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BELO HORIZONTE
JUNHO DE 2016
RAFAEL LARA MAZONI ANDRADE
BELO HORIZONTE
JUNHO DE 2016
RAFAEL LARA MAZONI ANDRADE
BELO HORIZONTE
2016
Andrade, Rafael Lara Mazoni.
A553i (In)dependência e desenvolvimento: avaliação do impacto das
ações de regularização fundiária sobre as finanças públicas municipais
no Brasil / Rafael Lara Mazoni Andrade. -- 2016.
171 p. : il.
CDU 333.32(81)
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado à memória do meu pai, Alexandre Alberto Mazoni Andrade, e do
seu avô, de quem ele herdou o nome, professor Alberto Mazoni Andrade, pelos indeléveis e
ingentes ensinamentos - o primeiro em vida, e o segundo através daquilo que a história
registrou.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, meus agradecimentos vão àquele em quem "habita plena toda graça e
divindade de um Deus que é todo santo e veste a nossa humanidade". Agradeço ao Pai por tudo
o que tenho, por tudo o que sou e por ter me dado um futuro e uma esperança. A abundância
e a gratuidade desses cuidados não podem ser expressas em palavras.
Em segundo lugar, agradeço a toda a minha família - à família de sangue e à família por
opção. Que todo o carinho, tempo, dedicação, sacrifício, ensinamentos e paitrocínio sejam
recompensados! Se - nos termos de John Rawls - eu pudesse me abster do "véu da ignorância"
antes mesmo de nascer, ainda assim teria escolhido vocês!
Em sequência, agradeço de forma especial a Germana, pela paciência, pelo carinho e pela
ajuda em todo tempo - e pela revisão crítica de uma aluna de Urbanismo. Poucas pessoas se
envolveram tanto com o tema deste trabalho quanto ela! A minha motivação para revisar cada
linha e buscar as melhores palavras para este trabalho reflete um pouco daquilo que o seu
amor significa para mim: uma busca contínua pelo melhor que existe em mim. Te amo!
Agradeço a Ann e Brenton Bennett, pelo amor e por serem donos do meu destino favorito
durante as férias. Especialmente, agradeço ao Brenton pela aula em campo sobre
planejamento urbano, dia 4 de julho de 2014, que despertou em mim uma nova forma de olhar
- um tanto mais madura e realista - sobre o tema das políticas públicas.
Agradeço também a Cristina e Eduardo Barbi, cujas aulas de matemática em plenas férias
de janeiro - fundamentais para a aprovação no vestibular da Fundação - evidenciam um
carinho que não se pode expressar com palavras.
Pelo valioso e distinto insight transmitido na mensagem - às 6 da manhã, durante nossa
saudosa ida a Curitiba - a respeito dos Homestead Acts e a questão do desenvolvimento nos
Estados Unidos, agradeço ao tio Mauro Lara.
Não posso deixar de agradecer, ainda, a quatro amigos que estiveram comigo em todo o
tempo, evidenciando o que a Bíblia diz sobre amigos que se tornam irmãos: David, Deraldo,
Rodrigo e Vinícius. Como diria Platão, é muito bom encontrar alguém com a "predisposição
recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro".
Por fim, agradeço a todos os meus amigos da Igreja, da música, da Badabauê, dos tempos
de colégio, dos Estados Unidos, da FJP - especialmente ao Bruno Rozenberg, ao Pedro
Bragança e ao Gutemberg Andrade, por várias parcerias ao longo desse tempo, e ao professor
Felipe Leroy, pela ajuda com alguns dados - do UniBH e da Sedru - em especial ao pessoal da
minha equipe e ao meu tutor de estágio, Pedro Salim. A amizade de cada um de vocês fez com
que todos os fardos se tornassem mais leves. Ainda, agradeço a cada um dos meus professores
- no CBM, na UFMG, no UniBH e, finalmente, na FJP -, em particular ao Cláudio Burian, que
nesse tempo somou sua excelente orientação à amizade e aos cappuccinos.
EPÍGRAFE
Ti ripeto la ragione per cui la descrivevo: dal numero delle città immaginabili occorre
escludere quelle i cui elementi si sommano senza un filo che li connetta, senza una regola
interna, una prospettiva, un discorso. È delle città come dei sogni: tutto l'immaginabile può
essere sognato ma anche il sogno piu inatteso è un rebus che nasconde un desiderio, oppure
il suo rovescio, una paura. Le città come i sogni sono costruite di desideri e di paure, anche se
il filo del loro discorso è segreto, le loro regole assurde, le prospettive ingannevoli, e ogni cosa
ne nasconde un'altra (CALVINO, 1972, p. 20).
RESUMO
Este trabalho busca avaliar políticas de regularização fundiária - políticas públicas usadas
para dar títulos de propriedade a posseiros, simplificando a aquisição de terras, bem
como dando-lhes melhores condições de vida através de melhores moradias, urbanização
e recuperação ambiental. Problemas como trânsito, violência e poluição, são mais velhos
que a própria urbanização, que é baseada em um processo de explosão-implosão, descrito
por Lefebvre e discutido por de especialistas em planejamento urbano. Em adição a todos
estes problemas, as cidades brasileiras nasceram um contexto conflituoso, caracterizada
pela violência dos governantes portugueses e do grande esforço dos brasileiros para
serem autônomos. Essa luta continuou durante todo o processo de urbanização no Brasil,
que engendrou o que se chama de crise das cidades. Assim, no Brasil, as políticas de
regularização fundiária são implementadas como uma resposta a três problemas
específicos: a concentração de terras - que era, historicamente, uma base para todo o
processo de exclusão no Brasil - , dificuldades estruturais - que são mostradas nas
paisagens das cidades brasileiras, caracterizadas por moradias autoconstruídas de baixa
qualidade e um elevado deficit habitacional - , e à dependência financeira dos municípios
- uma vez que eles têm uma pequena porção de impostos (18% do total) e dependem de
transferências usadas como compensação para a concentração da receita fiscal. Hoje, a
maioria das cidades brasileiras são quase totalmente dependentes dessas compensações.
Mas, o que acontece é que esses recursos são vinculados, e os governos locais não têm
fundos suficiente para reagir face a todas as demandas específicas de sua jurisdição.
Inspirado pelas proposições defendidas por De Soto - que pensa que os títulos de terra
podem dinamizar as finanças públicas locais através uso de propriedades como garantia
para investir o dinheiro - essa tese utiliza método quantitativo propensity score matching
para medir o impacto da regularização fundiária sobre impostos locais. O método
estatístico mostra que as políticas de regularização fundiária podem afetar as finanças
públicas locais positivamente, reduzindo a dependência de transferências. No entanto, o
impacto não é igual para todos os municípios: cidades grandes têm efeitos maiores.
Finalmente, discutem-se soluções para esses problemas, tais como o uso de políticas de
regularização fundiária, no bojo de uma política urbana responsável e capilarizada.
PALAVRAS-CHAVE: regularização fundiária; planejamento urbano; federalismo; finanças
públicas municipais; avaliação de impacto de políticas públicas.
ABSTRACT
This thesis aims to value land tenure policies - public policies employed to give official
land titles to squatters, simplifying land acquisition as well as giving them better standard
of living through better dwellings, urbanization and environmental recovery. Cities all
around the world have lots of problems. These troubles, such as traffic, violence and
pollution, are older then the urbanization process itself, which is based on an explosion
implosion process, described by Lefebvre and discussed by a lot of urban planning
specialists and researchers. In addiction of all these troubles, Brazilian cities were born
under a conflictious context, characterized by the violence of Portuguese governors and
the great effort of Brazilian people to be free and autonomous. This struggle continued
through all the urbanization process in Brazil, which built a crisis process. Then, in Brazil,
land tenure policies are implemented as an answer to three specific problems: land
concentration - what was, historically, a base for the whole exclusion process in Brazil -
which are displayed on Brazilian cities’ landscapes, characterized by low quality, own-
built dwellings, a big habitation deficit, and financial dependency of municipalities - since
they have a minute portion of taxes (18% of the total) and depend on money transfers
used as compensation for the concentrated tax revenue. Nowadays, most of Brazilian
cities are almost totally dependents of these compensations. But, what happens is that
this money from other governments’ levels are tied - for example. if the federal education
agency gives money to a local government, this money needs to be spent with education.
Then, the local government doesn’t have enough funds to react to all the specifics
demands of its jurisdiction. Inspired by the propositions defended by De Soto - who
thinks that land titles can empower local public finances, by the use of properties as a
warranty to invest money - this thesis uses quantitative propensity score matching
method to measure the impact of land tenure policies over local taxes. The statistical
method shows that land tenure policies can impact local public finances positively,
reducing transfers’ dependency. Nevertheless, the impact is not equal for all
municipalities: big cities have greater impacts. At long last, we discuss solutions for these
problems, such as the use of land tenure policies within a big, spread and responsible
urban policy.
KEY-WORDS: Land policy; urban planning; federalism; local public finances; impact
evaluation of public policies.
LISTA DE TABELAS
1- INTRODUÇÃO..................................................................................................... 19
1.1- PROBLEMA DE PESQUISA..........................................................................22
1.2- OBJETIVOS...................................................................................................... 22
1.3- JUSTIFICATIVA..............................................................................................23
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 149
1- INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe-se a uma questão bem complexa, no cerne dos desafios
enfrentados pela gestão pública do século XXI. Utilizando-se da alegoria da raiz latina do
adjetivo complexo - complexus, que remete a um pano feito de tranças - , o problema das
cidades seria o pano, e as tranças seriam a concentração fundiária, as carências
estruturais e a dependência financeira. Em poucas palavras, a tese deste trabalho é de que
as ações de regularização fundiária podem oferecer soluções para os três problemas
citados acima.
A problemática das cidades é bem antiga - mais antiga que o próprio fenômeno da
urbanização. No século II depois de Cristo, o poeta Juvenal já se preocupava com
problemas enfrentados por Roma, onde ele vivia: congestionamentos, ruídos e crimes
(HEILBRUN, 1987).
Fato é que o urbano já nasce sob a égide de um movimento de implosão-explosão,
nas palavras de Henri Lefebvre (1986). Para o sociólogo francês, o conceito do urbano
nasce com l'éclatement da cidade, isto é, seu crescimento - para cima, condensando-se na
verticalidade; e para os lados, num processo de dispersão das aglomerações para as
periferias. Esse processo, para o autor, levaria a uma exacerbação dos problemas e à
deterioração de condições de vida nesse ambiente (LEFEBVRE, 1986).
Tão problemática quanto a urbanização, a questão da habitação ganha relevo pari
passu ao crescimento das cidades. Em meados do século passado, na aula magna da turma
de arquitetura da Universidade de Minas Gerais, o professor Alberto Mazoni Andrade
também se mostrava preocupado com a temática quando afirmou aos estudantes que “O
problema residencial, o "housing" dos inglêses, tornou-se assim um problema social e de
urbanismo de primeira plana" (MAZONI ANDRADE, 1955, p. 14).
O professor talvez nem imaginasse que na década de 1970 o Brasil tornar-se-ia um
país majoritariamente urbano, o que amplificaria o tal "problema residencial" citado por
ele. Ele talvez não fosse capaz de prever, também, a enorme quantidade de carências
habitacionais - número que, de acordo com os resultados preliminares da pesquisa Déficit
Habitacional de 2013, ultrapassa a casa dos 5,8 milhões de unidades (FUNDAÇÃO JOÃO
PINHEIRO, 2015a). Além disso, as discussões acerca de relações intergovernamentais -
que adicionam uma lente com maior zoom à temática das políticas urbanas - ainda eram
incipientes na época em que o professor atuou (TANZI, 1995).
19
No entanto, ainda nos anos 1950, Mazoni Andrade já previa aquilo que chamamos
hoje de “crise das cidades”1, ao comparar a produção do espaço urbano à Grande Babilônia
citada no livro de Apocalipse, na Bíblia: uma cidade perdida, “onde os mercadores da
Terra se enriqueceram com a abundância de suas delícias” (MAZONI ANDRADE, 1955, p.
15).
Uma das faces dessa crise que traz consequências negativas sobre a vida de
milhões de pessoas - e o que se busca evidenciar neste trabalho - diz respeito à
dependência financeira de transferências vindas de outros níveis de governo. Esse padrão
de relações intergovernamentais ficou evidente após a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Em síntese, os municípios foram elevados à categoria de entes federados,
com atribuições próprias e diversas responsabilidades - sobretudo no que tange às
políticas públicas relacionadas a infraestrutura e desenvolvimento urbano (MORAES,
2005). Concomitantemente, reduziram-se os aportes de investimentos dos demais níveis
de governo nas cidades (CAPOBIANCO, 2004). Nesse contexto de disparidades entre os
entes federados, emergem as transferências reguladas pela própria Constituição de 1988.
O que ocorre hoje é que, em face de sua dificuldade em auferir recursos próprios via
tributação, muitos municípios - sobretudo os de pequeno porte - dependem quase que
exclusivamente dessas transferências, o que reduz o poder discricionário do chefe do
Poder Executivo local e, por conseguinte, reduz seu poder de responder aos problemas
específicos de sua jurisdição (REZENDE, 2011).
Outra face da “crise das cidades” é o problema da propriedade de terras no Brasil
- que se soma, historicamente, à informalidade e à irregularidade das ocupações. Essa
soma engendra vários problemas, resultando em baixa qualidade de vida e baixo
desenvolvimento; o que penaliza principalmente a parcela de população com menor
renda (ÁVILA; FERREIRA, 2016). Nesse sentido, as ações relacionadas à regularização
fundiária - seja a partir das melhorias de condições de habitabilidade, na urbanização, na
recuperação ambiental ou na concessão de títulos de propriedade - são consideradas
conditio sine qua non para o desenvolvimento urbano (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005;
MARICATO, 2003). Como mostra Maricato (2003, p. 155), “A ilegalidade em relação à
1 Ideia que ganha força a partir da publicação, em 2001, do livro “Brasil, cidades: alternativas para a crise
urbana”, da arquiteta-urbanista Ermínia Maricato (2013).
20
posse da terra parece fornecer, freqüentemente, uma base para que a exclusão se realize
em sua globalidade”2.
Dessa forma, são inegáveis as contribuições que esse instrumento de planejamento
possui, por exemplo, para as finanças das famílias beneficiadas, para a melhoria da
qualidade de vida, para o desenvolvimento econômico e até mesmo para redução do
trabalho infantil (DANTAS, 2013; MOURA et al., 2009; ANDRADE e PERO, 2011). Além de
ser elencado no rol dos direitos humanos da ONU3 e dos direitos sociais na Constituição
Federal de 1988, o direito à moradia regular acaba sendo uma condição para concretizar
o alcance de outros direitos previstos pela Carta Constitucional, naquilo que a literatura
em língua inglesa chama de “bundle o f ríghts"4 (OSTROM, 2000): trabalho, lazer, educação,
saúde e meio ambiente ecologicamente equilibrado (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2013).
Ainda, como informa essa mesma cartilha do Ministério das Cidades (2013, p. 12), a
regularização fundiária traz grandes contribuições à gestão pública, porque os
“assentamentos regularizados passam a integrar as rotinas administrativas dos
municípios".
Para além de todos esses efeitos positivos, a regularização fundiária tem o
potencial de agir contra a dependência dos municípios sob a óptica das finanças públicas.
A segurança ao direito de propriedade destravaria o capital morto nos imóveis,
transformando-o em capital ativo para a produção, como afirmam o economista peruano
Hernando De Soto (2001) e os economistas Daren Acemoglu e James Robinson (2012).
Essa proposta assemelha-se à constatação de Celso Furtado (2000) de que a propriedade
de terras nos Estados Unidos da América - após os notáveis Homestead Acts
empreendidos por Lincoln - foi grande responsável pelo desenvolvimento do mercado
interno naquele país, e em seu consequente desenvolvimento econômico. Além disso, os
municípios passam a arrecadar mais impostos - principalmente o Imposto Predial e
Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre a Transmissão de bens inter vivos (ITBI),
2Sobre isso, Boaventura de Souza Santos (1993, p. 45, apud MARICATO, 2003, p. 155) diz que "nas atitudes
destes [moradores de uma favela que ele chama de Pasárgada] para com o sistema jurídico nacional, tudo
se passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre todas as outras relações sociais, mesmo
sobre aquelas que nada têm com a terra ou com a habitação".
3Conforme afirma seu artigo XXV (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009).
4 Cuja tradução literal seria "pacote de direitos" assegurados ao detentor do título de propriedade, que
incluiria "the right of possession (the property is owned by the title holder), the right of control (the owner
controls the property's use), the right of exclusion (the holder can deny people access to the property), the
right of enjoyment (the holder can use the property in any legal manner) and the right of disposition (the
holder can buy or sell the property)" (INVESTOPEDIA, 2016).
21
diretamente relacionados à propriedade de imóveis - , o que pode trazer-lhes maior
capacidade de investir ou gastar, independentemente das transferências de outros entes
e seus ditames - o que acarreta grande dificuldade em atentar para agendas e demandas
locais (REZENDE; LEITE; SILVA, 2015).
1.2- OBJETIVOS
22
• Apresentar o tema da regularização fundiária, no cerne das teorias e paradigmas
do planejamento urbano;
• Analisar e organizar dados de instituições de pesquisa - como a MUNIC, do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a PAD-MG, da Fundação
João Pinheiro (FJP) - e dados administrativos - como os dados concernentes à
arrecadação tributária dos municípios, extraídos das bases da Secretaria do
Tesouro Nacional (STN);
• Proceder avaliações com uso de métodos quantitativos para estimar o impacto da
regularização fundiária sobre as finanças públicas municipais, na ampliação da
receita via arrecadação direta, na ampliação da receita via estímulo a partir do
registro dos imóveis e na diminuição da dependência de transferências de verbas
de outros entes.
1.3- JUSTIFICATIVA
24
2- CONJUNTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL
CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
A definição de federalismo trazido por William Riker é tida como uma das mais
citadas, a despeito das críticas - sobretudo no que concerne à sua restrição ao caso norte-
americano (FRANZESE; ABRUCIO, 2009). Para esse cientista político, o federalismo seria
caracterizado por suas instituições essenciais, quais sejam, “a government of the
federation and a set of governments of the member units, in which both kinds of
governments rule over the same territory and people and each kind has the authority to
make some decisions independently of the other” (RIKER, 1987, p. 9).
25
Como disseram Abrucio e Franzese,
Sabe-se que o Estado brasileiro passou por vários momentos de oscilação entre o
unitarismo e o federalismo, conforme ensina o administrativista Antônio Anastasia, o que
se reflete na maneira do Estado responder aos problemas coletivos na forma de políticas
públicas:
26
Um movimento permanente na tradição política brasileira, que surge nos
primeiros anos do período pós-independência, acentua-se na Regência e avança
pela República é aquele de oscilação entre unitarismo e federalismo. Em verdade,
o Estado Nacional brasileiro vem sendo moldado na forja das tensões entre os
localismos e sua vocação universal e continental (ANASTASIA, 2013, p. 28).
Como refere-se o cientista político Fernando Abrucio (1998), esse conflito entre
centralização e descentralização do poder é um dos dilemas constitutivos da formação do
Estado brasileiro. Para ele,
27
Sobre essa última, afirma-se que
A República Velha caracteriza-se, então, por um total descaso com relação aos
municípios (PINTO, 2002). Sobre esse período - que dura entre a proclamação da
República e a ascensão de Vargas - , afirma-se que:
sem definições concretas e precisas, o município ficou sujeito aos interesses dos
Estados e, em especial, aos interesses do Coronelismo Estadual isto é, dos
políticos que dominavam a política estadual, que não hesitavam em usar os
municípios em manobras para vencer eleições e perpetuar suas oligarquias no
poder (PINTO, 2002, p. 6).
Fato é que apenas através da Reforma Constitucional de 1926 há uma mudança nas
relações intergovernamentais:
29
Durante a Era Vargas, no que se chama de state building, o Estado nacional ganhou
força, mas os governos estaduais perderam sua autonomia. A intenção do governante era
mitigar o desequilíbrio de poder entre os entes, concomitantemente ao esvaziamento das
oligarquias via federalização de órgãos e políticas estaduais em prol do fortalecimento de
um sistema administrativo federal: “A Constituição de 16 de julho de 1934 foi inovadora
na organização municipal, pois propiciou o afastamento do mandonismo político dos
Estados que, no regime anterior, [...] oprimiam os Municípios” (CASTRO, 2006, pp. 17-8).
Assim, essa Constituição introduziu a tendência à constitucionalização de questões
socioeconômicas. Assim, expandem-se as relações intergovernamentais para que o
governo federal concedesse recursos e assistência aos governos subnacionais (ABRUCIO,
2006a).
Assim, “a partir de 1930, após uma progressiva ampliação das funções públicas, a
União passou a partilhar uma fração dos recursos financeiros e das capacidades
administrativas com os demais níveis de governo” (GUEDES; GASPARINI, 2007, p. 304).
Além disso, a Constituição de 1934 já estabelece impostos exclusivos dos municípios
(ARRETCHE, 2005). Dessa forma, reconhece-se a autonomia - de jure - política, financeira
e administrativa dos municípios, sem, contudo, que eles fossem arrolados junto aos entes
federados (PINTO; GONÇALVES; NEVES, 2003).
Por sua vez, a Constituição de 1937 conservou o federalismo. No entanto, um
decreto em 1939 transformou os estados em “coletividades territoriais descentralizadas”.
Assim, os estados passaram à supervisão, controle e fiscalização do presidente da
República. O Congresso Nacional foi fechado e os governadores eleitos foram substituídos
por “interventores”. As bandeiras estaduais foram, literalmente, queimadas em praça
pública (ABRUCIO, 1998; ABRUCIO, 2006a). Quanto aos municípios, continuaram fora da
lista de componentes da Federação. A despeito da permanência da relativa autonomia em
quatro pontos - no que atine ao peculiar interesse municipal, eleição de vereadores, poder
de arrecadar e organização de serviços - , os prefeitos passaram a ser nomeados pelos
governadores dos estados (PINTO; GONÇALVES; NEVES, 2003; PINTO, 2002).
Em 1946, após a deposição de Vargas, o retorno a um regime democrático trouxe
consigo outra Constituição, reafirmando o federalismo e devolvendo a autonomia dos
estados - que havia sido tolhida nas outras cartas constitucionais (ABRUCIO, 1998). A
autonomia dos municípios - a despeito de eles ainda não figurarem entre os entes
federados - seria garantida por essa Constituição. No entanto, isso viria junto da
30
possibilidade de alguns prefeitos serem nomeados pelos governadores (PINTO;
GONÇALVES; NEVES, 2003):
Sobre esse assunto, Rezende, Leite e Silva (2015) e Lucas (2006) atribuem
distorções na qualidade da prestação de serviços aos cidadãos entre entes federados à
forma através da qual a Constituição Federal de 1988 repartiu as competências. Apesar
da previsão de atribuições para cada ente, há ainda possibilidades de delegação -
conforme expõe o artigo 22 - e áreas comuns aos três entes.
Outro assunto interessante é a questão do "interesse local". A Constituição de 1988,
em seu artigo 30, inciso I, afirma que compete aos municípios legislar sobre assuntos de
interesse local. No entanto, é impossível destacar uma área sequer que não se
33
correlacione ao interesse local dos municípios - desde as políticas urbanas até as questões
fronteiriças e de segurança nacional. Afinal, como disse o deputado federal Arlindo
Chinaglia (apud REZENDE, 2011), as políticas públicas não terminam, mas começam no
município.
Na mesma direção, Fernando Rezende (2012) aponta para o fato de as demandas
por descentralização de receitas públicas - tidas como imprescindíveis para a autonomia
dos entes locais - terem sido atendidas na Carta de 1988. No entanto, a descentralização
das responsabilidades trouxe consigo desequilíbrios que prejudicaram a construção de
um novo modelo de federalismo fiscal:
a ruptura institucional não foi suficiente para alterar hábitos e costumes que
comandam as decisões políticas nessa área [fiscal]. A autonomia financeira foi
confundida com liberdade para gastar sem a equivalente responsabilidade de
tributar. A natureza da descentralização promovida pela Assembléia
Constituinte não contribuiu, portanto, para a construção de um novo federalismo
(REZENDE, 2012, p. 334).
Por fim, como destaca Rezende (2012), a crise financeira observada entre os anos
80 e meados dos anos 90 do século XX - acompanhada pela inflação - minou a tentativa
de mudar o federalismo brasileiro. As receitas públicas ficaram muito aquém do que era
esperado, e a descentralização foi arrefecida. Como afirma Cláudio Burian Wanderley,
sobre esse período,
A partir da década de 90, o governo federal acaba por gerar nova reconcentração
dos recursos públicos em suas mãos com criação de novos tributos e elevação
das alíquotas daqueles não compartilhados - ocasionando aumento no custo
marginal dos recursos públicos no país (devido à maior distorção gerada pelas
novas contribuições) e consequente queda na qualidade do sistema tributário
brasileiro (WANDERLEY, 2013, p. 138).
34
Dessa maneira, observa-se “intensa descentralização de políticas públicas, pelo
fortalecimento do poder local e por mecanismos pouco coordenados de relação vertical e
horizontal entre os entes federativos” (CUNHA, 2004, p. 35). Como fruto desses processos,
a descentralização político-administrativa significou, também, uma redução das inversões
de recursos federais e o repasse de novas funções e serviços à tutela dos municípios
(PINTO, 2002; CAPOBIANCO, 2004; REZENDE; LEITE; SILVA, 2015). Como disseram
Abrucio e Couto:
6 Cujo “fato gerador é a prestação de serviços da prefeitura ao contribuinte. São cobradas por serviços já
prestados e têm como preceito a divisibilidade de custos” (ANSELMO, 2013, p. 9).
7 Essas últimas “referem-se à ação fiscalizadora exercida pelo Poder Público, ou seja, os prestadores de
serviços e comércio, de forma geral, devem pagar para ser fiscalizados” (ANSELMO, 2013, p. 9).
8 Essas contribuições têm “como fato gerador a execução de obras públicas e sua cobrança visa ao
ressarcimento de recursos financeiros e materiais aplicados na melhoria do ambiente urbano. Ou seja, cada
vez que a municipalidade investe em melhorias que contemplem diretamente o contribuinte, é aplicada
para ressarcir os custos” (ANSELMO, 2013, p. 10).
36
tempo em que alarga a base tributária local pelo aumento do número de imóveis e pela
própria valorização de imóveis existentes" (REZENDE, 2012, p. 244)9; e a minimização de
conflitos tributários - posto que haja o que Rezende (2012) chama de imobilidade
tributária: "por menor que seja a área geográfica considerada, será sempre possível
identificar as propriedades fisicamente localizadas em seu interior, e estas não poderão
deslocar-se para outras regiões vizinhas, em virtude da instituição de um tributo local"
(REZENDE, 2012, p. 244). Na teoria defendida pelo autor, a soma dessas duas vantagens
engendraria maior autonomia financeira dos municípios.
No entanto, “a maioria dos municípios não dispõem de receita própria compatível
com as demandas de sua auto-sustentação” (GUEDES; GASPARINI, 2007, p. 305). Isso se
dá porque “As cidades brasileiras são marcadamente heterogêneas, tanto no que diz
respeito ao seu tamanho e realidade socioeconômica, como em relação aos meios de que
dispõem para exercer seu poder de tributar” (AFONSO et al., 2013, p. 13). Os municípios
brasileiros possuem várias dificuldades na arrecadação de tributos, devido à
complexidade administrativa dos impostos sobre propriedade (REZENDE, 2012), à
sonegação e à falta de documentação (ANSELMO, 2013), à desatualização de registros,
como no caso das Plantas Genéricas de Valores10 - o que inviabiliza a cobrança de IPTU
(SOUZA, 2010) -, à politização e à existência de ônus políticos atinentes à cobrança de
tributos diretos (AFONSO et al., 2013).
No caso específico do IPTU, além de todos esses fatores, destacam-se estes:
“carências de recursos técnicos e humanos necessários para a montagem de uma
estrutura de administração relativamente complexa para alcançar o potencial de
arrecadação inerente ao tributo” e “vulnerabilidade política dos municípios face a
pressões dos contribuintes para não terem o valor venal de suas propriedades alterados”
(AFONSO et al., 2013, p. 23), além de “dificuldades enfrentadas pelo administrador local
para a valoração dos imóveis, que resultam em avaliações heterogêneas para imóveis
semelhantes ou valores aproximados para imóveis claramente diferentes” (AFONSO et al.,
2013, p. 24).
9 Argumento que, segundo o próprio Rezende (2012), é refutado pela existência de uma cidade ilegal e
informal, onde não há o equilíbrio demandado entre recursos e demandas de serviços urbanos.
10 Também chamadas simplesmente de plantas de valores, elas “contém uma divisão da área urbana do
município de acordo com o seu status, ao fixarem os valores básicos unitários, por metro quadrado, de
terrenos e edificações, considerando a realidade do mercado imobiliário e os possíveis fatores de
valorização” (SOUZA, 2010, p. 306).
37
Essas dificuldades fazem com que os gestores municipais busquem alternativas
para incrementar a arrecadação de ISSQN. Todavia, como afirmam Venerano etal. (2011,
p. 176), “Os impostos sobre propriedade [...] conferem maior sustentabilidade fiscal às
finanças municipais frente às flutuações normais da dinâmica econômica, típicas de
impostos sobre a produção e a circulação de bens e serviços”.
Ainda sobre o IPTU, Carvalho Junior (2006) mostra que a tributação sobre imóveis
no Brasil gera recursos em nível menor que o observado em diversos países. Isso se daria
porque as plantas cadastrais estariam defasadas - indicando “certa falta de vontade
política local em melhorar os sistemas tributários municipais” (WANDERLEY, 2013, p.
141), e porque as taxas desse imposto observadas seriam regressivas. No entanto, a
literatura assinala para pontos fora da curva, mostrando que os problemas na
arrecadação de IPTU não são unanimidade no Brasil. Desde a modernização dos cadastros
em Belém (GAIA, 2009), passando pela melhoria da fiscalização e dos mecanismos de
cobrança em Belo Horizonte (DOMINGOS, 2006) e pela importância do geoprocessamento
na modernização dos cadastros imobiliários (TOROK; SILVA, 2008, apud WANDERLEY,
2013), observam-se iniciativas para vencer a complexidade da cobrança desse imposto.
Ademais, como afirma um manual publicado pelo Centro de Estudos e Pesquisas
em Administração Municipal (CEPAM), “A receita própria do município tem base de
arrecadação menor em relação à do estado e da União” (ANSELMO, 2013, p. 5). A expansão
da capacidade de arrecadação tributária da União - em detrimento dos demais entes -
decorreu basicamente da racionalização dos impostos federais, acompanhada de ganhos
em eficiência na máquina arrecadadora federal (VARSANO, 1996, apud ARRETCHE,
2005). Essa opinião defendida por Varsano, todavia, é refutada a partir do estudo
empreendido por Guedes e Gasparini (2007). Para eles, o que ocorre é uma
descentralização não planejada:
38
Uma cartilha publicada recentemente pela Associação Mineira de Municípios
(2015) alerta para dificuldades financeiras enfrentadas pelos gestores municipais. A
cartilha mostra que apenas 18% dos valores arrecadados por tributos são destinados aos
municípios - enquanto a parcela de valores destinados à União equivale a 56%n .
Ainda, segundo Pinto, Gonçalves e Neves (2003), a Constituição de 1988 mantém
o que se chama de “síndrome da simetria”. Para os autores que defendem esse
pensamento, a Constituição de 1988 afirma, simplesmente, que os municípios devem
tratar de assuntos de interesse local, ignorando “a variedade da situação dos Municípios,
as particularidades históricas, econômicas e culturais que influenciam sua forma de agir”
(PINTO; GONÇALVES; NEVES, 2003, p. 4)1
12.
1
Faz-se importante destacar, ainda, nesse contexto, que há algumas tarefas de
competência estadual ou da União que são, em muitos casos, custeadas pelos cofres
públicos municipais (REZENDE; LEITE; SILVA, 2015; PINTO, 2002) - e que pesam ainda
mais para municípios de pequeno porte. Isso se dá, principalmente, devido à ausência de
regulamentação do texto constitucional, que não define claramente as atribuições
(CARNEIRO; BRASIL; MAZONI ANDRADE, 2016; LUCAS, 2006) e à maior proximidade
entre os cidadãos e os tomadores de decisão na esfera municipal - mormente em
municípios de pequeno porte:
Há uma maior pressão por parte da população dos municípios de pequeno porte
sobre os agentes políticos - prefeito, vice-prefeito e vereadores, uma vez que o
contato e o acesso a eles é muito mais fácil do que em um município de grande
porte, cobrando-lhes, de forma direta, o atendimento às suas necessidades
(PINTO, 2002, p. 17).
11 A cartilha publicada denuncia alguns desequilíbrios nas relações intergovernamentais que pesam sobre
os municípios, como a dependência que os municípios têm de repasses de outras esferas, sobrecarga em
convênios com outros entes, incertezas nos repasses de valores arrecadados com multas de transito e
desequilíbrios nos valores repassados para custear educação, segurança pública e saúde - por vezes devido
à judicialização (ASSOCIAÇÃO MINEIRA DE MUNICÍPIO, 2015).
12 Sobre a questão da simetria, Pinto (2002, p. 9) enfatiza que “não há simetria entre os municípios
brasileiros [...] eles variam de tamanho (o mais extenso é o Município de Altamira no Pará com 161.445,9
km2 e o município de menor área é Águas de São Pedro, em São Paulo, com 3,7 km2), número de habitantes
(de acordo com os dados do censo demográfico de 2000, divulgados pelo IBGE, o município mais populoso
é São Paulo com 10.406.166 habitantes e o menos populoso é Borá, com 795 habitantes, ambos no estado
de São Paulo), poder econômico (São Paulo e Rio de Janeiro que são os dois grandes centros econômicos do
país), cultura e história (como Ouro Preto e Diamantina em Minas Gerais, São Luís do Maranhão, Olinda em
Pernambuco, que são considerados Patrimônios Históricos da Humanidade pela ONU)”.
39
em 2009, no total, R$ 12 bilhões com atividades que seriam de competência da União e
dos estados (ASSOCIAÇÃO MINEIRA DE MUNICÍPIOS, 2013). Esse valor representou
4,41% da receita total dos municípios naquele ano. Como afirma a AMM, no entanto, “Esse
percentual é majorado quando retratamos a realidade dos municípios com porte
demográfico inferior a 10 mil habitantes, os quais chegam a comprometer 12,49% do seu
orçamento" (ASSOCIAÇÃO MINEIRA DE MUNICÍPIOS, 2013, p. 11).
Dentre essas atividades delegadas aos municípios, enumeradas por Pinto (2002),
estão: a manutenção da Unidade Municipal de Cadastramento - que deveria ser de
competência da União, através do INCRA, órgão nacional de governança fundiária; a
manutenção da Junta de Alistamento Militar - que deveria ser de competência da União,
através do Ministério da Defesa; a manutenção dos serviços dos Correios - que deveria
ser de competência da União, através do ministério relacionado às comunicações; a
manutenção da cadeia pública - que deveria ser de competência dos estados, através das
secretarias relacionadas à segurança pública; o abastecimento de veículos, a doação ou a
cessão de imóveis e equipamentos para repartições públicas estaduais ou federais, dentre
outros.
Ainda sobre isso, como disseram Abrucio e Couto (1996), a partir da promulgação
da Constituição de 1988, estados e municípios adquirem recursos que eram outrora da
União, concomitantemente a um repasse de atribuições - “de modo que importantes
tarefas, antes assumidas pelo poder central, tem de ser incorporadas ao ambito
governamental subnacional, nao sói no que concerne as políticas sociais - como e
frequentemente levantado - mas também em outras esferas" (ABRUCIO; COUTO, 1996, p.
40).
Em outras palavras, o que houve foi que os municípios - mormente os de porte
reduzido - não dispõem de muitos recursos, e não conseguem atender adequadamente
sua população (PINTO, 2002). Sobre isso, Rezende, Leite e Silva (2015) alertam que a
grande problemática apresentada nesse contexto é o fato de os municípios brasileiros
serem responsáveis por muitas entregas, posto que eles tenham baixa arrecadação e baixo
desenvolvimento econômico.
Para eles, o desenho atual do sistema federalista brasileiro desfavorece o sucesso
econômico e fragiliza a cooperação entre os entes. Dessa forma, como também afirmam
Veras e Veras (2012), as finanças públicas municipais dependem fortemente de
transferências intergovernamentais, o que acarreta a vinculação da aplicação dos
40
recursos, resultando na incapacidade de formular políticas públicas que sejam adequadas
e afinadas às vicissitudes e especificidade de cada realidade local (REZENDE; LEITE;
SILVA, 2015).
Essa situação de dependência de transferências intergovernamentais ainda
potencializa as chances de as finanças dos municípios engendrarem aquilo que se
convencionou chamar de “ilusão fiscal”. Basicamente, a ilusão fiscal refere-se ao reflexo
da informação imperfeita da sociedade ou do comportamento dos governantes, gerando
ineficiência do gasto e redução da receita no município (GUEDES; GASPARINI, 2007). Em
outras palavras,
13 São exemplos dessas transferências verbas relacionadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único
de Assistência Social (SUAS), Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), dentre outros (SECRETARIA
DO TESOURO NACIONAL, 2015b).
42
Gráfico 1 - Composição das receitas públicas municipais - média nacional e maiores municípios - 2011
10,81%
13,59%
16,12% 17,66%
24,53%
33,06%
32,85%
28,54% 43,15%
61,69%
1,28%
2,17%
3,08%
0,72% 0,65%
5,97% 16,78%
2,84% 2,31%
1 80%
3,02%
25,39% 2,25% 3,32%
4,11% 2,07%
2,16% 1,52%
20,89%
2,76%
11,77%
2,85%
1,32% 3,51% 14,00%
3,13% 4,08%
9,75% 3,33%
4,02% 2,81%
2,80%
1,82% 14,12% 2,03%
1,85% 9,81%
8,57%
4,91% 6,31%
44
provêm das transferências efetuadas pela União e pelos estados”. Numa avaliação focada
nas capitas dos estados brasileiros entre 1998 e 2006, Zuccolotto et al. (2009) mostram
que no comportamento das receitas,
46
2.2- CONCENTRAÇÃO DE TERRA NO BRASIL E TERRAS DEVOLUTAS
A questão fundiária, que ocupou um lugar central nos conflitos vividos pelo país,
no século XIX, se referia fundamentalmente ao campo. A crescente generalização
da propriedade privada da terra, a partir de 1850, com a confirmação do poder
político dos grandes proprietários nas décadas seguintes, e a emergência do
trabalho livre, a partir de 1888 [...], se deram antes da urbanização da sociedade.
No entanto, a urbanização foi fortemente influenciada por esses fatores: a
importância do trabalho escravo [...], a pouca importância dada à reprodução da
força de trabalho mesmo com a emergência do trabalho livre, e o poder político
relacionado ao patrimônio pessoal (MARICATO, 2013, P. 18 - grifo nosso).
A partir do que foi dito pela urbanista, buscaram-se dados dos Censos
Agropecuários, realizados pelo IBGE em 1980, 1995-1996 e 2006. Tomados como base
para entender a questão da concentração fundiária - que possui reflexos no espaço
urbano, como mostra Maricato (2013) - , os dados evidenciam uma grande concentração
da estrutura fundiária em estabelecimentos - imóveis que abrigam atividades produtivas
no setor agrícola - com maior extensão de área.
Os dados disponíveis põem em evidência o aumento da participação dos
estabelecimentos com área menor que 10 hectares, que passa de 4,54% em 1980 para
48,16% em 2006, conforme mostra o Gráfico 2:
♦ Menos de 10
10000 e mais
x Sem declaração
47
Caso a distribuição de terras fosse perfeita, os estabelecimentos com área menor
que 10 hectares, que somavam 48,16% do total em 2006, deveriam ter - também -
48,16% do total de área. No entanto, dados do último Censo Agropecuário, de 2006,
mostram que esse pressuposto de igualdade está longe da realidade. Os estabelecimentos
com menos de 10 hectares têm, no total, apenas 2,77% das terras - enquanto os
estabelecimentos com mais de 10.000 hectares, que são apenas 0,29% do total de
estabelecimentos, possuem 34,94% da área.
A Tabela 1 contém dados e informações provenientes das edições de 1980 e 2006
desse estudo feito pelo IBGE15:
15Vale destacar a indisponibilidade do dado relacionado à área total por classe de tamanho na pesquisa de
1995-1996, e o fato de o IBGE não realizar a pesquisa relativa ao biênio 2016-2017, por questões
orçamentárias; conforme notícia veiculada no portal online do jornal Folha de São Paulo, no dia 18 de abril
de 2016, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/04/1762339-sem-verba-ibge-
adia-censo-agropecuario-e-cancela-concurso.shtml>.
48 H I
Ainda, numa sociedade agrária marcada por relações clientelistas e de patronagem
(NUNES, 2010), o acesso à terra foi um diferencial para a materialização do poder político,
o que acabou atuando como um ciclo:
A proposta desta seção do trabalho é fazer uma breve análise do tratamento que a
questão fundiária recebe no arcabouço jurídico-normativo brasileiro. No que tange ao
direito de propriedade, um dos grandes pilares do Direito Moderno, pode-se afirmar que,
historicamente, ele não é respeitado no Brasil de maneira adequada. A própria história da
chegada dos europeus e a consequente espoliação do território apontam para o
favorecimento da propriedade para aqueles que se aproximavam da Coroa - relação esta
que foi posteriormente cambiada para a relação com as oligarquias (PONTES; FARIA,
2011). Um exemplo anedótico disso, não tão distante temporalmente da atualidade, é a
espoliação realizada pela casa real portuguesa. Ao virem para o Brasil, os nobres podiam
requisitar qualquer imóvel existente no Rio de Janeiro - sem a necessidade de reparar o
proprietário original por isso (MARTINS; ABREU, 2004).
Como lembra Lucas (2006), no Brasil imperial, a terra era propriedade de Deus e
dos nobres. O acesso a ela era mediado por contratos de uso. Logo após a proclamação da
República, o direito à propriedade no Brasil continuou bastante precário, ditado por um
sistema anterior à Revolução Francesa: o aforamento. As terras, dessa forma,
concentravam-se na União (LUCAS, 2006). Araújo (2009) afirma ainda que o Estado no
Brasil é grande possuidor de terras - muitas vezes sem conhecer sua extensão ou
localização.
As dificuldades que a ocupação do território da colônia portuguesa implicava
demandaram à Coroa a adoção de instrumentos alternativos para a ocupação das terras.
N esse contexto, emergem as Capitanias Hereditárias, cedidas aos sesmeiros - via alocação
49
subjetiva, dado que as terras fossem cedidas por favoritismos e clientelismos16. Aos
sesmeiros caberia a medição, demarcação e cultivo da terra (ARAÚJO, 2009).
O problema da ilegalidade e da informalidade das ocupações data desse período.
Como lembra DeWitt, os posseiros surgem como uma alternativa ilegal ao regime de
cessão de sesmarias: “The sesmaria was the only legal method of gaining land-ownership
title during the colonial period. Farmers took unclaimed land for their use by squatting, a
custom known as posse [...] These marginal agriculturists could not obtain legal title to
their farmstead” (DEWITT, 2002, p. 33).
Como mostra Furtado (2000), contudo, essa relação de privilégio associado ao
processo de cessão das sesmarias esconde o verdadeiro problema. Segundo ele, o
favorecimento dos sesmeiros era um problema pequeno, dada a abundância de terras. O
verdadeiro problema era o incremento de poder político observado por um grupo
pequeno, conforme destaca-se no trecho abaixo:
16 O instituto de direito utilizado para isso é a enfiteuse, que deriva diretamente do arrendamento por prazo
longo ou perpétuo de terras públicas a particulares, mediante a obrigação, por parte do adquirente
(enfiteuta), de manter em bom estado o imóvel e efetuar o pagamento de uma pensão ou foro anual
(vectigal), certo e invariável, em numerário ou espécie, ao senhorio direto (proprietário). Este, através de
um ato jurídico atribui ao enfiteuta, em caráter perpétuo, o domínio útil e o pleno gozo do bem. No caso do
Brasil, era necessário ao enfiteuta pagar o dízimo à Ordem de Cristo.
50
Contribuindo para o entendimento dessa problemática e seus impactos sobre a
realidade atual no país, os achados do estudo de Banerjee e Iyver (2002) - que talvez seja
o texto sobre regularização fundiária mais citado em todo o mundo - concluem que
Even before the African slave trade ceased in the early 1850s, many Brazilians
realized that the end of slavery itself was inevitable. A new labor source was
essential. National power was in transition from the coffee barons of the Paraiba
Valley who used slave labor, to the rising Paulista coffee fazendeiros [...] who
wanted to shift the labor force from slaves to European immigrants. The purpose
of the Land Law of 1850 was to keep immigrants on the large fazendas [...] long
enough to fulfill their contracts. It prohibited posse and put land purchase price
beyond the means of newly arrived workers and poor Brazilians (DEWITT, 2002,
p. 34).
Na direção oposta à facilitação de acesso trazida pelos Homestead Acts nos Estados
Unidos, os principais efeitos dessa lei, então, são três: (i) proibição da aquisição de terras
por transações monetárias; (ii) aumento do valor da terra, acima do seu valor de mercado,
para dificultar o acesso a ela; e (iii) vinculação dos lucros provenientes da venda de terras
aos programas voltados à atração de mão de obra europeia (DEWITT, 2002).
Assim, buscando organizar a situação dos registros de posse de terras no Brasil, a
Lei de Terras fixa o comércio como forma de acesso à terra. A posse de terras no país
deixava de ser somente por privilégio, e passava a ser regulada pelo mercado (ARAÚJO,
2009). Todavia, a terra torna-se, a partir daí, mais que meramente um bem.
Refletindo a preocupação das oligarquias cafeeiras, a propriedade da terra passa a
ser um instrumento de poder político e econômico. De acordo com Deák (2010, p. 15),
essa lei “transformando a terra em propriedade privada, priva de seu meio de
sobrevivência o trabalhador, que, assim, para viver, é obrigado a vender sua força de
trabalho e, com o salário recebido, comprar seus próprios meios de sustento no mercado”.
Nas palavras do ativista social Stedile (2011, p. 23), a Lei de Terras foi “o batistério do
latifúndio no Brasil”.
Na Constituição de 1891, por sua vez, transferem-se as terras da União para os
estados - que eram, como lembra DeWitt (2002), dominados pelas oligarquias regionais.
Conforme Araújo (2009 p. 118), “Tal fato produziu desarmonia federativa, pois, cada
Estado deu solução diversa para a questão fundiária, não havendo controle da União”. O
Código Civil de 1916 estabeleceu a via judicial para discriminar as terras devolutas. À
52
época, não se aceitavam as sesmarias e nem era possível legitimar sua posse, mas já era
possível a aquisição via usucapião17 (ARAÚJO, 2009).
Na sequência, a Constituição de 1937 retrocede na evolução do direito de
propriedade no Brasil. Em 1946, a Constituição defende a inviolabilidade do direito à
propriedade - cujo uso condiciona-se ao atendimento da premissa de bem-estar social.
Ainda, estabelece-se a possibilidade de desapropriação por interesse social. A
Constituição de 1967, por sua vez, confere aos estados a propriedade das terras devolutas
(ARAÚJO, 2009).
Por seu turno, a Constituição de 1988 prevê a propriedade da União sobre terras
devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares,
bem como vias federais de comunicação e preservação ambiental - conforme definiram
as leis infraconstitucionais. A Carta Constitucional de 1988 ainda prevê a destinação de
terras públicas e devolutas em compatibilidade com a política agrícola e com a reforma
agrária. Em suma, a evolução constitucional aponta para a expansão do direito à posse de
terra, desde que vinculado aos interesses sociais ou à função social.
A Constituição de 1988 ainda institui - além do direito social a uma moradia, que
passa a ser arrolado como um dos direitos sociais previstos pelo artigo 6° da carta
constitucional de 198818 - a necessidade de que o direito à propriedade cumpra sua
função social. Dessa maneira, emerge uma “nova ordem jurídico-urbanística”
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 26).
Apesar de constar na Constituição, o direito à moradia no Brasil ainda esbarra em
vários fatores. Como diz um manual do Ministério das Cidades editado em 2004,
17 Exceto para terras devolutas, as quais são consideradas bens públicos em sentido estrito (CAIXETA,
2012).
18Após a aprovação da Emenda Constitucional de número 26, de 2000; vindo a ser confirmado, mais tarde,
na Emenda Constitucional número 64, de 2010.
53
O geógrafo Roberto Lobato Corrêa busca uma explicação para isso em sua obra “O
Urbano”:
Nessa mesma vertente, estima-se que, no fim do século passado, no mínimo 20%
da população dos grandes centros urbanos brasileiros viviam em áreas informais
(MARICATO, 1999). Concentradas, mas não restritas às áreas mais pobres, as
irregularidades na titulação das moradias nas áreas urbanas podem afetar toda a área de
um município. Hoje, a irregularidade fundiária espalha-se pelas cidades, desde os morros
até os luxuosos condomínios fechados. Por exemplo, os dados da Pesquisa por Amostras
de Domicílios em Minas Gerais, de 2013 (PAD-MG 2013), analisados em um estudo inédito
no país (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016), corroboram essa afirmação:
A group of farmers each has access to a piece of common pasture. Each is able to
put sheep on this pasture, feeding them on its grass but retaining ownership of
the sheep and therefore able to make a private profit from them [...] Given the
physical environment of common, grass is able to grow at a particular rate on it.
If it is eaten by sheep more slowly than this rate, grass will continue to grow. If it
is eaten faster than this rate of growth, then the grass will slowly disappear. If
the grass is completely denuded, furthermore, it is likely that the topsoil will be
washed and blown away and the common will become infertile, incapable of
growing any grass or feeding any sheep. The ‘tragedy’ is that a group of rational
farmers with access to a common may well over-graze and eventually destroy it,
55
thereby making themselves all worse off than if they collectively limited their
herds to a level that the common was capable of sustaining (LAVER, 1997, p. 49).
A legalização da posse deve ser entendida como uma das condições mínimas
necessárias para a resolução integral do problema social nos assentamentos
irregulares. A falta de titulação dos imóveis aprofunda o imenso fosso que separa
seus moradores dos direitos inerentes ao titular de um imóvel regularmente
inscrito no Cartório de Registro de Imóveis, como, por exemplo, o acesso às
fontes de financiamento habitacional, pleno exercício do direito sucessório,
valorização da propriedade (D'OTTAVIANO; SILVA, 2009, p. 210).
19 Conceito trazido à baila pela Lei Federal número 11.124, de 2005, considerado "como direito e vetor de
inclusão social".
20 "Remove the secondary causes that have produced the great convulsions of the world and you will almost
always find the principle of inequality at the bottom. [...] If, then, a society can ever be founded in which
everyman shall have something to keep and little to take from others, much will have been done for peace"
(TOCQUEVILLE, 2002, p. 710).
56
preocupado com congestionamentos, ruídos e crimes em Roma (HEILBRUN, 1987). Fato
é que as cidades surgem a partir daquilo que Lefebvre (1986) chama de movimento de
implosão-explosão, que levaria a uma exacerbação de problemas e à deterioração das
condições de vida no espaço urbano (LEFEBVRE, 1986).
No Brasil, as cidades já surgem como reflexo de conflitos. Como disse Raymundo
Faoro (2001), as urbes surgiriam sob a égide do pelourinho - considerado instrumento
de punição oficial até 183021, e utilizado para produzir efeitos ideológicos de inibição das
recalcitrâncias (PINTO, 2010). As cidades surgem, então, ao redor desse símbolo de
justiça - que era, como disse Carvalho Filho (2004, 184), “monumento obrigatório nas
vilas”. Acerca do poder simbólico vislumbrado à época nas cidades brasileiras, Faoro disse
que
Ainda, como disse o geógrafo Milton Santos (2006, p. 216), a cidade estaria em uma
crise intrínseca à sua existência, por ser “o lugar onde há mais mobilidade e mais
encontros”, seja a partir dos “miasmas urbanos” engendrados pela transformação abrupta
das cidades a partir da Revolução Industrial (SANTOS, 2006, p. 159), pelas relações
predatórias com o meio ambiente ou com seu endurecimento - engendrado pela produção
dos lugares num contexto de escassez e segregação (SANTOS, 2006). Nas cidades, a co-
presenca, como diz Santos, e o intercâmbio condicionam-se através da aglomeração e da
A salvação parecia estar nas cidades, onde o futuro já havia chegado. Então era
só vir para elas e desfrutar de fantasias como emprego pleno, assistência social
providenciada pelo Estado, lazer, novas oportunidades para os filhos... Não
aconteceu nada disso, é claro, e, aos poucos, os sonhos viraram pesadelos
(SANTOS, 1986, p. 2, apud MARICATO, 2003, p. 152 - grifo nosso).
22 O que encontra lastro na afirmação de Veras e Veras (2012, p. 63): “A velocidade das mudanças
socioeconômicas globais torna o cidadão cada vez mais exigente quanto à sua qualidade de vida. É ao
município que essas crescentes demandas qualitativas e quantitativas se apresentam no dia-a-dia, exigindo
do Chefe do Executivo municipal respostas e recursos que certamente, sozinho, ele não tem”.
58
Como disse Milton Santos, citado acima, essa população que evade os campos em
direção aos centros urbanos depara-se com cidades problemáticas. A tentativa,
empreendida pela metrópole portuguesa, de replicar o modelo de gestão dos “Concelhos
lusitanos” na nova sociedade política esbarrou nas dificuldades de fazê-lo assentado sobre
bases rurais marcadas pelo clientelismo e pelas relações de privilégio (PIRES, 1999).
Na década de 1930, a regulamentação do trabalho urbano, o incentivo à
industrialização e a construção de infraestrutura industrial reforçaram o movimento de
pessoas do campo para as cidades (MARICATO, 2003). Assim, o crescimento desenfreado
das cidades gerou vários problemas que se fazem presentes nessa crise. Afirma-se que as
cidades não possuíam condições para receber tão grande contingente populacional:
necessidade de trabalho, de abastecimento de água, fornecimento de energia elétrica,
demandas por mobilidade, segurança, educação, acesso aos programas de saúde, dentre
outras condições. Se não fosse o bastante, as ações do Estado em suas políticas urbanas
acabaram agravando tais deficiências. As premissas de saneamento e embelezamento das
cidades acabaram resultando em segregação socioespacial, desigualdades e concentração
da pobreza nas periferias (MARICATO, 2013). Ainda, a análise dos gastos dos governos
revela uma orientação para a “captação da renda imobiliária gerada pelas obras”
(MARICATO, 2003, p. 158), o que condiciona aquilo que Maricato (2012) assinala como
regressividade dos investimentos das gestões urbanas - que “alimentam a especulação
imobiliária e não a democratização do acesso à terra para moradia” (MARICATO, 2012, p.
157).
A percepção desses problemas é amplificada a partir da década de 1960. Além do
boom de urbanização no Brasil, a emergência de novos grupos e novas temáticas soma-se
à crise do capitalismo - expressa no choque do petróleo na década de 1970 e no fim da
“era dourada” (MONTE-MÓR, 2006; ABRUCIO, 2006b). A partir disso, percebe-se a crise
do Estado. A crise econômica engatada na crise do petróleo é somada a outros três
problemas, conforme ensina Abrucio (2006b): crise fiscal, refletindo a revolta dos tax
payers que não se sentiam correspondidos pela ação estatal; ingovernabilidade, refletindo
a inaptidão do Estado para resolver problemas; e a globalização, acompanhada da
59
compressão espaço-tempo narrada por David Harvey (1992)23. A soma desses problemas,
nas palavras de Roberto Monte-Mór (2006, p. 74) “lançou bases para a redefinição do
papel do Estado na década seguinte”, o que viria a ter forte manifestação nas cidades e no
modus operandi das políticas urbanas.
Como mostram vários autores acerca do planejamento urbano no Brasil, a
produção do espaço urbano brasileiro deu-se na forma de um processo rápido, intenso e
predatório (BRASIL; CARNEIRO, 2014) - a “lógica da desordem”, como chamou o
premiado pesquisador Lucio Kowarick (1979). Os dados expostos abaixo exemplificam
essa ideia defendida por esses autores:
23 O geógrafo britânico afirma que é inegável a força dos “processos que revolucionam as qualidades
objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como
representamos o mundo para nós mesmos” (HARVEY, 1992, p. 219).
60
Gráfico 3 - Evolução da população total em capitais de estados no Brasil (Rio de Janeiro, São
Paulo, Curitiba e Belo Horizonte) - 1872-2010
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1872,1890,1900,1920, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e
2010. Elaboração própria.
61
A despeito de não haver uma série histórica que mostre a proporção de população
urbana desde 1872, é possível analisar os incrementos que essa parcela da população
obteve a partir de 1940, como mostra a Tabela 3:
Tabela 3 - População urbana, em valores relativos, para capitais de estados no Brasil (Rio de Janeiro, São
Paulo, Curitiba e Belo Horizonte) - 1940-2010
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Elaboração própria.
62
Gráfico 4 - Evolução da população urbana em capitais de estados no Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba e Belo Horizonte) e na média de todos os municípios brasileiros - 1940-2010
Nesse campo [da política urbana], pode ser destacado o forte cunho tecnocrático
de suas práticas, no âmbito das quais a presença marcante dos interesses
imobiliários e vinculados à acumulação urbana faz um nítido contraste com a
ausência de possibilidades de participação cidadã na cunhagem das políticas
produzidas e ofertadas. Ao lado disso, as deficiências e mesmo a omissão do
poder público no enfrentamento da problemática urbana no curso histórico da
urbanização brasileira resultaram num quadro socioespacial precário,
caracterizado por desigualdades e processos de exclusão, e pela magnitude do
déficit habitacional e da informalidade de ocupação, dentre outros aspectos
(BRASIL; CARNEIRO, 2009, p. 13).
Edésio Fernandes assinala que “Hoje, cerca de 40% das cidades brasileiras com
menos de 20 mil habitantes têm loteamentos clandestinos. Isso não é um mero sintoma
de um modelo de desenvolvimento, mas o próprio modelo. Não estamos falando de uma
exceção, mas da regra” (FERNANDES, 2006, p. 16).
Nas palavras de Sachs (2001),
63
A urbanização prematura, excessiva e desnecessária, que se deu numa sociedade
[...] profundamente desigual, configurou um padrão de crescimento
metropolitano marcado pelo contraste gritante entre o luxo ostensivo dos
bairros nobres e a proliferação das favelas, o inferno cotidiano do transporte
dominado por carros privados e o altíssimo custo das infra-estruturas. Que as
grandes cidades brasileiras funcionem no dia a dia - um verdadeiro milagre -
constitui um tributo à engenhosidade, à santa paciência e ao esforço dos seus
habitantes. Mas em que pese a sua modernidade aparente, elas se encontram
em crise, cuja intensidade se mede pela violência urbana (SACHS, 2001, p. 76 -
grifo nosso).
64
constata-se que é admitido o direito à ocupação mas não o direito à cidade” (MARICATO,
2003, p. 157).
Em suma, sobre essa crise, Deák afirma que
Como forma de exemplificar aspectos atinentes a essa crise das cidades, mesmo
que de modo en passent, podem-se citar alguns resultados de pesquisas acerca de
carências habitacionais, mobilidade e segurança nas cidades, dentre outros.
HABITAÇÃO
Refletindo aquilo que aponta o pensamento sobre a urbanização brasileira, os
resultados preliminares da pesquisa mais recente do Déficit Habitacional no Brasil, feita
a partir de dados da PNAD 2013, mostram que o país possui um total de 5.846.040
carências habitacionais, das quais 85,71% encontram-se em área urbana (FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO, 2015a), o que significa afirmar um ligeiro aumento de 4,7% em relação
à pesquisa referente aos anos de 2011 e 2012 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015b).
Essa pesquisa considera duas questões: o déficit habitacional, entendido como “a
noção mais imediata e intuitiva da necessidade de construção de novas moradias para a
solução de problemas sociais e específicos de habitação detectados em certo momento”
(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015, p. 4), e a inadequação de moradias, que “reflete
problemas na qualidade de vida dos moradores” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015, p.
65
4). O primeiro é composto por outras quatro componentes, “calculados de forma
sequencial, na qual a verificação de um critério está condicionada à não ocorrência dos
critérios anteriores” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015, p. 5), a saber (i) os domicílios
precários24; (ii) a coabitação familiar25; (iii) o ônus excessivo com aluguel urbano26; e (iv)
o adensamento excessivo de domicílios alugados27.
Os aspectos observados pela pesquisa refletem as diferenças entre as regiões no
Brasil. Por exemplo, na região Sudeste - onde 92,95% da população vivia em zona urbana,
segundo o Censo de 2010 -, o componente com maior peso sobre o déficit é o ônus
excessivo com aluguel. Para ilustrar essa questão, no Gráfico 5 são apresentados os
resultados do déficit habitacional absoluto por componente para as regiões brasileiras,
em valores de 2013:
24De acordo com o relatório publicado pela Fundação João Pinheiro (2015, p. 5), os domicílios precários são
a soma dos domicílios improvisados - "todos os locais e imóveis sem fins residenciais e lugares que servem
como moradia alternativa" - e dos rústicos - "aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada".
25 A coabitação familiar e composta por dois subcomponentes: os cômodos - domicílios particulares
compostos por um ou mais aposentos localizados em casa de cômodo, cortiço, etc. - e as famílias
conviventes secundárias que desejam constituir um novo domicílio (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015).
26 O ônus excessivo com aluguel urbano corresponde ao numero de famílias urbanas com renda familiar de
ate tres salarios mínimos e que despendem 30% ou mais de sua renda com o aluguel de seus domicílios
urbanos duráveis - casa ou apartamento (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015).
27 O adensamento excessivo em domicílios alugados corresponde ao numero de domicílios alugados com
um numero medio superior a tres moradores por dormitório (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015).
66
Gráfico 5 - Componentes do déficit habitacional, por regiões do Brasil, em 2013
Outra questão atinente à temática da habitação, e que não pode ser deixada de lado,
diz respeito ao envelhecimento da população e às dificuldades de locomoção e restrição
de atividades. A partir do cruzamento de dados do Déficit Habitacional e da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2008, o texto de Motta e Cardoso (2014)
exemplifica essa preocupação. Ao analisar a condição dos domicílios em que vivem
indivíduos com dificuldade para tomar banho e alimentar-se - consideradas como
dificuldades severas, e que alcançavam à época 5,3% da população do país - , pode-se
afirmar que esses indivíduos têm maior chance de morar em um domicílio com déficit ou
inadequação habitacional - o que complexifica ainda mais a execução de atividades
cotidianas desses indivíduos e das pessoas envolvidas em seus cuidados (MOTTA;
CARDOSO, 2014).
Ainda sobre esse assunto, os autores destacam que as iniciativas de mitigar essa
discrepância, a partir da destinação de 3% das habitações construídas no âmbito do
“Programa Minha Casa, Minha Vida” para indivíduos de baixa renda e com dificuldades
relacionadas à acessibilidade, ainda é tímida (MOTTA; CARDOSO, 2014).
67
V IO L Ê N C IA E C R IM IN A L ID A D E
28 Faz-se relevante afirmar que a própria natureza do ato criminoso leva agentes e atores à ocultação e ao
segredo (PAIXÃO, 1982).
68
Gráfico 6 - Taxas de mortalidade (por 100 mil) por arma de fogo, segundo causa básica
Fonte: Sistema de Informações sobre Mortalidade [apud WAISELFISZ, 2015, p. 23). Elaboração própria.
Os dados apresentados por Waiselfisz (2015) mostram que, entre 1980 e 2012,
houve variação negativa na mortalidade por arma de fogo nos casos de acidente, suicídio
e casos indeterminados. No entanto, a variação no mesmo período para homicídios foi
grande - de 302,8% -, o que aponta para o aumento da violência.
No entanto, há outro aspecto cujo entendimento faz-se valioso no contexto da crise
das cidades. Até 1999, os polos dinâmicos da violência eram as grandes capitais e regiões
metropolitanas (WAISELFISZ, 2007). A partir daí, os achados das pesquisas mostram que
quando há desagregação por município, apresentam-se "diferentes e/ou novas
configurações de focos de violência, além dos já tradicionais, centrados nas capitais e
regiões metropolitanas" (WAISELFISZ, 2015, p. 55). Isso confirma a tese de D’Ottaviano e
Silva (2009), de que é preciso lançar um olhar cuidado sobre o planejamento em
municípios de pequeno e médio porte, que estão crescendo no país.
69
M O B IL ID A D E E A C E S S IB IL ID A D E
Gráfico 7 - Produção e venda de veículos no Brasil, por tipo, entre 2004 e 2015
70
Além da insatisfação com o transporte público, citada por Vasconcellos (2001),
figuram no rol dos problemas advindos dessa deterioração das condições de mobilidade
o crescimento dos acidentes de trânsito com vítimas, aumento dos congestionamentos e
também dos poluentes veiculares, conforme discutem Carvalho e Pereira (2011).
Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que países com menor renda
concentram 90% das mortes em acidentes de trânsito (WAISELFISZ, 2013). Contudo,
esses países não possuem 90% da frota de automóveis do mundo (GALLUP; GAVITIA;
LORA, 2007), o que lança luz sobre o problema.
Dados do Tom Tom Traffic Index29 - que reúne informações de trânsito em quase
300 cidades dos seis continentes do planeta, cotejando o tempo gasto em um
deslocamento durante o horário de pico e o tempo que poderia ser gasto em horário sem
trânsito, entre as 22h e as 5h - mostram que há seis cidades brasileiras entre os piores
tráfegos do mundo. A primeira delas é o Rio de Janeiro, que ocupa o 4o lugar no ranking
mundial, com tempo extra de trânsito igual a 47%. Salvador e Recife ocupam,
respectivamente, o 7o e o 8o lugar - com 43% de tempo extra no horário de pico. Fortaleza,
por sua vez, tem o 41o pior trânsito do mundo, de acordo com os dados do Tom Tom,
seguida por São Paulo e Belo Horizonte, respectivamente, 58o e 78o piores.
Ainda, através de exercícios de estimação, o IPEA buscou mostrar os custos em
decorrência de acidentes de trânsito em área urbana no Brasil. O estudo mostrou que,
entre custos com perda de produção, resgate e atendimento médico, danos aos veículos e
ao patrimônio, custo com previdência, dentre outros, em 2001, os acidentes
automobilísticos custaram R$ 5,3 bilhões para toda área urbana do País (INSTITUTO DE
PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2003).
Refletindo a preocupação com esses problemas, o Observatório das Metrópoles
avalia o bem-estar usufruído por cidadãos brasileiros que vivem no espaço urbano -
através do IBEU (Índice de Bem-Estar Urbano), conforme mostram Ribeiro e Ribeiro
(2013). Os dados desse Índice mostram que, nas quinze regiões metropolitanas
pesquisadas, 15,44% dos habitantes gastam mais que uma hora - que é considerado o
tempo máximo ideal - em seus deslocamentos diários para o trabalho. Algumas cidades
72
negativos sobre a drenagem urbana, sobre o solo e sobre as águas pluviais e
subterrâneas, possuindo interlocuções diretas com a saúde e a qualidade de vida,
impactando-as negativamente (BARROS, 2005; TUCCI, 2005; KRAN; FERREIRA,
2006; SILVA, etaL, 2014);
• iluminação pública - que, além de ser uma fonte de receita pública (ANSELMO,
2013), é um tópico de relevante interesse na economia do setor público, por ser
um bem público (OLIVEIRA, 2009), e nas relações intergovernamentais30, com
uma componente de segurança e facilidade na acessibilidade (MASCARÓ, 2006), e
tem impacto positivo sobre a saúde, posto que facilite a prática esportiva
(SALVADOR; REIS; FLORINDO, 2009);
• pavimentação - que expressa a condição em que se encontra a infraestrutura da
localidade, possibilitando melhor qualidade de vida a partir da acessibilidade, do
conforto e da segurança ao transitar, impactando positivamente a inclusão e a
saúde - sobretudo respiratória, devido à diminuição da dispersão de particulados
(DUARTE; COHEN, 2003; RIBEIRO; RIBEIRO, 2013; KRAN; FERREIRA, 2006).
30Dada a questão das atribuições de cada ente, divide-se a prestação do serviço entre todos os três, gerando
conflitos - como reporta Moreira (2014).
73
2.4- PLANEJAMENTO E GESTÃO MUNICIPAL NO BRASIL: PARADIGMAS,
INSTRUMENTOS E INSTITUCIONALIDADES
Diante da riqueza dessa discussão - para a qual não pode e nem deve haver
pensamento único -, esta seção do trabalho buscar lançar luz sobre temas associados ao
planejamento e à gestão de cidades, numa contextualização epistemológica, teórica e
conceitual, desde sua definição, seus paradigmas, suas institucionalidades e, por fim, os
instrumentos utilizados pelo planejamento urbano.
Numa obra já idosa em mais de 70 anos, Hayek afirma que planejamento é “the
complex of interrelated decisions about the allocation of our available resources” (HAYEK,
1945, p. 520). Seguindo por essa vertente, as diversas definições acerca do planejamento
fazem referência a um processo que inclui a definição de resultados esperados e o
74
estabelecimento de meios para o alcance de objetivos. Planejamento, nesse sentido, “é um
rigoroso processo de dar racionalidade à ação” (ALMEIDA et al., 2008, p. 12).
Em outras palavras, planejar é escolher as “maneiras de interferir na realidade de
modo a transformá-la tomando, no presente, decisões que afetam o futuro” (SANTOS,
2011, p. 307). Para Carlos Matus, um autor que se destaca na literatura sobre o tema -
mormente para o setor público - , “O plano é o produto momentâneo do processo pelo
qual um ato seleciona uma cadeia de ações para alcançar seus objetivos” (MATUS, 2006,
p. 115). Para Marcelo Lopes de Souza, um dos maiores expoentes do planejamento urbano
no Brasil, o planejamento “é uma componente de qualquer ação coletiva embasada
programaticamente e voltada para a mudança social construtiva” (SOUZA, 2010, p. 34).
Por sua vez, o planejamento de governo está associado ao espaço público e suas
especificidades. O Estado lida em todo o tempo com temas que lhe são específicos: poder,
legitimidade, conflito, política, hegemonia, ideologia, etc. (SANTOS, 2011). Nesse sentido,
o planejamento governamental é a “ação que antecede e condiciona a ação do Estado de
modo a viabilizar as escolhas políticas” (SANTOS, 2011, p. 310), sendo essas escolhas
aquelas que buscam resolver “problemas sociais” pré-determinados - ou seja, o
planejamento público naturalmente hierarquiza os problemas sociais a serem
combatidos. Por trás dessa intenção de planejar está a pretensão de evitar que
intervenções do Estado sejam determinadas por circunstâncias fortuitas (SECRETARIA
DE ESTADO DE PLANEJAMENTO E GESTÃO, 2015).
Um desses problemas sociais que vem ganhando muita força é a questão das
cidades, expressa por sua crise. Diante disso, surge uma nova modalidade de
planejamento governamental. Sobretudo a partir da publicação da Carta de Atenas -
documento elaborado pelo Congresso Internacional de Urbanismo, em 1933 - a matéria
do planejamento urbano ganha força (MATTOS et al., 2002).
Sobre a gênese desse planejamento, o arquiteto e urbanista Csaba Deák afirma que
75
significativamente, a consolidação de "uma vitória importante [...] da cidade
sobre o campo.
Trinta anos mais tarde, os planos urbanísticos e a atividade de
planejamento no Brasil chegavam a seu auge, na década de 1960 e início da de
1970. Recebiam, nessa época, um duplo estímulo: no plano das ideias, a produção
efervescente da reconstrução pós-guerra, principalmente na Europa; e, no plano
material, o reconhecimento governamental de que o processo de rápida
urbanização em curso, que alcançava todo o Brasil, era definitivamente uma das
transformações fundamentais da sociedade brasileira e requeria intervenção
estatal, consagrando precisamente o que se denominou planejamento urbano
(DEÁK, 2010, p. 12-3 - grifos do autor).
76
2.4.2- PLANEJAMENTO E GESTÃO URBANOS: CONTEXTO BRASILEIRO
O professor Roberto Luis Monte-Mór (2006, p. 62) afirma que “Das cidades
coloniais às metrópoles atuais, os referenciais teóricos foram sendo redefinidos,
adaptados, recriados para explicar processos sócio-espaciais e informar projetos políticos
de classes e grupos de interesse, dentro e fora do Estado”. Dessa forma, o pensamento
sobre o urbano no Brasil percebe-se na forma de um movimento pendular, caracterizados
por rupturas (MONTE-MÓR, 2008). De acordo com Ribeiro e Cardoso (1996, apud
BRASIL; CARNEIRO, 2009), a questão urbana não chega a se constituir historicamente
como um objeto de intervenção e de reforma social incorporado à agenda de ação estatal
de maneira robusta.
Conforme trata Bonduki (1994), as iniciativas de planejamento urbano eram
restritas durante a República Velha. No início do século passado, o planejamento urbano
no Brasil era voltado para o embelezamento e para melhorias voltados para áreas nobres
das cidades (ALMEIDA et al., 2008; BRASIL; CARNEIRO, 2009). Fazem parte desse
momento na história cenas de conflito relacionadas a intervenções de cunho sanitarista,
como a revolta desencadeada a partir da vacinação compulsória contra varíola. Como
afirmam Brasil e Carneiro,
Ao longo das últimas seis ou sete décadas do século XX, no entanto, o governo
brasileiro acumulou experiências em tentativas de planejamento (PAGNUSSAT, 2006). As
ações do Estado brasileiro passaram por diversas fases, iniciando-se com o
intervencionismo populista da Era Vargas - que foi marcante para as políticas
habitacionais, dado o reconhecimento da importância da habitação para a reprodução da
77
força de trabalho e para a consequente concretização de modus operandi industrial
(BONDUKI, 1994)31:
Nesse período, então, a ação do Estado brasileiro buscava a melhoria das condições
de vida dos trabalhadores urbanos, encampando intervenções relacionadas a previdência
e assistência social - das quais são arquétipos os Institutos de Aposentadoria e Pensão -,
educação, alimentação e habitação (BRASIL; CARNEIRO, 2009). Dentre as ações
relacionadas a esse último setor, além das iniciativas de provisão de unidades
habitacionais subsidiadas, o congelamento dos aluguéis e a regulamentação das relações
de inquilinato fizeram parte da gramática varguista nas intervenções no setor de
habitação (BONDUKI, 1994). Conforme comenta o professor Sérgio de Azevedo,
Se, por um lado, o estigma das áreas de habitação popular não termina com a
Revolução de 1930, em compensação observa-se uma mudança significativa dos
objetivos das atividades governamentais neste setor. A partir dessa época, as
políticas públicas voltadas para os setores populares visam também aumentar a
margem de legitimidade do Estado (AZEVEDO, 1988, p. 107).
31 Refletindo a preocupação que Henry Ford preconizava em sua política de acompanhamento dos
trabalhadores - conhecida como five dollar day (MEYER, 1981) -, a provisão de habitação para os operários
era compreendida nesse período como base para o desenvolvimento e fortalecimento "de uma sociedade
de cunho urbano-industrial, capitalista", como disse Bonduki (1994, p. 711). A produção das cidades no
Brasil à época ficou marcada, como observa-se, por exemplo, no Rio de Janeiro, pela construção dos
chamados Parques Proletários, que seriam residência temporária aos trabalhadores retirados das favelas
da cidade (GOMES, 2009); e em Nova Lima, pelos bonserás - residências pequenas, com apenas uma janela
na frente, que se espalham no centro da cidade e contrastam com o bairro exclusivo aos europeus que
trabalhavam na mina de ouro (MAZONI ANDRADE, 2014).
78
Os primeiros organismos que se dedicaram a construção de casas populares em
maior escala foram os diversos institutos de aposentadoria e pensão
(industriários, comerciários, bancários, etc.) criados a partir de 1930.
Entretanto, essas entidades operavam normalmente de maneira fragmentária,
sendo sua atividade, nesse campo, considerada secundária e atingindo um
pequeno número de seus associados.
Nesse sentido, pode-se afirmar que e somente com a criação da Fundação
da Casa Popular (FCP), em 1946, que se institucionaliza a primeira agência de
nível nacional voltada exclusivamente para a construção de casas populares para
as classes de baixa renda (AZEVEDO, 1988, p. 108).
Em outras palavras,
Citada como exemplo das ações incipientes que seguiram à deposição de Vargas, a
Fundação da Casa Popular, criada em 1946, em resposta ao problema de habitação no
país, confirma a descontinuidade das intervenções no setor de habitação - conforme a
citação acima, de Bonduki (1994). Esse mesmo autor completa sua afirmação com a
constatação de que
79
Na sequência, observa-se o início de um segundo ciclo econômico, ancorado na
modernização produtiva e na substituição de importações. O Estado, inspirado pelos
ideais keynesianos, assume progressivamente a função de assegurar condições para a
industrialização - seja a partir da provisão pública de infraestruturas, equipamentos e
serviços urbanos, que impactariam positivamente a produtividade e a acumulação de
capital (BRASIL; CARNEIRO, 2009). Durante esse período, podem-se citar as ações
apoiadas no desenvolvimentismo tecnocrático de Juscelino Kubitschek, as tentativas de
estabilizar a economia com Jânio Quadros, as Reformas de Base de João Goulart e o plano
trienal de Celso Furtado (ALMEIDA, 2006; ALMEIDA et al., 2008; MONTE-MÓR, 2008).
A despeito da existência de inversões públicas em infraestrutura urbana, não se
observaram grandes alterações no que tange à política habitacional nesse período.
Refletindo a ausência de investimento estatal em habitação, crescem nesse período as
iniciativas do setor privado - e as políticas de governo acabavam por privilegiar os
interesses dos empresários. Para aqueles que não podiam acessar o mercado imobiliário,
restava a informalidade - e o que se observa a partir desse momento é a intensificação do
processo de favelização e ampliação da percepção de problemas urbanos (BERNARDES,
1986).
Quando do intervencionismo do governo militar32, a característica mais marcante
das iniciativas de planejamento urbano foi, conforme discute Adauto Lúcio Cardoso
(1999), a exacerbação da centralização. Nesse contexto, a descentralização da política
habitacional era incipiente. Não havia municipalização dessas ações, imperando o que
Cardoso (1999) chama de "estadualização" da política, através das COHABs estaduais.
Cumpre lembrar também a forte centralização de recursos promovida pelo regime militar
no governo central. Ou seja, nesse cenário era impossível às unidades subnacionais
financiar políticas públicas mais dispendiosas.
Conforme mostram Flávia Brasil e Ricardo Carneiro, sobre esse período,
32 Durante as décadas de 1960 e 1970, outros países no mundo já discutiam formas de participação popular
no planejamento. No Brasil, todavia, a ditadura militar impunha limites aos direitos políticos, restringindo
fortemente quaisquer tentativas de participação popular em qualquer área da esfera política. A
redemocratização trouxe consigo uma mobilização popular que culmina na promulgação da "Constituição
Cidadã" de 1988. Essa Constituição inovaria com a noção de "função social da propriedade" e com sua
preocupação com os direitos sociais (MONTE-MÓR, 2008).
80
campo-cidade, tem-se o ápice do processo de crescimento urbano e de
metropolização, pautado por algumas características que se revelam na
problemática socioespacial atual: a expansão urbana por meio da
constituição de periferias precárias e distantes, conformadas pelas
dinâmicas especulativas que se alimentam da provisão pública de
infraestruturas; e a multiplicação de favelas e de outras tipologias de
informalidade, destituídas das mínimas condições de habitabilidade.
Enquanto as lógicas seletivas de provisão de infraestruturas sustentam um
padrão de expansão urbana periférica e desigual, extensas porções precárias e
informais das cidades são deixadas à deriva. Evidenciam-se os arranjos
constitutivos do espaço urbano brasileiro: a maior parcela da população
constituída pelos segmentos de mais baixa renda assume os custos sociais
da urbanização. A acessibilidade que o urbano traduz e os benefícios da
urbanização realizam-se seletivamente para as classes favorecidas (BRASIL;
CARNEIRO, 2009, p. 16 - grifos nossos).
81
poder efetivo, tais órgãos não lograram assumir o papel de coordenação das políticas
urbanas federais, pensado para eles” (BRASIL; CARNEIRO, 2009, p. 17). Durante essa
década, então, o esgotamento do ciclo de expansão da economia brasileiro, conhecido
como “milagre econômico”, em consonância àquilo que dizem vários dos pensadores do
espaço urbano brasileiro33, Brasil e Carneiro (2009, p. 17) destacam que “o
aprofundamento das desigualdades sociais desvela a cidade como um lugar privilegiado
e objeto dos conflitos sociais”.
Tensões entre o Estado e a sociedade no Brasil - exemplificadas pelas derrotas
governistas nas eleições subnacionais e pela emergência e proliferação de movimentos
sociais - levaram à redemocratização em meados da década de 1980 (BRASIL; CARNEIRO,
2009). O período subsequente é caracterizado pelas tentativas de estabilização
macroeconômica nos tempos de crise, pela promulgação da Constituição de 1988 e por
certo hiato pensamento urbano brasileiro34 até chegar ao cenário atual (ALMEIDA, 2006;
ALMEIDA et al., 2008; MONTE-MÓR, 2008).
Logo em 1985, instituiu-se um grupo de trabalho para discutir propostas de
reformulação no Sistema Financeiro da Habitação. Esse grupo de trabalho propôs que os
programas de moradia popular fossem separados daqueles que eram voltados a estratos
de maior renda. O BNH seria, então, desmembrado, havendo estruturas específicas para
gestão e financiamento de políticas habitacionais para cada recorte de renda (FAGNANI,
1997). Depois disso, em novembro de 1986, desconsiderando o que o grupo de trabalho
havia proposto, o BNH foi extinto.
Há, a partir disso, o que Fagnani (1997) chama de precipitação do esvaziamento da
estratégia de reforma: “Apos a extinçao do BNH, os paradoxos da política habitacional
acentuaram-se, pela sobreposição da crise institucional a crise financeira cronica,
herdada do autoritarismo” (FAGNANI, 1997, p. 222). Nas palavras de Brasil e Carneiro,
observa-se que
33 Exemplificados por Ianni (apud DEÁK, 2010), Caldeira (2000), Villaça (2001) e Maricato (2003; 2013).
34 Monte-Mór (2008) afirma que houve um hiato na pensamento urbano brasileiro entre os anos 1980s e
2000, em que o ensino, as pesquisas e até a prática do planejamento urbano perderam espaço. Tal cenário
viria a ser revisto com a criação do Ministério das Cidades, em 2003 (MONTE-MÓR, 2008). Sobre esse
mesmo momento, Brasil e Carneiro (2009, p. 19) dizem que “Os anos 1980 marcam-se pela crise fiscal do
Estado e assistem ao esvaziamento do planejamento e da política urbana no país, bem como à revisita crítica
de suas práticas”.
82
do governo federal do referido campo das políticas urbanas, num contexto de
retração e inflexão do papel do Estado. Mais do que os modelos anteriores,
prevalece então - nos diversos níveis de governo - um planejamento de caráter
incremental, ao lado de experiências incipientes e localizadas de planejamento
participativo, com caráter instrumental de participação (BRASIL; CARNEIRO,
2009, p. 19).
Nesse mesmo período, observa-se o que Marta Arretche (1996, apud FAGNANI,
1997) chama de "via-crúcis" dos programas habitacionais para população de baixa renda
- com descontinuidades e paralisia decisória.
A convocação da Assembleia Constituinte deu-se em meio de afirmação da atuação
e do papel da sociedade civil, a construir e definir agendas e marcos das políticas sociais
(BRASIL; CARNEIRO, 2009, p. 20): “No âmbito mais geral, cabe sublinhar a mobilização
em torno das propostas de descentralização [...] e de municipalização, bem como de
reconhecimento e ampliação dos direitos sociais e de democratização das relações entre
Estado e sociedade”. Nesse contexto, emendas populares poderiam ser apresentadas à
Assembleia Constituinte. O movimento de reforma urbana no Brasil, em sua atuação,
conseguiu o apoio de cento e trinta mil eleitores a mais que o necessário para apresentar
uma emenda.
Para além da crise financeira herdada da ditadura militar, o que acarretou na
suspensão de atividades relacionadas à habitação, ocorreu, como mostra Arretche (1996,
p. 110, apud FAGNANI, 1997, p. 222), “uma verdadeira via-crúcis quanto ao espaço
institucional de formulação e gestão dos programas habitacionais de baixa renda”.
Dessa maneira, o texto constitucional contém apenas dois artigos oriundos
daquela emenda relacionada à reforma urbana; os artigos 182 e 183. A avaliação que
Marcelo Lopes de Souza (2010, p. 161) faz acerca do texto constitucional aponta para a
diluição e as modificações que a emenda popular sofreu: uma “derrota estratégica”. Na
opinião do geógrafo, algumas discussões ficam inconclusas - como a questão da “função
social da propriedade” -, engendra-se certo legalismo e “tecnocratismo de esquerda”35
(SOUZA, 2010).
35 Souza afirma que “o movimento pós-1988, com a tentativa de captura, pelo campo da esquerda, dos
planos diretores como um meio de promoção da reforma urbana [...] assistiu a uma predominância
crescente de certo “tecnocratismo de esquerda” [...], aninhado na perspectiva do “plano diretor como
instrumento de reforma urbana”, ou seja, a tendência a se superestimar a importância das leis e dos planos,
a se subestimarem as contradições sociais e a se cultivar otimismo exagerado a respeito das possibilidades
de estabelecimento pacífico de novos “pactos territoriais” e consensos” (SOUZA, 2010, p. 163).
83
A despeito dos avanços trazidos pela Constituição de 1988, o governo de Fernando
Collor foi marcado por grande embate entre os poderes Executivo e Legislativo (FAGNANI,
1997) - o que justifica a demora na aprovação dos textos de várias leis complementares,
incluindo aquela que viria a ser chamada, anos mais tarde, de Estatuto da Cidade,
regulando o capítulo da Constituição que trata de política urbana. Além disso, no governo
Collor, a área de habitação foi caracterizada por uma forte centralização do processo
decisório no Ministério da Ação Social e na Caixa Econômica Federal. Os recursos eram
concedidos aos municípios de maneira pulverizada, com base em relações clientelistas.
Por fim, “Outro traço da política habitacional implementada no governo Collor e a
ausência de mecanismos de acompanhamento e controle da execução física e financeira
dos projetos” (FAGNANI, 1997, p. 231).
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso - sobretudo em seu primeiro
mandato -, os gastos com a área de habitação observaram o maior crescimento relativo
de gastos no período (CASTRO; CARDOSO JR, 2005). Ainda, no segundo mandato de
Cardoso foi, enfim, publicada a Lei Federal número 10.257, de 2001 - o Estatuto da Cidade,
paradigmático no tratamento do direito urbano (MARICATO, 2003; FERNANDES, 2006).
Durante o governo de Luis Inácio Lula da Silva, foram criados conselhos e fundos -
como, por exemplo, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - FNHIS - e seu
Conselho Gestor para esse fundo, instituídos pela Lei Federal número 11.124, de 2005.
Ainda, foram criados o Ministério das Cidades36, em 2003, e o Conselho das Cidades, em
2006. Além disso, durante o último mandato desse presidente foi promulgada a Lei
Federal n° 11.977, de 2009, que institui o programa “Minha Casa, Minha Vida” e que lança
bases para o processo de regularização fundiária em área urbana. Brasil e Carneiro (2009,
p. 26) avaliam que “podem-se sinalizar inflexões na atuação do poder executivo federal a
partir do governo Lula”. Para eles, o mandato de Lula caracterizou-se por uma redefinição
do papel do Estado, “mais atuante no campo das políticas urbanas, reintegradas à agenda
governamental”.
Já nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, observa-se a necessidade de
empreender esforços no sentido de manter o aporte de recursos do PMCMV em meio ao
imperativo de contrair os gastos públicos. Ainda, sob o governo de Rousseff, leis
36 Que apresenta, originalmente, "uma composição heterogênea de expertises, que aponta para uma
expressiva inclusão da sociedade civil em sintonia com as plataformas de reforma urbana" (BRASIL;
CARNEIRO, 2009, p. 27).
84
importantes para a temática do urbano foram promulgadas, como a Lei Federal no
12.587/2012, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana e a Lei Federal no
13.089/2015, que institui o Estatuto da Metrópole.
Para o próprio Villaça, a resposta para essa pergunta grifada acima seria não.
Primeiro, porque muitos planos nem saíram do papel. Segundo, porque muitos desses
planos “Não tinham por objetivo a organização do espaço urbano e não foram formuladas
e/ou aplicadas para cada cidade individualmente” (VILLAÇA, 2010, p. 172).
Fato é que - como já foi discutido neste trabalho - o rápido processo de
urbanização trazia consigo problemas que demandavam ações governamentais. Como diz
Monte-Mór (2008), essa intervenção do governo deixaria de ser privilégio das cidades
“casos 'de luxo’”, porquanto a livre-iniciativa não conseguisse resolver todas as questões
relacionadas à “planificação espacial”. Ainda, a aplicação desses planos no âmbito local
exige capacidades e recursos que muitos municípios não têm, o que se agrava pela
situação de dependência de transferências intergovernamentais, as quais reduzem a
liberdade de ação do gestor municipal aos ditames do governo central (REZENDE, 2011;
RAMOS, 2013; BRASIL; CARNEIRO, 2014; REZENDE; LEITE; SILVA, 2015).
Hoje, o planejamento de cidades depara-se com um duplo desafio, conforme
ensinam D’Ottaviano e Silva (2009) e conforme mostram os exemplos de indicadores
apresentados. Por um lado, é necessário buscar a resolução para os superlativos
problemas das grandes cidades, que se acumularam durante o século passado. Por outro
85
lado, uma atividade bem informada de planejamento pode “salvar” as cidades pequenas e
médias que estão, nas palavras dos autores, “em processo de explosão por todo o país”
(D’OTTAVIANO; SILVA, 2009, p. 202).
Dado esse pequeno prolegomenon, busca-se expor aspectos gerais sobre os
paradigmas tratados na literatura sobre a temática do planejamento e da gestão de
cidades - a saber, (i) o planejamento físico-territorial clássico, (ii) o planejamento
sistêmico e o enfoque racional, (iii) o planejamento estratégico de cidades, (iv) o new
urbanism, (v) o desenvolvimento urbano sustentável e o planejamento ecológico, (vi) o
planejamento comunicativo/colaborativo, e (vii) a reforma urbana.
86
(ii) PLANEJAMENTO SISTÊMICO
A escola que se sucedeu ao planejamento físico-territorial clássico foi chamada de
systems planning37, um tanto voltada aos métodos quantitativos, exprimindo no
planejamento urbano um caráter positivista. Sua fundamentação na tríade "Survey-
Analysis-Plan", no entanto, recebia críticas:
37 Baseada na Teoria Geral dos Sistemas, que tem bastante peso sobre a Teoria Geral da Administração, essa
teoria afirma que "os sistemas não podem ser plenamente compreendidos apenas pela análise separada e
exclusiva de cada uma de suas partes" (ANDRADE e AMBONI, 2009, p. 172).
87
uma ambiguidade fundamental na estratégia da promoção do planejamento
urbano no âmbito local como sendo uma linha de intervenção federal,
considerando-se a estreita margem de autonomia municipal no contexto
centralista, sobretudo nas dimensões política e financeira (BRASIL;
CARNEIRO, 2009, p. 18 - grifo nosso).
88
Essa forma de planejar intervenções no espaço urbano vem recebendo muitas
críticas - sobretudo por seu conservadorismo e pela sua proximidade com a tradição
militar (SOUZA, 2010). O economista Carlos Vainer e a filósofa Otília Arantes são uns dos
críticos ferrenhos dessa concepção de planejamento. Para ele, a cidade que compete nesse
contexto passa a ser entendida como mercadoria38, empresa39 e pátria40 (VAINER, 2012).
Para ela, “a cidade-negócio está ancorada em uma pseudomercadoria, o solo, um outro
nome para a natureza, que aliás não foi produzida pelo homem, muito menos para ser
vendida num mercado” (ARANTES, 2012, p. 26).
Todavia, Marcelo Lopes de Souza (2010) pondera afirmando que o planejamento
estratégico de cidades não pode e nem deve ser tomado como sinônimo de uma
perspectiva mercadófila e neoconservadora. Para ele, o próprio fato de a ideia de
planejamento estratégico ter ganhado corpo com Carlos Matus - enquanto este era
colaborador do governo de Allende, no Chile - já refuta parte das críticas (SOUZA, 2010).
38Como indicado pelo urbanista catalão Jordi Borja, "A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-
se [...] em uma das funções básicas dos governos locais" (BORJA e FORN, 1996, apud VAINER, 2012, p. 78 -
grifo dos autores).
39 Nesse caso, a busca pelo "the one best way" leva os princípios preconizados por Taylor - racionalidade,
regularidade, economia de tempo, funcionalidade e produtos uniformizados (TAYLOR, 1990) - para os
escritórios de planejamento urbano.
40 Para Vainer, a cidade tem de se tornar uma "pátria", porque "O plano estratégico supõe, exige, depende
de que a cidade esteja unificada, toda, sem brechas, em torno ao projeto" (VAINER, 2012, p. 91).
89
A despeito de todos os avanços dessa escola, que foca no bem-estar dos cidadãos e
na acessibilidade, há algumas críticas, conforme narra Souza (2010) relacionadas ao
conservadorismo e à pouca preocupação com o rompimento de práticas mercadófilas.
Além disso, o new urbanism dá a primazia ao design e aos arquitetos no planejamento
urbano - em detrimento do caráter interdisciplinar do tema (SOUZA, 2010).
Fazendo coro àquilo que Maricato (2013) afirma sobre as tentativas do Estado
brasileiro em responder aos problemas urbanos, Eduardo Fagnani (1997) mostra que os
anos entre 1964 e 1985 - durante a ditadura militar no Brasil - são caracterizados por
uma infinidade de desacertos na ação estatal no setor de habitação: “regressividade dos
mecanismos de financiamento; centralização do processo decisório; privatização do
91
espaço público; expansão da cobertura e da oferta de bens e serviços; e reduzido caráter
redistributivo41” (FAGNANI, 1997, p. 185).
Os movimentos sociais urbanos, que já vinham sendo aquecidos desde os anos
1970 (SAMARRIBA; VALADARES; AFONSO, 1984), perceberam uma diversificação de sua
bandeira ao longo dos anos 1980 - que passou a envolver outros aspectos para além da
questão habitacional (BOEIRA; SANTOS; SANTOS, 2009). As demandas que vinham
acumulando-se por anos no Brasil encontraram possibilidade de vazão após a
redemocratização, em 1985. Para o caso das demandas específicas do meio urbano, o caso
não foi diferente: “a perspectiva da elaboração de uma nova Constituição para o país
serviu como catalisador para a recomposição do campo da reforma urbana” (SOUZA,
2010, p. 157).
Sobre isso, Brasil e Carneiro afirmam que
41 O autor mostra que “menos de 5% das aplicações do SFH [Sistema Financeiro de Habitação], realizadas
entre 1964-84 foram destinadas a famílias com renda de até três salários mínimos mensais” (FAGNANI,
1997, p. 192).
92
Para além da crise financeira herdade da ditadura militar, o que acarretou na
suspensão de atividades relacionadas à habitação, ocorreu, como mostra Arretche (1996,
p. 110, apud FAGNANI, 1997, p. 222), “uma verdadeira via-crúcis quanto ao espaço
institucional de formulação e gestão dos programas habitacionais de baixa renda”.
Dessa maneira, o texto constitucional contém apenas dois artigos oriundos
daquela emenda relacionada à reforma urbana; os artigos 182 e 183. A avaliação que
Marcelo Lopes de Souza (2010, p. 161) faz acerca do texto constitucional aponta para a
diluição e as modificações que a emenda popular sofreu: uma “derrota estratégica”. Na
opinião do geógrafo, algumas discussões ficam inconclusas - como a questão da “função
social da propriedade” -, engendra-se certo legalismo e “tecnocratismo de esquerda”42
(SOUZA, 2010).
Em oposição a vários outros paradigmas citados acima, o movimento pela reforma
urbana diferencia-se do mote das intervenções urbanísticas - como poderiam preconizar
os teóricos do new urbanism, por exemplo. Para os teóricos da reforma urbana, a justiça
social deveria vir antes da funcionalidade, da estética ou da “ordem” (SOUZA, 2010).
42 Souza afirma que “o movimento pós-1988, com a tentativa de captura, pelo campo da esquerda, dos
planos diretores como um meio de promoção da reforma urbana [...] assistiu a uma predominância
crescente de certo “tecnocratismo de esquerda” [...], aninhado na perspectiva do “plano diretor como
instrumento de reforma urbana”, ou seja, a tendência a se superestimar a importância das leis e dos planos,
a se subestimarem as contradições sociais e a se cultivar otimismo exagerado a respeito das possibilidades
de estabelecimento pacífico de novos “pactos territoriais” e consensos” (SOUZA, 2010, p. 163).
93
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3° As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
§ 4° É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no
tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de
emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até
dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da
indenização e os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1° O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2° Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3° Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião (BRASIL, 2011).
Através desses artigos, a Constituição de 1988 define aquilo que Mattos et al.
(2002) chamam de definição da natureza jurídica do direito urbanístico. Para eles, a Carta
Cidadã firma o direito urbano brasileiro como um ramo autônomo do Direito, servindo-
se de institutos do direito administrativo - como as limitações administrativas, as
desapropriações e a função extrafiscal dos tributos (MATTOS et al., 2002).
Castro (2006, p. 270) destaca a importância dessa Constituição para o tema do
urbano: “É expressivo e grandiloqüentemente contagiante da bandeira do neolocalismo o
art. 182 do Texto Magno”. No mesmo sentido, Flávia Brasil e Ricardo Carneiro (2009, p.
21) dizem que o texto constitucional apresenta “avanços significativos de ordem geral que
resenharam o contexto político-institucional brasileiro”. Para eles, a Carta Cidadã é a
desembocadura das bandeiras municipalista e de redemocratização: “tais avanços
vinculam-se aos arranjos de descentralização e autonomia municipal, ao reconhecimento
dos direitos sociais e à incorporação da dimensão participativa da democracia” (BRASIL;
CARNEIRO, 2009, p. 21).
Ainda, em 2000, por meio da Emenda à Constituição de número 26, o direito à
moradia é arrolado como um dos direitos sociais - elencados em seu artigo 6o. Quanto à
competência acerca do tema, a Constituição afirma que a promoção de programas de
construção de moradias e melhorias das condições habitacionais são de competência
94
comum a todos os entes. A União deveria criar normas gerais. Aos municípios compete
editar normas de caráter específico a partir das normas gerais estabelecidas pela União.
Aos estados, enfim, restaria a competência residual - para tratar sobre matérias omitidas
pela legislação federal e municipal (MATTOS et al., 2002).
No entanto, sabe-se que as intervenções públicas na área de urbanização e
habitação muitas vezes extrapolam a capacidade fiscal dos municípios. Dessa maneira,
políticas públicas nessas áreas exigem uma atuação conjunta e articulada de entes
federativos e até mesmo do setor privado - que geralmente atua como executor das
intervenções (RAMOS, 2013; BRASIL; CARNEIRO, 2014). Assim, de modo geral, a esfera
local possui um papel central e imprescindível no desenvolvimento urbano. Por seu turno,
a União é incumbida da regulação e - ao lado dos estados - pelo desenvolvimento de
programas e financiamento de políticas que demandem tal aporte de recursos acima da
capacidade de municípios (BRASIL; CARNEIRO, 2014).
A legislação federal infraconstitucional sobre política urbana e habitação
compreende quatro marcos de especial relevo para essa discussão: (i) a Lei n° 6.766, de
1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano; (ii) o Estatuto da Cidade (Lei n°
10.257/2010), que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988;
(iii) a Lei n° 11.124, sancionada em 2005, que dispõe acerca de Habitação de Interesse
Social; e (iv) a Lei n° 11.977, de 2009, que trata acerca do programa “Minha Casa, Minha
Vida” e sobre regularização fundiária de assentamentos em área urbana;
95
originalmente, ela não tocava na questão da irregularidade dos assentamentos,
distanciando-se da realidade de muitos municípios brasileiros:
A despeito dos avanços, como afirmam D’Ottaviano e Silva (2009), nem mesmo a
atualização que a Lei n° 6.766/79 recebeu foi capaz de dar um impulso às ações de
regularização de assentamentos e loteamentos.
96
- por exemplo, quando preconizam a garantia do direito a cidades sustentáveis, a
participação social, a cooperação entre governos e sociedade e a justiça na distribuição de
ônus e benefícios engendrados pela urbanização (BOEIRA; SANTOS; SANTOS, 2009).
Como disseram Brasil, Carneiro e Teixeira:
Dentre as competências da União, arroladas em seu artigo 3°, estão legislar sobre
normas gerais de direito urbanístico, legislar sobre normas para cooperação entre os
entes, promover - por iniciativa própria ou junto dos demais entes - programas
habitacionais e de saneamento básico, instituir diretrizes para a política urbana e elaborar
e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e do desenvolvimento
econômico e social.
Ao município cabe legislar e administrar as ações sobre parcelamento, edificação
e utilização compulsória do solo urbano. Além disso, é de competência do município
proceder à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU),
utilizado em alíquota progressiva no tempo para os casos de descumprimento de
condições e prazos para parcelamento, edificação e utilização do solo urbano. Passados
cinco anos do início da cobrança do IPTU progressivo, caso os descumprimentos e
inadequações persistam, o município poderá proceder à desapropriação do imóvel para
proceder ao seu adequado aproveitamento.
O artigo 25 dessa lei confere ao Poder Público municipal o direito de preempção,
com base na sua lei de ordenamento territorial, dando preferência ao município para a
aquisição de um imóvel urbano que seja objeto de alienação onerosa entre particulares.
Dessa forma, esse artigo confere ao município a preferência para adquirir um imóvel
quando o Poder Público necessitar da área para cumprir as diretrizes da política urbana
- conforme o seu artigo 26.
Seguindo a diretriz da cooperação entre entes e entidades, presente nos princípios
aludidos pela Constituição de 1988, o artigo 32 da Lei n° 10.257/2001 traz à baila as
operações consorciadas. De acordo com esse artigo, operações consorciadas são o
conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal com a
97
participação de proprietários, moradores e investidores privados para alcançar
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.
São de competência do município, também, a transferência do direito de construir,
a elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança para certos empreendimentos e
a elaboração do plano diretor - instrumento de planejamento territorial fundamental
para a adequação da ordenação urbana às diretrizes de qualidade de vida, justiça social e
desenvolvimento econômico, obrigatório para municípios com mais de 20.000 habitantes.
A lei delega aos municípios a missão de editar seus planos diretores, com vistas às
especificidades de cada realidade local. Todavia, a maior parte dos municípios brasileiros
possui menos que 20.000 habitantes, sendo não obrigados à edição de tal plano.
Municípios com população menor que essa podem editar seus planos diretores; no
entanto, como lembra Gasparini (2005), a maioria deles não o faz porque implicaria em
maior interferência da população e dos grupos de interesse na gestão municipal e,
consequentemente, reduziria o poder discricionário do prefeito.
Faz-se relevante destacar, contudo, que alguns juristas que se debruçaram sobre
este Estatuto apontam para alguns pontos de discussão acerca de sua constitucionalidade
- sobretudo os artigos 5o, 6o e 7o, que tratam, respectivamente, da utilização compulsória,
da transmissão dos imóvel e obrigações de utilização, e do IPTU progressivo no tempo
(BOEIRA; SANTOS; SANTOS, 2009). No entanto, Medauar e Almeida (2004, apud BOEIRA;
SANTOS; SANTOS, 2009) dirimem essas questões. Para eles, esses artigos “guardam direta
relação com a definição constitucional da função social da propriedade urbana; por isso
são plenamente constitucionais” (BOEIRA; SANTOS; SANTOS, 2009, p. 705). Sobre esse
assunto, afirma-se que
A despeito de não ser um texto de fácil aplicação, o Estatuto da Cidade - num fio
condutor a partir da Constituição de 1988 - constitui um paradigma inovador no que diz
98
respeito à base fundiária e imobiliária urbana (MARICATO, 2003), o que possibilita - nas
palavras de Porto (2012) - que o planejamento urbano inclua a cidade informal, que é a
realidade de grande maioria das cidades brasileiras (LUCAS, 2006).
Fernandes (2006) afirma o papel que o Estatuto da Cidade possui na emergência
desse novo paradigma de direito urbanístico no Brasil, que culminaria no fortalecimento
do processo de regularização fundiária:
A função social da propriedade era, até então, apenas uma ideia já prevista em
várias das Constituições brasileiras e reforçada na Carta de 1988, que merecia
regulamentação para se tornar um conceito mais explícito e de fácil
99
aplicabilidade, o que somente aconteceu com o Estatuto. A sua conceituação tem
proporcionado novas possibilidades de atuação técnica, sobretudo no que diz
respeito às questões relacionadas ao acesso à moradia digna como um dos pré-
requisitos do direito à cidade (D’OTTAVIANO; SILVA, 2009, p. 207).
43 Sobre isso, Maricato (2003, p. 154) diz que "A maior parte da produção habitacional no Brasil se faz à
margem da lei, sem financiamento público e sem o concurso de profissionais arquitetos e engenheiros".
100
preconizam os princípios carregados pelo texto da Carta Constitucional de 1988. Dessa
forma, estados, Distrito Federal e municípios constituem conselhos e apresentam um
Plano Habitacional de Interesse Social e relatórios de gestão para firmar um termo de
adesão e receber subsídios do FNHIS.
101
11.977/2009, em conformidade à Carta Constitucional de 1988, a condiciona a análise e
aprovação do licenciamento urbanístico e do licenciamento ambiental pelo município.
Ainda, cabe ao poder público - nesse caso de regularização fundiária de interesse social -
implantar sistema viário e de infraestrutura básica, nos termos do artigo 2° da Lei n°
6.766/79.
Como já foi afirmado, a irregularidade fundiária, todavia, não se restringe aos
assentamentos populares. Existem vários bairros e loteamentos formados por famílias de
média e alta renda que se encontram fora das leis - como, por exemplo, alguns
condomínios fechados (ÁVILA; FERREIRA, 2015, D’OTAVIANO etal., 2008; MAIA, 2011).
Para esses casos, o instrumento utilizado é a regularização fundiária é de interesse
específico. Semelhante à regularização fundiária de interesse social, esse instrumento
também exige análise e aprovação do projeto pela autoridade licenciadora. Há diferenças,
no entanto, na previsão de contrapartidas e compensações dos beneficiários da
regularização - em face de seu poder aquisitivo.
No que tange ao Programa “Minha Casa, Minha Vida”, pode-se afirmar que seu
desenho institucional traz grandes avanços. Conforme destacam Santos e Duarte (2010,
p. 1) o programa associa a provisão de moradia à ideia de política urbana - “distanciando-
se daquela antiga concepção dos projetos isolados do BNH”.
No entanto, a avaliação de Loureiro, Macário e Guerra (2013), publicada pelo IPEA,
contrapõe-se à de Santos e Duarte:
Pode-se afirmar, por fim, que essa lei inova ao tratar sobre o pagamento de
indenização em desapropriação de imóveis e ao tratar do registro de parcelamentos
irregulares antes mesmo da Lei n° 6.766/79 (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2013).
102
2.4.5- INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO E GESTÃO DE CIDADES
Seguindo o fio condutor que passa pelas raízes da “crise das cidades” Ermínia
Maricato ensina que
(ii) TRIBUTOS
Ao elencar os princípios que regem a economia, Mankiw (2007) afirma que as
pessoas reagem a incentivos. Nesse caso, os instrumentos econômicos são mecanismos
103
que incentivam os agentes a fazer ou deixar de fazer algo, como os incentivos de natureza
fiscal: impostos, taxas, tarifas e subsídios (ORTIZ; FERREIRA, 2004).
No planejamento e na gestão urbanos, conforme ensina Marcelo Lopes de Souza
(2010), para além de seu potencial de arrecadação, os tributos possuem caráter extrafiscal
- ou, nas palavras do autor, os tributos possuem a importante “capacidade de permitirem
que outros objetivos que não somente o de arrecadação sejam perseguidos” (SOUZA,
2010, p. 226).
O mercado imobiliário brasileiro é marcado pela existência de especulação - como
alerta o cientista político norte-americano Mike Davis (2006, p. 91): “in Brazil speculation
grips every category of land, with an estimated one third of building space left vacant in
anticipation of future increases”. Corroborando a afirmação do norte-americano, a análise
de dados do Déficit Habitacional no Brasil mostra que as carências de moradias são pouco
maiores do que o número de domicílios vagos44 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015).
Numa tentativa de coibir a especulação com terrenos desocupados ou
subutilizados, um dos instrumentos utilizados é o IPTU progressivo. Previsto no artigo
182 da Constituição Federal do Brasil, esse instrumento busca “imprimir maior justiça
social a cidades” (SOUZA, 2010, p. 226). Assim, quando o município verifica a
subutilização ou a desocupação, ele notifica o proprietário acerca da obrigatoriedade da
construção ou do parcelamento. Caso o proprietário não o faça dentro do prazo previsto
em lei, o valor do IPTU passa a sofrer uma majoração periódica (SOUZA, 2010). No
entanto, dados da MUNIC de 2001 - a última edição a conter o tema do IPTU progressivo
em seu questionário - mostram que apenas 36,72% dos municípios possuíam tal
instrumento à época.
Além do IPTU progressivo, há ainda o “solo criado” - ou a outorga onerosa do
direito de construir - e a contribuição de melhoria, que - de acordo com dados da pesquisa
MUNIC de 2015, já está presente em 34,94% dos municípios brasileiros. O “solo criado” -
introduzido no Brasil através do Estatuto da Cidade - é a contraprestação paga pelo
construtor quando ele deseja construir para além do coeficiente de aproveitamento -
como no caso de verticalização. A ideia por trás dessa cobrança é que o adensamento pode
sobrecarregar a demanda por infraestrutura e serviços públicos. Por sua vez, a
44 O déficit total em 2010 era de 6.940.691 unidades; e o número de moradias vagas era de 6.052.161. Logo,
as unidades vagas resolveriam, num exemplo hipotético, mais de 87% das carências (FUNDAÇÃO JOÃO
PINHEIRO, 2013).
104
contribuição de melhoria - prevista na Constituição Federal - tem como fato gerador a
valorização imobiliária decorrente de obras públicas (SOUZA, 2010).
(iii) ZONEAMENTOS
Dados da última edição da pesquisa MUNIC, do IBGE, mostram que, em 2015,
58,59% dos municípios brasileiros possuíam lei de zoneamento do uso e ocupação do
solo. Vale destacar que essa realidade contrasta fortemente com o cenário observado em
1999, quando foi feita a primeira edição da MUNIC, e quando apenas 21,57% dos
municípios possuíam lei de zoneamento.
Típico instrumento do planejamento de cidades - tido por Souza (2010, p. 250)
como “o instrumento de planejamento urbano por excelência”, e tido por Fischel (2000,
p. 403) como “the most important method of land use regulation undertaken by local
governments” -, o zoneamento foi herdado da tradição estadunidense45. Esse
instrumento baseia-se na racionalidade científica que - à moda da escola modernista de
urbanismo - busca maximizar os benefícios e reduzir os riscos na alocação espacial de
atividades, usos e funções do solo - em outras palavras, busca-se “ordenar” a cidade
(SOUZA, 2010; ALMEIDA et al., 2008).
Assim, para Villaça (2010, p. 177), ele é entendido pela “legislação urbanística que
varia no espaço urbano”. Em síntese, o zoneamento “divides a jurisdiction into
geographically contiguous 'zones’. The local zoning ordinance prescribes what may be
done in each zone and what may not be done” (FISCHEL, 2000, p. 403).
O zoneamento no Brasil tem início nas últimas décadas do século XIX - mesmo que
de maneira rudimentar, como mostram as leis que proibiam cortiços e vilas operárias em
determinadas partes das cidades (VILLAÇA, 2010). Villaça ainda critica o que vem sendo
dito sobre a gênese desse instrumento no Brasil: a exemplo de Souza (2010), muitos
afirmam que o zoneamento tenha sido importado. No entanto, o caso brasileiro, como
lembra Villaça (2010, p. 178), “corresponde (e continuará correspondendo) a interesses
e soluções específicos das elites brasileiras”.
Seguindo por essa vertente crítica Souza (2010, p. 261) ressalta que “Em
decorrência de exageros (rigidez) e abusos ou distorções (alavancamento da segregação)
freqüentemente indissociáveis do zoneamento funcionalista, essa técnica convencional
45 Inclusive, conforme assinala Cullingworth (1993, apud SOUZA, 2010, p. 250), "muito, senão a maior parte
do planejamento do uso da terra nos Estados Unidos não é planejamento, mas sim zoneamento".
105
vem sendo alvo, há várias décadas, de severas críticas”. Poder-se-ia afirma, por exemplo,
que as cidades perderiam sua vitalidade com os zoneamentos - nos termos de Jane Jacobs
(1993) e de Lefebvre (1999) - que seria resultado das interações, trocas e misturas46.
Marcelo Lopes de Souza (2010) pondera novamente: para ele, “o zoneamento de
uso do solo não precisa (e nem deve) ser demonizado de maneira genérica” (SOUZA, 2010,
p. 260). Ainda, ele justifica a existência de zoneamentos: “Controlar a localização de
algumas atividades faz muito sentido, do ponto de vista da salvaguarda dos interesses
coletivos” (SOUZA, 2010, p. 265). Tal afirmação possui respaldo no estudo acerca dos
custos de transação relacionados aos zoneamentos, empreendido por Fischel, o qual
afirma que
46Jacobs afirmava que "To understand cities, we have to deal outright with combination or mixtures of uses,
not separate uses, as the essential phenomena" (JACOBS, 1993, p. 144). Lefebvre, por sua vez, disse que "Na
rua, teatro espontâneo, torno-me espetáculo e espectador, às vezes ator. Nela, efetua-se o movimento, a
mistura, sem os quais não há vida urbana, mas separação, segregação estipulada e imobilizada.
Quando se suprimiu a rua, [...] viu-se [sic] as consequências: a extinção da vida, a redução da "cidade" a
dormitório, a berrante funcionalização da existência" (LEFEBVRE, 1999, pp. 29-30 - grifo nosso).
106
(v) FUNDOS DE DESENVOLVIMENTO URBANO
A exemplo do FNHIS - Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - , criado
através da Lei Federal número 11.124, de 2005, a legislação de direito urbano no Brasil
prevê a existência de fundos que tenham como objetivo precípuo gerenciar recursos para
políticas públicas destinadas à população de baixa renda. Marcelo Lopes de Souza (2010)
afirma que, todavia, o amparo legal desses fundos carece de melhores discussões.
(vi) CITY-MARKETING
Como já foi dito acima, uma das alternativas à “crise das cidades” é a competição
por mais recursos e por mercados (MELO, 1996; SANTOS, 1999). Para tanto, utilizam-se
estratégias de marketing para promoção - uma ferramenta típica da escola do
planejamento estratégico de cidades. Um bom exemplo disso é o livro “Marketing
público”, de Kotler, Haider e Rein (1994), que discute estratégias para atrair
investimentos, empresas e turismo para as cidades.
As críticas a essa ferramenta concentram-se na ideia de que a cidade não deveria
ser uma mercadoria à venda (ARANTES, 2012). Acerca disso, Marcelo Lopes de Souza
(2010) pondera ao afirmar que
107
do ponto de vista técnico - uma plano; dificuldades de aprovação do plano no Legislativo
municipal; e dificuldade para implementar o plano após sua aprovação47.
Arrolados por Souza (2010) entre os instrumentos mais básicos e convencionais,
os cadastros técnicos, as plantas de valores e divisões de bairros são instrumentos que -
apesar de serem mais “velhos” - também precisam de atenção. Na mesma linha daquilo
que defende Maricato (2012)48, Souza (2010) lembra que, antes de ser capaz de
implementar o IPTU progressivo no tempo, o município tem de ser capaz de arrecadar o
IPTU convencionalmente. Por sua vez, isso demanda que os cadastros técnicos - que
possuem informações sobre os terrenos - e as plantas genéricas de valores - que fixam os
valores dos terrenos para fins de arrecadação - estejam “regular e rigorosamente
atualizados” (SOUZA, 2010, p. 306).
Quanto às divisões de bairros, Lopes de Souza (2010) destaca que sua adequação
- porquanto os bairros sejam “a unidade de referência mais importante [para o
planejamento e a gestação urbanos]” (SOUZA, 2010, p. 307) - faz-se necessária para o
sucesso das intervenções visando ao desenvolvimento urbano. Souza (2010) enumera
algumas aplicações que a divisão em bairros pode trazer: identificação de setores
geográficos que sirvam de referência para o planejamento - como propõe o geomarketing,
conforme discutido por Mazoni Andrade e Baptista (2015) - e utilização para fins de
implementação de um orçamento participativo.
(viii) GEOPROCESSAMENTO
O geoprocessamento - o conjunto de técnicas mediadas por computadores a
operar sobre dados georreferenciados para transformar tais dados em informação - tem
usos abrangentes, encontrados em diversos setores da atividade humana (ROCHA, 2000;
XAVIER-DA-SILVA e ZAIDAN, 2004). Nesse sentido, sabe-se da importância e da
abrangência do uso das geotecnologias em diversas áreas do planejamento e da gestão -
inclusive nas cidades (MOURA etal., 2013).
47 Souza (2010, p. 305) reconhece o peso dessas dificuldades quando diz que “Sem querer fazer o inverso
do que fizeram e fazem os autores que subestimam os obstáculos, ou seja, sem querer exagerar as
dificuldades, é fundamental perceber que elas existem, e que o desfecho pode ser frustrante, sobretudo se
os obstáculos forem subestimados”.
48 Maricato (2012, p. 176) mostra que “Raros são os governos municipais que o utilizam [o próprio IPTU,
mesmo sem a qualificação de progressividade] plenamente com essa finalidade [de aplicar alíquotas
diferenciadas como uma alavanca para a receita municipal e para a justiça social] e o problema está na
correlação de forças local, sempre muito dependente das atividades imobiliárias”.
108
Em seu livro sobre gestão local, Lucas (2006) afirma que as facilidades com novas
tecnologias favorecem, e muito, a gestão urbana - haja vista a maior facilidade de adquirir
hoje, uma imagem de satélite. Ainda em 2002 já se afirmava que: “No estágio atual das
tecnologias e na busca da modernização administrativa, a utilidade do geoprocessamento
como ferramenta fundamental na gestão pública não pode mais ser contestada”
(CORDOVEZ, 2002, p. 1).
As aplicações do geoprocessamento para o planejamento urbano são várias: desde
a atualização de dados relacionados a tributos - plantas de valores e cadastros técnicos
digitalizados, como mostram Torok e Silva (2008, apud WANDERLEY, 2013) - até
avaliações de riscos ambientais. Cordovez (2002) lembra do exemplo notável do Dr. Snow,
que, em 1854, deu subsídios decisivos para o controle de uma epidemia de cólera em
Londres. Dr. Snow mapeou os óbitos relacionados à doença, o que possibilitou a
identificação da causa do surto e, a partir disso, sua solução. Para Cordovez (2002, p. 2),
esse exemplo “representa o espírito do geoprocessamento e ilustra seu principal objetivo,
auxiliar na tomada de decisões”.
No entanto, há de se convir na dificuldade que algumas aplicações de
geotecnologias encontram ainda hoje. De modo geral, observa-se relativo atraso no Brasil
acerca da amplitude da utilização de geotecnologias. Mesmo em cidades grandes
brasileiras, os acervos cartográficos estão desatualizados, e há carência de dados em
certas escalas, o que pesa com maior força sobre a cidade informal. Após estudarem a
aplicação de cartografia à regularização fundiária no Brasil, Santos e Saraiva afirmam que
109
A partir dessa constatação, nesta seção busca-se apresentar o tema da
regularização fundiária, no cerne das teorias do planejamento urbano já apresentadas. As
próximas partes dessa seção versarão sobre a gênese e o conceito da regularização
fundiária, seus princípios, seus instrumentos e o envolvimento dos diferentes entes.
Gráfico 8 - Porcentagem do total de municípios que possuem ações de regularização fundiária - 1999
2011
40,00%
30,00%
20, 00 %
10, 00 %
0, 00 %
1999 2001 2002 2004 2005 2008 2009 2011
Fonte: MUNIC - 1999, 2001, 2002, 2004, 2005, 2008, 2009, 2011.
110
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EINTERDISCIPLINARIDADE
Tão interdisciplinar quanto o próprio planejamento urbano, a regularização
fundiária envolve medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais para concretizar-
se. A isso dá-se o nome de regularização fundiária plena49.
Do ponto de vista da dimensão jurídica, a regularização fundiária busca um
enfrentamento para a irregularidade dominial - ou, em outras palavras, busca dar
segurança jurídica ao ocupante de uma terra pública ou privada. As dimensões urbanística
e ambiental dizem respeito ao licenciamento, ao respeito à legislação urbana e à proteção
do meio ambiente. Do ponto de vista da dimensão social, a regularização fundiária “é
especialmente importante nas ocupações de baixa renda, de forma a ampliar o direito à
cidade, o exercício da cidadania e assegurar sustentabilidade a todo o processo de
regularização fundiária” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2013, p. 16).
Edésio Fernandes (2006) elucida essa discussão em um de seus textos mais citados
sobre regularização fundiária:
49 Há de se destacar a diferença trazida pelo paradigma da regularização fundiária plena. Ao envolver uma
pluralidade de aspectos - e não só a questão jurídica do título de posse é possível tratar a complexidade
do problema, engendrando uma ação eficaz (posto que dê ao ocupante aquilo que ele precisa), eficiente
(posto que um só processo resolva vários problemas, reduzindo custos) e efetiva (posto que o tratamento
dado como um todo se reflita na melhoria das condições de vida, como vários estudos já têm mostrado).
Anteriormente ao surgimento dessa maneira de pensar, era comum que o Estado entregasse o título ao
ocupante sem, contudo, dar-lhe condições de habitabilidade (luz, água e esgoto) ou acesso ao lote.
50 O que é apontado por Gonçalves e Zancheti (2014) como um grande avanço alcançado pela regularização
fundiária, posto que a lei preconize a “permanência de seus moradores, por meio da garantia da posse das
moradias, e à oferta de melhores condições ambientais, além do reforço da consciência patrimonial”
(GONÇALVES; ZANCHETI, 2014, p. 323).
111
fundiária com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico
e de mobilidade urbana, nos diferentes níveis de governo e com as iniciativas públicas e
privadas, voltadas à integração social e à geração de emprego e renda; (iii) participação
dos interessados em todas as etapas do processo de regularização; (iv) estímulo à
resolução extrajudicial de conflitos; e (v) concessão do título preferencialmente para a
mulher.
112
quando um terreno numa favela ou loteamento é legalizado, ele se valoriza
muito, gerando renda para a família. Além disso, um terreno regularizado pode
ser dado como garantia de um empréstimo, seja para melhorar ou ampliar a
moradia, seja para abrir ou ampliar um negócio (MINISTÉRIO DAS CIDADES,
2007, p. 13).
Essa ideia defendida pelo Ministério das Cidades apresenta grande consonância às
ideais defendidas por Hernando De Soto (2001), Acemoglu e Robinson (2012) e também
Celso Furtado (2000), dentre outros. A regularização fundiária teria o potencial de agir
contra a dependência dos municípios sob a óptica das finanças públicas. Isso ocorreria
porque a segurança ao direito de propriedade - fundamental para que haja investimento,
produtividade e, por conseguinte, desenvolvimento econômico, como mostram Acemoglu
e Robinson (2012) - destravaria o capital morto, latente nos imóveis, transformando-o
em capital ativo para a produção.
Acemoglu e Robinson utilizam-se de vários exemplos na história do
desenvolvimento econômico para provar que “Os direitos de propriedade são cruciais,
uma vez que somente quem os tiver assegurados vai se dispor a investir e aumentar a
produtividade” (ACEMOGLU; ROBINSON, 2012, p. 59). Enfim, sua tese é de que faltam
incentivos para investimentos, que viria a partir da segurança da propriedade provida
pelo Estado:
el capital muerto existe porque hemos olvidado (o tal vez nunca hemos
advertido) que convertir un activo físico en uno generador de capital, valerse de
la casa para obtener dinero en préstamo y finan- ciar una empresa, por ejemplo,
supone un proceso muy complejo. Este proceso no se diferencia mucho del que
Albert Einstein nos ensenó, mediante el cual un solo ladrillo puede liberar una
inmensa cantidad de energía mediante una explosión atómica. Por analogia, el
capital es el resultado de descubrir y desencadenar la energía potencial de los
millones de millones de ladrillos que los pobres han acumulado en sus
edificaciones (DE SOTO, 2001, p. 29).
113
Conforme já discutido na introdução deste trabalho, essa proposta teórica
assemelha-se à constatação de Celso Furtado (2000) de que a propriedade de terras nos
Estados Unidos da América - após os notáveis Homestead Acts empreendidos por Lincoln
- foi grande responsável pelo desenvolvimento do mercado interno naquele país. Em um
livro que compara o contexto histórico do processo de globalização no Brasil e nos
Estados Unidos, John DeWitt destaca isso:
Na mesma seara, Engerman e Sokoloff (2005, p. 21) afirmam que “Although the
prevalence of land ownership was markedly lower in the South [...] the overall picture is
one of a series of liberal land policies, leading up to the Homestead Act of 1862, providing
broad access to this fundamental type of economic opportunity”.
Além disso, estima-se que os municípios passariam a arrecadar mais impostos -
principalmente o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre a
Transmissão de bens inter vivos (ITBI), diretamente relacionados à propriedade de
imóveis -, o que pode trazer-lhes maior capacidade de investir ou gastar,
independentemente das transferências de outros entes e suas vinculações, que reduzem
substancialmente o poder discricionário da administração pública municipal (REZENDE;
LEITE; SILVA, 2015).
114
Ainda, a regularização fundiária garante o direito à saúde, ao lazer, ao trabalho - e,
por conseguinte, à cidade (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2007; MINISTÉRIO DAS CIDADES,
2013). Isso pode ocorrer a partir da inclusão da área nas rotinas administrativas ou a
partir da mudança do status (deixando de ser uma favela). Sobre o primeiro ponto, o
Ministério das Cidades (2013; 2007) afirma que, após a legalização, faz-se mister ao Poder
Público prover serviços básicos - água, esgoto, pavimentação, transporte, educação,
dentre outros - sem que isso seja meramente um “favor” ou moeda de troca de políticos.
Sobre o segundo ponto, Maricato diz que
115
INTERESSE SOCIAL E INTERESSE ESPECÍFICO
Como já discutido neste trabalho, a irregularidade fundiária não se restringe aos
assentamentos populares. Para promover o ordenamento territorial de toda a cidade, é
necessário regularizar desde os bairros pobres na periferia até os condomínios fechados
de alto luxo. Dessa forma, a Lei n° 11.977/2009 define dois tipos básicos de regularização
fundiária: a regularização fundiária de interesse social e a regularização fundiária de
interesse específico.
Como afirma a cartilha do Ministério das Cidades (2013), o caso dos assentamentos
populares justifica a aplicação de instrumentos, procedimentos e requisitos técnicos
especiais, visando ao cumprimento do interesse social. Para receberem as ações de
regularização fundiária, esses assentamentos devem atender a pelo menos um destes três
requisitos: (i) ocupação mansa e pacífica por no mínimo cinco anos; (ii) localização em
uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS); ou (iii) no caso de áreas públicas, declaração
de interesse social. Por sua vez, a regularização fundiária de interesse específico aplica-se
a assentamentos irregulares não enquadrados como de interesse social.
Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural (BRASIL, 2011).
51 Fração ideal é participação de cada unidade na área do terreno. A regra é divisão por igual, salvo quando
expressa decisão do grupo em contrário - situação na qual a fração ideal pode ser proporcional à área
ocupada por cada morador.
52 Processo que, em termos gerais, tramita com maior celeridade no Judiciário.
53 A administração pública tem o prazo de um ano para conceder o título por via administrativa. Caso o
prazo expire, ou caso a resposta da administração seja negativa, é possível recorrer à via judicial
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009).
117
A concessão de Direito Real de Uso (CDRU) permite que o proprietário ceda o
domínio útil de seu imóvel a um terceiro. Isso pode ser feito através de um contrato
gratuito ou oneroso, resolúvel pelo seu descumprimento ou pelo decurso do prazo
estipulado. Caso o cedente seja o Poder Público, a outorga pode ser feita por termo
administrativo. O Estatuto da Cidade, em seu artigo 48, revitaliza a CDRU - conforme
afirma a cartilha do Ministério das Cidades (2009). De acordo com o texto dessa lei,
“quando utilizados pelo Poder Público em programas para fins habitacionais de interesse
social, os contratos de CDRU terão caráter de escritura pública e constituirão título de
aceitação obrigatória para financiamentos habitacionais” (MINISTÉRIO DAS CIDADES,
2009, p. 72).
Previsto tanto no Estatuto da Cidade quanto no Código Civil, o direito de superfície
pode ser usado tanto para regularizar ocupações em áreas particulares como áreas
públicas, dando ao superficiário o direito de uso da área - desde que respeitado o contrato
(feito por escritura pública) e a legislação urbanística. Esse contrato pode ser oneroso ou
gratuito, com tempo determinado ou indefinido. Ainda, “Esse direito também poderá ser
transferido a terceiros, respeitadas as estipulações contratuais, e será transferido aos
herdeiros no caso de morte do superficiário” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 72). O
direito de superfície também pode ser utilizado como garantia para financiamentos
habitacionais.
A alienação de bens públicos, conforme admitida pela Lei de Licitações, só pode
ocorrer para os bens dominiais - ou, ainda, dominicais. Segundo Caixeta, esses bens são
aqueles que
O Manual redigido pelo Ministério das Cidades, no entanto, adverte que a alienação
não é um instrumento muito empregado para a regularização fundiária (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, 2009).
Outro instrumento de regularização fundiária é a doação; um contrato simples ou
com encargos pelo qual uma pessoa doa, por liberdade, um patrimônio. No caso da
regularização fundiária, a Administração Pública pode doar bens imóveis - caso esses
118
bens estejam desafetados do uso público, e haja uma autorização do Poder Legislativo,
uma avaliação prévia e uma justificativa do Poder Executivo (MINISTÉRIO DAS CIDADES,
2009).
A adjudicação compulsória é outro dos instrumentos que podem ser empregados
para fins de regularização fundiária. Ela pode ocorrer nos casos em que o morador possui
um documento que comprova que comprou e pagou pelo imóvel, mas não tem a sua
escritura. Se esse imóvel for regular - isto é, se houver uma matrícula deste imóvel em
nome do vendedor -, pode-se emitir o registro do imóvel por via judicial (MINISTÉRIO
DAS CIDADES, 2009).
Por fim, a regularização fundiária pode-se dar por meio de desapropriações - um
entendimento que se origina a partir do Decreto-Lei n° 4.132/1941. A desapropriação
seria a extinção da propriedade por utilidade pública ou por interesse social (MATTOS et
al., 2002). Ainda sobre esse instrumento, a Lei n° 6.766/1979 prevê a “possibilidade de
registro da imissão provisória na posse e a respectiva cessão ou promessa de cessão”
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, P. 75).
Para o caso em que a regularização ocorre em terras da União, há outros dois
instrumentos específicos: o aforamento - ou enfiteuse - e a inscrição de ocupação. O
primeiro vem de nossa tradição ibérica, e é uma separação entre propriedade e fruição,
mediados pelo pagamento de um foro54. O aforamento pode, ainda, ser alienado e
transmitido. Quanto à inscrição de ocupação, é um título precário e temporário - até que
uma ação completa de regularização seja feita. A União cobra dos ocupantes um valor
entre 2 e 5% do valor do imóvel, exceto para pessoas carentes, isentas do pagamento
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009).
ETAPAS E PROCESSOS
É importante notar que cada ente possui sua própria política e sua própria
legislação para tratar sobre a regularização fundiária urbana. Todavia, um manual do
Ministério das Cidades (2009) apresenta um modelo de melhores práticas.
Para os profissionais consultados por esse Ministério, existiram sete etapas para a
regularização de terras públicas dos estados e municípios:
54 Que é dispensado para pessoas consideradas carentes, segundo o Manual do Ministério das Cidades
(2009).
119
(i) caracterização do assentamento, a partir do levantamento de “aspectos
físicos, urbanísticos, dominiais e sociais do assentamento e da comunidade
que ali vive” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 29), dando à sociedade
participação efetiva, desde a mobilização até a informação sobre o processo
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009);
(ii) definição do instrumento de regularização, de forma participativa com a
comunidade (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009);
(iii) elaboração do projeto de regularização fundiária, a partir da caracterização
do assentamento e complementado por outras informações relevantes55,
avaliação das condições de infraestrutura e equipamentos urbanos
existentes, avaliação dos projetos de infraestrutura já existentes e
caracterização das áreas de preservação ambiental, caracterização das
áreas de risco e avaliação da necessidade do sistema viário e de circulação
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009);
(iv) depósito em cartório do projeto de regularização fundiária, após a aprovação
do projeto de regularização fundiária pela prefeitura, mediante a
verificação da compatibilidade das informações (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, 2009);
(v) elaboração dos memoriais descritivos individuais, a partir da “elaboração
individual da peça técnica que contém as medidas perimétricas e área de
cada um dos lotes implantados no núcleo” (MINISTÉRIO DAS CIDADES,
2009, P. 95);
(vi) elaboração dos termos administrativos; e
(vii) entrega dos títulos, após a assinatura dos termos administrativos, que
devem ser entregues aos beneficiários para que eles providenciem o
registro (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009).
55 Como equipamentos existentes no entorno e no próprio assentamento (escolas, postos de saúde, centros
comunitários, hospitais, praças, parques e transporte público).
120
situação cadastral dos imóveis; (iii) transferência da área, mediante ato do órgão
responsável pela administração do patrimônio do ente; (iv) elaboração do projeto de
regularização fundiária e do cadastro físico-social, que devem ser elaborados a partir da
caracterização do assentamento e complementado por outras informações relevantes,
avaliação das condições de infraestrutura e equipamentos urbanos existentes, avaliação
dos projetos de infraestrutura já existentes e caracterização das áreas de preservação
ambiental, caracterização das áreas de risco e avaliação da necessidade do sistema viário
e de circulação; (v) regularização dos lotes em nome dos moradores, cadastrando os lotes
e seus respectivos ocupantes no registro de administração patrimonial do ente, seguido
de registro no cartório de registro de imóveis de uma certidão emitida pelo órgão
responsável pela administração do patrimônio
Quando a regularização é feita em áreas privadas, o legítimo proprietário pode
dispor do seu imóvel utilizando estes instrumentos: Concessão de Direito Real de Uso,
passível de utilização entre particulares ou no caso de terrenos pertencentes a sociedades
de economia mista, como o caso das COHABs; alienação; doação; dação, principalmente
nos casos de dívidas fiscais para com municípios; e direito de superfície (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, 2009). Nos casos em que a transferência é operada a despeito do proprietário
- quando ele abandona o imóvel e a área é ocupada por terceiros - , pode-se usar a
usucapião, reconhecida em juízo. A usucapião especial urbana, conforme instituem a
Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade, pode ocorrer através de usucapião
individual, quando o requerente é um só, e quando o terreno puder ser individualizado,
com limites, dimensões e confrontantes definidos; usucapião plúrima, quando o
requerente é um grupo e o terreno pode ser individualizado - o que “simplifica sua
tramitação, gerando economia processual e agilizando o processo de regularização”
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 109); e a usucapião coletiva, usada quando o
requerente é um grupo e a área não pode ser individualizada, dada a situação de
composse. Nesse último caso, a sentença deve instituir um condomínio indivisível
formado pelos ocupantes (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009).
121
122
3- AVALIAÇAO DOS IMPACTOS DAS AÇOES DE REGULARIZAÇAO
FUNDIÁRIA SOBRE AS FINANÇAS PÚBLICAS MUNICIPAIS
Identifying the precise effects of a policy is a complex and challenging task. This
issue is particularly salient in an uncertain economic climate, where
governments are under great pressure to promote programs that can recharge
growth and reduce poverty. At the World Bank, our work is centered on aid
123
effectiveness and how to improve the targeting and efficacy of programs that we
support. As we are well aware, however, times of crisis as well as a multitude of
other factors can inhibit a clear understanding of how interventions work—and
how effective programs can be in the long run (LIN, 2010, p. xiii).
124
The obvious need for impact evaluation is to help policy makers decide whether
programs are generating intended effects; to promote accountability in the
allocation of resources across public programs; and to fill gaps in understanding
what works, what does not, and how measured changes in well-being are
attributable to a particular project or policy intervention (KHANDKER;
KOOLWAL; SAMAD, 2010, p. 3).
A avaliação de impacto, então, busca responder a três perguntas: (i) há efeitos?; (ii)
os efeitos foram intencionais, ou são devidos a externalidades?; e (iii) os efeitos devem-se
à política analisada ou são gerados por outro fator específico?
O desafio desse tipo de metodologia é entender que causalidade e correlação são
conceitos diferentes, e o nexo de causalidade significa ter, em todas as condições, mesmas
causas e mesmos efeitos. Para garantir que o que está sendo considerada é a causalidade,
busca-se estabelecer um contrafactual - considerado o principal desafio das avaliações de
impacto56 -, para estimar o que teria ocorrido com os municípios que receberam ações
ligadas à regularização fundiária caso eles não fossem envolvidos nela.
No entanto, há de se destacar que não há um contrafactual perfeito; utilizam-se,
então, grupos de controle, num método bem próximo ao utilizado pelas pesquisas sobre
remédios. Em outras palavras, “O problema central da área de avaliação de programas [e
políticas] é construir o contrafactual do grupo tratado pelo programa [ou pela política]
(FOGUEL, 2012, p. 35).
A mera comparação de cenários nos municípios - do tipo antes e depois - seria
inadequada, porque nada garante que o efeito observado seja de fato atribuído à
regularização fundiária (KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010; FOGUEL, 2012). Por
exemplo, o incremento na arrecadação de impostos diretos pode advir de um
aquecimento na economia, ao invés de vir da regularização fundiária.,,
, Semelhantemente, não se pode simplesmente comparar os grupos tratado e
controle (KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010; FOGUEL, 2012) - há diferenças entre as
características de ambos, o que, inclusive, pode determinar a escolha para participar ou
não das ações de regularização fundiária. Em outras palavras, “a ausência do tratamento
para alguns não gera automaticamente o contrafactual de não tratamento para outros”
(FOGUEL, 2012, p. 38), dado que existem diferenças entre as características que o
avaliador pode ou não observar.
56 Conforme disseram Khandker, Koolwal e Samad (2010, p. 22), "the challenge of an impact assessment is
to create a convincing and reasonable comparison group for beneficiaries in light of this missing data".
125
A ideia, então, da avaliação de impactos aplicada a uma política pública, é chegar à
expressão
sendo o impacto e i cada indivíduo (ou município, no caso deste trabalho), T=1 se tratado
(no caso deste trabalho, se o município tiver recebido ações relacionadas à regularização
fundiária) e T=0 se controle (neste trabalho, se o município não tiver recebido ações
relacionadas à regularização fundiária), Xn os resultados provenientes de características
observáveis e si as variações aleatórias inesperadas (ou os erros não previstos dadas as
características observadas da amostra), tal que
Yi(1)=Xn+fii+£Í
Yi(0]=Xn+£Í
onde T é uma função indicadora (apresentando valor 1 no caso dos tratados e 0 caso
contrário).
Todavia, diversos problemas podem ocorrer em exercícios deste tipo. Além da já
citada inexistência de um grupo de controle claro, outros problemas igualmente
complexos podem ocorrer. Por exemplo, a existência de expectativas pode inviabilizar
este exercício, posto que as mudanças possam ocorrer antes mesmo do tratamento a ser
analisado, exatamente porque os agentes sabiam que este seria implementado. Assim
teríamos uma relação causal inversa, onde o efeito ocorreria antes da causa, o que seria
impossível nos fenômenos físicos.
Além desses problemas, a amostra a ser estudada também poderia ser
autosselecionada. Como são normalmente os próprios agentes que decidem ou não sofrer
o tratamento, é possível que somente aqueles que soubessem do efeito positivo deste o
tenham implementado. Ou seja, é possível que somente os municípios onde a
regularização fundiária apresentasse consequências positivas a tenham implementado.
Neste caso, os efeitos estimados seriam positivos, mas não existiriam caso esta fosse
126
estendida para o restante das localidades. Esse problema na estimação incorreta do
impacto gera aquilo que a literatura chama de viés de autosseleção, que “decorre do fato
de que são os próprios tratados que se selecionam para participar do programa [ou da
política]" (FOGUEL, 2012, p. 42).
Para chegar a uma avaliação que consiga estimar o impacto sem incorrer no viés de
autosseleção, algumas técnicas podem ser empregadas (KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD,
2010): (i) método de aleatorização; (ii) pareamento, especificamente o propensity score
matching (PSM); (iii) dupla-diferença, ou diferenças em diferenças (DD); (iv) variáveis
instrumentais; (v) regressão descontínua e métodos pipeline; (vi) impactos distributivos
e (vii) abordagens estruturais e outras modelagens.
Cada um desses métodos trata o viés de autosseleção de uma maneira distinta. A
aleatorização, por exemplo, evita esse viés ao escolher randomicamente os participantes
- o que deve ocorrer durante o desenho da política, antes de sua implementação. O
método conhecido como propensity score matching compara o efeito do tratamento no
participante da política com unidades não-participantes pareadas, com base em número
de características observadas - ou seja, as unidades que não participaram mas
apresentavam mesma probabilidade de participação que aquelas que o fizeram. Sua
vantagem, então, é assumir que o viés de autosseleção baseia-se apenas em características
que podem ser observadas pelo avaliador (KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010).
O método de DD assume a seleção por características não-observáveis como um
pressuposto, invariável no tempo. A partir de dados em painel, o efeito do tratamento é
determinado pela diferença entre os grupos tratado e controle, ante e depois da
intervenção - e daí vem o seu nome, diferenças em diferenças (KHANDKER; KOOLWAL;
SAMAD, 2010; FOGUEL, 2012). Para Foguel (2012, p. 44), “A principal hipótese desse
método é que a trajetória da variável de resultado do grupo de controle reflita a do grupo
de tratamento na ausência de intervenção".
Variáveis instrumentais podem ser utilizadas em análises cross-section, séries
temporais e em painéis - quando há dados multidimensionais frequentemente medidos
através de determinado período de tempo. Nesse método, o viés de autosseleção é
corrigido ao encontrar uma variável que é correlacionada à participação na política, mas
que não é correlacionada a características não-observáveis que afetam o resultado
(KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010).
127
Baseados nas variáveis instrumentais, a regressão descontínua e os métodos
pipeline exploram regras exógenas das políticas - como critérios de elegibilidade - para
comparar participantes e não-participantes vizinhos à linha de corte da elegibilidade.
Particularmente, os métodos pipeline constroem um grupo de comparação a partir de
sujeitos que são elegíveis para a política, mas que ainda não receberam sua intervenção
(KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010). O princípio neste método é similar aquele
utilizado no PSM. A diferença é tentar construir de forma mais qualitativa e não através
da estimação das probabilidades de ingresso no programa o grupo de controle a ser
utilizado.
As avaliações de impacto distributivo, como feita por Cavalieri e Pazello (2004),
utilizam-se de regressões para estimar o acesso da população, por nível de renda, a
determinados bens públicos. No caso citado, as autoras encontram impactos negativos, no
sentido da regressividade de várias políticas sociais no Brasil.
Por fim, as abordagens estruturais dizem respeito ao uso de modelos econômicos
para entender as potenciais interações entre uma política pública e um comportamento
individual (KHANDKER; KOOLWAL; SAMAD, 2010).
129
para toda a sociedade. Por seu turno, De Soto (2001) afirma são necessários mecanismos
para destravar o capital morto acumulado em imóveis, transformando o seu potencial
econômico em capital ativo para a produção:
Un paseo por las calles del Oriente Medio, de la antigua Unión Soviética o de
America Latina le mostrara muchas cosas: casas en las que vive la gente; parcelas
de tierra en labranza, siembra o cosecha; mercaderías que se compran y se
venden. En los países en desarrollo y en los que salen del comunismo los activos
sirven sobre todo para estos propósitos físicos inmediatos. En cambio, en
Occidente, esos mismos activos llevan además una vida paralela, como capital
externo al mundo físico. Pueden ser usados para aumentar la producción,
atendiendo a los intereses de otras partes como "garantía” de una hipoteca,
por ejemplo, o asegurando el suministro de otras formas de crédito, así
como de servicios públicos (DE SOTO, 2001, p. 29 - grifo nosso).
não é o valor em si dos imóveis que importa, mas como eles interrelacionam-se
no sistema legal gerando capital, isto é, como o sistema de propriedade legal
possibilita que se estabeleça uma rede efetiva de ativos, a partir da articulação
adequada das leis oficiais com a ordem social (ÁVILA; FERREIRA, 2016, p. 199).
57Variáveis relacionadas à regularização fundiária aparecem nas edições de 1999, 2001, 2002, 2004, 2005,
2008, 2009, 2011 e 2015, com nível de detalhamento variável.
131
Another way to conceptualize propensity score matching is to think of it as
choosing a sample from the control group that "matches" the treatment group.
Any differences between the treatment and matched control groups are then
assumed to be a result of the treatment (SOCIAL SCIENCE COMPUTING
COPERATIVE, 2015, p. 1).
Como alerta Menezes Filho (2001), o problema central de uma estimação por
mínimos quadrados ordinários é a possibilidade de haver endogeneidade entre as
covariadas e a variável independente. Assim, ao utilizar métodos como esse, o
pesquisador
tem de deixar claro, a priori, porque ele acha que os parâmetros estimados de
seu modelo refletem uma relação causal de x t para y e não uma correlação
espúria [...] É importante enfatizar que o termo "endogeneidade" descrito [...] é
causado por variáveis omitidas, que impedem a estimação consistente de uma
relação causal (MENEZES FILHO, 2001, p. 435).
A estimativa obtida a partir da expressão acima é uma média ponderada dos efeitos
de cada covariada para cada valor da variável causal de interesse. Dessa forma, a
estimativa do impacto depende da distribuição dos regressores e da heterogeneidade do
efeito causal dentro da amostra trabalhada (MENEZES FILHO, 2001). Dito isso, Menezes
Filho (2001, p. 436) afirma que “O matching é um método de estimação alternativo que
permite um controle maior sobre o processo de ponderação e leva explicitamente em
conta a distribuição dos valores das variáveis de controle na amostra”.
132
- foram obtidos a partir das bases de dados da Secretaria do Tesouro Nacional, da seção
FINBRA - Finanças Municipais. Por fim, os dados do PIB municipal forma extraídos da
base de dados do próprio IBGE.
A partir da obtenção e da organização desses dados, tanto métodos econométricos
tradicionais quanto o método de pareamento exigem que sejam escolhidas variáveis de
controle. A ideia da avaliação de impactos que se utiliza desse método é comparar
municípios que sejam iguais, cuja única diferença seja o tratamento - isto é, o fato de
terem recebido ações relacionadas à regularização fundiária. As variáveis utilizadas para
o pareamento desses municípios, então, foram:
(i) presença de plano diretor (PD), previsto pela Constituição 1988, e considerado
fundamental e inovador para a adequação da ordenação urbana às diretrizes
de qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento econômico, obrigatório
para municípios com mais de 20.000 habitantes (BRASIL; CARNEIRO, 2009) -
e que pode conter, dentre suas proposições, as ações de regularização
fundiária;
(ii) presença de conselhos de habitação (CHAB) e desenvolvimento urbano (CPU),
a fim de exercer o controle social e a participação - tidos como fundamentais,
a despeito das grandes dificuldades em institucionalizá-los (CYMBALISTA,
2000) e considerados por Tatagiba (2010, p. 71) um “importante espaço de
atuação dos movimentos visando à influência nas políticas públicas”, dado seu
“papel decisivo na formulação e acompanhamento da política a ser
implementada”, conforme afirma Bonduki (2008, p. 93), impactando
positivamente as políticas desse setor;
(iii) número de servidores ativos na administração pública direta (FUNC), que
indica maior capacidade da gestão em responder aos problemas de sua
jurisdição;
(iv) Produto Interno Bruto real58 per capita (pibrpc), reflexo do dinamismo
econômico do município;
(v) Produto industrial real59 per capita (indrpc), que caracteriza o dinamismo
econômico do município;
135
Tabela 6 - Resultados da regressão - ITBI
ipturpc Coef Std. Err t P>|t| [95% Conf. Interval]
REG 1,748279 0,9650247 1,81 0,070 -0,1444416 3,640999
CPU 1,762841 0,9492531 1,86 0,063 -0,0989466 3,624628
136
de Participação dos Municípios se mostraram estatisticamente relevantes na diminuição
das arrecadações destes impostos. Ou seja, é possível que o recebimento de transferências
federativas estimule o município a não cobrar (ou cobrar menos) impostos locais.
Por sua vez, a escolha pelo modelo logit - que é a configuração default do comando
utilizado - justifica-se, como ensina Dantas (2013, p. 60), pela afirmação de vários
pesquisadores que têm advogado que “o logit é o melhor modelo para estimar esta
probabilidade”.
Foram realizados três testes com estimação do average treatment effect on the
treated (ATET), a partir do comando relacionado ao propensity score matching. Foi feito
um teste para cada um dos impostos municipais - IPTU, ISSQN e ITBI. Todos esses testes
foram feitos utilizando a regularização fundiária como variável de tratamento.
137
Os resultados desses testes estão expostos na Tabela 7:
Tabela 7 - Estimação dos efeitos do tratamento via propensity score matching, utilizando-se de um exercício
de ATET (average treatment effect on treated) e modelo logit
17.932.461.912,73 19.240.960.385,43
IPTU 7,30%
35.645.935.425,77 39.453.819.602,95
ISSQN 10.68%
6.659.502.221,00 7.160.302.881,52
ITBI 7.52%
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do FINBRA (2011) e dos dados estimados pela avaliação.
139
Tabela 9 - Impacto da regularização fundiária sobre a participação na média nacional para componentes
da receita pública municipal - IPTU, ISSQN, ITBI e transferências
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do FINBRA (2011) e dos dados estimados pela avaliação.
140
Gráfico 9 - Incremento nas receitas públicas, em valores relativos, por faixa do FPM
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do FINBRA (2011) e dos dados estimados pela avaliação.
Nota: as faixas do FPM de 1 a 18 são determinadas pelo número de habitantes dos municípios. Estão
arrolados na faixa 1 os municípios com até 10.188 habitantes. Na faixa 2, estão aqueles com população entre
10.189 e 13.584 habitantes. Na faixa 3, entre 13.585 e 16.980 habitantes; faixa 4, entre 16.981 e 23.772;
faixa 5, 23.773 a 30.564; faixa 6, 30.565 a 37.356; faixa 7, 37.357 a 44.148; faixa 8, 44.149 a 50.940; faixa 9,
50.941 a 61.128; faixa 10, 61.129 a 71.316; faixa 11, 71.317 a 81.504; faixa 12, 81.505 a 91.692; faixa 13,
91.693 a 101.880; faixa 13, 101.881 a 115.464; faixa 15, 115.465 a 129.048; faixa 16, 129.049 a 142.632;
faixa 17, 142.633 a 156.216; faixa 18, acima de 156.217 habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).
141
142
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
145
planejamento urbano não pode ser tido e vendido como uma panaceia, ou um remédio
para todos os males. Não existe uma solução pronta para a “crise nas cidades”.
Para resolver tais problemas, é necessário transpor do fazer para para o paradigma
do fazer com ; tanto do ponto de vista do foco às demandas e vicissitudes locais, quanto do
ponto de vista da participação social na tomada de decisões, rompendo com a gramática
política clientelista, escrita sob a égide de tradições estatistas, centralizadoras e
patrimonialistas, herdadas de nossos colonizadores ibéricos (NUNES, 2010; CARVALHO,
2011). É necessário romper com a dependência financeira, como mostram Rezende
(2011) e Guedes e Gasparini (2007), como também é necessário romper com a cultura do
conformismo - como alerta Lucas (2006).
O desenvolvimento de nosso país passa pela realização de potencialidades que
estão no âmbito local. Por fim, vale trazer novamente uma frase já citada na introdução
desse trabalho: o crescimento e o desenvolvimento econômico tanto almejados pelo
Estado brasileiro demandam soluções eficientes para seus problemas estruturais, e a
regularização fundiária - no bojo de uma política urbana responsável - pode ser tal
solução.
Obedecendo o intuito dos legisladores constituintes, as soluções para os problemas
de âmbito local são competência dos municípios, mas as gestões municipais carecem de
qualificação e inteligência aplicada ao planejamento - como vêm afirmando vários dos
pensadores da gestão local no Brasil, exemplificados por Maricato (2012), Carvalho,
Albuquerque, Mota e Piancastelli (2008), Veras e Veras (2012), Veloso, Monasterio, Vieira
e Miranda (2011) e vários outros. A regularização fundiária, nesse sentido, pode ser a
porta de entrada para posteriores melhorias - possíveis a partir do incremento de
arrecadação.
Outro ponto de destaque diz respeito à questão das relações intergovernamentais.
Como diz Abrucio (1998), não é possível alcançar um verdadeiro federalismo sem que
todos seus entes tenham real autonomia. Nesse sentido, a partir da ausência de
regulamentação do texto constitucional que versa acerca da cooperação
intergovernamental (CARNEIRO; BRASIL; MAZONI ANDRADE, 2016), é imperioso que os
municípios empreendam esforços coordenados para melhorar seu aparelhamento
institucional e para que suas receitas próprias sejam majoradas (GUEDES; GASPARINI,
2007; REZENDE; LEITE; SILVA, 2015).
146
Para tanto, algumas soluções de médio ou longo prazo são elencadas pela
literatura. Guedes e Gasparini (2007) afirmam a necessidade de repensar o sistema
tributário brasileiro, bem como a necessidade de reduzir transferências governamentais
e de criar ou fomentar mecanismos de incentivo à gestão eficiente. Lucas (2006) elenca
como medida imperiosamente necessária a reforma do federalismo - que, para ele seria
“a mãe de todas as reformas” (LUCAS, 2006, p. 20). A partir disso, Lucas (2006) defende o
aumento da capilaridade dos municípios vis-à-vis a uma alteração na organização
administrativa, mais enxuta e adaptada à realidade de cada localidade. Por fim, esse
mesmo autor defende a integração dos orçamentos municipal, estadual e federal, como
uma maneira de racionalizar os investimentos e evitar sobreposições (LUCAS, 2006).
Outras soluções mais simples também são encontradas na literatura. A aplicação
de inteligência geográfica, por exemplo, é um significativo avanço na gestão pública. Lucas
(2006) mostra o uso da geografia econômica como apoio ao marketing do setor público
na identificação de vocações para o desenvolvimento local. Desde a atualização de plantas
de valores e cadastros técnicos digitalizados, como mostram Torok e Silva (2008, apud
WANDERLEY, 2013), até zoneamentos e avaliações de riscos ambientais, o
geoprocessamento pode ser aplicado no auxílio da tomada de decisões nas gestões locais
(MOURA et al., 2013; CORDOVEZ, 2002).
Outra questão que merece destaque é a implementação de instrumentos
urbanísticos de planejamento urbano. Desde a adequação de parâmetros de uso e
ocupação do solo e a fiscalização de seu cumprimento, passa-se pela utilização do caráter
extrafiscal dos tributos - como o caso do IPTU progressivo, uma tentativa de coibir a
especulação imobiliária, e do “solo criado”, instrumentos que ainda não encontraram
muita aderência na gestão local.
Além do IPTU progressivo e dos instrumentos de controle e fiscalização do uso do
solo, Maricato (2012) defende outras soluções para os problemas urbanos, que merecem
destaque. Em primeiro lugar, a autora reconhece as dificuldades na implantação daquilo
que ela chama de um novo paradigma urbano. Em seguida, ela propõe quatro propostas:
(i) a criação de espaços de deliberação e expressão de conflitos, (ii) a substituição do
criticado Plano Diretor por um “Plano de Ação”- contendo diretrizes acerca do controle e
orientação dos investimentos, fiscalização do uso do solo, enfoque integrado e
detalhamento de planos executivos setoriais - , (iii) o fomento à infraestrutura de
informações sobre o município - o que seria possível a partir da unificação e atualização
147
dos cadastros fundiários e imobiliários, por exemplo - e (iv) formação de quadros para a
gestão urbana.
Por fim, há de se destacar que a proximidade às questões atinentes à regularização
fundiária e ao planejamento urbano, tema tão rico e abrangente, lança luz sobre uma
miríade de questionamentos que não puderam ser abarcados por esta produção. Faz-se
necessário grande esforço de pesquisa e estudo para o melhor entendimento dos traços
marcantes da política urbana brasileira. Faz-se mister conhecer bem sua formação e suas
características - sejam elas positivas, pensadas como vocações, ou negativas, pensadas
como problemas e entraves ao desenvolvimento.
Como disse Calvino (1972), a cidade é como um sonho: um sonho de ver a
concretização das melhorias tanto almejadas pelos habitantes de aglomerações urbanas
- saneamento melhor e com maior capilaridade; meio ambiente equilibrado; transporte
de massas rápido, seguro, confortável e acessível; segurança ao transitar por vias ou
calçadas; arborização e iluminação adequados; áreas de lazer acessíveis e seguras;
patrimônio histórico e cultural respeitados e conservados.
Tais sonhos somente poderão ser alcançados a partir de esforços para o
desenvolvimento de capacidades na tomada de decisão da gestão pública. Nesse sentido,
a construção - material e imaterial - de uma cidade que seja boa para os todos os seus
habitantes - ao ponto de poderem ser chamados, enfim, de cidadãos - passa pela busca
de soluções para um problema demasiadamente complexo para ser deixado de lado, ou
para ser tratado por ações setoriais pontuais e com pouca capilaridade. O
desenvolvimento urbano é possível, sim, e esse trabalho buscou lançar luz sobre uma de
muitas ações que podem ser empenhadas para seu alcance.
148
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