Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo. O presente estudo buscou fazer uma bre- Abstract. The present study aimed to make a brief
ve análise da sociedade contemporânea sob a pers- analysis of contemporary society from the perspec-
pectiva de teorias psicossociais para entender como tive of psychosocial theories to understand how
esta sociedade cria sentidos, valores e concebe sua this society creates meanings, values and designs
própria realidade. Dado que o trabalho assume its own reality. Since work has a central importance
importância central na vida do homem contem- in modern life, we analyzed the context of work and
porâneo, procedeu-se à análise do contexto e dos the aspects of the experience of it under the logic of
aspectos da vivência do trabalho sob a lógica do capitalism and the logic of solidarity economy, con-
capitalismo e da economia solidária, contrapondo trasting its elements, values, meanings and prac-
seus elementos, valores, significações e práticas. tices. Therefore, the study sought to demonstrate
Neste sentido, o estudo procurou demonstrar os the means by which the solidarity economy seeks
meios pelos quais a economia solidária busca alter- alternatives, albeit incipient, in some spheres of hu-
nativas, ainda que incipientes, em alguns âmbitos man life to face the hegemonic model of capitalism;
da vida humana para fazer frente ao modelo hege- despite the difficulties and contradictions that these
mônico do capitalismo; apesar das dificuldades e initiatives necessarily entail at their core, they seek
contradições que estas iniciativas necessariamente to be polyphonic, legitimate, plural, inclusive and
acarretam em seu âmago, buscam ser polifônicas, include in their development the quality of human
legítimas, plurais, inclusivas e comportam em seu life quality and the environment.
desenvolvimento a qualidade de vida do homem e
do meio em que está ambientado.
1
Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, 70910-900, Brasília, DF, Brasil.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 International (CC-BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi
vés do desenvolvimento de cadeias produtivas Mas seu horizonte vai mais além. São práticas
solidárias e pela construção de uma política da fundadas em relações de colaboração solidária,
economia solidária em um Estado democrático. inspiradas por valores culturais que colocam o
Com o foco no propósito desta discussão, ser humano como sujeito e finalidade da atividade
econômica, em vez da acumulação privada de ri-
serão abordados alguns importantes trechos
queza em geral e de capital em particular (Fórum
que dissertam a respeito do trabalho na eco- Brasileiro de Economia Solidária, 2003, p. 1).
nomia solidária e dos principais valores que
pautam sua atuação. Além dos valores antagônicos ao capita-
lismo, este trecho aponta para a assunção do
As demais formas (comunitárias, artesanais,
individuais, familiares, cooperativadas, etc.) homem como sujeito, e não mais como mer-
passaram a ser tratadas como “resquícios atra- cadoria, massa de manobra, e sua identida-
sados” que tenderiam a ser absorvidas e trans- de a ser construída a partir dos valores cul-
formadas cada vez mais em relações capitalistas. turais mais amplos e não somente daqueles
A atual crise do trabalho assalariado, desnuda de mercado, com finalidade econômica, e que
de vez a promessa do capitalismo de transformar acabam por acarretar sofrimento psíquico e
a tudo e a todos/as em mercadorias a serem ofer- inúmeras psicopatologias, amplamente co-
tadas e consumidas num mercado equalizado
nhecidas na sociedade capitalista. A econo-
pela “competitividade”. Milhões de trabalhado-
res/as são excluídos dos seus empregos, amplia-
mia solidária busca outra qualidade de vida
-se cada vez o trabalho precário, sem garantias e de consumo, e isto requer a solidariedade
de direitos. Assim, as formas de trabalho chama- entre os cidadãos do centro e os da periferia
das de “atrasadas” que deveriam ser reduzidas, do sistema mundial.
se ampliam ao absorver todo esse contingente de O padrão de consumo também é entendido
excluídos (Fórum Brasileiro de Economia Soli- de forma antagônica ao capitalismo. O produto
dária, 2003, p. 1). subsiste e é utilizado pelo tempo de vida útil
que possui, e o consumo se dá pela necessidade
O trecho acima recobra a crise do trabalho e não pelo fetiche ou para tamponar falsamente
assalariado e a tentativa perversa dos agen- outras faltas existenciais. Nesta concepção, ter
tes do capitalismo em transformar produtos e não é ser e tampouco a existência humana será
pessoas em coisas, criando lógicas de mercado considerada como ser para ter e acumular. A
tal como a competitividade em um modo de solidariedade prevalece sobre a individualida-
legitimar valores a exemplo do individualis- de frente às necessidades do homem.
mo e egoísmo. Para além disso, o trecho deno-
ta a tentativa fracassada do capitalismo em es- Para a Economia Solidária, a eficiência não pode
tigmatizar as formas cooperativas e associadas limitar-se aos benefícios materiais de um em-
de produção como algo atrasado que se deve preendimento, mas se define também como efi-
superar em prol da evolução da humanidade. ciência social, em função da qualidade de vida e
da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo,
Hoje, no Brasil, mais de 50% dos trabalhadores/ de todo o ecossistema (Fórum Brasileiro de Eco-
as estão sobrevivendo de trabalho à margem do nomia Solidária, 2003, p. 2).
setor capitalista hegemônico, o das relações assa-
lariadas e “protegidas”. Aquilo que era para ser Neste sentido, prevê-se como objetivo a
absorvido pelo capitalismo passa a ser tão grande felicidade e sanidade mental como eficiência
que representa um desafio cuja superação só pode social e não a mera produtividade material,
ser enfrentada por um movimento que conjugue
e este método de produção econômica deve-
todas essas formas e que desenvolva um projeto
alternativo de economia solidária (Fórum Brasi- rá subsistir em sinergia com o meio-ambiente
leiro de Economia Solidária, 2003, p. 1). sem depredá-lo como meio para o desenvol-
vimento.
Este ponto é de extrema importância e deve
ser foco de atenção de gestores públicos: meta- A Economia Solidária é um poderoso instrumen-
de dos trabalhadores (as) sobrevive à margem to de combate à exclusão social, pois apresenta
alternativa viável para a geração de trabalho e
do corrente modelo hegemônico de produção.
renda e para a satisfação direta das necessidades
Em outras palavras, este dado denuncia o ca- de todos, provando que é possível organizar a
ráter essencialmente excludente do capitalis- produção e a reprodução da sociedade de modo a
mo na sociedade, devendo-se conceber um eliminar as desigualdades materiais e difundir os
projeto alternativo para a subsistência digna valores da solidariedade humana (Fórum Brasi-
de metade da população brasileira. leiro de Economia Solidária, 2003, p. 2).
realidade sob a ótica do mundo ocidental são bem quer a realidade que considera subjacen-
veementemente silenciados. te. Considerando que todas as monoculturas
A sociologia das ausências, termo cunhado se materializam simultaneamente nas expe-
pelo mesmo autor, seria a forma transgressi- riências de consumo, a autora acredita ser esta
va de desvelar todos os silenciamentos e criar uma sexta categoria de monocultura que inter-
modos alternativos de viver e construir sen- vém pela consolidação de uma representação
tido. Remeto aqui à teoria da construção da social totalmente dependente das perspectivas
realidade social (Berger e Luckmann, 1972), de identidade e distinção social típicas da reali-
onde se afirma que o ser humano é sim ca- dade ocidental, justamente porque o consumo
paz de conceber e construir outra realidade a como sistema simbólico moderno-ocidental co-
partir do coletivo e das relações sociais que se loniza o desejo e prepara o território para que
estabelecem a partir das convergências de sen- as sementes neocoloniais encontrem solo fértil
tido. Ou seja, o conceito de sociologia das au- mediante dominação simbólica. Sobre como
sências seria perfeitamente possível ainda que a monocultura do consumo articula saberes e
sob uma sociedade e cultura majoritariamente mercado, Santos aponta:
opressoras e silenciadoras.
Dentre as formas de silenciamento e invisi- A (meta) monocultura do consumo evoca o dis-
bilidade, a sociologia das ausências evidencia curso científico como base legitimadora para a
cinco formas atuais de monocultura e produ- pesquisa e o desenvolvimento contínuo de novos
produtos, agora disponíveis segundo a lógica do
ção de ausências: monocultura do saber, do
mercado. A todo o momento, propagandas, em-
tempo linear, da naturalização das diferenças, balagens e matérias jornalísticas, sustentadas
da escala dominante e do produtivismo ca- pelo discurso científico, sugerem ao indivíduo
pitalista. A monocultura do saber define que que ele pode ter o corpo que quer, o rosto que
fora da ciência não há saber válido, desconsi- deseja, a idade que precisa. Ao mesmo tempo, a
derando todas as outras formas de saber que lógica temporal do capitalismo se espalha por to-
são construídas fora do discurso científico. das as dimensões da vida cotidiana, pontilhando
A do tempo linear naturaliza e dissemina a de competição e desempenho não só os momentos
ideia de que o tempo possui relação direta ao de trabalho, mas também os de lazer. O tempo
nervoso do capital atravessa rotinas, prometendo,
dinheiro e converte a simultaneidade em não
pela via do consumo e através dos bens, costurar
contemporaneidade (Santos, 2007 in Santos, relações e fazer circular sentidos. [...] De modo
2011). A monocultura da naturalização das di- geral, a dinâmica do mercado se encarrega de
ferenças transforma todo tipo de diferença em tudo atrelar ao sistema de especulação financeira,
um mote para hierarquizar que torna as dife- dilacerando os valores de uso e submetendo-os às
renças sempre desiguais, utilizando-as como oscilações de troca (Santos, 2011, p. 185).
fundamentos e recursos para criar e justificar
o escalonamento social. Já a monocultura da A autora segue seu pensamento denotan-
escala alia-se ao discurso científico e cria a ilu- do o quanto o mercado capitalista reduz em
são de que apenas as soluções universais são importância, quando não inviabiliza, as expe-
relevantes e válidas para a construção da reali- riências locais de troca, valendo-se de todas
dade, e silencia experiências locais como casos as formas de produção de invisibilidade para
isolados e irrelevantes para uma (re) produção deslegitimar realidades outras que não partici-
universal. A quinta forma de produção de au- pem da ordem hegemônica ocidental, utilizan-
sência, a monocultura do produtivismo capi- do os recursos naturais de modo não susten-
talista, consiste em um parâmetro norteador tável e perverso para maximizar a produção
da produção que fundamenta a intensificação de bens na quantidade e intensidade para as
da mais-valia. quais pressupõe o consumo.
Neste sentido, Santos (2011), ao analisar o Para Lévi-Strauss (1976, in Santos, 2011),
consumismo na sociedade contemporânea e a sociedade se funda no mundo das trocas,
ao debruçar-se sobre a teoria da monocultura ainda que as trocas na contemporaneidade te-
de Boaventura de Sousa Santos, cunha o ter- nham sofrido uma intensa mercantilização, o
mo monocultura do consumo como forma de que faz com que sua compreensão seja reduzi-
aglutinação das cinco formas de produção de da a seu caráter econômico. A partir da análise
ausência e de ilustrar a construção cotidiana de em sociedades não ocidentais, Santos verifica
invisibilidades, constituindo-se como espaço que não é a acumulação que fundamenta a
social que, por excelência, constróí parâme- reprodutibilidade, mas a reciprocidade e a re-
tros de racionalidade ocidental e molda como distribuição que aparecem como fenômenos
mesmos falam sobre isso (Esteves e Veronese, tividade que anima cada pessoa na sua singula-
2011). Em outro estudo, as mesmas autoras es- ridade. Desse modo, o sócio-trabalhador pode
tudaram cooperativas entrevistando os coope- criar, junto com sua própria identidade, novas
rados a fim de avaliar quais as características maneiras coletivas de viver, pautadas pelos va-
psicossociais de quem vive a condição social de lores da cooperação e da solidariedade.
um sócio-trabalhador e, ao mesmo tempo, refu-
ta outras como oposta a esta condição. Conclusão
O resultado foi: “um cooperador, na visão
dos membros das cooperativas UNIWIDIA E A realidade e os significados produzidos
METALCOOP, deve apresentar engajamento e a partir dela, e que compartilhamos não são
compromisso com o sucesso e o bem-estar do algo estanque e limitado. O homem é consti-
grupo e cooperadores, dentro e fora da coo- tuído por meio das interações simbólicas em
perativa; responsabilidade e pró-atividade com o que participa tanto como agente quanto como
trabalho próprio e alheio no cotidiano de tra- paciente da construção simbólica da cultura,
balho; envolvimento e prontidão no atendimento estruturas sociais, e interações que estabelece
às demais necessidades da cooperativa (para formando uma circularidade constante entre a
além do trabalho); transigência e comedimento formação de sua identidade e da realidade em
ao considerar opiniões, posições e interesses que habita. Neste sentido, tem-se como produ-
diferentes dos próprios; consideração e solidarie- to desta circularidade a sociedade contempo-
dade com a comunidade e o local onde reside a rânea com todo o espectro de signos e sentidos
maioria dos membros e/ou onde está situada que ela acarreta nesta conformação interativa.
a cooperativa. Simetricamente, são caracterís- Dentro da sociedade contemporânea, o tra-
ticas refutadas pelos membros dessas coopera- balho deveria assumir uma inegável importân-
tivas: pensar em si sem implicar-se com o sucesso cia como fonte de satisfação de necessidades
ou bem-estar do grupo; ser reativo ao trabalho, es- básicas, identificação, autoestima, desenvol-
perando que o mandem trabalhar; indispor-se vimento das potencialidades humanas, e de
e distanciar-se das demais necessidades da coope- alcançar sentimento de participação nos objeti-
rativa; ser presunçoso e intransigente ao ouvir a vos da sociedade. Porém, o que se observa na
opinião alheia; desapreço e descaso com a comuni- atualidade é completamente antagônico a esta
dade” (Esteves e Veronese, 2011). ideia: o trabalho é vivenciado como fonte pere-
Não raro, ao analisar as características su- ne de desigualdades, hierarquização, exclusão,
pracitadas, percebe-se um antagonismo entre opressão e sofrimento para o sujeito contempo-
cada uma que não reflete apenas o que é e o râneo, consequências todas que refletem o mo-
que não é, mas quais características presentifi- delo hegemônico de produção capitalista.
cam a identidade do sócio-trabalhador e quais Tal como foi abordado, as consequências
as características do trabalhador no sistema ca- deste modelo não se limitam ao trabalho: o
pitalista. Aqui, o processo de construção iden- consumo assume papel central na sociedade,
titária pode ter ocorrido na fronteira, no limite definido por valores que seguem a lógica e in-
entre quais são as características subjetivas do teresse do capital, o que implica consumir para
trabalho no capitalismo e quais se quer con- subsistir e não o contrário, onde as pessoas têm
quistar com o trabalho na economia solidária. o valor daquilo que consomem e não daquilo
A construção dessa identidade prototípica que são. A mercadoria passa a ser fetichizada
é realizada no cotidiano da cooperativa auto- e tanto brilha que pouco importa aos consumi-
gestionária durante o trabalho, nas refeições, dores o que aconteceu com o meio ambiente e
na hora do cafezinho e por meio de conversas os indivíduos, tão legítimos quanto ele, para
espontâneas e se configura numa construção que determinado produto estivesse pairando
coletiva e psicossocialmente compartilhada como uma solução “divina” nas prateleiras
(Esteves e Veronese, 2011), mas que permita a das lojas. Os produtos são criados para terem
singularização de cada sujeito, o que fortalece curta validade, prevendo a manutenção cíclica
e empodera as comunidades ao terem auto- e nervosa do consumo e, como não, para tam-
nomia para delinear as características que, de bém sustentar a reprodução do capitalismo e
fato, convirjam para o que desejam concretizar de pessoas alienadas da busca ativa e crítica
em seu trabalho e em sua vida pessoal. por seus próprios valores, experiências, sabe-
Na concepção de Santos (2002 in Esteves res, pluralidades, desejos e identidades.
e Veronese, 2011), para recriar a promessa de Como resposta ao grito calado dos vários
emancipação social, é necessário recriar a subje- silenciamentos e ausências que as formas de
monocultura criam e reiteram continuamente vo do processo social, o que permite aos traba-
na sociedade ocidental, tem-se a manifestação lhadores associados a sentirem-se parte, outra
opositiva e de não aceitação do modelo vigen- vez, da sociedade, recuperando a autoestima
te capitalista que, muito longe de ser inclusivo de seus participantes, empurrando-os a novos
e participativo para todos, gera padrões legiti- desafios e conquistas pessoais – voltar a es-
mados pela sua própria lógica de segregação, tudar, participar politicamente, libertar-se de
hierarquização, dominação e tipos de identi- relações opressivas, etc. (Cruz e Santos, 2011).
dade preconcebidos para todos os âmbitos da Na concepção de Esteves e Veronese (2011),
vida que podem ser consumidos cotidiana- é de extrema importância que a organização
mente nas prateleiras da forma mais esquizo- autogestionária do trabalho permita a singula-
frênica e insana que se possa introjetar na bus- rização do sujeito que trabalha, pois esta signi-
ca incessante pela aceitação do outro social. fica o processo no qual o sujeito se converte em
Estas respostas surgem com a construção agente e criador de ruptura. Contudo, apon-
de alternativas possíveis de existência que não tam que ainda é necessário esclarecer como se
se coadunam com a hegemonia da monocultu- manifestam as mudanças na dimensão iden-
ra e, muito pelo contrário, denunciam e revol- titária a partir de uma inserção no campo da
vem tantos silenciamentos e ausências criadas economia solidária, e que a avaliação da efi-
ao longo de décadas, e que apontam para uma ciência dos Empreendimentos Econômicos
lógica da inclusão; do trabalho solidário, au- Solidários (EES) deve estar ligada não apenas
togestionário, democrático, não precarizado, à remuneração dos sócios, mas à avaliação de
justo e equânime; da assunção das necessi- ganhos subjetivos, como rupturas nas relações
dades humanas de forma legítima e integral, tradicionais de gênero, empoderamento, am-
impregnado dos princípios éticos, solidários pliação dos horizontes intelectuais, etc. Afinal,
e sustentáveis. como prever uma alternativa ao capitalismo,
Para Cruz e Santos (2011), cada vez mais baseando-se a avaliação da economia solidária
um número maior de seres humanos buscam nos mesmos pressupostos apenas de ganhos
alternativas concretas, e o período histórico financeiros?
em que surgem essas alternativas é marcado Ainda, para Santos (2011), a economia so-
por turbulências, incertezas e novas disputas lidária sinaliza a emergência de outros objeti-
hegemônicas. A economia solidária se apre- vos no circuito das trocas, do fortalecimento
senta como portadora de um sentido antitético das identidades coletivas e daestruturação da
à dupla contradição do capitalismo contem- experiência simbólica a partir do laço social
porâneo. Ela se confronta com relações sociais que talvez seja a chave para a constituição de
de produção capitalistas, propondo formas mercados criativos e o fio condutor para outra
igualitárias de apropriação econômica ou, na racionalidade. Afirma que ela talvez seja uma
pior das hipóteses, tolerando a existência de das formas ocidentais mais complexas de tro-
desigualdades, mas que são controladas e atri- ca-capitalista, constituindo os alicerces de uma
buídas em sua magnitude pelo controle social, teoria emancipatória do consumo que preconi-
pelo coletivo de empreendedores. za mudanças relevantes nas formas de socia-
Da mesma forma, ela representa espaço lização. Dado que, se a moeda social não for
possível onde a solidariedade é expressa na gasta, perde seu valor, esta corre na contramão
forma de valores compartilhados por todos e da acumulação e institui diversos efeitos nos
onde o trabalho aparece como substrato ma- valores individuais e na dinâmica social que
terial da consciência coletiva, o que permite à evoca certa polifonia de saberes, identidades
comunidade ou sociedade reproduzir-se eco- e ritmos.
nomicamente, reforçando os valores comuns
que foram construídos de forma coletiva por As alternativas de consumo a partir dos merca-
todos, legitimados e reiterados todos os dias. dos solidários não devem ser vistas apenas como
Na economia solidária, o exercício de integra- uma alternativa econômica: o teor emancipatório
ção ao grupo econômico, pela via do trabalho, destas experiências vincula-se à percepção mais
ampla daquilo que se obtém no circuito das tro-
recupera a inserção econômica e social dos
cas. Se um dos pontos mais importantes do con-
indivíduos, o que permite também a recom- sumo capitalista é a construção identitária, no
posição da própria sociedade, à medida que caso do consumo solidário, a questão não perde
garante inclusão do indivíduo no grupo social valor. É fundamental que, com o redimensiona-
da empresa coletiva e no próprio mercado: o mento político da troca, a identidade individual
indivíduo recupera a crença no caráter coleti- e coletiva se forje a partir de outros ganhos, que
não a distinção: a coesão social, o enriquecimento de sociabilidade e que, talvez, resida aí uma
pelo encontro com a diferença, o protagonismo de suas maiores contribuições, ao oxigenar o
econômico e social, o fortalecimento da ação e da mundo capitalista com outras racionalidades.
palavra (Santos, 2011, p. 198). O fato que se aclara com os exemplos e a re-
visão literária é de que outra realidade não só
Contudo, é também evidente que nem to- é possível, como já está sendo construída ape-
dos os trabalhadores envolvidos em iniciativas sar de todas as suas contradições e seu caráter
no âmbito da economia solidária se percebem de escala reduzida. A pretensão da economia
como sócios-trabalhadores. Na pesquisa sobre solidária não é a revolução econômica e polí-
o processo de construção identitária de Este- tica, mas apontar problemas provindos da ló-
ves e Veronese (2011), foi demonstrado que gica capitalista, conceber alternativas viáveis,
muitos se percebem não como sócios-trabalha- ainda que dentro do capitalismo, e colocá-las
dores, mas como empregados, já que em sua em prática mesmo com todas as dificuldades
vivência da condição societária de sócios-tra- e percalços do caminho. O caráter de proces-
balhadores não percebem suficientes carac- so é inerente a todo tipo de mudança e, como
terísticas do protótipo para se identificarem tal, demanda tempo e construção coletiva para
com ele e, por outro lado, identificam nessa seu crescimento e consolidação, de iniciativas
vivência características daquilo que é próprio a iniciativas.
da condição de empregado. As pessoas que No ensejo de se pensar a consolidação
não assumem a identidade prototípica sofrem da economia solidária, é inevitável a assun-
com a não conformidade entre sua condição ção por parte do Estado sobre a necessidade
societária e sua identidade psicossocial: umas de construção de políticas públicas para seu
se calam e seguem trabalhando, outras aban- apoio, ampliação e fortificação. Contudo, uma
donam a cooperativa. As informações apon- política desta ordem só será efetiva a partir do
tadas demonstram a condição de se viver em amplo conhecimento apriorístico da sociedade
um modelo hegemônico extremamente impo- contemporânea em todas as suas vertentes,
sitivo. Apesar de muitas vezes tentar construir principalmente para os efeitos de uma daque-
alternativas, os indivíduos acabam por carre- las que mais move o mundo: a subjetiva, em
gar muitos estigmas e valores que consequen- suas nuances identitárias, simbólicas, de re-
temente minam o alcance dos objetivos reais e presentação comportamental pelo consumo,
concretos da economia solidária. de saúde mental e todas as significações da
Neste sentido, incorre-se na mesma pergun- realidade que esta vertente possa construir.
ta abordada no estudo de Esteves e Veronese Também se faz necessário o mesmo tipo de
(2011, p. 79): Em que medida os trabalhadores conhecimento prévio das dificuldades e dis-
associados serão capazes de se transformarem torções no momento da prática da economia
de “classe-em-si em classe-para-si” e articula- solidária, para que seja possível criar ações
rem de forma coerente um projeto macrosso- voltadas a um contexto real e previamente co-
cial (econômico e político) à experimentação nhecido para se alcançar a tão almejada cons-
microeconômica? As autoras concluem que trução de uma sociedade plural, igualitária,
a resposta a esta indagação somente o tempo inclusiva, justa e solidária.
histórico poderá dar, mas que sua conforma-
ção aponta para o futuro e a emancipação. Referências
A este ponto, agrego a tese de Santos (2011,
p. 199) em que seu entendimento pode se ge- BAUMAN, Z. 2001. Modernidade líquida. Rio de
neralizar não apenas ao consumo, mas a todas Janeiro, Jorge Zahar, 280 p.
BERGER, P; LUCKMANN, T. 1972. A construção so-
as iniciativas de economia solidária por par-
cial da realidade. Petrópolis, Editora Vozes, 247 p.
ticiparem das mesmas condições e contradi- CRUZ, A.; SANTOS, A.M. 2011. A economia soli-
ções: as experiências solidárias de consumo, dária e as novas utopias: permanências e rup-
bem como outras de caráter popular, não de- turas no movimento histórico do associativismo
vem ser prematuramente desconsideradas ou econômico. In: P. HESPANHA; A.M. SANTOS
descartadas quando configuram experiências (orgs.), Economia solidária: questões teóricas e meto-
pontuais. O que pode parecer fracasso, dada dológicas. Coimbra, Edições Almedina, p. 57-82.
DEBORD, G. 1997. A sociedade do espetáculo. Rio de
a descontinuidade, deve ser entendido como Janeiro, Contraponto, 164 p.
um processo. Deve-se levar em conta que este ESTEVES, E.G.; VERONESE, M.V. 2011. Identidade
processo implica, antes mesmo do resultado e economia solidária: sobre o processo de cons-
econômico, a aprendizagem de novas formas trução identitária no trabalho autogestionário.
In: P. HESPANHA; A.M. SANTOS (orgs.), Eco- SANTOS, L.L. 2011. Os clubes de troca na economia
nomia solidária: questões teóricas e metodológicas. solidária: por um modelo crítico e emancipató-
Coimbra, Edições Almedina, p. 151-167. rio de consumo. In: P. HESPANHA; A.M. SAN-
FÓRUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁ- TOS (orgs.), Economia solidária: questões teóricas
RIA. 2003. Carta de Princípios da Economia So- e metodológicas. Coimbra, Edições Almedina,
lidária. Disponível em: http://www.fbes.org.br/ p. 169-204.
index.php?option=com_content&task=view&id SEVERIANO, M.F.V.; ESTRAMIANA, J.L.A. 2005.
=63&Itemid=60. Acesso em: 09/10/2015. Consumo narcisismo e identidades contempo-
HARVEY, D. 2006. Condição pós-moderna: uma pes- râneas: uma análise psicossocial. Rio de Janeiro,
quisa sobre as origens da mudança cultural. São EdUERJ, 98 p.
Paulo, Edições Loyola, 349 p. SOAR FILHO, E.J. 2002. Espaço, identidade & saúde
LUXEMBURG, R. 2005. Reforma ou revolução? São mental na sociedade contemporânea. São Paulo, Ca-
Paulo, Expressão Popular, 136 p. dernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências
MARX, K.; ENGELS, F. 1989. Trabalho alienado e Humanas, p. 1-15. Disponível em: https://perio-
superação positiva da autoalienação humana. dicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/
In: F. FERNANDES (org.), Grandes cientistas so- article/view/1006. Acesso em: 09/10/2015.
ciais. São Paulo, Ática, p. 146-181. TAVARES, F. 2004. O consumo na Pós-Modernida-
NASCIUTTI, J. 1996. Reflexões sobre o espaço da de: uma perspectiva psicossociológica. Comum,
psicossociologia. Documenta Eicos, p. 51-58. 22(209):122-143.
NAVARRO, V.L.; PADILHA, V. 2007. Dilemas do
trabalho no capitalismo contemporâneo. Revista
Psicologia & Sociedade, 19(119):14-20. Submetido: 17/08/2015
http://dx.doi.org/10.1590/s0102-71822007000400004 Aceito: 23/10/2015