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Mito: “O golpe

idealizado
História
pelosde
EUA”
1964 foi
A verdade: americanos ajudaram os conspiradores, mas os autores e
atores do golpe foram brasileiros.
Por Maurício Horta
access_time4 out 2018, 21h18

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(Divulgação/Montagem sobre reprodução)


Em junho de 1962, o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon,
reuniu-se com o presidente John Kennedy para discutir a situação política
brasileira. A Casa Branca tinha acabado de instalar um sistema de gravação
clandestina no Salão Oval, e a primeira conversa interceptada colocava Jango
na berlinda. “Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em
fortalecer a espinha militar. Ele está entregando o país aos…”, disse Gordon,
ao que Kennedy completou: “aos comunistas”.
Essa era uma virada na relação dos EUA com o Brasil. Até a década de 1950,
as grandes preocupações dos EUA estavam longe da América Latina. A URSS
desenvolvia a largos passos seu programa balístico e espacial;
a CIA orquestrava um golpe no Irã (1953); o exército americano entrava na
Guerra da Coreia (1950-53); o Egito nacionalizava o Canal de Suez (1956), e
o Vietnã do Norte ameaçava expandir o comunismo no Sudeste Asiático.
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Mas o ano de 1961 trouxe as atenções dos EUA para cá. Em 1959, Fidel
Castro venceu a Revolução Cubana. O movimento causava preocupação por
causa de investimentos americanos na ilha, mas não chegava a ser uma grande
ameaça geopolítica. Fidel ainda não tinha se convertido ao comunismo. Era
apenas um líder nacionalista que derrubara o ditador Fulgêncio Batista (1952-
1959). Chegou mesmo a posar para foto com o então vice-presidente Richard
Nixon, numa viagem aos EUA, quatro meses depois da revolução.

Apesar de todo o poderio militar mobilizado pelos EUA, nenhum


brasileiro, civil ou militar, participou da deposição porque os EUA
a desejavam.
Elio Gaspari, jornalista
Isso mudou quando Fidel nacionalizou propriedades americanas em Cuba. Em
reação, os EUA recrutaram cubanos em Miami para invadir Cuba pela Baía
dos Porcos. A invasão fracassou, e levou Cuba a buscar proteção do único
rival militar dos EUA. Foi assim que Cuba se tornou um satélite soviético a
pouco mais de 100 km da Flórida.

A partir da guinada comunista de Cuba, qualquer movimentação de esquerda


na América Latina passou a soar o alarme em Washington. Isso incluía Jango,
que, segundo os temores dos EUA, perigava de instaurar “ditadura pessoal e
populista”. Os sinais pareciam claros. Já em 1959, Brizola encampara as
companhias americanas ITT e Bond and Share no Rio Grande do Sul. Agora,
Jango defendia o controle de remessas de lucros ao exterior e a nacionalização
de refinarias estrangeiras. No topo disso, tinha o apoio de movimentos sociais
camponês, operário e estudantil e de militares rebeldes de baixa patente.

Por tudo isso, é tentador afirmar que o golpe foi orquestrado pelo governo
americano. Mas quem geriu a conspiração contra Jango não foram os EUA.
Foram civis e militares brasileiros que desde os tempos de Getúlio combatiam
o que chamavam “populismo”. “Nem as direitas eram manipuladas pelo
imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro ou pelo dedo de
Moscou”, escreve o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, da UFF.
“Jargões de época, de considerável eficácia propagandística, não dão conta da
autonomia política de que dispunham as forças antagônicas.”

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O professor de história americana da USP Sean Purdy tem uma avaliação


semelhante. “Nenhum golpe apoiado pelos americanos teria acontecido sem
que o País tivesse forças internas para articulá-lo. Os EUA têm a sua culpa,
mas, também no caso do Brasil, havia parte da sociedade que apoiava a
derrubada do governo.”

Dizer que os atores do golpe foram nacionais, claro, não significa ignorar a
simpatia com que os americanos viam os conspiradores [leia abaixo]. Eles
bancaram projetos de desenvolvimento em Estados governados por opositores
de Jango, acenaram apoio a qualquer golpe que derrubasse esquerdistas,
financiaram o complexo Ipês-Ibad, mantiveram um intercâmbio militar e
prepararam uma megaoperação de apoio ao golpe – que acabou não sendo
posta em prática porque os generais brasileiros derrubaram Jango antes
mesmo do previsto.
Assim, a ajuda americana acabou não sendo decisiva para o golpe. Mas, se os
quartéis não tivessem conseguido derrubar Jango por conta própria, já tinham
um irmão com quem contar. Dificilmente o falcão do Norte apreciaria que a
crise do governo Goulart continuasse a se agravar. Afinal, como o presidente
americano Nixon diria mais tarde para o general Médici, numa visita oficial
aos EUA em 1971, “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.

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Os EUA não derrubaram Jango, mas foram generosos com os conspiradores


civis e militares
Aliança para o Progresso
Nesse programa de ajuda externa, Kennedy presenteava governos latino-
americanos anticomunistas com hospitais, escolas e conjuntos habitacionais.
Assim, esperava neutralizar o apelo revolucionário de Cuba na região. A
Aliança para o Progresso beneficiou governadores estaduais oposicionistas,
como Carlos Lacerda (Guanabara), Luís Magalhães Pinto (MG) e Ademar de
Barros (SP). Já o governo de Jango ficou de fora.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Apoio automático
Em março de 1964, o coordenador da Aliança para o Progresso, Thomas C.
Mann, reuniu-se com todas as autoridades do governo americano envolvidas
com América Latina. Do encontro saiu a Doutrina Mann: os EUA apoiariam
qualquer governo, desde que fosse anticomunista. O New York
Times questionou se a doutrina não seria carta branca para militares golpistas.
Mann respondeu: “cada caso é um caso”.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Operação Brother Sam


Os EUA nunca intervieram militarmente no Brasil, mas chegaram a preparar
uma operação de apoio, caso os golpistas tivessem dificuldades. Mobilizaram
no Caribe um porta-aviões, um porta-helicópteros, tropas de paraquedistas,
seis contratorpedeiros com cerca de 100 toneladas de armas e quatro
petroleiros. A estrutura chegaria à costa sudeste brasileira entre 8 e 13 de
abril. Só que os militares anteciparam o golpe em uma semana, e a operação
foi abortada.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Financiamento à oposição
Em 1962, o embaixador Lincoln Gordon e o presidente Kennedy concordaram
em não derrubar Jango – mas, por via das dúvidas, mantiveram a carta
golpista no baralho. O ano era de eleições legislativas, e os americanos
liberaram uma enxurrada de dólares para políticos brasileiros de oposição. A
verba teria ajudado mais de 200 candidatos ao Senado, Câmara Federal e
Assembleias Estaduais.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Intercâmbio militar
Militares brasileiros e americanos iniciaram um convívio próximo ainda em
1944, quando o Brasil enviou a Força Expedicionária à Itália. Centenas foram
estudar na Escola das Américas, centro de treinamento dos EUA no Panamá, e
no National War College. Em 1962, os EUA enviaram ao Rio como adido
militar Vernon Walters, veterano da 2ª Guerra, que chegou a dividir quarto
com o futuro presidente Castelo Branco.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Propaganda
Os EUA foram financiadores de primeira ordem do complexo oposicionista
Ipês-Ibad, que produzia propaganda anticomunista e contra Jango no rádio, na
TV, no cinema e na imprensa. Também distribuía livros para oficiais e
projetava filmes doutrinadores em quartéis, bases, escolas e navios. Só em
1963, foram realizadas 1.706 projeções.

(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)
Este post é parte do dossiê “21 mitos sobre a Ditadura Militar”, que pode ser
lido na íntegra aqui.

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