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16/11/2018 Obra-prima dos Racionais MC's, 'Sobrevivendo no Inferno' vira livro após ser exigido em vestibular - 16/11/2018 - Ilustrada

Ilustrada - Folha

Obra-prima dos Racionais MC's, 'Sobrevivendo no


Inferno' vira livro após ser exigido em vestibular
Disco tem letras editadas como poemas para alunos se prepararem para o
vestibular da Unicamp em 2019

16.nov.2018 às 20h27

Rafael Gregorio

SÃO PAULO Quem nos últimos 21 anos ignorou as rimas dos Racionais MC’s em
“Sobrevivendo no Inferno” (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/23/ilustrada/1.html) (1997)
terá nova chance: o clássico do rap nacional virou livro.

“É só natural: os Racionais são um dos maiores acontecimentos da cultura


brasileira recente”, diz Ricardo Teperman, 40, editor da Companhia das
Letras e um dos responsáveis pela publicação
(https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14619).

O grupo é o maior nome do rap no Brasil, formado em 1987 por Mano Brown
e Ice Blue, da zona sul de São Paulo, e Edi Rock e KL Jay, da zona norte.

No livro, ganham ar de poemas letras como a da canção “Capítulo 4,


Versículo 3”, dos versos:

“Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano/ Cê tem que ver, pedindo cigarro
pros tiozinho no ponto/ Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto/ O cara
cheira mal, as tia sente medo/ Muito louco de sei lá o quê... logo cedo/ Agora
não oferece mais perigo/ Viciado, doente, fudido, inofensivo.”

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Mais do que isso, as rimas do grupo têm seu status de objeto acadêmico
consolidado em um texto que precede a obra.

Em sua introdução, Acauam Silvério de Oliveira, 37, professor de literatura


brasileira na Universidade de Pernambuco que estudou o grupo em
doutorado na USP, sob orientação de José Miguel Wisnik, traça análises como
a que associa a estrutura do álbum a uma liturgia —parte do conceito do
grupo à época, refletido nas imagens de divulgação do trabalho.

“O ‘Sobrevivendo no Inferno’ é organizado e pensado como uma espécie de


culto. Tem a introdução, com cânticos de louvor, a leitura da Gênesis, a
apresentação do pastor e os relatos de testemunhos. Depois vêm o grande
relato, a atuação do diabo, e, no fim, um processo de reflexão.”

A edição teve colaboração de Eliane Dias, produtora da banda —ainda hoje a


67ª atração mais ouvida do Brasil no YouTube— e mulher de Brown.

A obra identifica qual dos Racionais canta cada parte, “como num roteiro de
cinema”, e descreve certas intervenções: tiros, sirenes, rádios.

“Outro norte foi não custar mais que R$ 34,90. Também fiz questão de
imprimir com corte dourado”, diz Teperman, sobre o brilho das páginas do
livro fechado, que lembra uma Bíblia.

A iniciativa da editora veio após a Unicamp incluir o disco na sua lista de


leituras obrigatórias (https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/05/racionais-mcs-vira-leitura-obrigatoria-
para-vestibular-da-unicamp.shtml) para 2019 —ou seja, ainda não vale para a prova deste

domingo (18).

Em seu prólogo, Oliveira cita colegas como Maria Rita Kehl  para provar essa
legitimação.

O ensaísta Francisco Bosco (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1936107-militancia-e-


linchamentos-inspiram-ensaio-a-vitima-tem-sempre-razao.shtml), por exemplo, liga o

reconhecimento dos Racionais à ascensão de debates identitários


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/04/guerras-culturais-ocupam-lugar-de-partidos-falidos.shtml).

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Já para o sociólogo Tiaraju D’Andrea, a obra cunhou um conceito de


orgulho. “Periferia passou a designar não apenas pobreza e violência, mas
também cultura e potência.”

“Esse disco é um objeto cultural incontornável. Explicou os dramas da


periferia, e muitos brasileiros negros aprenderam a se reconhecer ouvindo
Racionais”, reforça Oliveira.

Ele completa: “Além do realismo, há uma estrutura metafórica. O objetivo do


rap, afinal, é agregar ensinamentos e conselhos para manter os ouvintes
vivos”.

A Unicamp ladeou o disco a Luís de Camões e Ana Cristina César na categoria


poesia da lista de leituras —a tempo de as escolas ensinarem-no por dois
anos, explica José Alves de Freitas Neto, 47, coordenador do vestibular da
Unicamp.

A premissa, diz Neto, é que os alunos acessem perspectivas variadas e


rompam a fronteira dos cânones tradicionais. “Não queremos só bons
arquitetos, engenheiros, médicos, mas cidadãos com empatia.”

A resposta vem sendo positiva entre os alunos, ele afirma.

Professora de literatura e redação no Cursinho da Poli, para alunos de baixa


renda, Eva Albuquerque, 53, confirma a impressão e diz que o disco
“enriquece até o estudo de Camões”, pois “ajuda a compreender o ritmo dos
versos”.

A inclusão do disco na lista da universidade gerou críticas —embora mais


nas redes sociais que na academia.

Uma delas veio de Guilherme Voitch, 38, correspondente da revista Veja em


Curitiba. Ele publicou no jornal Gazeta do Povo o artigo “Racionais Nunca
Será Shakespeare”.

“A Unicamp está trazendo um disco”, escreve Voitch, “não por seus méritos
literários. A educação clássica já perdeu”.

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À Folha, ele esclarece que o título original de seu texto era “Racionais MC’s: o
Cânone Brasileiro”, e que acha o disco “muito bom e importante”.

“Meu ponto”, diz, “é que não deveria ser cobrado na prova. A gente deve
forçar os jovens a ir além das referências fáceis.”

Já na internet, o debate foi bem menos intelectualizado.

“Em primeiro lugar, o que acho de Racionais: uma bosta, lixo, poluição
sonora, não é música”, disse em um vídeo Arthur Moledo do Val, 32, do canal
de YouTube “Mamãe, Falei” —eleito deputado estadual em São Paulo, pelo
DEM.

“Agora a Unicamp, paga com nosso dinheiro, decidiu colocar os Racionais. O


cara que vai fazer medicina, engenharia, vai ter que estudar isso.”

Ele então descreve a faixa “Qual Mentira Vou Acreditar”, dos versos “Me
formei suspeito profissional/ Bacharel pós-graduado em tomar geral.”

“‘Tomar geral’, pra quem não entendeu, é assaltar”, diz.

Entre os seguidores, porém, a reação foi de repúdio. O vídeo tem mais


“descurtidas” que curtidas, e os comentários o acusam de preconceito
—“tomar geral” significa ser parado pela polícia. Arthur não respondeu aos
contatos da Folha.

Neto, da comissão da Unicamp, destaca que não houve questionamentos do


governo estadual, ao qual a universidade está vinculada sob a pasta de
Ciência e Tecnologia.

Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura e indicado por João Dória (PSDB) à


secretária estadual da Cultura em 2019, foi na mesma linha: “Não li o livro, só
conheço o álbum, mas as universidades têm autonomia acadêmica. Devem
ser respeitadas.”

Entre quem vivencia a realidade narrada pelos Racionais, a exaltação do


álbum como objeto de estudo é unânime.

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“Foi com ele que a juventude negra e periférica


(https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/07/1788435-sem-sede-ha-4-anos-sarau-do-binho-cresce-ocupando-escolas-

se formou. Muita gente se graduou em autoestima e não


e-centro-culturais.shtml)

entrou para a faculdade do crime”, diz Sérgio Vaz


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/07/1898672-veja-luz-da-voz-a-periferia-e-mescla-reggae-rap-e-ate-jazz-em-

segundo-disco.shtml), 54, fundador do Sarau da Cooperifa.

O cantor Rael (https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2018/08/1977828-a-gente-tem-que-mudar-o-mundo-esses-


moleques-nao-podem-crescer-nessa-atmosfera-diz-rapper-rael.shtml),
que iniciou a carreira no grupo
de rap Pentágono, sintetiza: “Meus professores de história foram os
Racionais MC’s”.

SOBREVIVENDO NO INFERNO

Autor Racionais MC's. Introdução: Acauam Silvério de Oliveira (Companhia das Letras, 144
págs., R$ 34,90)

ENDEREÇO DA PÁGINA

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mcs-sobrevivendo-no-inferno-vira-livro-apos-ser-exigido-em-vestibular.shtml

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