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da Marinha Portuguesa
I
A guerra subversiva é um tipo de guerra em que se visa obter o controlo de determinado
território por intermédio da acção de guerrilhas actuando no seu interior. Evitando
sistematicamente o confronto com forças superiores e restringindo a sua actuação a
ataques de surpresa nas mais diversas localidades e itinerários, as guerrilhas procuram
fundamentalmente convencer a população, as forças governamentais e o próprio
Governo do território de que este não dispõe de meios para as dominar e que,
consequentemente, mais tarde ou mais cedo não terá outro remédio senão submeter-se
às suas exigências de carácter político.
Como é evidente, para que as forças governamentais possam ganhar uma guerra
subversiva é necessário que sejam capazes de neutralizar as guerrilhas. Para isso
existem, teoricamente, três linhas de acção estratégica possíveis: a primeira consiste em
localizar e destruir as guerrilhas através do combate directo com elas; a segunda
consiste em cortar as comunicações entre as guerrilhas e as bases, geralmente situadas
em países vizinhos, que as abastecem; a terceira consiste em neutralizar essas bases por
intermédio de acções militares, pressões económicas ou arranjos diplomáticos.
Só que qualquer destas linhas de acção, salvo em circunstâncias especiais, é muito
difícil de pôr em prática. A localização das guerrilhas por meio de informações, da
observação aérea ou do patrulhamento intensivo do terreno raramente é conseguida.
Mesmo depois de localizado um grupo de guerrilheiros é quase sempre impossível
aniquilá-lo, uma vez que em poucos minutos dispersam e afastam-se para longe, ou se
escondem ou misturam com a população. Por último, quando as guerrilhas se sentem
particularmente acossadas numa dada zona, retiram para as suas bases situadas em
território estrangeiro e aí se refazem, para voltarem a aparecer mais tarde na mesma ou
noutra zona.
Cortar as comunicações entre as guerrilhas e as suas bases também não é fácil, em
primeiro lugar porque é praticamente impossível exercer uma vigilância eficaz sobre as
fronteiras terrestres que podem atingir centenas ou mesmo milhares de quilómetros; em
segundo lugar, porque as guerrilhas, no que toca a alimentação, são normalmente
abastecias pelas próprias populações dos territórios onde actuam, sendo indiferente que
estas o façam voluntariamente ou sob coacção.
Destruir as bases das guerrilhas situadas nos países vizinhos é, sem dúvida, o processo
teoricamente mais rápido e mais eficaz para conseguir a sua neutralização. Mas isso
implica a possibilidade de eclosão de um conflito armado de grandes proporções com
esses países, risco que um pequeno pais, como era o caso de Portugal, não podia correr
dado o seu fraco potencial militar e económico e o seu isolamento internacional.
Do que foi dito se poderá inferir, à primeira vista, que Portugal não tinha a menor
possibilidade de ganhar uma guerra subversiva na Guiné, em Angola ou em
Moçambique. Trata-se porém de uma conclusão demasiado simplista.
Na realidade, embora seja praticamente impossível localizar e destruir uma parte
substancial das guerrilhas que actuam no interior de um dado território, é possível,
desde que se disponha dos meios militares adequados, exercer sobre elas uma pressão
constante que acabe por tolher consideravelmente os seus movimentos e manter dentro
de limites razoáveis os inconvenientes resultantes da sua acção. Embora não seja
possível tornar impermeáveis as fronteiras terrestres, é possível, através da ocupação em
força de certos pontos, do patrulhamento intensivo de certos troços, do uso de pisteiros e
da observação aérea, dificultar consideravelmente a passagem de armas, munições e
pessoal para o interior do território. Procedendo ao aldeamento das populações e
dispondo de um bom serviço de informações é possível limitar os contactos daquelas
com os guerrilheiros e, consequentemente, dificultar o abastecimento destes.
Em resumo, apesar de não ser possível pôr termo rapidamente a uma guerra de
guerrilhas por meios militares, é perfeitamente possível limitar os seus efeitos por forma
a permitir que o progresso económico e social do território continue como em tempo de
paz. Nisto consiste ganhar militarmente uma guerra subversiva. Aliás, foi o que
aconteceu em Angola e em Moçambique, mas que só muito dificilmente poderia ter
acontecido na Guiné, dada a extensão das suas fronteiras terrestres em relação à
exiguidade do seu território, e a sua densa cobertura vegetal.
De notar que em Cabo Verde e em São Tomé não houve guerras subversivas porque o
domínio do mar e do ar de que dispúnhamos tornava impraticável apoiar a partir do
exterior uma guerrilha que eventualmente se formasse em qualquer das suas ilhas.
Em princípios de 1969 soubera-se em Bissau que a Guiné-Conakry havia recebido da
URSS três vedetas-torpedeiras da classe «Komar» e o PAIGC quatro vedetas-
torpedeiras da classe «P6». As primeiras eram navios de 75 toneladas, armados com
duas peças AA de 25 mm e dois mísseis superfície-superfície; as segundas eram navios
de 66 toneladas, armados com duas peças AA de 25 rnm e dois tubos lança-torpedos.
Umas e outras podiam atingir uma velocidade superior a 40 nós.
Como é evidente, tratava-se de uma ameaça grave para nós. Durante a noite poderiam
essas vedetas chegar a Bissau sem serem detectadas e afundar em poucos minutos um
transporte de tropas ou qualquer outro navio de carga que lá se encontrasse.
Logo após a operação «Nebulosa» (Agosto de 1969) o comandante Alpoim Calvão, que
era especializado em mergulhador-sapador, idealizou uma nova operação destinada a
liquidar de uma assentada tanto as vedetas-torpedeiras do PAIGC como as da Guiné-
Conakry. De acordo com o seu plano, uma das nossas LFG's aproximar-se-ia sub-
repticiamente, durante a noite, do porto de Conakry e colocaria na água várias equipas
de homens-rãs que iriam fixar minas-lapa nos cascos das vedetas. Feito isso,
regressariam à LFG, que desapareceria sem deixar rasto. Algumas horas mais tarde as
minas explodiriam e aquelas iriam ao fundo sem que ninguém pudesse saber
exactamente o que tinha acontecido!
Como seria de esperar, o brigadeiro Spinola aprovou com entusiasmo a ideia. Calvão foi
a Lisboa, conseguiu o apoio do chefe do Estado-Maior da Armada (vice-almirante
Reboredo e Silva), que provavelmente terá informado o Ministro da Marinha (vice-
almirante Pereira Crespo), e seguiu depois para a África do Sul, acompanhado por um
inspector da DGS, a fim de tentar obter aí as minas-lapa necessárias para a operação,
uma vez que a nossa Marinha não as possuía. Conseguidas estas, trouxe-as para Lisboa
como se fossem bagagem pessoal e, seguidamente, mandou-as para a Guiné.
Tratava-se agora de obter um plano actualizado do porto de Conakry, de que também
não existia nenhum em Lisboa ou em Bissau. Para resolver o problema o comandante
Calvão propôs ao comandante da Defesa Marítima da Guiné (comodoro Luciano
Bastos) que uma LFG disfarçada fosse fazer um reconhecimento a Conakry durante a
noite. Concordou aquele e em meados de Setembro de 1969 Alpoim Calvão embarcou
na Sagitário, de que era comandante o capitão-tenente Camacho de Campos, e dirigiu-se
para a ilha João Vieira, onde o navio foi disfarçado por forma a dar impressão de que
pertencia ao PAIGC. Foi também combinado que se a LFG se cruzasse com quaisquer
outros navios ou embarcações durante o trajecto para Conakry só apareceriam no
exterior os elementos africanos da sua guarnição. Um cabo fuzileiro com boné de
capitão-tenente representaria o comandante. E assim foi feito, conseguindo a lancha
chegar a Conakry pelas zero horas do dia 17 de Setembro sem levantar suspeitas, apesar
de se ter cruzado pelo caminho com diversos pesqueiros guineenses!
Dando uma volta larga para se apresentar diante da cidade como se viesse do sul, a
Sagitárío entrou no canal que separa as ilhas Loos da península de Conakry cerca das
duas horas. Então, utilizando o radar, foram localizadas com rigor as posições dos
diversos cais acostáveis. Uma hora mais tarde a lancha dirigiu-se para a saída. Mas,
inesperadamente, o gerador avariou-se e o navio foi obrigado a fundear, o que submeteu
os nervos dos seus tripulantes a uma rude prova. Felizmente a avaria foi rapidamente
reparada e a Sagitário pôde continuar viagem e regressar a Bissau sem novidade.
Indubitavelmente uma das mais audaciosas e mais bem sucedidas operações de
reconhecimento levadas a cabo pela nossa Armada.
Animado pelo êxito da «visita» a Conakry Calvão resolveu alargar o âmbito da
operação que estava a planear. Porque não, fazer um raide àquela cidade, cuja
aproximação parecia tão fácil, e, simultaneamente, destruir as vedetas e libertar os 26
prisioneiros portugueses que lá se encontravam? Era uma ideia que desde há muito
germinava na sua mente e que agora se afigurava possível de levar à prática. E logo se
apressou a apresentar a proposta a Spínola. Concordou de imediato o comandante-chefe
com a ampliação dos objectivos da operação, a que havia sido dado o nome de código
«Mar Verde», mas entendeu que, já que se ia entrar à viva força em Conakry, então que
se aproveitasse para destruir também as instalações que o PAIGC ali tinha! A verdade é
que o sucessivo alargamento dos objectivos a alcançar ainda não ia ficar por aqui.
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II
Desde 1964 havia contactos entre as autoridades portuguesas, tanto de Lisboa como de
Bissau, com a FLNG (Front de Libération National Guinéen), um dos principais
partidos da oposição clandestina ao regime despótico de Sekou Touré. A partir da
chegada do brigadeiro António de Spinola à Guiné esses contactos intensificaram-se.
Era sua intenção auxiliar a FLNG a estabelecer bases de guerrilha no nosso território a
fim de fomentar uma guerra subversiva no interior da Guiné-Conakry que levasse à
deposição de Sekou Touré e à instauração de um regime que nos fosse favorável, isto é,
que pusesse cobro às acções militares que o PAIGC vinha efectuando contra nós a partir
daquele país. No entanto o projecto estava a avançar com muita lentidão por se recear
que pudesse acarretar graves complicações internacionais.
Foi então que o comandante Calvão teve a ideia de aproveitar o projectado ataque a
Conakry para, com a ajuda de forças da FLNG (que haveria que organizar), tentar
também levar a cabo um golpe de Estado naquela cidade que conduzisse à liquidação
imediata do regime de Sekou Touré! E, mais uma vez, obteve o apoio imediato do já
então general Spínola. Encontravam-se finalmente definidos os quatro objectivos da
operação «Mar Verde»: destruir as vedetas-torpedeiras; libertar os prisioneiros
portugueses; inutilizar as instalações do PAIGC em Conakry; substituir o governo de
Sekou Touré por um governo da FLNG.
Quanto a nós, a ampliação dos objectivos iniciais da operação foi um erro. A forma de a
levar a cabo também não nos parece que tenha sido a mais aconselhável. Pensamos que
a forma mais correcta de destruir as vedetas inimigas seria através da colocação de
minas-lapa, conforme inicialmente previsto, efectuada por mergulhadores-sapadores a
partir de um ou dois submarinos. A verdade, porém, é que o êxito alcançado parece
justificar o plano que foi adoptado.
Uma das maiores dificuldades, além de conservar o mais rigoroso segredo, era reunir na
Guiné Portuguesa os combatentes da FLNG que se encontravam refugiados no Senegal,
Gâmbia, Serra Leoa, Libéria e Costa do Marfim.
Para resolver o problema, Alpoim Calvão foi por diversas vezes a Paris, Genebra e
outras cidades a fim de contactar os dirigentes da FLNG e combinar com eles os locais,
as datas e os sinais de reconhecimento a utilizar na recolha daqueles elementos. Após
cada um desses contactos, ia ele próprio numa LFG, durante a noite, ao local
preestabelecido e, em botes de borracha, recolhia os homens da FLNG, na sua maioria
antigos militares do exército colonial francês ou do exército da.Guiné-Conakry.
Operações difíceis e melindrosas sob o ponto de vista da navegação que puseram à
prova a elevada competência profissional e o arrojo dos comandantes das nossas
lanchas.
À medida que os combatentes da FLNG iam chegando à Guiné, eram levados para a
ilha Soga, donde não mais saíam a fim de manter o sigilo da operação em vista. Na
referida ilha, onde haviam sido construidos aquartelamentos, foram os mesmos
submetidos a um treino intensivo sob a orientação de instrutores portugueses. Todo este
processo teve lugar entre Janeiro e Novembro de 1970.
Em meados de Novembro de 1970 estava tudo praticamente pronto para pôr em marcha
a operação «Mar Verde», faltando apenas obter a necessária autorização do governo
central. Para isso, o comandante Calvão foi mandado a Lisboa a 14, sendo portador de
uma carta-credencial do general Spinola para o Presidente do Conselho (professor
Marcelo Caetano), a quem expôs de viva voz o propósito e o plano da operação.
Seduzido pela perspectiva de um sucesso que o tirasse do beco sem saída que era a
guerra da Guiné e tentando convencer-se a si próprio de que seria possível efectuar uma
acção de tão grande envergadura sem deixar rasto, Caetano autorizou de imediato a sua
execução desde que não fosse deixado em Conakry o mais pequeno vestígio da nossa
participação.
CONAKRY - 1970
Quanto a nós, a decisão de Marcelo Caetano é, no mínimo, muito discutível. Quer fosse
bem ou mal sucedido, o ataque a Conakry poderia dar lugar a uma reacção por parte da
URSS de consequências francamente negativas para nós. O reforço do apoio militar e
político aos movimentos que conduziam as guerras subversivas na Guiné, em Angola e
em Moçarnbique, ou mesmo o apoio à República da Guiné-Conakry para uma acção de
retaliação em grande escala, eram riscos reais que, em nossa opinião, não se justificava
correr, sobretudo tendo em conta que o teatro de operações da Guiné era um teatro de
operações indiscutivelmente secundário no conjunto da guerra de defesa do Ultramar.
De qualquer forma, a decisão fora tomada e os dados estavam lançados. Pelas dezanove
e cinquenta do dia 20 de Novembro largou da ilha Soga, sob o comando superior do
capitão-tenente Alpoim Calvão, uma força naval constituída pelas LFG's (Lanchas de
fiscalização grandes) Orion (capitão-tenente Faria dos Santos), Cassiopeia (capitão-
tenente Lago Domingues), Dragão (primeiro-tenente Duque Martinho) e Hidra
(primeiro-tenente Fialho Góis), e pelas LDG's (Lanchas de desembarque grandes)
Bombarda (capitão-tenente Aguiar de Jesus) e Montante (primeiro-tenente Costa
Correia), em que iam embarcadas as forças da FLNG, cerca de 200 homens, a
companhia de comandos africanos (capitão Bacar Juló) e o DFE21, também africano
(primeiro-tenente Cunha e Silva).
Será oportuno referir que dois oficiais, um da Marinha e outro do Exército, ao ser-lhes
dado conhecimento da natureza da operação, puseram fortes reticências. Pensavam eles
que não era legítimo atacar de surpresa um país com quem Portugal estava oficialmente
em paz (apesar de esse país permitir que nos estivesse sendo feita a guerra a partir do
seu território) e que também não era legítimo utilizar tropas portuguesas com uniforme
estrangeiro e sem qualquer sinal de identificação pessoal (o que, aliás, acontece com
frequência na guerra subversiva). Afinal, acabaram ambos por ceder às exortações de
Spínola e de Calvão, que, como militares natos que eram, entendiam que a guerra é por
natureza um acto de violência que não pode ser praticado com excessivos escrúpulos e
muito menos sem correr grandes riscos.
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III
Navegando com o apoio de um avião P2V5 da FAP (Força Aérea Portuguesa), a nossa
força naval conseguiu evitar o encontro com qualquer outro navio e chegar às
imediações de Conakry sem ser detectada às vinte horas de 21 de Novembro de 1970,
um sábado, com a Lua prestes a nascer e a maré já muito próxima do preia-mar, ou seja
nas condições ideais para o sucesso da operação.
Às vinte e vinte, pouco depois de ter sido avistado o farol das ilhas Loos, os navios
receberam ordem para dispersar e seguir para os fundeadouros que lhes haviam sido
destinados. Pouco depois foi promulgada a hora do desembarque: uma e trinta de
domingo, dia 22.
CONAKRY - 1970
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IV
À uma e quarenta largaram da Dragão e da Cassiopeia dez botes de borracha
transportando a equipa ZULU, encarregada de se apoderar de um complexo militar
situado a cerca de 7 quilômetros a NE de Conakry. No caminho alguns dos botes
embaraçaram-se em armações de pesca, pelo que só às duas e quinze chegaram a terra.
Dividiu-se então a equipa em três grupos. O primeiro dirigiu-se para a prisão La
Montaigne, onde se encontravam detidos 26 militares portugueses, que foram libertados
depois de um curto mas violento combate com a respectiva guarda. Pode imaginar-se a
alegria desses militares que, mergulhados havia meses e anos nas trevas do cativeiro,
viam abrir-se de repente, como que por encanto, as portas da liberdade! O segundo
grupo atacou as instalações do PAIGC, destruindo cinco edifícios e várias viaturas, e
abateu diversos militantes que lá se encontravam. O terceiro grupo tomou à sua conta o
campo das milícias e a Vila Silly, residência alternativa de Sekou Touré que se
encontrava fortemente guardada. Ambos foram ocupados após violentos combates, em
que os defensores sofreram pesadas baixas.
Da LDG Montante partiram as equipas ÓSCAR, ÍNDIA e MIKE. A primeira, utilizando
botes de borracha, abicou ao quartel da Guarda Republicana, que, após um duro
combate, conseguiu tornar, libertando cerca de 400 presos políticos que lá se
encontravam, muitos dos quais pegaram imediatamente em armas.
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V
Sob o ponto de vista puramente militar, isto é, de organização, logística, estratégia
operacional, táctica e técnica, a operação «Mar Verde» constituiu um sucesso
espectacular, atendendo ao rigor com que foi planeada e executada, aos reduzidíssimos
meios que utilizou, ao pequeno número de baixas sofridas pelas nossas tropas (apenas 3
mortos e 3 feridos graves) quando comparadas com as sofridas pelo adversário (cerca de
500 mortos) e, sobretudo, pelo facto de ter levado à destruição de todas as vedetas-
torpedeiras e à libertação de todos os prisioneiros portugueses que estavam em Conakry.
Sob o ponto de vista da grande estratégia (parte da política nacional relacionada com a
guerra), não pode deixar de ser considerada um fracasso, uma vez que um dos seus
objectivos principais, a substituição do governo de Sekou Touré por um governo da
FLNG, não foi conseguida. No entanto, quanto a nós esse fracasso poderá ter sido
providencial. Se os «Migs» tivessem sido destruídos é muito provável que Alpoim
Calvão se tivesse deixado ficar em Conakry até que ali fosse instalado um governo da
FLNG e que este solicitasse o concurso, ainda que disfarçado, das tropas e da aviação
portuguesa da Guiné para assegurar o controlo do resto do território, o que poderia ter
arrastado Portugal para uma guerra aberta do tipo tradicional com a Guiné-Conakry.
Nesse caso seria de esperar que a URSS fornecesse a esta grandes quantidades de
material de guerra e fizesse convergir para lá efectivos consideráveis de tropas cubanas.
O mais certo é que acabássemos por sofrer uma derrota humilhante que não poderia
deixar de afectar negativamente o moral da população metropolitana e das tropas que
estavam a combater em Angola e em Moçambique.
Tal como as coisas se passaram, o Governo Português pôde assumir a posição de que
era inteiramente alheio ao acontecimento, as reacções, tanto da ONU como da URSS,
foram menos violentas do que seria de esperar e o assunto, ao fim de poucos meses, caiu
no esquecimento!
Não obstante, pensamos, e como nós muitos oficiais das Forças Armadas, que a posição
assumida por Marcelo Caetano não terá sido a mais digna nem a mais correcta. A nosso
ver teria sido preferível que o Governo Português tivesse assumido publicamente a
paternidade da operação, afirmando que os seus objectivos tinham sido unicamente a
destruição das vedetas-torpedeiras do PAIGC (que nos estava atacando a Guiné) e a
libertação dos militares portugueses detidos em Conakry (contrariamente ao estipulado
pelo Direito Internacional); que quanto à tentativa de golpe de Estado levada a cabo
pelas forças da FLNG se tratara apenas do aproveitamento de uma oportunidade da
exclusiva responsabilidade desta. Dado o êxito militar que a operação constituiu, a sua
divulgação teria tido certamente um efeito psicológico francamente positivo, tanto em
relação à população da Metrópole como em relação às tropas que estavam a combater
nas outras províncias ultramarinas. Afinal tudo isso se perdeu devido à falta de estatura
política de Marcelo Caetano.
Para impedir que os Portugueses pudessem realizar novo ataque a Conakry Sekou Touré
pediu a protecção naval da URSS, que enviou para lá duas fragatas com guarnições
russas.
Será oportuno chamar a atenção do leitor para o facto de que o ataque a Conakry de 22
de Novembro de 1970 foi a única operação realizada pela nossa armada desde a batalha
do cabo de São Vicente (1833) com implicações de ordem estratégica, isto é, com
possibilidade de alterar o curso da guerra. Foi também a última acção naval em que os
Portugueses tiraram partido do domínio do mar para tentar ganhar uma guerra.
Como é evidente, a grande figura do ataque a Conakry foi o comandante Alpoim
Calvão, um dos mais notáveis marinheiros militares portugueses dos últimos séculos,
cujas acções na Guiné nos fazem vir à lembrança aqueles rudes e indómitos cavaleiros
de outros tempos, sempre prontos para lutar em terra ou no mar, sem olhar a
dificuldades nem à escassez de meios, e que foram os principais obreiros do Império,
império que, como todos os impérios, tinha necessariamente de acabar um dia, mas que
bem podia e devia ter tido um fim menos triste.
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Saturnino Monteiro
em «Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa»
Bibliografia:
Calvão, Alpoim, De Conakry ao M.D.L.P., Editorial Intervenção, Lisboa, 1976, p. 64
Conversas do autor com os Comandantes Alpoim Calvão, Rebordão de Brito, Lago Domingues e outros.