĐƌĞƐĐĞƌĐŽŶƟŶƵĂŵĞŶƚĞ͘^ĞŐƵŶĚŽ Bauman,
ISBN 978-85-8199-013-2 101
João Olinto Trindade Junior
KŵĞĚŽĠŵĂŝƐĂƐƐƵƐƚĂĚŽƌƋƵĂŶĚŽĚŝĨƵƐŽ͕ĚŝƐƉĞƌƐŽ͕ŝŶĚŝƐƟŶƚŽ͕
ĚĞƐǀŝŶĐƵůĂĚŽ͕ĚĞƐĂŶĐŽƌĂĚŽ͕ŇƵƚƵĂŶƚĞ͕ƐĞŵĞŶĚĞƌĞĕŽŶĞŵŵŽƟ-
ǀŽĐůĂƌŽƐ͖ƋƵĂŶĚŽŶŽƐĂƐƐŽŵďƌĂƐĞŵƋƵĞŚĂũĂƵŵĂĞdžƉůŝĐĂĕĆŽǀŝ-
sível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbra-
da em toda parte, mas em lugar algum se puder vê-la. Medo é o
nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça
e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para
fazê-la pararŽƵĞŶĨƌĞŶƚĄͲůĂ͕ƐĞĐĞƐƐĄͲůĂĞƐƟǀĞƌĂůĠŵĚŽŶŽƐƐŽ
alcance. (2008, p. 8, grifo do autor)
Lourenço, devido ao medo irracional que tem de Tchuvisco e à crença na
ƌĞƐƉŽŶƐĂďŝůŝĚĂĚĞĂĞƐƚĞĂƚƌŝďƵşĚĂƉŽƌƚƵĚŽƋƵĞůŚĞĂĐŽŶƚĞĐĞ͕ŶĆŽƚĂƌĚĂĂĂĐƵƐĄͲůŽ͗
ʹĞƐƐĞĐĞŐŽ͕ĞƵĂŝŶĚĂǀŽƵĚĂƌĐĂďŽĚĞƐƐĞŐĂũŽ͘
ʹKĐĞŐŽdĐŚƵǀŝƐĐŽ͍ĞƵƐĂŝŶĚĂŽĐĂƐƟŐĂ͘YƵĞŵĂůƉŽĚĞĨĂnjĞƌ
esse pobre diabo?
ʹƐƐĞŐĂũŽĠƋƵĞĨĂnjŝƐƚŽƚƵĚŽ͕ŵĆĞ͘
ʹŝƐƉĂƌĂƚĞ͕ĮůŚŽ͘
– Acredite em mim, eu conheço essa gente. (COUTO, 2004, p. 16)
Ɛ ƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ͕ ĂŽ ŝŶƚĞƌĂŐŝƌĞŵ ŶĞƐƐĂ ŵĂŶŝƉƵůĂĕĆŽ ĮĐĐŝŽŶĂů͕ ƚƌĂnjĞŵ
à tona o insólito da realidade que habitam, além do “insoer” entre o acei-
ƚĂƌ Ğ ŶĆŽ ĂĐĞŝƚĂƌ ŽƐ ĞůĞŵĞŶƚŽƐ ƋƵĞ Ă ĐŽŶƐƟƚƵĞŵ͘ Ɛ ŝŶĐŽŶƐŝƐƚġŶĐŝĂƐ ĚĂ ĨĂŵşůŝĂ
ĂƐƚƌŽĞƐƵĂŝŶƚĞƌĂĕĆŽĐŽŵƵŵĐĞŶĄƌŝŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͕ŽŶĚĞŽƐmirabilia deambu-
ůĂŵ͕ĨĂǀŽƌĞĐĞŵ͕ĂŽůŽŶŐŽĚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĂƐŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĚŽŝŶƐſůŝƚŽĮĐ-
cional.
Passeios pelos bosques de Zinco
ŽĞŶƚĞŶĚĞƌŵŽƐŽĂƵƚŽƌͲŵŽĚĞůŽĐŽŵŽƵŵĂĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƵƟůŝnjĂĚĂƉĞůŽĂƵƚŽƌ-
ͲĞŵƉşƌŝĐŽƉĂƌĂŐƵŝĂƌŽůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽʹĂƉƌŽƉƌŝĂŶĚŽͲŶŽƐĞĂƚƵĂůŝnjĂŶĚŽĂƐƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂƐ
equianas (1994) –, deparamo-nos com a ação do autor-empírico ao tentar realizar
ƵŵĂƚƌĂĚƵĕĆŽŝŶƚĞƌƐĞŵŝſƟĐĂĞŶƚƌĞŽŵƵŶĚŽƌĞĂůʹĞŵƐĞƵƐĞŶƟĚŽĨĂƚƵĂůʹĞŽĮĐĐŝŽ-
ŶĂůʹĂĚŵŝƟŶĚŽ͕ĐŽŶƚƵĚŽ͕ƋƵĞŶŽƉůĂŶŽĚĂĮĐĕĆŽ͕ƚƵĚŽƋƵĞŶĞůĞƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂĂĚƋƵŝƌĞ
o estatuto de real, ainda que possa não corresponder à realidade referencial externa
ao texto. Seguindo essa linha de pensamento de Umberto Eco, podemos dizer que:
ĂƐƉĂůĂǀƌĂƐƚġŵƵŵƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽŶĂŵĞĚŝĚĂĞŵƋƵĞŽƐĂƵƚŽƌĞƐ΀͘͘͘΁
ƚĞŶŚĂŵĞƐƚĂďĞůĞĐŝĚŽĚĞĮŶŝĕƁĞƐĂĐĞŝƚĄǀĞŝƐ͘DĂƐĞƐƐĂƐĚĞĮŶŝĕƁĞƐ
ĚŝnjĞŵƌĞƐƉĞŝƚŽĂŵƵŝƚŽƐƉŽƐƐşǀĞŝƐƐĞŶƟĚŽƐĚĞƵŵƚĞƌŵŽĂŶƚĞƐ
ƋƵĞĞůĞƐĞũĂŝŶƐĞƌŝĚŽĞŵƵŵĐŽŶƚĞdžƚŽĞĨĂůĞĚĞƵŵŵƵŶĚŽ͘YƵĂů
ĠŽƐĞŶƟĚŽƋƵĞĂƐƉĂůĂǀƌĂƐĂĚƋƵŝƌĞŵǀĞƌĚĂĚĞŝƌĂŵĞŶƚĞƵŵĂǀĞnj
ĂƌƟĐƵůĂĚĂƐĞŵƵŵƚĞdžƚŽ͍;ϮϬϬϳ͕Ɖ͘ϱϭͿ
^ĞŽƚƌĂĚƵƚŽƌĠĂƋƵĞůĞƋƵĞĞŶƚĞŶĚĞĂĞƐƚƌƵƚƵƌĂĚĞƵŵƐŝƐƚĞŵĂĞ͕ĂƉĂƌƟƌĚĞůĞ͕
constrói um novo sistema com o intuito de produzir efeitos semelhantes àqueles pri-
102 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
meiros, então, não se trata apenas de tradução, mas, também, de criação, na qual o
ƚƌĂĚƵƚŽƌĠĐŽŶŚĞĐĞĚŽƌƚĂŶƚŽĚĂĐƵůƚƵƌĂƋƵĞŽďƐĞƌǀĂ͕ƋƵĂŶƚŽĚĂĞƐƚƌƵƚƵƌĂŶĂƌƌĂƟǀĂ
ĞŵƋƵĞƐĞŝŶƐĞƌĞŵŽƐƐŝŐŶŽƐƐĞŵŝŽůſŐŝĐŽƐƋƵĞŝƌĄĨŽƌũĂƌ͘ůĞ͕ĂƐƐŝŵ͕;ƚĞŶƚĂͿĐƌŝĂ;ƌͿĂůŐŽ
ŶŽǀŽ͕ŶŽƉůĂŶŽƐĞŵŝŽůſŐŝĐŽ͕ĂƉĂƌƟƌĚŽƉůĂŶŽůŝŶŐƵşƐƟĐŽ͕ƚƌĂŶƐŵŝƟŶĚŽŵĞŶƐĂŐĞŶƐ͘
ƚƌĂĚƵĕĆŽŝŶƚĞƌƐĞŵŝſƟĐĂ͕ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ĠĚĞĮŶŝĚĂĐŽŵŽƚƌĂĚƵĕĆŽĚĞƵŵĚĞ-
ƚĞƌŵŝŶĂĚŽƐŝƐƚĞŵĂĚĞƐŝŐŶŽƐƉĂƌĂŽƵƚƌŽƐŝƐƚĞŵĂƐĞŵŝſƟĐŽ;K͕ϮϬϬϳͿ͕ŽŶĚĞ͕ƚĞŶĚŽ
ĞŵǀŝƐƚĂŽƐŵƵŶĚŽƐƉŽƐƐşǀĞŝƐĚĂƚƌĂĚƵĕĆŽ͕ĨĂnjͲƐĞŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽŶĆŽĂƉĞŶĂƐŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂƌ͕
ŵĂƐ ŶĞŐŽĐŝĂƌ ƐĞŶƟĚŽƐ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ ƋƵĞ Ž ŵƵŶĚŽ ĮĐĐŝŽŶĂů ƐĞ ƚŽƌŶĂ Ƶŵ ĚƵƉůŽ ĚŽ
mundo fatual – ainda que, para isso, esse mundo apresente manifestações insólitas
– produzindo a imagem de um leitor ideal, presumido pelo tradutor.
ƐƐĞůĞŝƚŽƌ͕ĚĞĂŵďƵůĂŶĚŽƉĞůŽƐďŽƐƋƵĞƐŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽƐʹĞƐƐĂ͞ĞŶĐƌƵnjŝůŚĂĚĂĚĞ
ŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽƐ͟;EK͕ϮϬϬϮ͕Ɖ͘ϭϵϴͿʹ͕ƉĞƌĐĞďĞŽƐmirabilia – em sua tradução animista
–, tanto nas pequenas coisas – como um negro cego que desenha na areia (COUTO,
ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϯϭͿ͕ƵŵĂďƌĂŶĐĂĂƐƐŝŵŝůĂĚĂƋƵĞƐĞƐƵũĂĚĞſůĞŽƉĂƌĂƐĞŶƟƌŽƚŽƋƵĞĚŽĨĂůĞĐŝ-
do amante no corpo (COUTO, 2004, p. 58) ou um policial que sente o umbigo crescer
(COUTO, 2004, p. 16) –, quanto nas grandes coisas – como a presença de um canhão
ĞƵŵŚŽŵĞŵŶƵŶĂ/ŐƌĞũĂƉĞĚŝŶĚŽĂĞƵƐƉĂƌĂƐĞƌĐŽŵŽďŝĐŚŽ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϴͲ
59), a entrada de uma assimilada às avessas em casa de branco (COUTO, 2004, p. 19).
Representa a invasão do outro no espaço do eu – e, até mesmo, no tratamento dado
ĂŽƐŵŽƌƚŽƐ͕ƐĞũĂŵƚĂŶƚŽďƌĂŶĐŽͲĐƌŝƐƚĆŽͲŽĐŝĚĞŶƚĂŝƐ͕ƋƵĂŶƚŽŶĞŐƌŽͲĂŶŝŵŝƐƚĂͲĂĨƌŝĐĂŶŽƐ͘
ŽƐŵŽƌƚŽƐŶĆŽƉĂƌĞĐĞŵĞdžŝŐŝƌ͕ƐŽŵĞŶƚĞ͕ŽĚĞǀŝĚŽƌĞƐƉĞŝƚŽ͕ŵĂƐ͕ĂŝŶĚĂ͕ŝŶŇƵĞŶĐŝĂŵ
a vida dos vivos – a exemplo de Joaquim ou de Marcelino e Custódio.
Na visão do autor/tradutor, os mirabiliaĨĂnjĞŵƉĂƌƚĞĚĂĐƵůƚƵƌĂŵĞƐƟĕĂƋƵĞ
ĠĨƌŝĐĂͬDŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĞŽƐĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐŵĞƚĂĞŵƉŝƌŝĐ os, transportados para a
ĮĐĕĆŽ͕ƌĞƐƵůƚĂŵĚĞƐŝƚƵĂĕƁĞƐĞŵƉşƌŝĐĂƐ͕ǀŝǀĞŶĐŝĂĚĂƐŶŽĐŽƟĚŝĂŶŽĚĂƚĞƌƌĂ͘dƌĂƚĂͲƐĞ
ĚĂĐŽŶƟŐƵŝĚĂĚĞĞŶƚƌĞĂƐŽƌĚĞŶƐİƐŝĐĂĞŵĞƚĂİƐŝĐĂ͕ŽŶĚĞĂǀĞƌŽƐƐŝŵŝůŚĂŶĕĂĚŽŵĂ-
ravilhoso depende da representação do real (CHIAMPI, 1980, p. 61).
Como acréscimo à teorização acerca do Real-Animismo, precisamos falar
ĚĞƐƐĞƚƌĂĚƵƚŽƌƋƵĞ͕ĂƉĞƐĂƌĚĂƐŝŶŇƵġŶĐŝĂƐĐƵůƚƵƌĂŝƐ͕ŶĆŽĠůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ŵĂƐ
ĂĨƌŝĐĂŶŽ͘WĂƌĂĚǁĂƌĚ͘dLJůŽƌ;ϮϬϭϭͿ͕ŽƚĞƌŵŽ͞ĂŶŝŵŝƐŵŽ͟ĚĞƌŝǀĂĚĞ͞ĂŶŝŵĂ͕͟ƋƵĞ
ƉŽĚĞƐŝŐŶŝĮĐĂƌƚĂŶƚŽĞŶĞƌŐŝĂ͕ƋƵĂŶƚŽĞƐƉşƌŝƚŽŽƵĂůŵĂ͘^ĞŽƐmirabilia – tão caros
ao Real-Maravilhoso – guardam a ideia de “ver, observar com cuidado e atenção”,
ƉŽĚĞƌşĂŵŽƐĂĮƌŵĂƌƋƵĞŽanimaĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞƌŝĂĂ͞ƐĞŶƟƌ͕͟ĐŽŶƐƟƚƵŝŶĚŽ͕ĂƐƐŝŵ͕Ă
diferença primordial entre os mirabiliaůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐĞŽƐanima africanos? A
ƉĞƌŐƵŶƚĂƐĞĨĂnjŶĞĐĞƐƐĄƌŝĂƉŽƌ͕ĞŵŶŽƐƐĂƐ͞ĚĞĂŵďƵůĂĕƁĞƐ͕͟ŽƌĂƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐƚƌĂĕĂƌ
aproximações entre as correntes do Real-Maravilhoso e do Real-Animismo, ora
ƉƌŽĐƵƌĂŵŽƐĚŝĨĞƌĞŶĐŝĄͲůĂƐ͕ƋƵĂŶĚŽƉŽƐƐşǀĞů͘hŵĂǀĞnjƋƵĞĂƐƚĞŽƌŝnjĂĕƁĞƐĂĐĞƌĐĂĚŽ
ƚĞƌŵŽ ĂƋƵŝ ƉƌŽƉŽƐƚŽ ƉĂƌĂ ĚĞƐŝŐŶĂƌ ĞƐƐĂ ǀĞƌƚĞŶƚĞ ĚŽ ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ Ğŵ ĨƌŝĐĂ
não foram tão aprofundadas, pela ausência de outros estudos anteriores a que se
pudesse recorrer, não prosseguiremos, por ora, tratando da questão, mas procu-
raremos aproveitar essa linha de raciocínio, ao longo de nosso ensaio, mapeando,
ƐĞŵƉƌĞƋƵĞŶĞĐĞƐƐĄƌŝŽ͕ĂƐůŝŵŝƚĂĕƁĞƐŝŵƉŽƐƚĂƐĞĚĞŵĂƌĐĂŶĚŽĂƋƵŝůŽƋƵĞũƵůŐĂƌŵŽƐ
ISBN 978-85-8199-013-2 103
João Olinto Trindade Junior
ser nossas contribuições para o avanço dos estudos.
A casa dos Castro, refúgio e manifestação da cristandade ou glória lusitana,
ĨƌĞŶƚĞĂƵŵĂĐƵůƚƵƌĂĐŽŶƐŝĚĞƌĂĚĂďĄƌďĂƌĂĞƚĞƌƌŝƚſƌŝŽĚĞůſŐŝĐĂĞŵƉşƌŝĐĂ͕ƐĞ͕ƉŽƌƵŵ
lado, representa tudo o que os branco-cristãos defendem, por outro, vai se descons-
truindo gradualmente, como um espaço de fronteira entre o eu e o outro, sendo
transpassado. Dessa maneira, os símbolos que guiam os branco-cristãos vão sendo
ƐƵƉĞƌĂĚŽƐĞͬŽƵƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽƐ͘hŵĞdžĞŵƉůŽĚŝƐƐŽĠ:ŽĂƋƵŝŵĚĞĂƐƚƌŽ͕ƋƵĞƐĞƚŽƌ-
na presente na trama, por sua ausência, evocado pelo seu silêncio, manifestando-se
como uma espécie de duplo nas vidas alheias, chegando, mesmo, a agir, também,
como representação dos símbolos que conduzem as vidas das personagens.
A relação com o velho Castro, “desmorto”, que, para sua família, não fora
ĚĞǀŝĚĂŵĞŶƚĞĞŶƚĞƌƌĂĚŽ͕ŝŶŇƵĞŶĐŝĂƚŽĚŽƐŽƐĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽƐŶĂƌƌĂƟǀŽƐ͕ƐĞŶĚŽƐƵĂ
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ͕ ĐŽŵŽ ƉĂƚƌŝĂƌĐĂ ʹ ŵĞƐŵŽ ĂƵƐĞŶƚĞ ŶĂ ĐŽŶĚŝĕĆŽ İƐŝĐĂ͕ ŵĂƐ ƉƌĞƐĞŶ-
te na psíquica ou “espiritual” –, o símbolo da casa portuguesa. Essa representação
é adotada intensamente por Lourenço – como se pode depreender das palavras
de Jessumina, ao dizer que ele foi possuído pela sua própria vida por culpa do pai
(COUTO, 2004, p. 50-51) –, em um período de transição, entre a guerra colonial e o
ŐŽůƉĞƋƵĞƉƀƐĮŵăĚŝƚĂĚƵƌĂƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂ͕ŽϮϱĚĞďƌŝůĚĞϭϵϳϰ͘
WŽƌĞƐƐĞǀŝĠƐ͕ĂƐĞŵŝŽƐĞŶŽƐďŽƐƋƵĞƐĚĂĮĐĕĆŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂŽƌĞ-
ŐŝŵĞƐĂůĂnjĂƌŝƐƚĂʹĞƐƵĂĚĞĐĂĚġŶĐŝĂʹ͕ƚĂŶƚŽŶĂĮŐƵƌĂĚŽƐĂƐƚƌŽ͕ƋƵĂŶƚŽŶĂĚĞƐƵĂ
residência, uma insólita casa, na qual as pessoas assumem posturas diferentes das
que querem que os demais conheçam, a ponto de ser um lugar onde um morto –
:ŽĂƋƵŝŵʹĠƚƌĂƚĂĚŽĐŽŵŽƐĞĂŝŶĚĂĞƐƟǀĞƐƐĞǀŝǀŽ͕ƐĞũĂƉĞůŽƐĞƵůƵŐĂƌƐĞƉĂƌĂĚŽŶĂ
ŵĞƐĂĞŽƐƚĂůŚĞƌĞƐƐĞŵƉƌĞƉŽƐƚŽƐĐŽŵŽƐĞĨŽƐƐĞĂĚĞŶƚƌĂƌĂƋƵĂůƋƵĞƌŵŽŵĞŶƚŽ͕ƐĞũĂ
ƉĞůŽƐĞƵůĂĚŽĚĂĐĂŵĂŵĂŶƟĚŽƐĞŵƉƌĞůŝǀƌĞĞƉĞƌĨƵŵĂĚŽƉĞůĂĞƐƉŽƐĂ͘ĂŵĞƐŵĂ
maneira, Custódio e Marcelino têm suas “eternidades” respeitadas e homenageadas
na maçaniqueira” (COUTO, 2004, p. 65).
Se, por um lado, a casa – tal qual uma embaixada, que é território de um
ƉĂşƐ͕ĞŵŽƵƚƌŽ͕ŽŶĚĞƋƵĞƌƋƵĞƐĞĞŶĐŽŶƚƌĞʹƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĂƉĄƚƌŝĂ͕ĂĨĂŵşůŝĂĞĂŝĚĞŶ-
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nos traz a personagem Lourenço de Castro como representação do orgulho do im-
ƉĠƌŝŽƉŽƌƚƵŐƵġƐ͕ĞƐƉĂůŚĂĚŽƉĞůŽŵƵŶĚŽ͘ƋƵĞƐƚĆŽĚŽĚĞƐƟŶŽƉŽƌƚƵŐƵġƐĠƉŽƐƚĂ
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ƚĞŝĚĞĂůŝnjĂĚŽ͘WƌŽƐƐĞŐƵŝŶĚŽŶĂĂĮƌŵĂĕĆŽĚĞ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ƐŽďƌĞĂ͞ƐƵƉŽƐƚĂ͟ƉŽƐƐĞƐ-
ƐĆŽĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ǀĞŵŽƐĐŽŵŽĞůĞĐĂŶƚĂƵŵĂ͞ƉĄƚƌŝĂĞƚĞƌŶĂĞŝŵƵƚĄǀĞů͘WŽƌƚƵŐĂůƵŶŽ
e indivisível” (COUTO, 2004, p. 69), pretendendo resgatar um passado que, diante
de um presente insólito, apresenta suas incoerências.
Dessa forma, a “insolitude” do império lusitano e sua glória, mais idealizada
104 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĚŽƋƵĞƌĞĂů͕ĠƌĞƐŐĂƚĂĚĂĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕Ğ͕ĂŽƌĞƐŐĂƚĂƌĞƌĞƐ-
ƐŝŐŶŝĮĐĂƌƚĂůĨĂƚŽŚŝƐƚſƌŝĐŽ͕ŽƵƚŽƌĞƉĞƚĞ͕ůŝƚĞƌĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕ĂĐůĄƐƐŝĐĂƌĞůĂĕĆŽʹĂƚƌĂǀĠƐ
das personagens envolvidas – da condição histórica de Portugal ser incapaz de se
unir às vanguardas e tomar parte, como agente, dos processos de conquista, uma
vez que, “no coração da tempestade”, perde sua hora e sua vez.
ƐĂĕƁĞƐĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĞŵůŽƵǀĂƌƵŵĂƉĄƚƌŝĂĚŝƐƚĂŶƚĞ͕ƐĞ͕ƉŽƌƵŵůĂĚŽ͕ƐĆŽ
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ŝŶƐſůŝƚĂƌĞůĂĕĆŽĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĐŽŵĂƉĄƚƌŝĂʹĞŽƐŽŶŚŽĚŽƉĂŝʹĠǀŝƐƚĂĐŽŵŽƵŵĂ
doença, agravando-se por seus delírios de sangue nas mãos, seu umbigo crescendo
ĞƐĞƵƐĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽƐŝŶĨĂŶƟƐĞŵĐĂƐĂ͘ůĠŵĚŝƐƐŽ͕ƐƵĂƉƌĞƐĞŶĕĂĞŵĨƌŝĐĂʹĞĚĞ
uma assimilada em casa, causando estranhamento frente à “supremacia” de cultura
de origem – fazem-no agir de maneira cada vez mais dura, em defesa de um Portugal
idealizado. Diferentemente da glória das grandes navegações, a novela explicita a
sensação de abandono e desgarramento dos portugueses no além-mar. A fragilidade
da administração colonial, assim, nos informa muito mais do que as versões da his-
tória metropolitana. O “menor”, à sua maneira, nos diz muito mais sobre o “maior”.
EŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĂĞŶĐĞŶĂĕĆŽĚĂƐƵďǀĞƌƐĆŽĚŽƌĞĂůďƵƐĐĂĞdžƉĞƌŝĞŶĐŝĂƌ͕ŶŽůĞŝ-
tor, uma hesitação perante um episódio de fenomenologia metaempírica, cercado
de ambiguidade, impossibilitando que ele – e as personagens – cheguem a alguma
ĞdžƉůŝĐĂĕĆŽĚĞĮŶŝƟǀĂĂĐĞƌĐĂĚŽŽĐŽƌƌŝĚŽ;dKKZKs͕ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϯϴͲϯϵͿ͘ŵVinte e zin-
co͕ǀĞƌŝĮĐĂͲƐĞĂŝŶĐĞƌƚĞnjĂĂĐĞƌĐĂĚĂƐĐĂƵƐĂƐĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĂŐŝƌĚĞŵĂŶĞŝƌĂŝŶƐſůŝƚĂ͕
havendo um hiato entre explicações apoiadas em doença, e, outras, nos poderes
ŵĄŐŝĐŽƐĚŽƐŶĞŐƌŽƐ͘:ĄĂƐƐƵŵŝŵŽƐ͕ƉŽƌĠŵ͕ĂĚŝĮĐƵůĚĂĚĞĞŵĐůĂƐƐŝĮĐĂƌĂŽďƌĂŵŝĂ-
ĐŽƵƟĂŶĂŶĂƐǀĞƌƚĞŶƚĞƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ stricto sensu.
^Ğ͕ĂƐƐŝŵŽĮnjĠƐƐĞŵŽƐ͕ŶĆŽŚĂǀĞƌŝĂĚƷǀŝĚĂƐƋƵĂŶƚŽĂŽƐŵŽƟǀŽƐƋƵĞůĞǀĂƐƐĞŵ
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ĞƐƟǀĞƐƐĞĚŽĞŶƚĞ͕ŽƵ͕ĂŝŶĚĂ͕ƉŽƐƐƵşĚŽƉĞůĂƐĨŽƌĕĂƐŵĂůŝŐŶĂƐĚĂƚĞƌƌĂ͘ƐƐƵŵŝŶĚŽŽƐ
mirabiliaĐĂƌƉĞŶƟĂŶŽƐ͕ƋƵĞŶŽƐůĞǀĂŵƉĂƌĂŽƵŶŝǀĞƌƐŽĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ƉŽĚĞŵŽƐ
ŶŽƐŵĂŶƚĞƌĞŵŚĞƐŝƚĂĕĆŽƉůĞŶĂ͕ƐĞũĂĂĐĞŝƚĂŶĚŽƵŵĂĚĞƐƐĂƐŚŝƉſƚĞƐĞƐ͕ĞŵĚĞƚƌŝŵĞŶƚŽ
ĚĂŽƵƚƌĂ͕ŽƵ͕ŵĞůŚŽƌ͕ĂĚŵŝƟŶĚŽĂĐŽĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞĂŵďĂƐ͕ƐĞŵƋƵĞƵŵĂĞůŝŵŝŶĞŽƵ
ĞŶĨƌĂƋƵĞĕĂĂŽƵƚƌĂ͕ƐĞũĂĂĐĞŝƚĂŶĚŽĂƉŽƐƐĞƐƐĆŽʹĞŵĞƚĂŵŽƌĨŽƐĞʹĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͘
hŵĂǀĞnjƋƵĞŽĞŶƐĂŝŽĂďŽƌĚĂĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŝŶƐſůŝƚŽĮĐĐŝŽŶĂůĞŵVinte
e zinco, privilegiando a vertente do Real-Maravilhoso/Animismo, vemos o encontro
entre Margarida e Jessumina – em que aquela, portuguesa e branca, admite a inter-
ǀĞŶĕĆŽĚĞĨŽƌĕĂƐƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂŝƐʹĐŽŵŽĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂĂƵdžŝůŝĂƌŶĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂ͘
ŽĚŝĄůŽŐŽĞŶƚƌĞĞůĂƐ͕ĚĞƐƚĂĐĂŵŽƐƉĂƌĂŝůƵƐƚƌĂƌŶŽƐƐĂƉƌŽƉŽƐƚĂĚĞůĞŝƚƵƌĂ͗
– Antes de ir, Dona Margarida, me diga uma coisa: veio por causa
ĚĞƐĞƵĮůŚŽ>ŽƵƌĞŶĕŽ͍
ʹ ^ŝŵ͕ ĞůĞ ĞƐƚĄ ĚŽĞŶƚĞ ΀͘͘͘΁ K ƋƵĞ ŵĞ ƉƌĞŽĐƵƉĂ ƐĆŽ ĂƐ ǀŝƐƁĞƐ
de Lourenço. Por exemplo , aquela coisa do umbigo a crescer.
YƵĞĂŇŝĕĆŽ͊
– Dona Margarida, eu pergunto: esses panos com que ele dorme
ISBN 978-85-8199-013-2 105
João Olinto Trindade Junior
ŶĆŽƐĞƌĄƋƵĞĞƐƚĆŽĂĚĞƐĂƉĂƌĞĐĞƌ͍
– Sim, é verdade.
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ůŽĐŽŶƚƌĂƐĞƵĮůŚŽ͘^ĆŽŽƐŵĠƚŽĚŽƐĚĂŶŽƐƐĂŐĞŶƚĞ͘;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϮͿ
A insólita crença de Lourenço nas glórias de sua nação é confrontada em todos os
ŵŽŵĞŶƚŽƐ͕ƚĂŶƚŽŶĂƐƌƵĂƐʹƉĞůĂĮŐƵƌĂĚŽĐĞŐŽdĐŚƵǀŝƐĐŽĞƐƵĂƐƵƉŽƐƚĂƌĞůĂĕĆŽĐŽŵ
ĂƟĂʹ͕ƋƵĂŶƚŽĞŵƐƵĂĐĂƐĂʹƉĞůĂƐŝŵĂŐĞŶƐĚĂƟĂĂƐƐŝŵŝůĂĚĂĞĚĂŵĆĞĚĞƐĂĐƌĞĚŝƚĂĚĂ
ĐŽŵƐƵĂƉĄƚƌŝĂ͘
dŽĚŽƌŽǀĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƉŽƐƐşǀĞŝƐĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚġŶĐŝĂƐĞŶƚƌĞŽƐƚĞŵĂƐĨĂŶƚĄƐƟĐŽƐ
– ancorados no “eu” e no “tu” (1992, p. 115-148) – e o mundo da criança e do psicó-
ƟĐŽ;ϭϵϵϮ͕Ɖ͘ϭϮϴͿ͘^Ğ͕ĞŵƉĂƌƚĞ͕ĚĞŶƚƌŽĚĞĐĂƐĂ͕>ŽƵƌĞŶĕŽĂŐĞĐŽŵŽƵŵĂĐƌŝĂŶĕĂ͕
que usa de panos e cavalinhos, em outra esfera vive um sonho – “seu ideal” (COUTO,
2004, p. 69) –, como em um eterno presente ligado ao passado de forma ininterrup-
ơǀĞů͘ƉƌĞĐŝƐŽƵŵĂƌƵƉƚƵƌĂŝŶƐſůŝƚĂ͕ƋƵĞƌĞĂůŝnjĞĂĐŽŶƟŐƵŝĚĂĚĞĞŶƚƌĞrealia e mira-
bilia (CHIAMPI, 1980, p. 61) – visão de seu pai amalgamado a uma criatura da terra,
ĚĞƐĐŽďĞƌƚĂĚŽƉĂƐƐĂĚŽĚŽƉĂƚƌŝĂƌĐĂĚĂĨĂŵşůŝĂ͕ƐƵƉŽƐƚĂŐƌĂǀŝĚĞnjĚĞƐƵĂƟĂʹƉĂƌĂ
derrubar as crenças de Lourenço, deixando-o em estado de abandono, sem saber o
que seguir ou em que se espelhar.
Joaquim, por sua vez, é uma forte presença na trama e, embora morto, fala
ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƐĞƵƐŝůġŶĐŝŽŶĂĂƵƐġŶĐŝĂİƐŝĐĂ͘^ĞŵŝŽƐĞĚŽƌĞŐŝŵĞʹĂƐƐŝŵĐŽŵŽĂĐĂƐĂ
ʹ͕ŽǀĞůŚŽĂƐƚƌŽŐĞƌĂƌĞŇĞdžŽƐĚĞƐƵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽƐĞŵŝſƟĐĂŶĂƐĚĞŵĂŝƐƉĞƌƐŽŶĂ-
gens, interferindo não somente em seu modo de agir, mas em sua maneira de ser.
EĆŽƐĞůŝŵŝƚĂĂƉĞŶĂƐĂƌĞŇĞƟƌͲƐĞŶĂĚŽĞŶĕĂŽƵƉŽƐƐĞƐƐĆŽĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ŵĂƐĠƌĞĨĞ-
rido como um duplo de cada uma das personagens com as quais manteve relação:
ŽŵŽĚĞůŽĚĞǀŝĚĂĂƐĞƌƐĞŐƵŝĚŽƉŽƌ>ŽƵƌĞŶĕŽ͖ŽƋƵĞƉƌĞŶĚĞDĂƌŐĂƌŝĚĂăƋƵĞůĞůƵŐĂƌ͖
ĂƋƵĞůĞƋƵĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŽƋƵĞ/ƌĞŶĞŽĚĞŝĂĞĐŽŵďĂƚĞ͖ƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞůƉĞůĂĐĞŐƵĞŝƌĂĚĞ
Tchuvisco, que pagou com os próprios olhos por ver o que não deveria ter visto.
A ideia de um pai – ausente ou perdido – é frequente na novela, de forma
que Joaquim representa tanto o poder salazarista no além-mar, a falta de uma lide-
rança, e, até mesmo, os ideais, semelhantemente a ele – chefe dos Castro e agente
da PIDE –, mortos, que moviam o povo português pelo mundo. Nas palavras de
/ƌĞŶĞ͕͞ĞƐƚĂĐĂƐĂǀĂŝĚĞĮŶŚĂƌ͕ĂƚĠŶĞůĂĂƉŽĚƌĞĐĞƌŽĞƐƉşƌŝƚŽĚŽǀĞůŚŽĂƐƚƌŽ͟;ϮϬϬϰ͕
Ɖ͘ϮϰͿ͕ĚĞŝdžĂŶĚŽĞǀŝĚĞŶƚĞŽĞdžĞƌĐşĐŝŽĚŽĞƐĐƌŝƚŽƌĂŽƵƟůŝnjĂƌĂĮŐƵƌĂĚĞ:ŽĂƋƵŝŵĐŽŵŽ
representação do regime, aproveitando-se da simbologia associada à família.
Em um mundo de lógica animista, no qual, até mesmo os Castro começam a
reconhecer a existência de poderes ocultos – mas não completamente, a exemplo
da dúvida de Lourenço acerca da cegueira de Tchuvisco (COUTO, 2004, p. 27)–, o
espírito de Joaquim age como um contraventor da ordem “natural”. Ironicamente,
ao tentar cegar Andaré, o agente da PIDE faz com que esse volte-se para dentro de si
ĞĞŶdžĞƌŐƵĞĂďĞůĞnjĂĚĞƐƵĂƚĞƌƌĂʹŽƋƵĞ͕ĚƵƉůĂŵĞŶƚĞŝƌƀŶŝĐŽ͕ŶŽƐƌĞŵĞƚĞăƉƌŽƉŽƐ-
ƚĂĚĞĂƌƉĞŶƟĞƌĂĐĞƌĐĂĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͕ƋƵĂŶĚŽĂƌŐƵŵĞŶƚĂ
ƋƵĞŽƐŶĂƌƌĂĚŽƌĞƐůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐƐĞǀŽůƚĂŵƉĂƌĂŽƐĞƵŵƵŶĚŽ͕ĐƵũŽƉŽƚĞŶĐŝĂů
106 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĚĞƉƌŽĚşŐŝŽƐƐŽďƌĞƉƵũĂǀĂ͕ĞŵŵƵŝƚŽ͕ĂĨĂŶƚĂƐŝĂĞĂŝŵĂŐŝŶĂĕĆŽĞƵƌŽƉĞŝĂƐ;,/DW/͕
ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϯϮͿ͘ũƵƐƚĂŵĞŶƚĞƋƵĂŶĚŽ͕ĞŵďŽƌĂĂƐƐŝŵŝůĂĚŽ͕ŶĆŽĂĐĞŝƚŽƉĞůĂĐƵůƚƵƌĂƋƵĞ
ĂďƌĂĕŽƵ͕ŽŶĞŐƌŽŽůŚĂƉĂƌĂƐƵĂƚĞƌƌĂ͕ĂĮŵĚĞƐĞĚĞƐĐŽďƌŝƌ͕ƚĂůƋƵĂůdĐŚƵǀŝƐĐŽʹĞƐ-
pécie de metonímia do negro –, que estudou em colégio de Padre e queria ser como
os brancos, mas, ao perder parte da visão, volta-se para os mirabilia da terra, com-
pondo, na areia, desenhos de mulheres, tão perfeitos, em que elas pareciam dançar
(COUTO, 2004, p. 32).
Em uma modernidade líquida, cada sociedade cria seus próprios monstros,
ƋƵĞ͕ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ƐĆŽƵŵĐŽŶǀŝƚĞƉĂƌĂŽĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽĚĞƐƐĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͘ƐŵŽƟ-
vações da monstruosidade parecem habitar dentro de cada um (BAUMAN, 2008,
p. 90), como uma linha/fronteira a se manter distante ou ser evitada. Na mesma
ŵĞĚŝĚĂĞŵƋƵĞ>ŽƵƌĞŶĕŽĐŽƌƉŽƌŝĮĐĂƐĞƵƐŵĂŝŽƌĞƐŵĞĚŽƐŶĂŝŵĂŐĞŵĚŽƐŶĞŐƌŽƐ͕
aproxima-se, cada vez mais, de um outro ƟƉŽĚĞŵŽŶƐƚƌŽ͕ŽŶĂƐĐŝĚŽĚĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞ
que um regime militar atuante tem nas ações coloniais (COHEN, 2000, p. 9).
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Uma vez que esse monstro é “transgressivo, demasiadamente sexual, perversamen-
ƚĞĞƌſƟĐŽ͕ƵŵĨŽƌĂͲĚĂͲůĞŝ͗ŽŵŽŶƐƚƌŽĞƚƵĚŽŽƋƵĞĞůĞĐŽƌƉŽƌŝĮĐĂĚĞǀĞŵƐĞƌĞdžŝůĂĚŽƐ
ou destruídos” (COHEN, 2000, p. 11).
DŝĂ ŽƵƚŽ ƌĞƐŐĂƚĂ ĞƐƐĞ ŵŽŶƐƚƌŽ ŶĂ ĮŐƵƌĂ ĚŽ ƉĂƚƌŝĂƌĐĂ ŵŽƌƚŽ ĚŽƐ
Castro, Joaquim, agente da PIDE, que, em sua época, torturava e matava os presos,
ĂůĠŵ ĚĞ ĂďƵƐĂƌ ƐĞdžƵĂůŵĞŶƚĞ ĚĞůĞƐ ;KhdK͕ ϮϬϬϰ͕ Ɖ͘ ϴϰͿ͕ ŵŽƟǀŽ ĚĂ ĐĞŐƵĞŝƌĂ ĚĞ
Tchuvisco, que pegou Joaquim cometendo ato libidinoso, de natureza homossexual,
ĐŽŵŽƐŶĞŐƌŽƐƉƌĞƐŽƐ͘ƐƐĂĮŐƵƌĂĂƵƚŽƌŝƚĄƌŝĂ͕ĚĞƉŽŝƐĚĞŵŽƌƚĂʹŽƵ͞ďŽƌƌĂĚĂ͟ŶĂ
ŶĂƌƌĂƟǀĂʹƚĞƌĄƐƵĂĨƵŶĕĆŽĂƐƐƵŵŝĚĂƉŽƌƐĞƵĮůŚŽ͕>ŽƵƌĞŶĕŽʹƋƵĞ͕ĂƚĠƋƵĂƐĞŽĮŶĂů
da história, desconhecia os “desvios sexuais” do pai.
Dessa maneira, supostamente possuído pelo espírito do pai (2004, p. 50-51),
Lourenço age como um duplo, e seu maior medo era “ser pai e acabar sendo como
seu pai fora” (COUTO, 2004, p. 94). Se as personagens, ao seu modo, agem como um
ĚƵƉůŽĚĞ:ŽĂƋƵŝŵ͕ŶĂŵĞĚŝĚĂĞŵƋƵĞĞůĞĠƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞůƉĞůĂƌĞĂůŝnjĂĕĆŽĚĞůĂƐĐŽŵŽ
semioses de si mesmo e deles próprios, Lourenço se torna, ele também, um duplo
de todas as personagens principais da trama, espécie de semiose-mosaico.
Filipe Furtado, ao apontar a função da personagem – uma das categorias da
ŶĂƌƌĂƟǀĂʹĐŽŵŽ͞ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞĞůĞŵĞŶƚŽĚĞŽƌŝĞŶƚĂĕĆŽŶĂŇŽƌĞƐƚĂ dos sinais ergui-
dos ao longo do texto” (1980, p. 85, grifo nosso), aponta para os papéis que essa
ĂƐƐƵŵĞ͕ĚĞŵŽŶƐƚƌŽ͕ǀşƟŵĂĞĞdžƚĞƌŵŝŶĂĚŽƌ͘ZĞƐƉĞĐƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ŽƉƌŝŵĞŝƌŽĚĞƐĞŶǀŽů-
ve e orienta o curso geral da ação, o segundo suporta o peso dos acontecimentos
Ğ͕ŽƚĞƌĐĞŝƌŽ͕ĂŐĞĚĞŵĂŶĞŝƌĂĐŽŶƚƌĄƌŝĂĂŽĐƵƌƐŽĚĂĂĕĆŽ͘;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϴϵͿ͘KĐƵƉĂŶĚŽ͕
ĚŝĐŽƚŽŵŝĐĂŵĞŶƚĞʹĞ͕ĂƚĠ͕ŝŶƐŽůŝƚĂŵĞŶƚĞ͕ũĄƋƵĞ͕ĞŵƚĞƐĞ͕ĂƚƵĂĞŵƉĂƉĠŝƐ͕ƐĞŶĚŽĂů-
ŐƵŶƐ͕ĐŽŶĐĞŝƚƵĂůŵĞŶƚĞ͕ĂŶƚĂŐƀŶŝĐŽƐʹ͕ĂƉŽƐŝĕĆŽĚĞŵŽŶƐƚƌŽʹĐŽŵŽƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŶƚĞ
ĚŽƐĂƚŽƐŵĂŝƐŐƌŽƚĞƐĐŽƐŝŵƉƵƚĄǀĞŝƐĂŽĮŵĚŽƌĞŐŝŵĞ͕ƋƵĂůƐĞũĂ͕ĂƚŽƌƚƵƌĂʹ͕ǀşƟŵĂʹ
ISBN 978-85-8199-013-2 107
João Olinto Trindade Junior
suposta, dos poderes dos pretos – e de exterminador – poderíamos, inclusive, aqui,
ƵƟůŝnjĂƌŽƚĞƌŵŽ͞ĐĂĕĂĚŽƌ͟ʹ͕ĚĂƋƵĞůĞƐƋƵĞĂŵĞĂĕĂŵĚĞƐƚƌƵŝƌƐĞƵŵŽĚŽĚĞǀŝĚĂ͕ĐŽŶ-
ƚĂŵŝŶĂĚŽƐƉŽƌƵŵĂĚŽĞŶĕĂĐŚĂŵĂĚĂ͞ƉĄƚƌŝĂDŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϱϲͿ͕
Lourenço, ao mesmo tempo em que se apavora, representa o pavor de tantos ou-
tros. Conforme Mia Couto observa, em epígrafe, citando Alfred Metraux, “o homem
ŶƵŶĐĂĠĐƌƵĞůĞŝŶũƵƐƚŽĐŽŵŝŵƉƵŶŝĚĂĚĞ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϵͿ͘
ŽŵŽĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂĚŝƌĞƚĂĚĞƐĞƵƐ͞ĞdžĐĞƐƐŽƐ͕͟ĂŽĮŶĂůĚĞĐĂĚĂĚŝĂĚĞƚƌĂďĂ-
lho, mesmo após lavar o sangue de suas mãos. Lourenço vê, constantemente, san-
ŐƵĞĞŵƐĞƵƐďƌĂĕŽƐ͕ĐŽŵŽƐĞĞƐƚĞƐŶƵŶĐĂĞƐƟǀĞƐƐĞŵƚŽƚĂůŵĞŶƚĞůŝŵƉŽƐ;KhdK͕
2004, p. 15), enxergando, até mesmo, sangue em seus brinquedos e no pano que
usa para dormir (COUTO, 2004, p. 47). Esse sangue, presente muito mais no nível
ĚŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝŽĚŽƋƵĞŶŽĚŽƌĞĂůʹĨĂůĂŵŽƐĂƋƵŝĚŽƌĞĂůƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽŶĂĮĐĕĆŽ͕ŶĆŽ͕
ŶĂƚƵƌĂůŵĞŶƚĞ͕ĚŽƌĞĂůǀĞƌŝĮĐĂĚŽŶĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĞŵƉşƌŝĐĂĚĂƋƵĂůŽĐŽŶƐƚƌƵƚŽĮĐĐŝŽŶĂů
é parasita –, remete-nos ao que Todorov relaciona a um ato estranho:
KĞƐƚƌĂŶŚŽƌĞĂůŝnjĂ͕ĐŽŵŽƐĞǀġ͕ƵŵĂƐſĚĂƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐĚŽĨĂŶƚĄƐ-
ƟĐŽ͗ĂĚĞƐĐƌŝĕĆŽĚĞĐĞƌƚĂƐƌĞĂĕƁĞƐ͕ĞŵƉĂƌƟĐƵůĂƌĚŽŵĞĚŽ͖ĞƐƚĄ
ůŝŐĂĚŽƵŶŝĐĂŵĞŶƚĞĂŽƐƐĞŶƟŵĞŶƚŽƐĚĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞŶĆŽĂƵŵ
ĂĐŽŶƚĞĐŝŵĞŶƚŽŵĂƚĞƌŝĂůƋƵĞĚĞƐĂĮĞĂƌĂnjĆŽ;ŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĂŽ
ĐŽŶƚƌĄƌŝŽ͕ƐĞĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂƌĄƉĞůĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĞdžĐůƵƐŝǀĂĚĞĨĂƚŽƐƐŽ-
brenaturais, sem implicar a reação que provoquem nas persona-
gens). (1992, p. 53)
ƉſƐŽƐĞǀĞŶƚŽƐĚŽϮϱĚĞďƌŝů͕ĂƐĐƌĞŶĕĂƐĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽƐĞŐƵĞŵĂƚĠŽĮŶĂů
ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ ƐĞŶĚŽ ĐŽŶĨƌŽŶƚĂĚĂƐ͘ EŽ ŵĞƐŵŽ ŵŽŵĞŶƚŽ Ğŵ ƋƵĞ ƌĞĐĞďĞ Ă ŶŽơĐŝĂ
ĚĞƋƵĞĂƟĂĞƐƚĄŐƌĄǀŝĚĂ͕ƚĂŵďĠŵƌĞĐĞďĞŽĚĂƋƵĞĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞ͕ŽƋƵĞŝŵƉůŝĐĂƌŝĂ
ĂĚĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂĕĆŽĚĞƐĞƵeu͕ŵĞĚŽŵĄdžŝŵŽ͘ƐƵƉŽƐƚĂŐƌĂǀŝĚĞnjĚĞ/ƌĞŶĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂ
ŶĆŽĂƉĞŶĂƐĂĞŶƚƌĂĚĂĚĞĮŶŝƟǀĂĞŵĨƌŝĐĂ͕ƉĂƌĂĂůĠŵĚŽƋƵŝŶƚĂůĚĂĐĂƐĂ͕ĞůŝŵŝŶĂŶĚŽ
ŽƐĚĞŐƌĂƵƐĚĂǀĂƌĂŶĚĂʹůŽŐŽ͕ƉŽŶĚŽĮŵăƐĨƌŽŶƚĞŝƌĂƐĞŶƚƌĞŽƐĚŽŝƐƵŶŝǀĞƌƐŽƐĚŝƐƟŶ-
tos: colonos e colonizados, brancos e negros, portugueses e africanos, senhores e
ƐƵďũƵŐĂĚŽƐʹ͕ŵĂƐ͕ĂŝŶĚĂ͕ĂƉĞƌƉĞƚƵĂĕĆŽĚĞĂůŐŽĚŝĨĞƌĞŶƚĞĚŽƋƵĞ͕ĞŵƐƵĂŽƉŝŶŝĆŽ͕
ĚĞǀĞƌŝĂƐĞƌĂŽƌĚĞŵŶĂƚƵƌĂůĚĂƐĐŽŝƐĂƐʹŽƵƐĞũĂ͕ĂƐĞŐƌĞŐĂĕĆŽ͕ĂŶƚĞƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂ
ƉĞůŽƐĚĞŐƌĂƵƐƋƵĞƐĞƉĂƌĂǀĂŵĂǀĂƌĂŶĚĂ͕ŽŶĚĞƚĞƌŵŝŶĂǀĂĂĐĂƐĂƐĞŶŚŽƌŝĂů;ŵĞƚĄĨŽƌĂ
ĚĂŵĞƚƌſƉŽůĞͿ͕ĞŽƋƵŝŶƚĂů͕ŽŶĚĞĐŽŵĞĕĂĨƌŝĐĂ͘
ƐƐĂ ƌĞůĂĕĆŽ ŽƉŽƐŝƟǀĂ ĞŶƚƌĞ Ă ĐĂƐĂ͕ ĚĂ ƋƵĂů Ă ǀĂƌĂŶĚĂ Ġ ƉĂƌƚĞ͕ Ğ Ž ƋƵŝŶƚĂů
ƌĞŇĞƚĞ͕ŶŽƉůĂŶŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ĂƐƚĞŶƐƁĞƐĞŶƚƌĞĨƌŽŶƚĞŝƌĂͬƉĂşƐ͕ƋƵĞĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞͬŐƌĂǀŝ-
ĚĞnjĚĞ/ƌĞŶĞ͕ƉĞƌŵŝƟŶĚŽƋƵĞƐĞƉƌŽƉŽŶŚĂƵŵĚŝĄůŽŐŽĐŽŵŽĐŽŶĐĞŝƚŽƉƌŽƉŽƐƚŽƉŽƌ
^ƚƵĂƌƚ,Ăůů͕ĂŽƌĞƐŐĂƚĂƌĚǁĂƌĚ^ĂŝĚ͕ĂƌĞƐƉĞŝƚŽĚĂƐŐĞŽŐƌĄĮĐĂƐŝŵĂŐŝŶĄƌŝĂƐ;ϭϵϵϬͿ͘
^ĆŽƉŽŶƚŽƐĚĞůŝŵŝƚĂĚŽƐĐŽŵŽƐĞƵƐʹŶŽƐĞŶƟĚŽĚĞƉŽƐƐĞĚŽƐƵũĞŝƚŽƐŽďƌĞĂůŐŽ͕ĂƚĠ
mesmo sobre si –, pessoais e intransponíveis, mas em constante movimentação. Essa
ŐĞŽŐƌĂĮĂͬĨƌŽŶƚĞŝƌĂǀŝŽůĂĚĂ͕ƌƵƉƚƵƌĂďƌƵƐĐĂĞŶƚƌĞŽeu e o outro – no caso, invasão do
eu pelo outro –, demonstra o cume das relações de construção do espaço do medo
ĚĞƐƐĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵͬŚŝďƌŝĚĞnjĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘DĞĚŽĞƐƐĞƋƵĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽĂƵŵĂŶ͕
ƐŽĐŝĂůĞĐƵůƚƵƌĂůŵĞŶƚĞƌĞĐŝĐůĂĚŽ΀͘͘͘΁ŽƌŝĞŶƚĂƐĞƵĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽ
108 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
΀͘͘͘΁ƋƵĞƌŚĂũĂŽƵŶĆŽƵŵĂĂŵĞĂĕĂŝŵĞĚŝĂƚĂŵĞŶƚĞƉƌĞƐĞŶƚĞ΀͘͘͘΁
visto como um rastro de uma experiência passada de enfrenta-
mento da ameaça direta – um resquício que sobrevive ao encon-
tro e se torna um fator importante na modelagem da conduta
ŚƵŵĂŶĂŵĞƐŵŽƋƵĞŶĆŽŚĂũĂŵĂŝƐƵŵĂĂŵĞĂĕĂĚŝƌĞƚĂăǀŝĚĂŽƵ
à integridade. (BAUMAN, 2008, p. 9)
A personagem Lourenço, que em sua construção carrega um trauma, fruto
ĚĞ ĂƐƐŝƐƟƌ ă ŵŽƌƚĞ ĚŽ ƉĂŝ͕ ĐŽŶƐƚƌſŝ ƐƵĂ ǀŝĚĂ ƐĞŐƵŝŶĚŽ ŽƐ ƉĂƐƐŽƐ ĚŽ ǀĞůŚŽ ĂƐƚƌŽ͕
perpetuando a perseguição e a tortura, mas, ao mesmo tempo, temendo a “preta-
ůŚĂĚĂ͕͟ƋƵĞĂĐƵƐĂƐĞƌƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞůƉŽƌƚŽĚŽƐŽƐŵĂůĞƐĞƉĞůĂĚĞƐƚƌƵŝĕĆŽĚĞƐĞƵŵŽĚŽ
de vida ou pela invasão de sua casa – representação do estado português decadente
– pelas “coisas dos pretos”, através de Irene.
Ainda nesse leque de possibilidades de caminhos a trilhar, ofereci-
ĚŽƐ ƉĞůŽƐ ďŽƐƋƵĞƐ ĚĂ ĮĐĕĆŽ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ Ž ůĞŝƚŽƌʹŵŽĚĞůŽ ǀĂŝ ĚĞƐĐŽďƌŝŶĚŽ
como esse símbolo do velho Castro, imagem que molda as demais persona-
ŐĞŶƐ͕ ĂĐĂďĂ͕ ŐƌĂĚƵĂůŵĞŶƚĞ͕ ƐƵƉĞƌĂĚĂ ŽƵ ƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚĂ͘  ĮŐƵƌĂ ĚĞ :ŽĂƋƵŝŵ ĚĞ
Castro, traz essas representações dos símbolos que guiam a vida das personagens
em um período de transição, às vésperas do 25 de Abril de 1974.
Se o autor-modelo assume a tarefa de dispor os signos, cabe ao leitor-mo-
ĚĞůŽŝŶƚĞƌƉƌĞƚĄͲůŽƐ͘ƚƌĂǀĠƐĚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞƐƐĞƐƚĞĐŝĚŽƐŶĂƌƌĂƟǀŽƐ͕DŝĂŽƵƚŽƐĞ-
ŵŝŽƟnjĂŽƐƐĞŶƟĚŽƐĚĞƐƐĂƐĚŝƐƉŽƐŝĕƁĞƐĞĐŽŵďŝŶĂĕƁĞƐ͘ŝŵĂŐĞŵĚŽǀĞůŚŽĂƐƚƌŽ͕
ŝĚĞĂůŝnjĂĚĂŵĞŶƚĞĐŽŵŽŝŵƵƚĄǀĞůĞŝŶĐŽƌƌƵƉơǀĞů͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽĚŽŝŶ-
ĚŝǀşĚƵŽĞĚĂŚŝďƌŝĚĞnjĚĂƐĐƵůƚƵƌĂƐŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͘ŽŵŽƐŝŶƀŶŝŵŽĚĞŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂůŝƐ-
ŵŽ͕ĠƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͕ĐŽŵĂƐƐŝŵŝůĂƌŝĚĂĚĞƐƐŝŶĐƌĞƟnjĂĚĂƐĞĂƐĚŝĨĞƌĞŶĕĂƐŵĞƐĐůĂĚĂƐ͕
especialmente em sociedades compostas por grupos diversos.
KƐƐŝƐƚĞŵĂƐĚĞǀĂůŽƌĞƐŝŶƐſůŝƚŽƐ͕ƵŵĨƌĞŶƚĞĂŽŽƵƚƌŽ͕ƌĞůĂƟǀŝnjĂŵͲƐĞ͕ƋƵĞƐƟŽ-
ŶĂŵͲƐĞĞ͕ĂƚĠ͕ƐŽďƌĞƉƁĞŵͲƐĞ͕ĚĞƚĂůĨŽƌŵĂƋƵĞĂĚƵƉůŝĐŝĚĂĚĞĞĂĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞƐĞũĂŵ
ĨŽƌƚĞƐĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐĚĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵ͘KƵ͕ĐŽŵŽĂĮƌŵĂ,ŽŵŝŚĂďŚĂ͗
A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costu-
ŵĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐƉƌĠͲĚĂĚŽƐ͖ŵĂŶƟĚĂĞŵƵŵĞŶƋƵĂĚƌĂŵĞŶƚŽƚĞŵ-
ƉŽƌĂů ƌĞůĂƟǀŝƐƚĂ͕ ĞůĂ ĚĄ ŽƌŝŐĞŵ Ă ŶŽĕƁĞƐ ůŝďĞƌĂŝƐ ĚĞ ŵƵůƟĐƵůƚƵ-
ralismo, de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A
diversidade cultural é também a representação de uma retórica
radical da separação de culturas totalizadas que existem intoca-
das pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidos na
ƵƚŽƉŝĂĚĞƵŵĂŵĞŵſƌŝĂŵşƟĐĂĚĞƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĐŽůĞƟǀĂƷŶŝĐĂ͘
A diversidade cultural pode inclusive emergir como um sistema
ĚĞĂƌƟĐƵůĂĕĆŽĞŝŶƚĞƌĐąŵďŝŽĚĞƐŝŐŶŽƐĐƵůƚƵƌĂŝƐĞŵĐĞƌƚŽƐƌĞůĂƚŽƐ
antropológicos do inicio do estruturalismo. (1998, p. 69)
Esses espaços híbridos (FURTADO, 1980, p. 119) promovem a mistura entre
um espaço natural com um sobrenatural, ampliando o leque de possibilidades de se
ŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂƌĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͘>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ƉŽƌƐƵĂǀĞnj͕ĞdžĞŵƉůŝĮĐĂĂƉĞƌƚƵƌďĂĕĆŽĚŽŚŽŵĞŵ
branco-cristão frente a gama de possibilidades que a terra moçambicana lhe oferece.
ISBN 978-85-8199-013-2 109
João Olinto Trindade Junior
Podemos observar como, para ele, irritava era esse sim e nãoĚŽƐĂƐƐƵŶƚŽƐĞŵĨƌŝĐĂ͘
Dessa maneira, em Vinte e zinco͕DŝĂŽƵƚŽ͕ƉĞůŽǀŝĠƐĚŽŝŶƐſůŝƚŽĮĐĐŝŽŶĂů͕
demonstra como as trocas culturais não acontecem apenas dentro da sociedade
tradicional moçambicana, mas em toda a sociedade contemporânea, formada por
constantes tensões e negociações. Ao tentar traduzir a realidade que o cerca, o au-
ƚŽƌĐƌŝĂƵŵƵŶŝǀĞƌƐŽĚŝĞŐĠƟĐŽƋƵĞ͕ĞŵďŽƌĂŝŶƐſůŝƚŽ͕ŶĆŽĚĞŝdžĂĚĞƐĞƌƵŵĚƵƉůŽĚĂ
realidade empírica, que ocupa seu espaço em uma modernidade mista, como pro-
ĚƵƚŽĚĞǀĄƌŝĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐ͘
Essas negociações culturais, que formam a modernidade, são constantemen-
ƚĞƌĞǀŝƐŝƚĂĚĂƐĞƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂĚĂƐ͕ƌĞǀĞůĂŶĚŽƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞŵĞƐƟĕĂĐŽŵŽ͕ŶĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ
do próprio escritor, uma casa que chamamos de nossa, mas com móveis vindos de
ĨŽƌĂ;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϭϰͿ͘^Ğ͕ŽƵƚƌŽƌĂ͕ŽƐĂŶƟŐŽƐƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂŝƐƐĞĚĞƐĐŽŶƐƚƌŽĞŵ͕Ž
ƚĞdžƚŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽƉĞƌŵŝƚĞ͕ĂŐŽƌĂ͕ƵŵĂůĞŝƚƵƌĂĚĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞŶŽǀŽƐƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂŝƐ͕
negando um conceito excludente de cultura pura.
O medo que Lourenço tem das ventoinhas é uma não-aceitação de um
ƉƌŝŵĞŝƌŽ ƐŝŶĂů ĚĞƐƐĂ ŵĞƐƟĕĂŐĞŵ͕ ƵŵĂ ǀĞnj ƋƵĞ ĞůĂƐ ůĞŵďƌĂŵ Ă ƐƵƉŽƐƚĂ ŵŽƌƚĞͬ
ƉƌĠͲŵĞƐƟĕĂŐĞŵĚŽƉĂŝĐŽŵŽƐŶĞŐƌŽƐƋƵĞŽĚĞƌƌƵďĂƌĂŵŶŽĂƌ͘ƋƵĂŶĚŽŽĐĞŐŽ
Andaré Tchuvisco lança sua bengala ao alto e essa se transforma no Napolo, que
ĞƐƐĞƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞŚŝďƌŝĚĞnj͕ƐŽĨƌŝĚŽƉĞůŽ͞ĚĞƐŵŽƌƚŽ͕͟ƚŽƌŶĂͲƐĞŝŶĞŐĄǀĞů͘ŽǀĞƌĂďĞŶ-
ŐĂůĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĚĂŶŽƉĄƐƐĂƌŽĞŵƋƵĞƐƵƉƵŶŚĂƋƵĞŽƉĂŝŚŽƵǀĞƐƐĞƐĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĚŽ
quando lançado no ar pelos negros, no momento de sua morte, Lourenço se cho-
ĐĂĚŝĂŶƚĞĚĂĮŐƵƌĂŝŶĚŝƐƐŽĐŝĄǀĞůʹĚƵƉůŽĚĞEĂƉŽůŽĞ:ŽĂƋƵŝŵ͕ŵŝƐƚŽĚĞĐƵůƚƵƌĂƐ͕
ŝŵĂŐĞŵŚşďƌŝĚĂ͘ĄͲƐĞ͕ĞŶƚĆŽ͕ƵŵĂƚƌĂŶƐŵŝƐƐĆŽĚĞƐĞŶƟĚŽƐ͕ĐŽŵďŝŶĂĕĆŽĚĞƐŝŐŶŽƐ
díspares, conforme se lê na seguinte passagem:
Contrafeito, o cego toma o bastão vermelho e branco e, de re-
pente, sem que ninguém presumisse, lança-o sobre os ares. A
bengala vai subindo, volteando-se pelo espaço. De súbito, ante
a geral espantação, a bengala se converte em ave. Uma dessas
ĐƌŝĂƚƵƌĂƐĂůǀŝƌƵďƌĂ͕ƋƵĞĂŶƵŶĐŝĂĂƐƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƐ͘ŝŶĞƐƉĞƌĄǀĞů
ave bate asas, rodamoinhando como um furacão sobre a praça.
^ƷďŝƚŽ͕ Ž ƉĄƐƐĂƌŽ ƐĞ ĂĚĞůŐĂĕŽƵ͕ ĐŽŶǀĞƌƟĚŽ ŶƵŵĂ ĮƚĂ ďƌŝůŚŽƐĂ
que serpenteia pelos ares. Alguém grita:
ͲsĞũĂŵ͊ŽEĂƉŽůŽ͊
 ĨŽƌĂŵ ƉĂƐƐŽƐ ƉĂƌĂ ƚƌĄƐ Ğ ƚĞƌƌŽƌĞƐ ƌĂƐƚĞŝƌĂŶĚŽ Ă ƌĞƟƌĂĚĂ͘
Ninguém se podia crer: o monstro Napolo, a cobra voadora, traze-
dora de tempestades e relâmpagos.
KW/ŝĂŵĂŶƟŶŽĚĞĐŝĚĞĚĂƌƉŽŶƚŽŶĂƋƵŝůŽĞƐĂĐĂĚŽƌĞǀſůǀĞƌ
para espalhar os devidos terrores. Mas o inspector o manda parar.
Ͳ&ŝƋƵĞƋƵŝĞƚŽ͕ŝĂŵĂŶƟŶŽ͊
 Ƶŵ ŐƌŝƚŽ ĚĞƐŵĞƐƵƌĂĚŽ͕ ǀŝŶĚŽ ĚĞ ĂůĠŵͲŐĂƌŐĂŶƚĂ͘ KƐ ƉŽůş-
cias olham, admirados, para o seu chefe. Parece que ele não
ĞƐƚĄ ďĞŵ͕ ĚĞƐĂƌƌƵŵĂĚŽ ĚĞ ĂůŵĂ͕ ĞŶĨƌĂƋƵĞĐŝĚŽ ĚĞ ĐŽƌƉŽ͘  Ġ͘
Lourenço descobrira os seus fantasmas naquele instantâneo
céu. Aquela era a ave que, anos antes, ele vira emergir do he-
licóptero e se desfazer, depois, em penas e penugens. (COUTO,
110 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
2004, p. 63-64)
A criatura que, ao mesmo tempo em que recupera a cosmogonia africana,
ƌĞƐŐĂƚĂĂŵŝƚŽůŽŐŝĂŐƌĞĐŽͲƌŽŵĂŶĂƐŽďĂĮŐƵƌĂĚŽĂƐŝůŝƐĐŽʹƋƵĞ͕ĞŵƵŵĂĚĞƐƵĂƐ
ǀĄƌŝĂƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐ͕ƉŽĚĞƐĞƌŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĚŽĐŽŵŽƵŵůĂŐĂƌƚŽĐŽŶŚĞĐŝĚŽƉĞůĂƐƵĂ
ĨĞƌŽĐŝĚĂĚĞ͕ĐĂƉĂnjĚĞƉĞƚƌŝĮĐĂƌĐŽŵĂƐĂůŝǀĂʹ͕ĐŽŵŽĨƵƐĆŽĚĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĚĞĚĞŶƚƌŽ
e de fora, e, também, resgata a imagem da serpente, animal que sempre troca de
ƉĞůĞ͕ĚĞŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞĞƐƐĂƚƌŽĐĂĠĂƐƐŽĐŝĂĚĂĂŽƌĞũƵǀĞŶĞƐĐŝŵĞŶƚŽ;/EZDEE͕
1993, p. 34-35). Chevalier e Gheerbrant apontam a cobra como “senhora do princi-
pio vital e de todas as forças da natureza” (1982, p. 815). O surgimento do Napolo
assusta os moradores, como prelúdio de algo que iria acontecer. A tempestade – e
ŽƌĂŝŽƋƵĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ƐƵũŽƵĂƚĞƌƌĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϳͿʹŽĐŽƌƌĞŵĞŵ
harmonia com um acontecimento insólito que afeta, direta e principalmente, a vida
da diminuta população branca da região.
Podemos, também, observar como o autor resgata a tradição que associa
não apenas Salazar e o regime salazarista, mas Portugal, à serpente e, por extensão,
ăƐƵĂŝŶƐſůŝƚĂĂƉĂƌŝĕĆŽĐŽŵĂƋƵĞĚĂĚŽƌĞŐŝŵĞĞĂĚĞƌƌŽƚĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂ͘>ĂƵƌĞŶƟŶŽ
'ŽŵĞƐĂĚǀĞƌƚĞƋƵĞŽĚŝĂϮĚĞũƵůŚŽʹĚĂƚĂĚĂĞdžƉƵůƐĆŽĚĂƐƚƌŽƉĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐĚĞ
Salvador, em 1823 – é comemorado na Bahia – estado brasileiro com uma das maio-
res populações de afrodescendentes do país –, com uma festa que, para eles, é mais
importante do que o 7 de setembro, que é comemorado pelos baianos de modo
ĐĂƌŶĂǀĂůŝnjĂŶƚĞ͕ĞŶĆŽƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞƉĂƚƌŝſƟĐŽĞĐşǀŝĐŽ͕ĐŽŵŽĞŵŽƵƚƌŽƐĞƐƚĂĚŽƐ
brasileiros. Em suas palavras,
Em todo o percurso, os moradores enfeitam suas casas, esten-
dem faixas sobre as ruas e reúnem os amigos para celebrar. As
alegorias misturam elementos da festa cívica, Carnaval e sincre-
ƟƐŵŽƌĞůŝŐŝŽƐŽ͘KĐĂƌƌŽƉƌŝŶĐŝƉĂůŵŽƐƚƌĂŽĂďŽĐůŽ͕ƐşŵďŽůŽĚŽ
ƐĞŶƟŵĞŶƚŽŶĂƟǀŝƐƚĂ͕ŵĂƚĂŶĚŽƵŵĂƐĞƌƉĞŶƚĞ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĂ
ƟƌĂŶŝĂƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂĞŵϭϴϮϮ͘;'KD^͕ 2010, p. 195)
Em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, uma serpente voadora é avistada pela
ƉŽƉƵůĂĕĆŽ ĚĞ ƵŵĂ ƉĞƋƵĞŶĂ ĂůĚĞŝĂ ĚŽ ůŐĂƌǀĞ͕ ĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂ ŝŶĞdžƉůŝĐĄǀĞů͕ ĂŽ ƉĂƐƐŽ
que Portugal passava pela Revolução dos Cravos (1984, p. 23). Podemos ampliar
ĞƐƐĂƌĞůĂĕĆŽĚĞƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĞƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞ͕ĞdžŝƐƚĞŶƚĞĞŶƚƌĞĂƐĞƌƉĞŶƚĞĞWŽƌƚƵŐĂůĐŽůŽ-
nial, antes de se libertar e bater asas, ao recorrermos a Albert Memmi, quando este
observa que, tal como uma cobra que morde o próprio rabo, presa em um círculo
ƋƵĞŶĆŽƚĞŵĮŵ͕ŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌ͗
ŶƵŶĐĂĞƐƋƵĞĐĞƌĄĚĞĨĂnjĞƌĂůĂƌĚĞĚĞƐƵĂƐƉƌſƉƌŝĂƐǀŝƌƚƵĚĞƐ͕ĚĞ-
ĨĞŶĚĞƌͲƐĞͲĄ ĐŽŵ ƌĂŝǀŽƐĂ ŽďƐƟŶĂĕĆŽ Ă Įŵ ĚĞ ƉĂƌĞĐĞƌ ŚĞƌſĐŽ Ğ
grande, merecendo plenamente sua fortuna. Ao mesmo tempo,
devendo seus privilégios tanto à glória quanto ao aviltamento
ĚŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽ͕ŽďƐƟŶĂƌͲƐĞͲĄĞŵĂǀŝůƚĄͲůŽ͘hƟůŝnjĂƌĄĂƐĐŽƌĞƐŵĂŝƐ
ƐŽŵďƌŝĂƐ͖ĂŐŝƌĄ͕ƐĞĨŽƌƉƌĞĐŝƐŽ͕ƉĂƌĂĚĞƐǀĂůŽƌŝnjĄͲůŽ͕ƉĂƌĂĂŶƵůĄͲůŽ͘
DĂƐŶĆŽƐĂŝƌĄũĂŵĂŝƐĚĞƐƚĞcírculo: é preciso explicar a distância
ISBN 978-85-8199-013-2 111
João Olinto Trindade Junior
ƋƵĞĂĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽĞƐƚĂďĞůĞĐĞĞŶƚƌĞĞůĞĞŽĐŽůŽŶŝnjĂĚŽ͖ŽƌĂ͕ĂĮŵ
ĚĞũƵƐƟĮĐĂƌͲƐĞĠůĞǀĂĚŽĂĂƵŵĞŶƚĂƌŵĂŝƐĂŝŶĚĂĞƐƐĂĚŝƐƚąŶĐŝĂ͕Ă
ŽƉŽƌŝƌƌĞŵĞĚŝĂǀĞůŵĞŶƚĞĂƐĚƵĂƐĮŐƵƌĂƐ͕ĂƐƵĂƚĆŽŐůŽƌŝŽƐĂ͕ĂĚŽ
colonizado tão desprezível. (1977, p. 58 – grifo nosso)
ƉƌŽƉƌŝĂŵŽͲŶŽƐĚĂŵĞƚĄĨŽƌĂĚŽĐşƌĐƵůŽƉĂƌĂ͕ĚĞŶƚƌĞƵŵĂĚĞǀĄƌŝĂƐƉƌŽĚƵĕƁĞƐĚĞƐŝŐ-
ŶŝĮĐĂĚŽĞƐŝŐŶŝĮĐĂŶƚĞ͕ĐŽŶĐůƵŝƌŵŽƐƋƵĞĂƐĞƌƉĞŶƚĞǀŽĂĚŽƌĂůŝďĞƌƚĂͲƐĞĚĞƐƐĞĐşƌĐƵůŽ͘
ĚĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞ͕͞ĞdžŽƌĐŝnjĂĚŽ͟ĚĞƐĞƵƉĂƐƐĂĚŽ͕:ŽĂƋƵŝŵŵĞƚĂŵŽƌĨŽƐĞŝĂͲƐĞ
em uma criatura que permite que seu espírito venha a romper com os limites do que
havia sido, podendo tornar-se algo além do que fora, mesclado com a terra. A imagem
ĚŽǀĞůŚŽĂƐƚƌŽ͕ŶĆŽŵĂŝƐŝŵƵƚĄǀĞů͕ŵĂƐĂĐĞŝƚĂŶĚŽƋƵĞŽoutro faça parte de sua for-
ŵĂĕĆŽ͕ƚŽƚĂůŵĞŶƚĞĚĞƐĂƐƐŽĐŝĂĚĂĚŽƐƉĂƌąŵĞƚƌŽƐŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽƐ͕ĞĨƵŶĚŝĚĂʹĞŵƐĞƵ
euʹ͕ĂƉĂƌĞĐĞ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂŶŽĐůşŵĂdžĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ĞŵƉůĞŶĂŚĂƌŵŽŶŝĂĐŽŵĂƚĞƌƌĂ͘
Essa construção realia/mirabilia͕ ĂŽ ůŽŶŐŽ ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ ǀĂŝ
sendo construída através dos verbos que designam os modos da sua manifestação.
ŽŵŽĂĮƌŵĂ/ƌůĞŵĂƌŚŝĂŵƉŝ͕
“revelar”, “iluminar” e “perceber” implicam uma operação mi-
ŵĠƟĐĂĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͘ŽƐĐŝůĂĕĆŽĐŽŶĐĞŝƚƵĂůĚŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ΀͘͘͘΁
aparece como um componente da realidade. Os pontos de vista
fenomenológico e ontológico vêm entrelaçados de tal sorte que
se resolve a contradição (aparente) entre o deformar e o mos-
trar. (CHIAMPI, 1980, p. 33-34)
Lourenço, assim, não apenas “descobre” seu falecido pai, mas, como disse Bessière
acerca do “conteúdo alienante da passividade do herói, que não age, mas que sofre
e aprecia o acontecimento insólito” (apud CHIAMPI, 1980, p. 68), não deixa, nem
ŵĞƐŵŽ͕ŽW/ŝĂŵĂŶƟŶŽĂƟƌĂƌŶĂĐƌŝĂƚƵƌĂŵşƟĐĂ͕ƉŽŝƐ͞ĞŶĐŚĞŽƐŽůŚŽƐĚĂƋƵĞůĞ
ĐĠƵƚĆŽĂĠƌĞŽ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϰͿ͕ĞŶƋƵĂŶƚŽŽEĂƉŽůŽƌĂďŝƐĐĂ͕ŶŽĐĠƵ͕ĂĮŐƵƌĂĚĞ
Irene (COUTO, 2004, p. 65).
A metamorfose da personagem, um dos temas da manifestação do sobre-
ŶĂƚƵƌĂůŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂ͕͞ĠĂƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐĆŽĚĂƐĞƉĂƌĂĕĆŽĞŶƚƌĞŵĂƚĠƌŝĂĞĞƐ-
pírito” (TODOROV, 1992, p. 121-122). Insolitamente, o velho português rompe seus
ůŝŵŝƚĞƐʹŽƐƋƵĂŝƐŽĮůŚŽŶĆŽĠĐĂƉĂnjĚĞƐƵƉĞƌĂƌʹ͕ƉĂƌĂƐĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂƌĞŵĂůŐŽĂůĠŵ
ĚŽ ĞƐƉĞƌĂĚŽ͕ ůŽŐŽ͕ ŝŶƐſůŝƚŽ͘  ƐŽďƌĞ Ă ĠŐŝĚĞ ĚĂ ŚŝďƌŝĚĞnj͕ ƋƵĞ Ă ĐƌĞŶĕĂ ŶŽ EĂƉŽůŽ
ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂ Ž ŝŶĚŝǀşĚƵŽ͕ ŶĆŽ ĐŽŵŽ ƐƵũĞŝƚŽ ĨŽƌŵĂĚŽ Ğ ͞ƉƵƌŽ͕͟ ŵĂƐ ĐŽŵŽ ĞůĞŵĞŶ-
ƚŽ Ğŵ ĨŽƌŵĂĕĆŽ Ğŵ ŵĞŝŽ Ă ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐ ĐƵůƚƵƌĂŝƐ͘ ƐƐĂƐ ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐ ƉĞƌƉĂƐƐĂŵ
para além de sua vida e seguem em constante processo de trocas e negociações,
ƚĂůĐŽŵŽŶĂŵĞƚĄĨŽƌĂĚĞDŝĂŽƵƚŽƐŽďƌĞĂĐĂƐĂ͘ĂƵŵĂŶ͕ĞŵŵĞƚĄĨŽƌĂƐŽďƌĞŽƐ
ůşƋƵŝĚŽƐʹƚĞŵĂĚĞŽƵƚƌŽƐƚĞdžƚŽƐĂďŽƌĚĂŶĚŽŽƐĞŶƟĚŽĚĂƉſƐͲŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞĞĂĐƌŝƐĞ
das ideologias “sólidas” –, diz:
Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma
ĐŽŵ ĨĂĐŝůŝĚĂĚĞ ΀͘͘͘΁ ŶƋƵĂŶƚŽ ŽƐ ƐſůŝĚŽƐ ƚġŵ ĚŝŵĞŶƐƁĞƐ ĞƐƉĞ-
ciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem
112 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ĂƐŝŐŶŝĮĐĂĕĆŽĚŽƚĞŵƉŽ;ƌĞƐŝƐƚĞŵĞĨĞƟǀĂŵĞŶƚĞĂƐĞƵŇƵdžŽŽƵ
ƚŽƌŶĂŵ ŝƌƌĞůĞǀĂŶƚĞͿ͕ ŽƐ ŇƵŝĚŽƐ ŶĆŽ ƐĞ Ăƚġŵ ŵƵŝƚŽ Ă ƋƵĂůƋƵĞƌ
ĨŽƌŵĂĞĞƐƚĆŽĐŽŶƐƚĂŶƚĞŵĞŶƚĞƉƌŽŶƚŽƐ;ĞƉƌŽƉĞŶƐŽƐͿĂŵƵĚĄͲůĂ͘
(BAUMAN, 2007, p. 8)
ƐƐŝŵ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂůĚŽŚŝďƌŝĚŝƐŵŽĐƵůƚƵƌĂů͕ƉĞůŽǀŝĠƐĚŽ
ŝŶƐſůŝƚŽʹĐŽƌƌĞůĂĐŝŽŶĄǀĞůĂŽ͞ƐſůŝĚŽ͕͟ĚĞƋƵĞĨĂůĂĂƵŵĂŶ͕ƉŽŝƐĂĞdžƉĞĐƚĂƟǀĂƋƵĞƐĞ
tem de algo é sempre encontrar sua solidez, e não sua fragilidade –, o autor realiza
ĂƐĞŵŝŽƐĞĞŶƚƌĞ:ŽĂƋƵŝŵĞĂƐĐƵůƚƵƌĂƐĚĂƚĞƌƌĂ͕ƵƟůŝnjĂŶĚŽ͕ƉĂƌĂƚĂů͕ĂŝŵĂŐĞŵĚŽ
Basilisco/Napolo, adaptada/traduzida para a cosmogonia africana. Uma combina-
ĕĆŽĚĞƐŝŐŶŽƐ͕ĨŽƌŵĂŶĚŽƵŵŶŽǀŽƐĞŶƟĚŽ͕ĞŵƵŵĐŽŶƚĞdžƚŽĚŝĨĞƌĞŶƚĞ͘
Joaquim, anteriormente signo que vai sendo, gradualmente, esvaziado de
ƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽ͕ĂƐƐƵŵĞƵŵŶŽǀŽĐŽŶƚĞdžƚŽ͕ĞĠƉƌĞĞŶĐŚŝĚŽĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƚĞdžƚƵ-
ĂŝƐĚĞƵŵŶŽǀŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽ͕ŽƋƵĞ͕ŶĂƉƌĄƟĐĂ͕ŝŵƉůŝĐĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂƌͲƐĞĞŵŽƵƚƌŽƐŝŐŶŽ͘
KůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽ͕ƐĞŐƵŝŶĚŽĞƐƐĞƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐ͕ĂĚĞŶƚƌĂŶŽďŽƐƋƵĞŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ͕Ğŵ
que universos, aparentemente díspares e impossíveis de conviverem, mesclam-se
para se harmonizar.
Se, outrora, o texto apresenta esses indícios de hibridez – como
DĂƌŐĂƌŝĚĂ͕ ƵŵĂ ďƌĂŶĐĂͲĐƌŝƐƚĆ͕ ƋƵĞ ƐĞ ĐŽŶƐƵůƚĂ ĐŽŵ :ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ ƵŵĂ ƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂ
ůŽĐĂů͖ĐŽŵŽ/ƌĞŶĞĞdĐŚƵǀŝƐĐŽ͕ƋƵĞƉƌĞƐƚĂǀĂŵƌĞƐƉĞŝƚŽĂDĂƌĐĞůŝŶŽĞƐĞƵƟŽ͖ĐŽŵŽ
Lourenço e Margarida faziam com Joaquim, deixando a casa preparada como se
ele fosse chegar a qualquer momento –, em sua conclusão, apresenta o momento
onde real e irreal, empírico e metaempírico, sólito e insólito se fundem, deixando
ĚĞƐĞƌĂůŐŽĚŝĨĞƌĞŶƚĞ͕ŵĂƐƚŽƌŶĂŶĚŽͲƐĞĞůĞŵĞŶƚŽƐĐŽŶƐƟƚƵŝŶƚĞƐ͕ŵŽĚŝĮĐĂĚŽƌĞƐĞ
ƉĂƌƟĐŝƉĂƟǀŽƐĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͕ĞůĂƉƌſƉƌŝĂ͕ŝŶƐſůŝƚĂ͘
DĞƐŵŽ ĂƉſƐ ƉƌĞƐĞŶĐŝĂƌ Ž ĂƉĂƌĞĐŝŵĞŶƚŽ ĚĂ ĮŐƵƌĂ ŚŝďƌŝĚĂ ĚĞ ƐĞƵ ƉĂŝ͕
>ŽƵƌĞŶĕŽ ĂŝŶĚĂ ƐĞŶƚĞ ĚŝĮĐƵůĚĂĚĞƐ Ğ ƐĞ ŵĂŶƚĠŵ Ğŵ ĚĞĨĞƐĂ ĐŽŶƚƌĂ ĂƐ ĐƵůƚƵƌĂƐ ĚĂ
terra – de fora, segundo o lugar de onde as vê (BHABHA, 1998, p. 61). A insólita
visão de um Castro/Napolo/Basilisco, não mais em sua rigidez, mas mesclado com a
ƚĞƌƌĂʹŝŶĚŝƐƟŶŐƵşǀĞůĐŽŵŽ/ƌĞŶĞʹ͕ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽĐŽŵŽĮŐƵƌĂŶĆŽŝŵƵƚĄǀĞů͕ƐŽŵĂĚĂ
ăƌĞǀĞůĂĕĆŽĚŽƉĂƐƐĂĚŽĚĞ:ŽĂƋƵŝŵʹŝĚĞŝĂĚĞƵŵƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂůƵŶŽĞŝŶĐŽƌƌƵƉơǀĞůʹ͕
ĐĂŝƵĐŽŵŽƵŵƌĂŝŽƐŽďƌĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ĚĞŝdžĂŶĚŽŽƉŽƌƚƵŐƵġƐƐƵũŽĞƋƵĂƐĞƚŽƚĂůŵĞŶƚĞ
ŝŵĞƌƐŽĞŵŵĞŝŽĂŽƉąŶƚĂŶŽ͕ĐŽŵŽƐĞůŚĞĨŽƌĂƉĂƌƟĚĂĂĂůŵĂ;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϴϳͿ͘
KƐƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂŝƐƐĞŐƵŝĚŽƐƉŽƌ>ŽƵƌĞŶĕŽʹĚŝƌĞƚĂŵĞŶƚĞĐŽŶƚƌĄƌŝŽƐĂŽƐƐĞƵƐŵĞ-
dos, gerados pelo choque com o outroʹƉĞƌĚĞŵŽƐŝŐŶŝĮĐĂĚŽĚĞĨŽƌŵĂĚƵƉůĂ͕ĂƚƌĂ-
vés do que representam e para quem representam. Quando um desolado Lourenço
ĂĮƌŵĂƋƵĞ͞ƟŶŚĂĞƐƐĂŐƌĂŶĚĞĐƌĞŶĕĂ΀͘͘͘΁͘YƵĂƐĞĞƵŶĆŽƉƌĞĐŝƐĂǀĂĚĞƚĞƌƵŵƉĂŝ͘
,ĂǀŝĂ^ĂůĂnjĂƌ͕ĂƉĄƚƌŝĂ͕ĂŽƌĚĞŵ͟;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϵϴͿ͕ƌĞĨĞƌĞͲƐĞăƐƵĂƐŝƚƵĂĕĆŽĚĞŶĆŽƚĞƌ
ŵĂŝƐƵŵĂŝĚĞŝĂĚĞƉĄƚƌŝĂ͕ƚĂŵƉŽƵĐŽƐĞƌĐĂƉĂnjĚĞƐĞƌƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽƉŽƌĞůĂ͘
ŽŵŽĂĮƌŵĂĂƵŵĂŶ͕ƐŽďƌĞĂƉĞƌĐĞƉĕĆŽĚĂƐĐŽŝƐĂƐ͕ƋƵĂŶĚŽĞůĂƐĨƌĂĐĂƐ-
sam, comportam-se estranhamente ou decepcionam de alguma forma (2005, p.
26). O eu lusitano, que outrora convivia apenas com uma intrusa – Irene –, revela
ISBN 978-85-8199-013-2 113
João Olinto Trindade Junior
ĂĨƌĂŐŝůŝĚĂĚĞĚĞƐƵĂƐĞƐƚƌƵƚƵƌĂƐŝĚĞĂůŝnjĂĚĂƐĞŶĆŽƉĞƌĐĞƉơǀĞŝƐĂƚĠŽŵŽŵĞŶƚŽĞŵ
ƋƵĞĨĂůŚĂŵ͕ŽƵƐĞũĂ͕͞ƋƵĂŶĚŽĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƉĞƌĚĞĂƐąŶĐŽƌĂƐƐŽĐŝĂŝƐƋƵĞĂĨĂnjŝĂŵ
ƉĂƌĞĐĞƌ͚ŶĂƚƵƌĂů͕͛ƉƌĞĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚĂĞŝŶĞŐŽĐŝĄǀĞů͕Ă͚ŝĚĞŶƟĮĐĂĕĆŽ͛ƐĞƚŽƌŶĂĐĂĚĂǀĞnj
ŵĂŝƐ ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞ ƉĂƌĂ ŽƐ ŝŶĚŝǀşĚƵŽƐ ƋƵĞ ďƵƐĐĂŵ ĚĞƐĞƐƉĞƌĂĚĂŵĞŶƚĞ Ƶŵ ͚ŶſƐ͛ Ă
que possam pedir acesso” (BAUMAN, 2005, p. 30).
ĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵ^ƚƵĂƌƚ,Ăůů͕͞ĂƐǀĞůŚĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐ͕ƋƵĞƉŽƌƚĂŶƚŽƚĞŵƉŽĞƐƚĂ-
ďŝůŝnjĂƌĂŵŽŵƵŶĚŽƐŽĐŝĂů͕ĞƐƚĆŽĞŵĚĞĐůşŶŝŽ͕ĨĂnjĞŶĚŽƐƵƌŐŝƌŶŽǀĂƐŝĚĞŶƟĚĂĚĞƐĞĨƌĂŐ-
ŵĞŶƚĂŶĚŽŽŝŶĚŝǀŝĚƵŽŵŽĚĞƌŶŽ͕ĂƚĠĂƋƵŝǀŝƐƚŽĐŽŵŽƵŵƐƵũĞŝƚŽƵŶŝĮĐĂĚŽ͛͛;,>>͕
2004, p. 7). Lourenço, sem um referencial para se espelhar, incapaz de aceitar as mu-
ĚĂŶĕĂƐƐŽĐŝĂŝƐĐŽƌƌĞŶƚĞƐʹƋƵĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂŵ͕ŵŽĚŝĮĐĂŵĞƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂŵƐĞƵƐƐşŵďŽ-
ůŽƐŝĚĞŶƟƚĄƌŝŽƐʹ͕ŝŵƉŽƐƐŝďŝůŝƚĂĚŽĚĞƐĞƐĞŶƟƌƉĞƌƚĞŶĐĞŶƚĞĂŽƵƚƌŽƐƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂŝƐ͕ŶĆŽ
ĞŶĐŽŶƚƌĂŽƵƚƌĂĂůƚĞƌŶĂƟǀĂĂŶĆŽƐĞƌƐĞĞŶƚƌĞŐĂƌĂŽĐŽŵƉůĞƚŽĚĞƐĞƐƉĞƌŽ͘dĐŚƵǀŝƐĐŽ
que, ao amanhecer, o encontra morto na cadeia, tendo os presos sido libertados
(COUTO, 2004, p. 100). Instaura-se, assim, uma das grandes dúvidas da novela: quem
ƚĞƌŝĂŵĂƚĂĚŽŽďƌĂŶĐŽ͍YƵĞƐƟŽŶĂĚŽƐƉĞůŽĐĞŐŽ͕ŽƐĞdžͲƉƌŝƐŝŽŶĞŝƌŽƐŶĆŽƚĂƌĚĂŵĂƌĞ-
velar que mataram o PIDE preto e que “cada qual mata o da sua raça” (COUTO, 2004,
Ɖ͘ϭϬϭͿ͘^ĞĐĂĚĂƋƵĂůŵĂƚĂŽĚĞƐƵĂƌĂĕĂ͕ƋƵĞŵ͕ĞŶĮŵ͕ŵĂƚĂƌĂ>ŽƵƌĞŶĕŽ͍
Embora permaneça a dúvida, o perfume de Irene, que recende pela parte da
cadeia reservada às torturas, parece um indício do culpado. Entretanto, essa dúvida
ƉĞƌŵĂŶĞĐĞƌĄŶĆŽƌĞƐŽůǀŝĚĂʹĐŽŵŽƐĞĞƐƉĞƌĂ͕ƐĞŐƵŶĚŽƚŽĚĂĂƚƌĂĚŝĕĆŽĐƌşƟĐĂĚŽ
&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ƉĂƌĂĂŝŶƐƚĂƵƌĂĕĆŽĞŵĂŶƵƚĞŶĕĆŽĚŽŐġŶĞƌŽŽƵ͕ŵĞƐŵŽ͕ĚŽŵŽĚŽ͘
ŶĂƌƌĂƟǀĂŶĆŽĞdžƉůŝĐĂŽŵŽƟǀŽĚĂŵŽƌƚĞĚĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ŝŶĨŽƌŵĂĂƉĞŶĂƐƋƵĞ
dĐŚƵǀŝƐĐŽŽĞŶĐŽŶƚƌĂŵŽƌƚŽ͘WŽĚĞƌşĂŵŽƐŶŽƐĚĞůŽŶŐĂƌĚĞŶƚƌĞǀĄƌŝĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐ
que nos levassem a respostas, mas preferimos, dentre essas possibilidades, a de ele
ter, simplesmente, morrido por puro medo ao diferente, ao insólito que se instaura-
ǀĂ͘ĐĂƵƐĂ͕ƚĂůǀĞnj͕ƚĞŶŚĂƐŝĚŽƐƵĂƚŽƚĂůŝŶĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞĚĞƐĞƉŽƐŝĐŝŽŶĂƌ͕ƉŽƌĮŵ͕ĐŽŵŽ
um eu ou um outro, ĨƌƵƚŽ͕ĮŶĂůŵĞŶƚĞ͕ĚŽƐƉŽĚĞƌĞƐĚŽƐƉƌĞƚŽƐƋƵĞƚĂŶƚŽƚĞŵŝĂ͕ŝŶĐĂ-
paz de conviver em uma terra onde realia e mirabilia convivem harmoniosamente.
O próprio nome da personagem evidencia elementos dessa confusão, desse
“estar aqui e ali”, uma vez que, se seu sobrenome remete à Portugal, seu primeiro
ŶŽŵĞ͕ >ŽƵƌĞŶĕŽ͕ ƌĞŵĞƚĞ ĂŽ ĂŶƟŐŽ ŶŽŵĞ ĚĂ ĐĂƉŝƚĂů DŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ ƋƵĞ͕ ĂŶƚĞƌŝŽƌ-
mente, chamara-se Lourenço Marquês. Diferentemente da cidade de Lourenço, an-
ƟŐŽŶŽŵĞĚĂĐĂƉŝƚĂůŵŽĕĂŵďŝĐĂŶĂ͕DĂƉƵƚŽ͕ƋƵĞƐĞ͞ĂĚĂƉƚĂ͟ĂŽƐŶŽǀŽƐƚĞŵƉŽƐ͕
assumindo novo nome, a personagem Lourenço de Castro não consegue se adaptar
ăƐƵĂŶŽǀĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͘EĆŽŶŽƐĠƉŽƐƐşǀĞůĚĞƐǀĞŶĚĂƌĞƐƐĞŵŝƐƚĠƌŝŽ͕ĮĐĂŶĚŽ͕ĂŶŽƐƐŽ
ĐĂƌŐŽ͕ĂƉĞŶĂƐ͕ĂƉƌĞĐŝĄͲůŽĐŽŵŽƵŵĂĚĂƐƚĂŶƚĂƐĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƐƚĞdžƚƵĂŝƐĂĚŽƚĂĚĂƐƉĞůŽ
escritor. Optamos, assim, por nos prender à indignação do próprio defunto, sobre
͞ĞƐƐĞƐŝŵĞŶĆŽĚŽƐĂƐƐƵŶƚŽƐĞŵĨƌŝĐĂ͘ƐƐĞƉŽĚĞƐĞƌĞŶĆŽƐĞƌ͕΀͘͘͘΁ĐŽŵŽƐĞĂǀĞƌ-
ĚĂĚĞ͕ŶŽƐƚƌſƉŝĐŽƐ͕ƐĞƚŽƌŶĂƐƐĞĞŵĐŽŝƐĂŇƵşĚĂ͕ĞƐĐŽƌƌĞŐĂĚŝĂ͟;KhdK͕ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϵϱͿ͕
ĐŽŶĨŽƌŵĞũĄŶŽƐƌĞĨĞƌŝŵŽƐĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞ͘
ŵƐĞƵƉƌŽũĞƚŽĚĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͕ŶĂ>ŝƚĞƌĂƚƵƌĂĨƌŝĐĂŶĂ
de Língua Portuguesa, Mia Couto adota duas lógicas, a natural e a sobrenatural,
114 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
que coexistem sem provocar perplexidades. Como manifestação de um mundo
onde tudo é possível, entre margens e fronteiras, exibe faces insólitas, caracte-
ƌşƐƟĐĂĚĞƵŵĞƐƉĂĕŽŽŶĚĞmirabilia se manifestam livremente, como maneira
ĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͕ƉŽƌƐŝƐſ͕ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐĂ͘ĞƐƐĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ĐŽŵŽƷůƟ-
mo passo rumo à “assimilação ͕͟/ƌĞŶĞƐĞŐƵĞƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽŝŶŝĐŝĄƟĐŽ͗
Ele se vai guiando pelas sombras, ondulações de cinzento em
ĨƵŶĚŽĐŝŶnjĂ͘΀͘͘͘΁WĂƌĂ͕ƐĂĐƵĚŝĚŽƉŽƌŵŝƌĂŐĞŵ͘>ŚĞƉĂƌĞĐĞ͕ĞŶƚƌĞ
ŽƐĐĂŶŝĕĂŝƐ͕ĂĮŐƵƌĂĚĞ/ƌĞŶĞ͘sĞŵĂĐŽŵƉĂŶŚĂĚĂĚĞ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͘
ƐĚƵĂƐĞƐƚĆŽĐĂŵŝŶŚĂŶĚŽŶĂůĂŐŽĂ͕ĂĄŐƵĂƌŽĕĂͲůŚĞƐŽƐũŽĞůŚŽƐ͘
O cego grita:
– Irene! Menina Irene!
As mulheres erguem o rosto, surpresas. Pareciam não esperar
ninguém, manhã tão prematura. Irene ainda acena. O cego cor-
responde. E um aperto lhe retrai o gesto. Aquele aceno era o
da despedida? Andaré esgueira o olhar para aperfeiçoar o ho-
rizonte. As mulheres caminham para o centro do lago. Quando
ĂĄŐƵĂůŚĞƐĚĄƉĞůŽƉĞŝƚŽ͕:ĞƐƐƵŵŝŶĂƉĂƌĂĞƉĂƐƐĂĂƐĚƵĂƐŵĆŽƐ
pela cabeça da branca. Depois, a adivinha lhe vira costas. Irene
ƐĞŐƵĞ ĂǀĂŶĕĂŶĚŽ͕ Ğŵ ĚĞŵŽƌĂĚŽ ŶĂƵĨƌĄŐŝŽ͕ ĂƚĠ ƐƵďŵĞƌŐŝƌ ƉŽƌ
completo na lagoa. (2004, p. 100)
EĞƐƐĞĂƚŽƌŝƚƵĂůşƐƟĐŽ͕ƚĂůĐŽŵŽ:ĞƐƐƵŵŝŶĂ͕ƋƵĞĞŶƚƌŽƵŶĂůĂŐŽĂĞƐƵŵŝƵ
ĞŵƐƵĂƐĄŐƵĂƐƉĂƌĂĂƉƌĞŶĚĞƌŽƐƐĞŐƌĞĚŽƐĚĞƵŵŽƵƚƌŽƐĂďĞƌ;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϰϴͿ͕/ƌĞŶĞ
ĚĄŵĂŝƐƵŵƉĂƐƐŽĞŵƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĂƐƐŝŵŝůĂĕĆŽĞĞŶƚƌĂŶĂƐĄŐƵĂƐƉĂƌĂĚĞƐĂ-
ƉĂƌĞĐĞƌ͘ĂŵĞƐŵĂŵĂŶĞŝƌĂƋƵĞŽůĂŐŽEŬƵůƵŝŶĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽƌƵŵŽƌĞƐ͕ƐĞĞŶĐŚŝĂ
quando o céu se acendia de faíscas (2004, p. 49), pouco depois da mesclagem
ĚŽǀĞůŚŽĂƐƚƌŽʹƐĞƵĞdžŽƌĐŝƐŵŽĞĞŶƚĞƌƌŽĚĞĮŶŝƟǀŽ͕ƋƵĞĐŚĞŐĂĂŵĂŶĐŚĂƌĂƚĞƌ-
ƌĂĐŽŵŽƐƌĂŝŽƐƋƵĞĐĂĞŵ;ϮϬϬϰ͕Ɖ͘ϲϱͿʹ͕/ƌĞŶĞĞŶƚƌĂŶĂƐĄŐƵĂƐĞƐĞŐƵĞƉĂƌĂĂĚ-
quirir outros saberes e se tornar, semelhantemente a Jessumina, uma nyanga,
ƐĄďŝĂĚĂƚĞƌƌĂ͘ĐĞƌĐĂĚĞƐƐĂŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚŽŵĞƚĂĞŵƉŝƌŝĐ o, como resolução
dos problemas ao longo da diegese, Maria Fernanda Afonso atenta para que:
Ao lançar mão de traços da magia da terra, para amenizar os
males do mundo contemporâneo, as personagens convocam
para sua realidade, também incomum, elementos da mirabilia,
ŝƐƐŽ ŶĂ ƚĞŶƚĂƟǀĂ ĚĞ ƐĂƌĂƌ Ă ĚŽĞŶƚĞ ƌĞĂůŝĂ͘ Ğ ĨĂĐƚŽ͕ ƚƵĚŽ ĂƉĂ-
ƌĞĐĞ ĐŽŵŽ Ƶŵ ƉĞƋƵĞŶŽ ŵŝůĂŐƌĞ ůŝƚĞƌĄƌŝŽ͕ ŽŶĚĞ ŽƐ ĞůĞŵĞŶƚŽƐ
ŶĂƌƌĂƟǀŽƐ ƐĞ ŝŶƚĞƌƉĞŶĞƚƌĂŵ ƉĂƌĂ ĐƌŝĂƌ ƵŵĂ ĂƚŵŽƐĨĞƌĂ ŵĄŐŝĐĂ͘
(AFONSO, 2004, p. 368)
ŽĐŽŵĞĕŽĂŽĮŵĚĂŚŝƐƚſƌŝĂ͕ŽĐĂƌĄƚĞƌŝŶƐſůŝƚŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂĠĞƐƚƌƵƚƵƌĂĚŽ
em um ambiente ambíguo, pois não é comum cegos desenharem no chão, tampou-
co mortos serem tratados como vivos. O insólito – em um viés Real-Naturalista –
deixa de ser o outro͕ŽĞƐƚƌĂŶŚŽ͕ŝŶĐŽƌƉŽƌĂŶĚŽͲƐĞĂŽŶĂƚƵƌĂů͘ŽŵŽĂĮƌŵĂŚŝĂŵƉŝ͗
ĂŵĂƌĂǀŝůŚĂĠ;ĞƐƚĄͿ;ŶͿĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͘KƐŽďũĞƚŽƐ͕ƐĞƌĞƐŽƵĞǀĞŶ-
ƚŽƐƋƵĞŶŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽĞdžŝŐĞŵĂƉƌŽũĞĕĆŽůƷĚŝĐĂĚĞƐƵĂƐƉƌŽďĂ-
ISBN 978-85-8199-013-2 115
João Olinto Trindade Junior No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto

ďŝůŝĚĂĚĞƐĞdžƚĞƌŶĂƐĞŝŶĂƟŶŐşǀĞŝƐĚĞĞdžƉůŝĐĂĕĆŽ͕ƐĆŽŶŽƌĞĂůŝƐ- Através da semiose do 25 de Abril de 1974, os mirabilia são encenados em

ŵŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽĚĞƐƟƚƵşĚŽƐĚĞŵŝƐƚĠƌŝŽ͕ŶĆŽĚƵǀŝĚŽƐŽƐƋƵĂŶ- ƵŵĂĞƐƉĂĐŝĂůŝĚĂĚĞĞŵƋƵĞĂƐĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂƉĞƌŵŝƚĞŵĂĐƌŝĂĕĆŽĚĞƵŵ
ƚŽĂŽƵŶŝǀĞƌƐŽĚĞƐĞŶƟĚŽĂƋƵĞƉĞƌƚĞŶĐĞŵ͘/ƐƚŽĠ͕ƉŽƐƐƵĞŵ
ŵƵŶĚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ĂŵƉůŝĂŶĚŽĂƐƐŝŵŽůĞƋƵĞĚĞƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĞƐƚĠƟĐĂƐ͕ĂŽůŽŶŐŽĚŽ
probabilidade interna, têm causalidade no próprio âmbito da
ĚŝĠŐĞƐĞĞŶĆŽĂƉĞůĂŵ͕ƉŽƌƚĂŶƚŽ͕ăĂƟǀŝĚĂĚĞĚĞĚĞĐŝĨƌĂŵĞŶƚŽ ƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞĐƌŝĂĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͘Vinte e zinco, de Mia Couto, é, por nós, apresentado
do leitor. (1980, p. 59) como um exemplo dessas apropriações, dessas dinâmicas, dessas estratégias que
permitem ver muitos outros lados das coisas.
Essas personagens, em sua forma/maneira de deambular nos limites da
vida, em espaços que se confundem com a realidade, em seu tempo e lugar, con-
tribuem para a formação de uma espaciotemporalidade com regras próprias. Esse
ĞƐƉĂĕŽŚşďƌŝĚŽ͕ĂďĞƌƚŽăŵĞƐƟĕĂŐĞŵĐƵůƚƵƌĂůĞĚŽŵŝŶĂĚŽƉŽƌƵŵĂůſŐŝĐĂŝŶƐſůŝƚĂ͕
ĠƌĞǀĞůĂĚŽŶĂŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂĞƚĞŵƐƵĂƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚŝƐĐƵƟĚĂĐŽŵŽƉŽƐƐŝďŝ-
ůŝĚĂĚĞ ĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂ͕ ƌĞǀĞůĂŶĚŽ Ƶŵ ůƵŐĂƌ ĚĞ ĐŽŶƐƚĂŶƚĞƐ ƚƌŽĐĂƐ ĐƵůƚƵƌĂŝƐ Ğ
ŵĞƐƟĕĂŐĞŶƐŝŶĐĞŶƐĄǀĞŝƐ͕ que precisa ser respeitado.
Seguindo, assim, uma tradição que remonta a Todorov (1992) – passando por
Josef (2006), Bessière (2001), Furtado (1980) e Chiampi (1980) – podemos observar
ĐŽŵŽ ƵŵĂ ŝĚĞŝĂ ĚĞ ĨĂŶƚĄƐƟĐŽͬŝŶƐſůŝƚŽ͕ ƵƟůŝnjĂĚŽ ŶĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ ʹ Ğ͕ ĚĞ
certa forma, em outros escritores da literatura africana contemporânea em língua
ƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂʹĞƐƚĄŵĂŝƐƌĞůĂĐŝŽŶĂĚĂăŝĚĞŝĂĚĞƵŵƐŝƐƚĞŵĂƉĞůŽƋƵĂůŽĞƐĐƌŝƚŽƌŽƉƚĂ
e se faz valer de suas possibilidades para representar/traduzir a realidade como ela
ůŚĞƉĂƌĞĐĞ͕ĚŽƋƵĞ͕ŶĞĐĞƐƐĂƌŝĂŵĞŶƚĞ͕ĚĞƵŵŐġŶĞƌŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ͕ĞŵƐĞŶƟĚŽƐƚƌŝĐƚŽ͘
&ŝůŝƉĞ &ƵƌƚĂĚŽ ũĄ ĂƉŽŶƚĂ Ž &ĂŶƚĄƐƟĐŽ ĐŽŵŽ ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ ƵŵĂ ǀĞnj
que “deve desenvolver e fazer ecoar por todas as formas a incerteza sobre aquilo
ƋƵĞĞŶĐĞƌƌĂ΀͘͘͘΁ĂƚƌĂǀĠƐĚŽƐǀĄƌŝŽƐƉƌŽĐĞƐƐŽƐĞŵƉƌĞŐĂĚŽƐŶĂƚĞƐƐŝƚƵƌĂĚŽĚŝƐĐƵƌƐŽ͟
(FURTADO, 1980, p. 131-132). Em suma, apropriamo-nos da teorização proposta por
/ƌůĞŵĂƌŚŝĂŵƉŝ͕ĞŵĐŽŶũƵŶƚŽĐŽŵĂƚĞŽƌŝĂĨƵƌƚĂĚŝĂŶĂ͕ƉĂƌĂĂƟŶŐŝƌŵŽƐʹĞĞdžƉĂŶĚŝƌ-
mos – um melhor desenvolvimento do Real-Maravilhoso, não apenas para uma ver-
ƚĞŶƚĞ ĂŶŝŵŝƐƚĂ͕ ŵĂƐ ƚĂŵďĠŵ ZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ ŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͘ ƐƐŝŵ͕ ƐŽĐŽƌƌĞŶĚŽͲŶŽƐ
das palavras de Chiampi, podemos concluir que é possível:
buscar o modo de reunir o natural e o sobrenatural numa rela-
ĕĆŽŶĆŽĚŝƐũƵŶƟǀĂĚĂƐŝƐŽƚŽƉŝĂƐĞƋƵĞƌĞƐƵůƚĞƚĂŶƚŽŶĂŽƉŽƐŝĕĆŽ
com as modalidades realista e maravilhosa, quanto na diferença
ĐŽŵĂĨĂŶƚĄƐƟĐĂĞĂĞƐƚƌĂŶŚĂ͘WĂƌĂƚĂŶƚŽĠƉƌĞĐŝƐŽƌĞƚŽŵĂƌĂĞƐ-
ƚƌƵƚƵƌĂĞůĞŵĞŶƚĂƌĚĂƐŝŐŶŝĮĐĂĕĆŽƉĂƌĂƐŽŶĚĂƌĂƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞ
ƵŵĂ ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ ƐĞŵąŶƟĐĂ ĞƐƉĞĐşĮĐĂ Ğŵ ƋƵĞ Ž ŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ Ġ
predicado da realidade e esta o é de maravilhoso. (1980, p. 140)

Se, ao irromper a ordem, o texto oferece um olhar sobre “o lado obscuro e

ŝŶĚĞĮŶşǀĞůĚĂƐĐŽŝƐĂƐ͟;:K^&͕ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϮϬϲͿ͕ƐĞƵĚŝƐĐƵƌƐŽ͗
ĞŶĐĂŝdžĂͲƐĞ ĞŶƚƌĞ ŽƵƚƌŽƐ ĚŝƐĐƵƌƐŽƐ ƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐŽƌĞƐ ĚŽ ŝŶƐƟƚƵşĚŽ͘
ZĞǀĞůĂĂƐĮƐƐƵƌĂƐƋƵĞĐŽƌƌŽĞŵŽƌĞĂů͕ŝĚĞŽůŽŐŝĐĂŵĞŶƚĞĞƐƚĂďĞůĞ-
cido, o real cultural e o castrado, que nos ensinaram a esquecer.
ŽĚŝƐĐƵƌƐŽƋƵĞŶŽƐŵŽƐƚƌĂĂŶſƐŵĞƐŵŽƐ͘DŽƐƚƌĂĂŽƌĞĂůƋƵĞ
ĞůĞĠŽĨĂŶƚĄƐƟĐŽƋƵĞŶĆŽƐĞĚĞƐĞũĂǀĞƌ͘;:K^&͕ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϮϭϵͿ

116 ISBN 978-85-8199-013-2 ISBN 978-85-8199-013-2 117


Saindo...
ƐĐƌĞǀĞƌ Ġ ĂŐŝƌ͘ Ž ĞŶƚĞŶĚĞƌŵŽƐ Ž ĞƐĐƌĞǀĞƌ͕ Ă ƉĂƌƟƌ ĚĂƐ ŽďƐĞƌǀĂĕƁĞƐ ĚĞ
Dominique Maingueneau ao abordar o posicionamento daquele que escreve – aqui,
ƚŽŵĂŶĚŽĐŽŵŽƉŽŶƚŽĚĞƌĞĨĞƌĞŶĐŝĂDŝĂŽƵƚŽ͕ĞŵƐĞƵŽİĐŝŽĚĞ͞ĞƐĐƌŝǀŝŶŚĂĚŽƌ͟ʹ͕
ĐŽŵƉƌĞĞŶĚĞŵŽƐĐŽŵŽŽĞƐĐƌŝƚŽƌƵƐĂƐƵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŶĂƋƵĂůŝĚĂĚĞĚĞĞdžĞƌĐşĐŝŽůĞŐşƟŵŽ
em prol da retomada de valores vinculados pela tradição, de maneira que possa, com
ŝƐƐŽ͕ĐŽŶƐƚƌƵŝƌƵŵĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞƉƌſƉƌŝĂ͕ĂŝŶĚĂƋƵĞ͕ŶŽƐĞƵĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽ͕ŵĞƐƟĕĂ͘
O autor moçambicano encarna seu papel e age em consonância com o que
assume –se ƵƐƚĞdžƚŽƐĚĞŽƉŝŶŝĆŽĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞĚŝĂůŽŐĂŵĐŽŵƐƵĂŽďƌĂĮĐĐŝŽŶĂů
ʹ͕ĐŽŶƚƌŝďƵŝŶĚŽƉĂƌĂĂĚŝǀƵůŐĂĕĆŽĚĞƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƋƵĞ͕ĞŵďŽƌĂƚĞŶŚĂĂƟŶŐŝĚŽƐƵĂ
maioridade no século anterior, ainda é, por muitos, ignorada (SANTILLI, 1985, p. 6).
ŶŽƚſƌŝŽ͕ĂƋƵŝ͕ŽĞdžĞƌĐşĐŝŽĚĞDŝĂŽƵƚŽƉĂƌĂĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂƌ͕ƚĂŶƚŽƵŵĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƋƵĞ
se diz moçambicana, quanto uma Moçambique para a literatura.
Ao longo de Vinte e zinco͕ŶĂƌƌĂƟǀĂƉſƐͲĐŽůŽŶŝĂů͕DŝĂŽƵƚŽƌĞƚŽŵĂŵĂƌĐĂƐ
ŝĚĞŶƟƚĄƌŝĂƐĚŽƵŶŝǀĞƌƐŽƚĞůƷƌŝĐŽŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽ͕ƌĞŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂŶĚŽ͕ĮĐĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕Ƶŵ
acontecimento histórico – a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1975. Quando
lhe é dado o direito de falar – o convite recebido pela editora Caminhos para par-
ƟĐŝƉĂƌĚĂĐŽůĞĕĆŽ͞ĂŵŝŶŚŽƐĚĞďƌŝů͟ʹ͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƐĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂ͕ŶĆŽĐŽŶƐƚƌƵŝŶĚŽ
ƵŵĂŶĂƌƌĂƟǀĂƌĂŶĐŽƌŽƐĂĂĚĞƐƉĞŝƚŽĚĂƐĂĐƵƐĂĕƁĞƐƋƵĞƐŽĨƌĞ;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϱϴͿ͕
mas, valendo-se ĚĞƌĞĐƵƌƐŽƐůƷĚŝĐŽƐŝŶĞƌĞŶƚĞƐăƉƌŽĚƵĕĆŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ƌĞĂůŝnjĂƵŵũŽŐŽ
ŶŽƋƵĂů͕ƚĂůĐŽŵŽĨŽŝĐŽŶǀŝĚĂĚŽĂĨĂůĂƌ͕ĚĄǀŽnjĂŽƐƋƵĞŶĆŽĞƌĂŵĞƐĐƵƚĂĚŽƐʹĂƋƵŝ͕
ĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐĞĚŽĞŶƌĞĚŽƋƵĞĚĞƐĞŶǀŽůǀĞʹ͕ƉĞƌŵŝƟŶĚŽͲůŚĞƐƌĞǀĞůĂƌƚĂŶ-
to um 25 de Abril, que também ocorre fora da metrópole, quanto a possibilidade de
um outro, ainda por vir, mais moçambicano.
ƐŶĂƌƌĂƟǀĂƐƉſƐͲĐŽůŽŶŝĂŝƐ͕ĂŽĂƐƐƵŵŝƌĞŵƉŽƐƚƵƌĂƐĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂƐ͕Ž
fazem recorrendo a diversas estratégias pelas quais subvertem tempo, espaço, ação
e personagens –categorias ĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂʹĂƐĞƵĨĂǀŽƌ͘ƐƐĂƐƵďǀĞƌƐĆŽĠƌĞĂůŝnjĂĚĂʹ
ĚĞŶƚƌĞĂƐƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĞdžŝƐƚĞŶƚĞƐʹ͕ŶĂŶĂƌƌĂƟǀĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂ͕ƵƟůŝnjĂŶĚŽƌĞĐƵƌƐŽƐ
ĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽĞŽƉŽƌƚƵŶŝĚĂĚĞƐƋƵĞĞƐƐĞƐŝƐƚĞŵĂŽĨĞƌĞĐĞ͘ƐƐŝŵ͕ĐŽŶƚĂƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂ
ĞŵƋƵĞĞůĞŵĞŶƚŽƐĚŽŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽƐĆŽůĞŐşǀĞŝƐĐŽŵŽĐŽŵƵŶƐăƌĞĂůŝĚĂĚĞĐŽƟĚŝĂ-
na, onde realia harmonizam-se com mirabilia. Esse fato é representado na diegese
ƉĞůĂƐŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕƁĞƐʹƚĞŶƚĂƟǀĂƐĚĞƚƌĂĚƵĕĆŽʹƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌƌĞĂůŝnjĂ͘DŝƚŽƐĞƌŝƚŽƐ͕
ǀŝƐƚŽƐĂŽůŽŶŐŽĚŽƚĞdžƚŽ͕ƉƌŽĐƵƌĂŶĚŽƐĞĂĨĂƐƚĂƌĚĞƵŵĂǀŝƐĆŽĞdžſƟĐĂ͕ƐĆŽůŝĚŽƐŶĆŽ
apenas como mirabilia ŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽƐ͕ŵĂƐĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐĨĞŝƚĂƐƉĞůŽĞƐĐƌŝƚŽƌĂŽůŽŶŐŽ
ĚĞƐƵĂƚƌĂŶƐƉŽƐŝĕĆŽĞƚĞŶƚĂƟǀĂĮĐĐŝŽŶĂůĚĞŚĂƌŵŽŶŝnjĂƌƌĞĂůĞƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůʹƚĂůǀĞnj͕
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
melhor expandir, empírico e metaempírico, que abarca a macro visão apresentada
por Filipe Furtado, a que aderimos.
ƐƐĞƵŶŝǀĞƌƐŽŵĞƚŽŶşŵŝĐŽĚĞƵŵĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĂĨƌŝĐĂŶĂʹĂƋƵŝ͕ĚĞƵŵĂĨƌŝĐĂ
portuguesa –, é construído pensando-se não apenas no momento histórico repre-
sentado na obra, mas, da maneira através da qual o autor desenvolve o enredo, ini-
ciando a história em dias anteriores e estendendo-a a dias posteriores à Revolução
ĚŽƐƌĂǀŽƐ͘ƐƐĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĮĐĐŝŽŶĂůƌĞƐŐĂƚĂĂƌŝƋƵĞnjĂĚŽƉĞƌşŽĚŽĚĞĐŽůŽŶŝnjĂĕĆŽĞĚĞ
ƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĚŽƉŽƌǀŝƌ͕ĞdžƉĞĐƚĂƟǀĂƐĚĂƋƵĞůĂƚĞƌƌĂ͕ĞŵǀŝĂƐĚĞƐĞůŝďĞƌƚĂƌ͘
Mia Couto, assim , dialoga não apenas com o acontecimento – 25 de Abril –,
mas com a nação moçambicana, que vai sendo construída ao longo de períodos de
dominação, exploração, violência contra a terra – seus costumes e crenças –, e guer-
ras – contra os de fora e entre os de dentro. O conhecimento – ainda que breve – da
espaciotemporalidade moçambicana – como elemento gerador de imagens pluriva-
ůĞŶƚĞƐĚŽƌĞĂůŶĂŽďƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂʹĐŽŶƚƌŝďƵŝƉĂƌĂƵŵĂŵĞůŚŽƌĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽĚĂ
hibridez das personagens, não apenas como indivíduos em si, mas como elementos
ĚĂ ƚĞƌƌĂ ƋƵĞ ŚĂďŝƚĂŵ ʹ ƵŶŝǀĞƌƐŽ ƚĞůƷƌŝĐŽ ŵĞƐƟĕŽ͕ ŐĞƌĂĚŽ Ğ ƌĞŶŽǀĂĚŽ ĂƚƌĂǀĠƐ ĚĞ
ĐŽŶƐƚĂŶƚĞƐŝŶŇƵġŶĐŝĂƐĞĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐ͘
Ao estudarmos Vinte e zinco, dentre as tantas possibilidades apresentadas
ʹĞŶƚƌĞĐůĂƐƐŝĮĐĄͲůŽĐŽŵŽƌŽŵĂŶĐĞŚŝƐƚſƌŝĐŽŽƵŵĞƚĂĮĐĕĆŽŚŝƐƚŽƌŝŽŐƌĄĮĐĂ͕ƋƵĞ͕ƉŽƌ
sinal, recorre ao insólito na condição de possibilidade de estratégia textual –, obser-
ǀĂŵŽƐ͕ĐŽŵŽĠſďǀŝŽ͕ƋƵĞŽĞƐĐƌŝƚŽƌĞŶĨƌĞŶƚĂŽƌŝƐĐŽĚĞƚĞĐĞƌƵŵƌŽŵĂŶĐĞƉĂŶŇĞ-
ƚĄƌŝŽͬĐĂŶƚĂůƵƟƐƚĂ͘
,Ą͕ƚĂŶƚŽƵŵĂƚƌĂĚŝĕĆŽĚĞĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐƋƵĞƉĞŐĂƌĂŵĞŵĂƌŵĂƐĚƵƌĂŶƚĞĂŐƵĞƌ-
ƌĂ ĐŽůŽŶŝĂů͕ ĞŶƋƵĂŶƚŽ ĐŽŵƉƵŶŚĂŵ ƐƵĂƐ ƉƌſƉƌŝĂƐ ŶĂƌƌĂƟǀĂƐ ƐŽďƌĞ ĂƋƵĞůĞ ƉĞƌşŽĚŽ
ʹĂĞdžĞŵƉůŽĚĞ>ƵĂŶĚŝŶŽsŝĞŝƌĂ͕ƵŵĂĚĂƐŝŶŇƵġŶĐŝĂƐĚĞDŝĂŽƵƚŽʹ͕ƋƵĂŶƚŽǀĄ-
rios grupos armados que guiaram a independência – a exemplo da FRELIMO, em
DŽĕĂŵďŝƋƵĞ͕ĚĂƋƵĂůDŝĂŽƵƚŽũĄĨŽŝŵĞŵďƌŽʹ͕ĞƋƵĞŚŽũĞĐŽƌƌĞƐƉŽŶĚĞŵĂŽƐ
ƉĂƌƟĚŽƐŶŽƉŽĚĞƌŶĂƐĞdžͲĐŽůƀŶŝĂƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĂƐ͘
KĞƐĐƌŝƚŽƌďƵƐĐĂĨƵŐŝƌĚĞƐƐĞƟƉŽĚĞƌŽŵĂŶĐĞ͕ĐŽŶƚĂŶĚŽĂŚŝƐƚſƌŝĂĚĞƵŵϮϱ
ĚĞďƌŝůƋƵĞƚĞŵŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂŚŝƐƚſƌŝĐĂ͕ŵĂƐŶĆŽƚĂŶƚĂƉĂƌĂŽƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽƐ͕͘ƐĞ-
gundo ele, a história dos que “sorriram no 25 de Abril de 1974 mas cantaram e dan-
ĕĂƌĂŵŶŽϮϱĚĞ:ƵŶŚŽĚĞϭϵϳϱ͟;KhdK͕ϮϬϬϱ͕Ɖ͘ϱϴͿ͘,Ą͕ĞŶƚĆŽ͕ĂĚĞƐĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚŽ
ϮϱĚĞďƌŝů͕ŐĞƌĂŶĚŽ͕ĂŽůŽŶŐŽĚĂŶĂƌƌĂƟǀĂ͕ƵŵƐĞŶƟĚŽŵĂŝƐŵŽĕĂŵďŝĐĂŶŽʹĐŽŵŽ
ŽơƚƵůŽĚĂŽďƌĂʹ͕ĂďƌŝŶĚŽĞƐƉĂĕŽƉĂƌĂƋƵĞƐĞŵŽƐƚƌĞŵƚĂŶƚŽŽƐƉŽŶƚŽƐĚĞǀŝƐƚĂĚŽƐ
oprimidos, quanto os dos opressores, em sua relação de abandonados pela metró-
pole, que os enviou para cumprir, no além-mar, o sonho do império português.
Os papéis assumidos – ou que se assumem –, na trama, se invertem, tanto
por assimilados e desassimilados, quanto por portugueses moçambicanos e mo-
ĕĂŵďŝĐĂŶŽƐƉŽƌƚƵŐƵĞƐĞƐ͘DŝĂŽƵƚŽƐĞŐƵĞĐŽŶƐƚƌƵŝŶĚŽƐĞŶƟĚŽƐƉĂƌĂĞdžƉƌŝŵŝƌƵŵĂ
ƌĞĂůŝĚĂĚĞŵĞƐƟĕĂ͕ƵƟůŝnjĂŶĚŽ͕ƉŽƌǀĞnjĞƐ͕ŽŝŶƐſůŝƚŽĐŽŵŽŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĚĞƵŵĂƌĞĂůŝ-
ĚĂĚĞŽŶĚĞŽƌĞĂůĮĐĐŝŽŶĂůĠĐŽŵƉŽƐƚŽƉĞůŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂů͘ŵĞƐƟĕĂŐĞŵĐŽŶƐƚƌƵşĚĂ
ŶĞƐƐĞ ĞƐƉĂĕŽ ĚĞ ĚƵĂůŝĚĂĚĞ ĐŽůŽŶŝĂů ƌĞƐƐŝŐŶŝĮĐĂ Ă ĂŵďŝŐƵŝĚĂĚĞ ĚĞ ƐƵĂ ŽďƌĂ ƉĞůĂƐ
ISBN 978-85-8199-013-2 119
João Olinto Trindade Junior
ǀŝĂƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͘džĞŵƉůŽĚŝƐƐŽĠĂĐĞŐƵĞŝƌĂĚĞdĐŚƵǀŝƐĐŽ͕ƋƵĞŽůĞǀĂĂǀŽůƚĂƌͲƐĞ
ƉĂƌĂĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝ͕ĨĂnjĞŶĚŽͲŽĞŶdžĞƌŐĂƌĂ͞ƐƵĂ͟ĨƌŝĐĂ͖ĂŽƉĂƐƐŽƋƵĞ>ŽƵƌĞŶĕŽ͕ƋƵĂŶĚŽ
ŽůŚĂƉĂƌĂƐŝʹŽƵƐĞũĂ͕ĚĞŽŶĚĞŽůŚĂʹ͕ĞŶdžĞƌŐĂƵŵWŽƌƚƵŐĂůŵĂŝƐĨĂŶƚĂƐŝŽƐŽĚŽƋƵĞ
o da realidade.
O escritor desenvolve, por meio das personagens – e o enredo que as en-
volve – a representação desses dois mundos – português e moçambicano, branco e
negro, cristão e animista –, mas em determinados momentos, estabelece harmonia
nos espaços de tensão, onde tanto eu quanto outro se confundem e se espelham,
mesmo quando não se assumindo. A tênue fronteira entre as crenças – e costumes
– dos brancos e dos negros é transpassada e hibridizada, caminhando em direção à
ĂƉŽƚĞſƟĐĂĐĞŶĂŝŶƐſůŝƚĂĞŵƋƵĞƐĞĚĆŽĂĂƐĐĞŶƐĆŽĚŽEĂƉŽůŽĞĂƚĞŵƉĞƐƚĂĚĞƋƵĞ
ĐĂŝĂŽĮŶĂů͕ŵĂŶĐŚĂŶĚŽĂƚĞƌƌĂăƐǀĠƐƉĞƌĂƐĚŽϮϱĚĞďƌŝů͘
hƟůŝnjĂŶĚŽŽƐŽďƌĞŶĂƚƵƌĂůĐŽŵŽĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂƚĞdžƚƵĂů͕ŽĞƐĐƌŝƚŽƌƚŽƌŶĂǀŝƐşǀĞůŽ
ŝŶǀŝƐşǀĞů͕ĞƐƉĞůŚĂŶĚŽ͕ŶŽƉůĂŶŽĚĂĚŝĞŐĞƐĞ͕ĂƌĞĂůŝĚĂĚĞĚĞƐƐĞĐĞŶĄƌŝŽ͕ĞƌĞĐƵƉĞƌĂĞƐ-
ƚƌĂƚĠŐŝĂƐĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽŶĂƌƌĂƟǀĂĮĐĐŝŽŶĂůĚĞƐĞŶǀŽůǀŝĚĂƐŶĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐůĂƟŶŽͲĂŵĞ-
ƌŝĐĂŶĂƐĂĮŵĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƌDŽĕĂŵďŝƋƵĞĞŵƐƵĂŽďƌĂ͘ƐƐŝŵ͕ĂƉƌŽƉƌŝĂͲƐĞĚĞƉƌĞ-
ĐĞŝƚŽƐĚŽZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽƉĂƌĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂƌĞƐƐĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵĐƵůƚƵƌĂůĐŽŵŝŵĂŐĞŶƐ
plurivalentes do real.
Constatamos que, se, por um lado, o discurso africano, calcado na tradição
ŽƌĂů͕ ĂďƌĂĕĂ Ă ĚŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞ ĚĞ ǀŽnjĞƐ ʹ ƚĂů ƋƵĂů Ƶŵ ĚŝƐĐƵƌƐŽ ĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽ ʹ͕
e, por outro, o discurso português/metropolitano exclui as variantes – tal qual um
ĚŝƐĐƵƌƐŽŚĞŐĞŵƀŶŝĐŽʹ͕DŝĂŽƵƚŽĂƐƐƵŵĞĂƚĂƌĞĨĂĚĞƌĞŶĚĞƌŚŽŵĞŶĂŐĞŵĂĂŵďŽƐ
ĞĐŽŶƚĂƵŵĂǀĞƌƐĆŽĚĂŚŝƐƚſƌŝĂĚŝƚĂĐŽŵŽŽĮĐŝĂů͘ĞƐƐĞĚŝƐĐƵƌƐŽŵĞƐƟĕŽƋƵĞďƵƐĐĂ
ƐĞƌ ŶĞŵ ĚĞƐĐŽůŽŶŝnjĂĚŽƌ ʹ ĐƌĞĚŝƚĂŶĚŽ͕ ĂƉĞŶĂƐ͕ ŵĠƌŝƚŽƐ ĂŽ ŽƵƚƌŽ ʹ͕ ŶĞŵ ƉĂŶŇĞƚĄ-
ƌŝŽʹĐĂŶƚĂŶĚŽĂƐŐůſƌŝĂƐĚŽƐŶĂƚƵƌĂŝƐĚĂƚĞƌƌĂʹ͕ƋƵĞŽůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ
ĞŶĐŽŶƚƌĂĂŽĚĂƌĂƐŵĆŽƐĂŽƐĞƵĂƵƚŽƌͲŵŽĚĞůŽ͕ĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂŶĂƌƌĂƟǀĂƋƵĞŽŐƵŝĂƉĞůŽƐ
ďŽƐƋƵĞƐĚĞnjŝŶĐŽĞŽĐŽŶǀŝĚĂĂĂĚĞŶƚƌĂƌŽũŽŐŽŶĂƌƌĂƟǀŽʹŵĞƐŵŽƚŽŵĂŶĚŽ͕ĐŽŵŽ
ƉŽŶƚŽĚĞƉĂƌƟĚĂ͕ƵŵĂŽďƌĂĐĂƌĂĂŽƐĚĞĨĞŶƐŽƌĞƐĚĞƵŵĂ͞ŝĚĞŶƟĚĂĚĞůƵƐſĨŽŶĂ͕͟Ġ͕
ĂŝŶĚĂĂƐƐŝŵ͕ƵŵůĞŝƚŽƌͲŵŽĚĞůŽŵŝĂĐŽƵƟĂŶŽ͘
ŵ ŶŽƐƐŽƐ ĞƐƚƵĚŽƐ͕ ĂŽ ǀĞƌŝĮĐĂƌ ƋƵĞ Ž ŚŝďƌŝĚŝƐŵŽ ĐƵůƚƵƌĂů Ġ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽ͕
ƵƟůŝnjĂŶĚŽŽǀŝĠƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽ͕ĐŽŵŽĞƐƚƌĂƚĠŐŝĂĚĞĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽ͕ŽƉƚĂŵŽƐƉĞůŽZĞĂůͲ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ ĞŶƚĞŶĚŝĚŽ ŵĂŝƐ ĂĚĞƋƵĂĚŽ ƉĂƌĂ ũƵƐƟĮĐĂƌ ĞƐƐĂ ĐĂƚĞŐŽƌŝĂ ĚĞ ŵĂŶŝĨĞƐ-
tação do sobrenatural. Através da semiose do 25 de Abril de 1974, os mirabilia são
ĞŶĐĞŶĂĚŽƐ Ğŵ ƵŵĂ ĞƐƉĂĐŝĂůŝĚĂĚĞ Ğŵ ƋƵĞ ĂƐ ĐĂƚĞŐŽƌŝĂƐ ĚĂ ŶĂƌƌĂƟǀĂ ƉĞƌŵŝƚĞŵ Ă
ĐƌŝĂĕĆŽĚĞƵŵŵƵŶĚŽŝŶƐſůŝƚŽ͕ĂŵƉůŝĂŶĚŽŽůĞƋƵĞĚĞƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞƐĞƐƚĠƟĐĂƐ͘Vinte
e zinco é, por nós, apresentado como um exemplo dessas apropriações, dinâmicas
e estratégias que permitem contemplar tantos lados de um acontecimento quanto
forem as vozes que o contam.
KďƐĞƌǀĂŵŽƐƋƵĞ͕ŶĞƐƐĂƚƌĂŶƐƉŽƐŝĕĆŽĚŽĨĂƚƵĂůƉĂƌĂŽĮĐĐŝŽŶĂů͕ŚĄĂƵƟůŝnjĂ-
ção do insólito como estratégia de semiose, sendo a diesege, por mais maravilho-
ƐĂƋƵĞĂƉĂƌĞŶƚĞƐĞƌ͕ƵŵĚƵƉůŽĚĂƌĞĂůŝĚĂĚĞ͘ŶƚƌĞƚĂŶƚŽ͕ŽďƐĞƌǀĂŵŽƐĂĚŝĮĐƵůĚĂĚĞ
ĞŵĐůĂƐƐŝĮĐĂƌĂůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵŝĂĐŽƵƟĂŶĂʹĂĞdžĞŵƉůŽĚĞVinte e zinco – em uma das
120 ISBN 978-85-8199-013-2
No coração da tempestade: irrupções insólitas em Vinte e zinco, de Mia Couto
ǀĞƌƚĞŶƚĞƐĚŽ&ĂŶƚĄƐƟĐŽstricto sensu͕ĞĨŽŵŽƐůĞǀĂĚŽƐĂŶĆŽĐůĂƐƐŝĮĐĄͲůŽĐŽŵŽZĞĂůͲ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ ŵĂƐ ƵƟůŝnjĂƌ ĂƐ ƚĞŽƌŝnjĂĕƁĞƐ ĚĞ /ƌůĞŵĂƌ ŚŝĂŵƉŝ͕ ƉĂƌĂ ĐŽŵƉůĞŵĞŶƚĂƌ
ďƌĞĐŚĂƐƉŽƌŶſƐĞŶĐŽŶƚƌĂĚĂƐĞ͕ƌĞŇĞƟŶĚŽƐŽďƌĞĞƐƐĞŵŽĚĞůŽĚĞůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ͕ĂƉŽŶ-
ƚĂƌƐƵĂƉŽƐƐşǀĞůĮůŝĂĕĆŽĂƵŵĂǀĞƌƚĞŶƚĞĂĨƌŝĐĂŶĂƋƵĞƐĞƚĞƌŝĂĂƉƌŽƉƌŝĂĚŽĚŽZĞĂůͲ
DĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ƋƵĞĂƐƐƵŵŝŵŽƐƐĞũĂŽZĞĂůͲŶŝŵŝƐŵŽ͘
Embora, após nossas leituras, venhamos a reconhecer as relações entre o
Real-Animismo – por questão de nomenclatura, assumimos como mais adequado
o nome “Real-Animismo” ao invés de “Realismo Animista”, proposto por Pepetela
em Lueji – O Nascimento de um Império ;ϭϵϵϳͿʹĐŽŵŽĂƚƵĂůŝnjĂĕĆŽĞŵĨƌŝĐĂĚŽ
ZĞĂůͲDĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ͕ĐŽŶĐůƵşŵŽƐƋƵĞĂŝŶĚĂŚĄĂŶĞĐĞƐƐŝĚĂĚĞĚĞŵĂŝŽƌĞƐĞƐƚƵĚŽƐĂƉƌŽ-
fundando a questão.
Chiampi admite que o Real-Maravilhoso não é apenas restrito à literatura
ĚŽƐƉĂşƐĞƐůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐ͕ŵĂƐĂƚĂŶƚĂƐůŝƚĞƌĂƚƵƌĂƐƋƵĞĐŽŵĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂƐĞ
ŝĚĞŶƟĮƋƵĞŵ;ϭϵϴϬ͕Ɖ͘ϵϮͿ͘ĐƌĞĚŝƚĂŵŽƐŶĆŽƐĞƚƌĂƚĂƌĚĞƵŵĂƋƵĞƐƚĆŽĚĞŶŽŵĞŶĐůĂ-
tura, mas de atualização, e pensamos, então, que em estudos futuros, essa questão
dos mirabiliaůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐĞŽƐanima africanos possa ser aprofundada em no-
vos estudos.
O discurso africano/moçambicano, carregado de manifestações da cultura
local, que se alimenta para formentar suas semioses, traz à tona a concepção de
ŚŝďƌŝĚŝƐŵŽĐƵůƚƵƌĂůʹǀŝĂŚŝďƌŝĚŝƐŵŽĮĐĐŝŽŶĂůʹ͕ŶŽƋƵĂůĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚŽeu passa
pelo outro, de maneira que, até mesmo a personagem Joaquim, como monstro – e
ƐƵĂĐŽŶƟŶƵŝĚĂĚĞ͕>ŽƵƌĞŶĕŽʹ͕ƉŽƌŵĂŝƐƚĞƌƌşǀĞŝƐƋƵĞƐĞũĂŵƐĞƵƐĂƚŽƐ͕ĐŽŶƚƌŝďƵĞŵ
para essa hibridez.
Ɛ ĚŝĐŽƚŽŵŝĂƐ ĂĐĞŝƚĂƌͬŶĆŽ ĂĐĞŝƚĂƌ͕ ǀŝĚĂͬŵŽƌƚĞ͕ ŵĞƐƟĕĂŐĞŵͬƵŶŝĚĂĚĞ͕ ƐĆŽ
elemento recorrente e caro à obra, pois, sobre sua égide, as transformações ocor-
ƌĞŵĚŝĂŶƚĞĚŽƐŶŽǀŽƐƚĞŵƉŽƐ͘^Ğ͕ƉŽƌƵŵůĂĚŽ͕ĠĂĂĐĞŝƚĂĕĆŽĚĂŵĞƐƟĕĂŐĞŵƋƵĞĚĄ
ŶŽǀĂǀŝĚĂă/ƌĞŶĞʹĞŵƐĞƵƉƌŽĐĞƐƐŽŝŶŝĐŝĄƟĐŽʹĞŵĞƚĂŵŽƌĨŽƐĞŝĂ:ŽĂƋƵŝŵƉĂƌĂƵŵĂ
ŶŽǀĂĞdžŝƐƚġŶĐŝĂ͕ĠŽŶĆŽĂĐĞŝƚĂƌĞƐƐĞĞƐƉĂĕŽĚĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕƁĞƐ͕ƋƵĞ͕ƉĂƵůĂƟŶĂŵĞŶ-
te, guia a trama até a morte de Lourenço.
ŶĂƌƌĂƟǀĂďƵƐĐŽƵŶĆŽĂƉĞŶĂƐĐŽŶƚĂƌƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂ͕ŵĂƐĞƐƚĂďĞůĞĐĞƌĐŽŶƐ-
ƚĂŶƚĞƐĚŝĄůŽŐŽƐĞŶƚƌĞĂƐƉĞƌƐŽŶĂŐĞŶƐ͕ĂƐƐŝƚƵĂĕƁĞƐĚĂƚĞƌƌĂĞŽŵŽŵĞŶƚŽŚŝƐƚſƌŝ-
ĐŽ Ğŵ Ɛŝ͕ ŽŶĚĞ ƐŝŐŶŽƐ ƚĞůƷƌŝĐŽƐ ƐĆŽ ƌĞƐŐĂƚĂĚŽƐ ŶĂ ƚĞŶƚĂƟǀĂ ĚĞ ĨŽƌŵĂĕĆŽ ĚĞ ƵŵĂ
Moçambique em que o Estado, de fato, procure a harmonia respeitando as diversas
ŶĂĕƁĞƐʹĐŽŵƚŽĚŽƐŽƐƐĞƵƐĞůĞŵĞŶƚŽƐĐŽŶƐƟƚƵƟǀŽƐʹƋƵĞĐŽŶǀŝǀĞŵĚĞŶƚƌŽĚĞƐŝʹĞ
lhe dão forma.
ISBN 978-85-8199-013-2 121

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