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Breve ensaio sobre a irracionalidade humana

POR LADISLAU DOWBOR


– ON 05/11/2018
CATEGORIAS: COMPORTAMENTO, DESTAQUES, MUNDO, SOCIEDADE

Historiadora norte-americana descreve, em livro, a louca propensão das sociedades a insistir em seus
próprios erros, ignorando os fatos “incômodos”. Algo a ver com o Brasil de 2018?

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Louise Williams


Resenha de:
The March of Folly: from Troy to Vietnam [“A marcha da Insensatez: de Troia ao Vietnã”]
De Barbara W. Tuchman – Random House, New York, 2014 – 470 p.
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A minha idade e a minha confiança na racionalidade do ser humano têm evoluído em sentidos
inversos. Mas como somos animais sofisticados, quanto mais absurdo o que defendemos, mais
argumentos racionais inventamos. E, sobretudo, quando já fomos identificados com uma posição ou
atitude política completamente absurda, conseguimos apenas nos aprofundar na burrice. Segundo as
sábias palavras de Barbara Tuchman, a propósito de como os norte-americanos foram se afundando no
Vietnã, ao custo de imenso sofrimento daquele povo, e desgaste político de quatro sucessivos
presidentes, “uma vez que uma política foi adotada e implementada, toda atividade subsequente se
transforma num esforço para justificá-la.” (263) Qualquer semelhança com o golpismo no Brasil
insistir numa política que empurra o país para trás, mesmo depois de 4 anos de desastre, não é
evidentemente uma coincidência, é a regra. No túnel da burrice, os que a perpetram sempre imaginam
que logo adiante surgirá a proverbial luzinha. Se a política sacrifica em vez de ajudar, dirão que o
sacrifício não foi suficiente, é só aprofundar um pouco mais.

Não perceber a nossa irracionalidade é simplesmente perigoso. E obviamente pouco inteligente. Nada
como a história para substituir o conceito de homo sapiens pelo de homo demens. Já pensaram que em
nenhum momento da história registrada da humanidade deixamos de nos massacrar uns aos outros?
Em cada guerra ou massacre que estudamos, buscamos definir quem eram os bons e quem eram os
maus. E se a própria incapacidade de vivermos em paz e colaboração, o que sem dúvida seria mais
proveitoso para todos, fosse objeto da nossa análise? Eu gosto muito do texto de Frans de Waal, Our
Inner Ape (O Primata Dentro de Nós), em que surge com toda clareza o quanto nos comportamos,
quanto à defesa dos nossos territórios, como os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés
[leia resenha]. Guerras tribais, guerras nacionais, guerras mundiais, alguma delas tem algum sentido?

Um outro belíssimo texto, The Righteous Mind (a mente moralista), Jonathan Haidt analisa as nossas
motivações, e em particular como as conseguimos embelezar [leia resenha]. O Ku-Klux-Klan
massacrava para proteger as virgens brancas e queimava casas para civilizar os negros. Os nazistas
estavam limpando a raça. As guerras das religiões mataram e torturam em toda parte segundo as
ordens expressas dos respectivos deuses. A inquisição torturava mulheres, de preferência nuas, para
extirpar o demônio que se apossara das suas almas. No Vietnã mataram dois milhões, na Argélia um
milhão, na II Guerra Mundial 60 milhões, o Oriente Médio está aumentando a conta a cada dia. Tudo
em nome dos mais elevados ideais. O que Haidt deixa claro é como é agradável, profundamente
satisfatório, dar livre vazão do que há de mais podre dentro de nós, em nome dos mais elevados ideais.
É o orgasmo supremo. O ódio justificado gera um gozo irreprimível. É ignorância? Sem dúvida, mas
não falta de diplomas. Metade dos médicos da Alemanha aderiu ao partido nazista.

Barbara Tuchman escreve muito bem, e isso não é secundário. Mas em particular faz uma análise
maravilhosa da burrice no poder, da imensa capacidade de coletivos humanos de gente bem informada,
e com poder de decisão, se enterrar em políticas que não só representam interesses egoístas, mas que
ao fim e ao cabo prejudicam os próprios agentes que as implementam. É o que ela chama de folly,
insensatez: “a implementação de políticas contrárias ao próprio interesse da instituição ou do Estado
envolvido. Auto-interesse é qualquer política que conduz ao bem estar ou vantagem do grupo sendo
governado: insensatez é uma política que nestes termos é contraprodutiva.” (6) A exploração colonial
por parte da Grã-Bretanha era uma violência inadmissível, mas pelo menos compreensível pelas
vantagens. A extorsão que tentaram impor à sua colônia americana foi tão burra que conseguiram
obter o impensável: a unificação indignada dos tão diversos segmentos do que hoje são os Estados
Unidos, e uma guerra fadada ao desastre. É o que resumimos no Brasil com a expressão “dar um tiro
no próprio pé.” Haja tiro, e haja burrice.

As patéticas políticas da Grã-Bretanha frente aos Estados Unidos foram em grande parte devidas ao
que podemos chamar de solidariedade da ”patota”, que permite avançar gloriosamente até a evidente
derrota. Tentando entender a marcha da insensatez dos britânicos, Tuchman lembra como era a
composição dos ministérios: “Eles provêm de cerca de 200 famílias incluindo 174 nobres em 1760.
Conheciam-se da escola e da universidade, eram relacionados por meio de cadeias de primos, alianças
de casamentos, sogros e familiares de segundos e terceiros casamentos. Casavam com as irmãs, filhas
e viúvas uns dos outros, e regularmente trocavam amantes (uma tal Senhora Armstead serviu neste
papel ao lorde George Germain; ao seu sobrinho, o duque de Dorset; ao lorde Derby; ao príncipe de
Wales e a Charles James Fox, com quem viria a casar), nomeavam-se uns aos outros em posições de
autoridade e asseguravam uns aos outros posições e aposentadorias”. (145) Soa familiar? Com duques
e lordes a menos, patotas semelhantes empurram o mundo para o desastre nas mais variadas
circunstâncias.

Tuchman nos traz uma análise detalhada dos seis papas que conseguiram, entre 1470 e 1530, e sempre
em nome dos mais sagrados ideais, se comportar de maneira tão corrupta e indecente, que liquidaram
o imenso poder que a instituição representava, abriram portas escancaradas para a reforma protestante
e para as sucessivas guerras das religiões. Não eram inconscientes. Mas tinham gerado uma dinâmica
que não permitia a volta. Como se os grandes erros buscassem justificativas em erros ainda maiores.
Voltar atrás significaria admitir demasiados erros para que fosse possível. Constitui-se um processo
irreversível de autodestruição.

Particularmente interessante é a análise detalhada de como se montou e manteve durante décadas uma
narrativa completamente surrealista que justificaria o aprofundamento do envolvimento dos EUA na
guerra do Vietnã. Com o fim da II Guerra Mundial, a França queria retomar o seu papel colonial neste
país. Levaram uma surra homérica na batalha de Dien-Bien-Phu, apesar do apoio aéreo norte-
americano. Mas tinha sentido os americanos se envolverem numa guerra pela manutenção de um
poder colonial francês na Ásia? Como parlamentares bem informados fizeram discursos, em público,
explicitando aos colegas e aos cidadãos que se o Vietnã ganhasse a guerra, os Estados Unidos se
veriam “irremediavelmente cercados”!! Quando os franceses, depois da surra, se tornaram mais sábios
e voltaram para a França, repassaram a bola para os americanos, que nunca conseguiram se
desvencilhar da herança – até que levassem eles também uma surra, décadas e milhões de mortos
depois.

As grandes burradas exigem grandes narrativas, que de tanto repetidas acabam sendo aceitas até por
quem as inventa. É tão agradável poder se justificar de forma simples e compreensível para si e para os
outros. Imaginar que países asiáticos como Vietnã, Laos, Cambodia, Tailândia e outros fossem pedras
de dominó, caindo uma cairiam as outras, aparece hoje como ridículo. No entanto, tantos acreditaram,
e em particular os americanos. “Confundir vários países da Ásia do Leste como se não tivessem
individualidade, nem história, nem diferenças ou circunstâncias próprias foi o pensamento –
desinformado, superficial ou ainda conscientemente falso – que criou a teoria do dominó, e permitiu
que se tornasse dogma. Porque os orientais no conjunto pareciam tão semelhantes aos olhos dos
ocidentais, esperava-se que agissem de forma idêntica e atuassem com a uniformidade de dominós.”
(271) Algum americano conhecia os séculos de lutas do Vietnã por sua independência relativamente
aos vizinhos? Os GIs que desembarcavam em Saigon não falavam nem francês, nem vietnamita. O
racismo implícito nesta visão do “perigo amarelo” teve sem dúvida um papel importante. (296)

A autora usa um conceito rico, cognitive dissonance, que poderíamos traduzir como dissonância
cognitiva, em que o conjunto da narrativa criada se mantém apesar de os fatos a desmentirem de
maneira escandalosa. Entre a realidade e a narrativa, dane-se a realidade. “Para o governante é mais
fácil, uma vez que entrou num casulo político (a policy box), permanecer dentro dele. Para um político
em nível hierárquico inferior é melhor, para o bem da sua posição, não gerar marolas, não pressionar
com evidências que o chefe acharia penoso aceitar. Os psicólogos chamam esse processo de filtrar
evidências discordantes de ‘dissonância cognitiva’, uma forma fantasiosa para o acadêmico dizer ‘não
me confundam com fatos’.” (322) Em outros termos, o apego aos erros torna-se mais rígido. Como é
possível que com mais de 1,5 milhões de toneladas de bombas, mais do que na II Guerra Mundial, os
vietnamitas não se convencem que devem negociar? Mais bombas! (367)

Tuchman, claramente, não tem muita confiança na lógica do poder ou na inteligência dos grupos que o
manejam. “A ausência de pensamento inteligente no exercício do poder é outro dado universal, que
levanta a questão de a que ponto, nos Estados modernos, há algo na vida política e burocrática que
reduz o funcionamento do intelecto em favor de ‘manejar as alavancas’ sem considerar as expectativas
racionais. Isso parece ser uma prospectiva que se mantêm.” (398) A filosofia que permeia os escritos
de Barbara Tuchman resulta sem dúvida dos seus próprios estudos da História, mas o seu ceticismo
relativamente ao exercício do poder tem raízes mais antigas. A autora lembra Platão: “Ele também
teve de aceitar que os seus colegas humanos estavam ancorados na vida de sentimentos, agitados como
bonecos pelos fios dos desejos e medos que os fazem dançar. Quando o desejo não está de acordo com
o julgamento da razão, disse ele, há uma doença na alma. E quando a alma se opõe ao conhecimento,
ou opinião ou razão que são as suas leis naturais, isso eu chamo de insensatez.” (404)

Uma belíssima leitura. Boa tradução em português, disponível por exemplo em Estante Virtual.

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