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Otra Economía, 10(18):36-50, enero-junio 2016

2016 Unisinos - doi: 10.4013/otra.2016.1018.04

Perspectivas sociopsicológicas do trabalho


na contemporaneidade sob a lógica do
capitalismo e da economia solidária

Sociopsychological perspectives of contemporary labor under


the logic of capitalism and of the solidarity economy

Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi1


arij.chabrawi@gmail.com

Resumo. O presente estudo buscou fazer uma bre- Abstract. The present study aimed to make a brief
ve análise da sociedade contemporânea sob a pers- analysis of contemporary society from the perspec-
pectiva de teorias psicossociais para entender como tive of psychosocial theories to understand how
esta sociedade cria sentidos, valores e concebe sua this society creates meanings, values and designs
própria realidade. Dado que o trabalho assume its own reality. Since work has a central importance
importância central na vida do homem contem- in modern life, we analyzed the context of work and
porâneo, procedeu-se à análise do contexto e dos the aspects of the experience of it under the logic of
aspectos da vivência do trabalho sob a lógica do capitalism and the logic of solidarity economy, con-
capitalismo e da economia solidária, contrapondo trasting its elements, values, meanings and prac-
seus elementos, valores, significações e práticas. tices. Therefore, the study sought to demonstrate
Neste sentido, o estudo procurou demonstrar os the means by which the solidarity economy seeks
meios pelos quais a economia solidária busca alter- alternatives, albeit incipient, in some spheres of hu-
nativas, ainda que incipientes, em alguns âmbitos man life to face the hegemonic model of capitalism;
da vida humana para fazer frente ao modelo hege- despite the difficulties and contradictions that these
mônico do capitalismo; apesar das dificuldades e initiatives necessarily entail at their core, they seek
contradições que estas iniciativas necessariamente to be polyphonic, legitimate, plural, inclusive and
acarretam em seu âmago, buscam ser polifônicas, include in their development the quality of human
legítimas, plurais, inclusivas e comportam em seu life quality and the environment.
desenvolvimento a qualidade de vida do homem e
do meio em que está ambientado.

Palavras-chave: contemporaneidade, subjetivida- Keywords: contemporaneity, subjectivity, work,


de, trabalho, economia solidária. solidarity economy.

Psicossociologia e teorias socioculturais texto socioeconômico na qual se insere. Para


tanto, serão brevemente abordados alguns
O presente estudo busca analisar a relação conceitos teóricos para conceituar a compreen-
de sociedade e trabalho a partir da perspectiva são e convergência de elementos que serão
psicossocial e de teorias socioculturais para se agrupados em torno deste estudo.
entender a realidade e sua construção, sob a A contemporaneidade está marcada por
ótica da sociologia do conhecimento, e o con- características como a efemeridade nos desejos

1
Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, 70910-900, Brasília, DF, Brasil.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 International (CC-BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi

e prazeres, a superficialidade nos comporta- res. O último passo é legitimar a configuração


mentos, o consumismo, a sobrevalorização de da realidade criada, torná-la coesa e justifi-
aspectos estéticos e imagéticos, a busca de uma cada para que assim seja institucionalizada e
pseudoindividualidade marcada pela padro- sobreviva longo tempo.
nização imposta ao coletivo, que influem tanto Dessa forma, o homem é tanto agente da
na eterna dialética da construção da realida- cultura que produz munido de sua lingua-
de social quanto na formação de identidade e gem, relações e recursos sociais dos quais
subjetividade dos atores desta sociedade. Con- dispõe, sendo construída coletivamente,
tudo, para se compreender as subjetividades quanto paciente desta cultura que age sobre
contemporâneas e identidades, é necessário ele, muitas vezes ditando regras, normatiza-
o entendimento de como a realidade e a vida ções e padrões em ser, pensar, vestir e agir
social são criadas dentro de uma perspectiva no mundo. Dentro desta perspectiva socio-
psicossociológica, bem como o entendimento cultural, está a abordagem do interacionis-
sociocultural amplo das mudanças ocorridas mo simbólico que, muito longe de afirmar
nas sociedades que as precederam e dotaram que o homem apenas sofre influências de
de sentido histórico. seu meio, sustenta ser ele a base da produ-
Vemos em Nasciutti que ção de sentidos e da própria realidade em
que vive. É por meio de suas relações com o
Esse coletivo é ainda atravessado por um imagi- outro que o homem funda a perspectiva sim-
nário que ele próprio se constrói continuamente, bólica conferida às suas próprias ações, sen-
através do qual a sociedade designa sua identi- do regulado, dialeticamente, pelos demais
dade e se representa. O social não atua simples- elos simbólicos, construídos coletivamente.
mente sobre o comportamento individual, mas As estruturas simbólicas construídas nas in-
faz parte dele, se inscreve no corpo, no psiquismo terações passam a controlar a si mesmas e a
mais profundo, na representação que o indivíduo
outras interações das quais o indivíduo par-
faz de si mesmo e dos outros, nas relações que ele
mantém com o mundo que lhe é exterior. [...] este
ticipa, formando uma circularidade.
social é regulado, simbolizado e idealizado por
processos psicossociais que ultrapassam a proble- Trabalho e subjetividade
mática psíquica do sujeito, embora dela oriundos na contemporaneidade
(Nasciutti, 1996, p. 52).
No bojo do cenário da sociedade contem-
Segundo Berger e Luckmann (1972) em porânea, o trabalho assume inegável impor-
sua teoria sobre a “Construção social da tância como fonte de discussão e estudo para o
realidade”, o homem é constituído por uma entendimento de como esta realidade se cons-
base biológica limitante porque sozinha não truiu, se mantém continuadamente e é fonte
encerra comportamentos mais adequados perene de gozo e sofrimento para o sujeito
e tampouco o adapta a seu ambiente. É ne- contemporâneo.
cessário que ele reconstrua e signifique tudo Para se tratar do trabalho na contempora-
que se encontra ao seu redor. Ademais, o in- neidade, devem-se rever seus significados e o
divíduo possui uma incrível necessidade de caráter plural e de múltiplas significações que
exteriorizar-se, de amoldar suas caracterís- assume. Para além de a atividade laboral ser
ticas biológicas à configuração do ambiente fonte de experiência psicossocial, é também um
para uma maior adequação deste a si mes- fator central na vida das pessoas, ocupando im-
mo. Dessa forma, introjeta os dados que seu portante espaço e tempo em que se desenvolve
meio lhe oferece, elabora-os a partir de sua a vida humana contemporânea. O trabalho sur-
visão de mundo e exterioriza esses produtos ge não apenas como meio para a satisfação das
ao objetivá-los em hábitos, crenças, verdades necessidades básicas, mas como fonte de identi-
e padrões comportamentais bem-sucedidos, ficação, de autoestima, de desenvolvimento das
por exemplo. Objetiva-os como também obje- potencialidades humanas, de alcançar senti-
tiva seus instrumentos, parâmetros e valores. mento de participação nos objetivos da socieda-
A próxima etapa, de acordo com a teoria, é a de (Navarro e Padilha, 2007) e, principalmente,
internalização dessa nova realidade para que de construção identitária e sentimento de per-
possa finalmente pertencer à subjetividade, tença a um grupo, conferindo, assim, caráter de
estar presente no psiquismo e posteriormente legitimidade ao indivíduo.
na linguagem. Finalmente legitima-os para se Entende-se aqui o conceito de trabalho a
tornarem construtos sérios, padrões exempla- partir do princípio marxiano como algo in-

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trinsecamente ligado ao ser humano, como a Perspectivas do trabalho no


atividade dirigida com o fim de criar valores capitalismo contemporâneo
de uso, de apropriar os elementos naturais às
necessidades humanas; ele é condição neces- Tal como proposto por Navarro e Padilha
sária do intercâmbio material entre o homem (2007), o capitalismo traz consigo uma série de
e a natureza, condição natural e eterna da vida contradições, muitas delas relacionadas ao mun-
humana, e por meio ele o homem se torna um do do trabalho. Ao mesmo tempo em que o tra-
ser social (Marx e Engels, 1989). Contudo, sa- balho é fonte de humanização e é fundador do
be-se que este é o conceito do trabalho abstra- ser social, sob a lógica do capital eventualmente
to, sendo difícil afirmar se alguma civilização ele pode se tornar degradado, alienado, estra-
já viveu a plenitude do trabalho apenas como nho. O trabalho perde a dimensão original e in-
fonte de realização de necessidades, pessoais dispensável ao homem de produzir coisas úteis
e profissionais, em simbiose com a natureza e (que visariam satisfazer as necessidades huma-
os homens, sem a vertente perversa e concre- nas) para atender às necessidades do capital.
ta do trabalho que causa mais sofrimento que Ao mesmo tempo e desde o seu surgimento,
saciedade. Como apontam Navarro e Padilha, o capitalismo criou o aprofundamento abissal
de contradições sociais e econômicas inerentes
[...] as pessoas, apesar das transformações que ao seu modelo de produção, tal como afirmou
testemunhamos hoje, continuam ancorando sua
Marx, criando pequenas ilhas de riqueza em
existência na atividade laboral, mesmo aquelas
que se encontram em situação de desemprego. A
meio a oceanos de uma pobreza que vive mar-
centralidade do trabalho dá-se não só na esfera ginalizada e refém de sobras. O trabalhador de-
econômica (o trabalho é a fonte de renda da maio- cai à condição de mercadoria e se torna tão mais
ria da população mundial) como também na es- pobre e pequeno quanto mais riqueza produz,
fera psíquica – o que, certamente, representa um quanto mais sua produção aumenta em poder
paradoxo, uma vez que a atividade laboral ainda e extensão. O capitalismo traz a exacerbada va-
parece ser uma importante fonte de saúde psíqui- lorização do mundo das coisas, no mesmo fluxo
ca (tanto que sua ausência, pelo desemprego ou da desvalorização dos homens (Marx e Engels,
pela aposentadoria, é causa de abalos psíquicos) 1989), e a consequência disto consiste em o tra-
ao mesmo tempo em que se registram cada vez
balhador não produzir apenas a mercadoria,
mais pesquisas que evidenciam o trabalho como
causa de doenças físicas, mentais e de mortes. É
mas em acabar por conceber sua identidade
preciso perguntar: que tipo de trabalho adoece como uma mercadoria, configurando todo o
corpo e mente e até mata? Certamente, não é o cenário de sucateamento da existência humana.
trabalho criativo, produtivo, prazeroso, que de- Neste sentido, o ethos humano e o processo
veria ser central na vida das pessoas (Navarro e de construção de sua realidade composta por
Padilha, 2007, p. 14). sua identidade, subjetividade, as relações hu-
manas que estabelece, os conceitos e os modos
Com isso, observa-se que a construção da deletérios e perversos de viver criados pela
realidade social na perspectiva de Berger e sociedade contemporânea jamais poderiam
Luckmann (1972), tanto do trabalho quanto do ser compreendidos fora do contexto do capi-
desemprego, consiste em vivê-los na constan- talismo. Compreende-se aqui o capitalismo
te dicotomia entre parcelas de prazer e sofri- não apenas como um modelo de produção
mento, tornando esta concepção normalizada econômico, mas como forma de organização
e banal. No âmbito do trabalho, Tavares (2004) e construção da sociedade que dita normas e
afirma que as organizações empresariais são padrões de trabalho, de sobrevivência e, por
produtoras de subjetividades, manipulando o conseguinte, da existência humana embasada
consumo (e os consumidores) através das mar- em seus próprios valores e ética, onde o sujei-
cas, como uma forma de alegoria (emblema) to é impelido a ser alienado de si e a acreditar
pós-moderna, que atuam no imaginário como que não é dono do poder de decisão sobre seus
sedutores dispositivos de controle. padrões de existência e de consumo.

As grandes potências industriais e financeiras Consumismo e narcisismo no


produzem, desse modo, não apenas mercado-
rias, mas também subjetividades. Produzem
capitalismo contemporâneo
subjetividades agenciais dentro do contexto
biopolítico: produzem necessidades, relações No que tange ao entendimento das mudan-
sociais, corpos e mentes (Hardt e Negri in Ta- ças ocorridas na sociedade, Severiano e Estra-
vares, 2004, p. 127). miana (2005) advogam que, com a globaliza-

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ção do capitalismo contemporâneo, o processo bre o mundo e re(constroem) cotidianamente


de homogeneização da cultura acaba por ser suas identidades e realidades sociais.
obtido mediante o uso de padrões simbólicos Neste sentido, os autores mostram o quan-
a serviço da dinâmica do mercado. Mas, para to o consumismo pode participar ativamente
que tal intento tenha sucesso, é necessário que da vida dos indivíduos contemporâneos in-
os indivíduos estejam susceptíveis a este tipo fluenciando suas subjetividades, identidades,
de apelo, e o retorno a uma personalidade nar- seu autoconceito e orientando seus desejos e
císica atende a esta necessidade. pulsões. No entanto, esse mesmo consumismo
não sacia e nem preenche a vida de sentido.
A personalidade narcísica caracteriza-se por uma Para Harvey (2006), ele estaria carregado de
grande exigência de diversidade e pluralidade. volatilidade e efemeridade, tonando difícil a
Clama constantemente por auto-realização. Ego-
manutenção consistente de qualquer sentido.
centrado, particularista e hedonista, o narcisista
busca viver intensamente o momento, desprezan- Nas palavras de Debord,
do o passado e negligenciando o futuro (Severia-
no e Estramiana, 2005, p. 42). O consumidor real torna-se um consumidor de
ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamen-
Autores como Lasch alertam para o fato de te real, e o espetáculo a sua manifestação geral
[...]. Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta
que o retorno a uma personalidade narcísica
no consumo moderno não se opõe a nenhuma
através do consumo é decorrente de uma de- necessidade ou desejo autêntico, que não seja, ele
silusão dos ideais coletivos e de racionalidade. próprio, modelado pela sociedade e pela sua his-
Instala-se aí uma cultura da sobrevivência, que tória. Mas a mercadoria abundante está lá como
crê que a individualidade e a felicidade serão a ruptura absoluta de um desenvolvimento orgâ-
alcançadas por meio do ato de consumir. nico das necessidades sociais. A sua acumulação
mecânica liberta um artificial ilimitado, perante
A cultura organizada em torno de consumo de o qual o desejo vivo fica desarmado. A potência
massa estimula o narcisismo [...] não porque cumulativa de um artificial independente con-
torna as pessoas gananciosas ou agressivas, mas duz em toda parte à falsificação da vida social
porque as torna frágeis e dependentes. Corrói a (Debord, 1997, p. 27 e 39).
sua confiança na capacidade de entender e formar
o mundo e de prover as suas próprias necessida- O consumo surge como um marcador iden-
des. O consumidor sente que vive num mundo titário e meio de expressão do coletivo como
que desafia o entendimento e o controle práticos,
prática social, constituindo-se um importante
um mundo de imensas burocracias de “sobrecar-
ga de informações” e de complexos interligados sistema de comunicação, em que se podem co-
sistemas tecnológicos, vulneráveis a súbitos co- nhecer os valores, concepções e representações
lapsos... (Lasch in Soar Filho, 2002, p. 13). dominantes em um determinado contexto só-
cio-histórico. O fato de poder traduzir e conce-
Para Bauman, “A vida organizada em tor- der acesso ao imaginário coletivo demonstra o
no do consumo, por outro lado, deve se bastar quanto o consumo é decisivo na configuração
sem normas: ela é orientada pela sedução, por das relações e vínculos sociais, nos mecanis-
desejos sempre crescentes e quereres voláteis” mos de pertença e diferenciação. É por exce-
(Bauman, 2001, p. 90-91). Para Harvey (2006) lência um grande produtor de invisibilidades
, vivemos num mundo em que a lógica da e ausências e dissemina um sistema homogê-
produção e distribuição das mercadorias está neo de representações, legitimando uma única
calcada na ênfase em qualidades como instan- racionalidade socioeconômica, em detrimento
taneidade e descartabilidade. A contempora- de outros modos possíveis de organização e
neidade se concretiza, no âmbito individual, reprodução da realidade social (Santos, 2011).
na associação entre o ato de consumir e a sua Outro importante aspecto a observar so-
autorrealização. Para Santos (2011), o consu- bre o consumo é a desvalorização progressiva
mo, além de oferecer pistas sobre as dinâmicas dos bens, estando sempre vinculado às expe-
sociais, estabelece um dos principais eixos de riências que traz, bem como a obsolescência
construção da identidade através de uma teia programada já na produção que permite ele-
de significados construídos e validados social- var ainda mais o consumo e sustentar a re-
mente, onde os bens não se resumem a produ- produção do capitalismo e de pessoas aliena-
tos e serviços, mas a bens simbólicos, ideias, das da busca ativa e crítica por seus próprios
representações mediáticas e estilos de vida em valores, experiências, saberes, pluralidades,
que os indivíduos operam simbolicamente so- desejos e identidades.

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Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

Subjetividade e identidade das coisas como objetivo final, provocando o


na contemporaneidade comprometimento e/ou supressão da subjeti-
vidade: a “coisa” sufoca o “humano”. O feti-
Em vista da volatilidade e instabilidade chismo – este caráter misterioso das merca-
intrínsecas de todas ou quase todas as identi- dorias – provém do fato de que elas ocultam
dades, é a capacidade de ‘ir às compras’ no su- a relação social entre os trabalhos individuais
permercado das identidades, o grau de liber- dos produtores e o trabalho total (Navarro e
dade, genuína ou supostamente genuína, de Padilha, 2007, p. 16).
selecionar a própria identidade e de mantê-la As marcas comerciais constroem símbolos
enquanto desejada, que se torna o verdadei- que se desconstroem em gozos polissignifi-
ro caminho para a realização das fantasias de cantes. Através de processos comunicacionais
identidade. Com essa capacidade, somos livres e midiáticos perversos, produzem e fabricam
para fazer e desfazer identidades à vontade subjetividades, que são identidades revogá-
(Bauman, 2001). De acordo com este autor, o veis e flutuantes à busca de um consumo fre-
conceito de modernidade líquida é o que des- nético. Por ser interminável, o desejo que não
vela a subjetividade contemporânea postulada se realiza perpetua uma patologia constante de
em um estado de fluidez, no devir de sujeitos sujeição ao consumo e enquadra-se dentro de
inacabados, líquidos e plásticos, prontos para uma subjetividade que escolhe as marcas tanto
a metamorfose de identidade, a ser ditada pela para nutrir um suposto “amor de si” quanto a
próxima lógica de mercado. um narcisismo socialmente estimulado.
Bauman (2001) também afirma que a en- O sujeito psíquico (dotado de pulsões,
tão “subjetividade líquida” é sublimada atra- afetos, defesas e projeções, identificações e
vés do compartilhamento no qual o sujeito e desejos, próprios do social que o constitui) e
o social estão interconectados (e se produzin- social (de uma cultura, de um contexto sócio-
do mutuamente) e mediados por um coletivo -histórico, com valores de pertencimento e de
que os atravessa. Essa subjetividade plástica é aceitação, um indivíduo que vive no coletivo e
agenciada por uma poderosa operação de mar- busca se representar) se metamorfoseia, se do-
keting, que faz o indivíduo acreditar que para bra, desdobra e redobra; se ondula desterrito-
“ser” é preciso pertencer e consumir, recon- rializando-se no espaço liso de uma sociedade
figurando-se aos diversos espaços/territórios pós-moderna (Tavares, 2004).
percorridos à busca de uma aceitação circuns- Retomando a perspectiva do trabalho no
tancial. Assim, a ilusão de uma identidade fixa capitalismo, pode-se afirmar que este mode-
e estável, característica da sociedade contem- lou a sociedade em parâmetros individualis-
porânea e industrial, vai cedendo terreno aos tas e autocentrados, com a intensificação do
“kits de perfis padrão” ou “identidades prêt- desemprego e da precarização do trabalho nos
-à-porter”. Identidades locais fixas desapare- diferentes setores da economia. Assim como
cem para dar lugar a identidades globalizadas apontado por Navarro e Padilha (2007), a fle-
flexíveis (Rolnik in Tavares, 2004). Trata-se de xibilização trazida pela reestruturação produ-
modelos identitários efêmeros, descartáveis e tiva exige cada vez mais trabalhadores ágeis,
sempre vinculados às propostas e aos interes- abertos às mudanças em curto prazo e que as-
ses do mercado (Sibilia in Tavares, 2004). sumam riscos continuamente, causa não ape-
No capitalismo da sociedade contempo- nas sobrecarga, mas acarreta grande impacto
rânea, o trabalho surge como uma atividade para a vida pessoal e familiar de todos os tra-
estranha e fetichizada que cria valor de tro- balhadores, sejam eles empregados ou desem-
ca, onde o uso perde valor para a troca e os pregados:
produtos não são mais produzidos priorita-
riamente para serem usados até o fim. Surge Os direitos sociais duramente conquistados pe-
e reina o conceito de descartabilidade tanto los trabalhadores estão sendo substituídos ou
da mercadoria, tão essencial ao consumismo subtraídos nos quatro cantos do mundo. O de-
no capitalismo independentemente de sua semprego força as pessoas, desesperadas pela falta
de dinheiro e de reconhecimento social, a enfren-
qualidade, quanto o conceito de subjetivida-
tarem filas aviltantes para tentar uma vaga no
de líquida (Bauman, 2001) que se coaduna mercado do emprego formal, mesmo que este seja
perfeitamente ao padrão de descarte e con- alienado e estranhado. Tragicamente, até mesmo
sumo de identidades efêmeras e kits padrão o trabalho que pode comprometer a saúde física e
prêt-à-porter. O fetiche da mercadoria é a apa- psíquica passa a ser objeto de desejo (Navarro e
rência que se sobrepõe à essência, é o mundo Padilha, 2007, p. 19).

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Perspectivas do trabalho Após o colapso dos modelos soviéticos


na economia solidária e do welfare state, o associativismo ressurge
na periferia do capitalismo em um meio com
A associação de homens e mulheres para condições muito mais precárias para a sobre-
sobreviver materialmente é parte da essência vivência dos trabalhadores do que à época dos
do trabalho e da história da humanidade, mes- modelos desenvolvimentista e do welfare state.
mo após o surgimento das sociedades de clas- Contudo, trouxe consigo os valores sociais in-
ses e da chamada civilização. Por toda parte e corporados pelos trabalhadores durante o pe-
por muito tempo, as comunidades campone- ríodo de lutas precedentes, tais como: partici-
sas baseadas no trabalho coletivo continuaram pação, democracia, igualdade, solidariedade,
sendo uma parte significativa dos sistemas etc. (Cruz e Santos, 2011).
econômicos. Com o advento da propriedade Em todo o mundo passa a surgir uma in-
privada e a contratação do trabalho remune- finidade de empreendimentos da “economia
rado monetariamente, estes passaram a ser o popular”, ora fruto da recuperação de empre-
fundamento das relações sociais, e, ainda as- sas falidas pelos seus trabalhadores, ora pela
sim, continuam existindo experiências e ideias organização de camponeses, clubes de troca,
de cooperação para produção e consumo (Cruz cooperativas de crédito solidário, etc., sempre
e Santos, 2011). Na segunda década do século reconhecidas como economia solidária, com-
XIX, toda uma geração de pensadores sociais partilhando os princípios comuns de autoges-
propôs o estabelecimento de colônias coletivas tão, participação e solidariedade como forma
e experiências sociais que pretendiam superar de contestação às relações sociais típicas do ca-
as misérias produzidas e intensificadas pelo ca- pitalismo. Desse modo, a economia solidária
pitalismo a partir da disseminação de formas traz em seu âmago valores antagônicos aos in-
associativas e cooperativas de existência eco- dividualistas do liberalismo, contrapondo-se
nômica (Cruz e Santos, 2011). Tais propostas novamente à hegemonia vigente.
ocorreram no bojo do crescimento e da expan- Devido ao avanço das consequências da in-
são social e política das instituições capitalistas tensa pobreza e formas de exploração do tra-
para resgatar da pobreza e da miséria os traba- balho no capitalismo,
lhadores atingidos pelas sucessivas crises eco-
nômicas que acompanhavam a mecanização A economia solidária nasce numa situação his-
da economia moderna, tanto quanto os movi- tórica diferente, em que o problema da pobreza já
mentos políticos que a Europa enfrentava. não está mais apenas vinculado à exploração di-
reta do capital sobre o trabalho, senão que aparece
Tempos depois, após a criação de algu-
como uma resposta à sua ausência: está vincula-
mas associações que representaram a oposi- da ao desemprego e à saturação do mercado infor-
ção e resistência ao modelo econômico capi- mal autônomo, à disseminação de formas ilegais
talista, surge em 1844 a primeira experiência (e até mesmo violentas) de sobrevivência econô-
moderna de cooperativismo na Inglaterra, mica; está vinculada às tradições rurais transmi-
fruto de tecelões que provinham de diferen- tidas à periferia das grandes cidades através dos
tes setores políticos e sindicais, denotando, migrantes, de solidariedades várias em meio às
assim, que o associativismo econômico e o dificuldades cotidianas, das ajudas e dos auxílios
cooperativismo sempre estiveram ligados à recíprocos etc. Enfim, formas precarizadas de tra-
contestação das relações capitalistas. Desde balho expressas como principais reflexos da ques-
tão social (Cruz e Santos, 2011, p. 63).
então, surgiram várias iniciativas de traba-
lho cooperativado que, longe de apontar
para uma revolução nas estruturas sociais Carta de Princípios
e econômicas, tinham o modelo de produ- da Economia Solidária
ção capitalista em seu interior e estavam
necessariamente subordinadas à lógica do Em junho de 2003, durante a III Plenária
mercado que as obrigava a estabelecer for- Nacional da Economia Solidária, é elaborada
mas “autoexploratórias” de trabalho, e que a Carta de Princípios da Economia Solidária,
jamais poderiam sustentar-se frente à con- construída de forma plural, abarcando as vozes
corrência capitalista, tal como apontou Rosa dos principais atores afetos da economia solidá-
Luxemburgo (2005); contudo, estas mesmas ria no país. A carta teve como objetivo contex-
iniciativas nem por isso deixaram de denun- tualizar e remontar os princípios gerais e espe-
ciar a pobreza e todos os tipos de misérias cíficos norteadores da economia solidária como
humanas produzidas pelo capitalismo. conceito e práxis, prevendo sua evolução atra-

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Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

vés do desenvolvimento de cadeias produtivas Mas seu horizonte vai mais além. São práticas
solidárias e pela construção de uma política da fundadas em relações de colaboração solidária,
economia solidária em um Estado democrático. inspiradas por valores culturais que colocam o
Com o foco no propósito desta discussão, ser humano como sujeito e finalidade da atividade
econômica, em vez da acumulação privada de ri-
serão abordados alguns importantes trechos
queza em geral e de capital em particular (Fórum
que dissertam a respeito do trabalho na eco- Brasileiro de Economia Solidária, 2003, p. 1).
nomia solidária e dos principais valores que
pautam sua atuação. Além dos valores antagônicos ao capita-
lismo, este trecho aponta para a assunção do
As demais formas (comunitárias, artesanais,
individuais, familiares, cooperativadas, etc.) homem como sujeito, e não mais como mer-
passaram a ser tratadas como “resquícios atra- cadoria, massa de manobra, e sua identida-
sados” que tenderiam a ser absorvidas e trans- de a ser construída a partir dos valores cul-
formadas cada vez mais em relações capitalistas. turais mais amplos e não somente daqueles
A atual crise do trabalho assalariado, desnuda de mercado, com finalidade econômica, e que
de vez a promessa do capitalismo de transformar acabam por acarretar sofrimento psíquico e
a tudo e a todos/as em mercadorias a serem ofer- inúmeras psicopatologias, amplamente co-
tadas e consumidas num mercado equalizado
nhecidas na sociedade capitalista. A econo-
pela “competitividade”. Milhões de trabalhado-
res/as são excluídos dos seus empregos, amplia-
mia solidária busca outra qualidade de vida
-se cada vez o trabalho precário, sem garantias e de consumo, e isto requer a solidariedade
de direitos. Assim, as formas de trabalho chama- entre os cidadãos do centro e os da periferia
das de “atrasadas” que deveriam ser reduzidas, do sistema mundial.
se ampliam ao absorver todo esse contingente de O padrão de consumo também é entendido
excluídos (Fórum Brasileiro de Economia Soli- de forma antagônica ao capitalismo. O produto
dária, 2003, p. 1). subsiste e é utilizado pelo tempo de vida útil
que possui, e o consumo se dá pela necessidade
O trecho acima recobra a crise do trabalho e não pelo fetiche ou para tamponar falsamente
assalariado e a tentativa perversa dos agen- outras faltas existenciais. Nesta concepção, ter
tes do capitalismo em transformar produtos e não é ser e tampouco a existência humana será
pessoas em coisas, criando lógicas de mercado considerada como ser para ter e acumular. A
tal como a competitividade em um modo de solidariedade prevalece sobre a individualida-
legitimar valores a exemplo do individualis- de frente às necessidades do homem.
mo e egoísmo. Para além disso, o trecho deno-
ta a tentativa fracassada do capitalismo em es- Para a Economia Solidária, a eficiência não pode
tigmatizar as formas cooperativas e associadas limitar-se aos benefícios materiais de um em-
de produção como algo atrasado que se deve preendimento, mas se define também como efi-
superar em prol da evolução da humanidade. ciência social, em função da qualidade de vida e
da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo,
Hoje, no Brasil, mais de 50% dos trabalhadores/ de todo o ecossistema (Fórum Brasileiro de Eco-
as estão sobrevivendo de trabalho à margem do nomia Solidária, 2003, p. 2).
setor capitalista hegemônico, o das relações assa-
lariadas e “protegidas”. Aquilo que era para ser Neste sentido, prevê-se como objetivo a
absorvido pelo capitalismo passa a ser tão grande felicidade e sanidade mental como eficiência
que representa um desafio cuja superação só pode social e não a mera produtividade material,
ser enfrentada por um movimento que conjugue
e este método de produção econômica deve-
todas essas formas e que desenvolva um projeto
alternativo de economia solidária (Fórum Brasi- rá subsistir em sinergia com o meio-ambiente
leiro de Economia Solidária, 2003, p. 1). sem depredá-lo como meio para o desenvol-
vimento.
Este ponto é de extrema importância e deve
ser foco de atenção de gestores públicos: meta- A Economia Solidária é um poderoso instrumen-
de dos trabalhadores (as) sobrevive à margem to de combate à exclusão social, pois apresenta
alternativa viável para a geração de trabalho e
do corrente modelo hegemônico de produção.
renda e para a satisfação direta das necessidades
Em outras palavras, este dado denuncia o ca- de todos, provando que é possível organizar a
ráter essencialmente excludente do capitalis- produção e a reprodução da sociedade de modo a
mo na sociedade, devendo-se conceber um eliminar as desigualdades materiais e difundir os
projeto alternativo para a subsistência digna valores da solidariedade humana (Fórum Brasi-
de metade da população brasileira. leiro de Economia Solidária, 2003, p. 2).

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Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi

O trecho acima denota o reconhecimento de Troca na Economia Solidária: por um mo-


do homem e suas necessidades como legíti- delo crítico e emancipatório de consumo”, do
mos, situando-o o mundo de forma inclusi- livro “Economia solidária: questões teóricas e
va e participativa, por meio de seu trabalho metodológicas” de Luciane Santos (2011).
e relações que se estabelecem na construção O objetivo deste tópico é, portanto, con-
e reconstrução da realidade, eliminando as soante com o objetivo proposto no estudo
desigualdades por meio da vivência da soli- supracitado: refletir sobre possibilidades de
dariedade. uma construção epistemológica alternativa
para a economia, bem como para o consumo
A Economia Solidária é também um projeto de de- que a anima, que define como inexistente ou
senvolvimento integral que visa à sustentabilida- irrelevante toda experiência que confronte os
de, a justiça econômica, social, cultural e ambien- valores ocidentais. Ou seja, será possível de-
tal e a democracia participativa. [...] A Economia sarticular a monocultura do consumo (conceito
Solidária estimula a formação de alianças estraté-
derivado pela autora) que se instala no tecido
gicas entre organizações populares para o exercí-
cio pleno e ativo dos direitos e responsabilidades
social e torna invisíveis saberes, ritmos, esca-
da cidadania, exercendo sua soberania por meio da las e produtividades divergentes do modelo
democracia e da gestão participativa (Fórum Bra- ocidental, evidenciando as limitações das cons-
sileiro de Economia Solidária, 2003, p. 3). truções epistemológicas acerca do consumo,
com vista a uma percepção mais abrangente e
A economia solidária busca conceber-se rica do mundo de trocas? Para responder a esta
como um projeto plural e integral que entende questão, serão explanados alguns pressupos-
que o sujeito é legítimo por si só, possui voz tos teóricos utilizados como base pela autora.
e esta deve ser ouvida, está inserido de forma Sabe-se que o capitalismo e a globaliza-
ativa e democrática em outras esferas que não ção hegemônica otimizaram circuitos de cir-
apenas a econômica, e deve subsistir em pa- culação de produtos e serviços à revelia do
râmetros sustentáveis com o ambiente, cultura que isto poderia representar como custo so-
e sociedade. cial, cultural ou ambiental e dita quais lógicas
e padrões de vida em todos os âmbitos hu-
A economia solidária confronta-se contra a lógica manos, em que se deve viver para ser aceito,
do mercado capitalista que induz à crença de que benquisto e considerado legítimo dentro do
as necessidades humanas só podem ser satisfeitas seio da sociedade capitalista. Esta lógica per-
sob a forma de mercadorias e que elas são opor- versa da falta de alteridade é violenta e busca
tunidades de lucro privado e de acumulação de o gozo na sujeição do outro em mercadoria,
capital (Fórum Brasileiro de Economia Solidária, na submissão violenta do outro para satisfa-
2003, p. 4).
ção de pouquíssimos; e, a partir do momen-
to em que o outro se torna coisa, passa ape-
A economia solidária, apesar de estar inse-
nas a ser meio a ser usado para o alcance da
rida no próprio capitalismo, busca romper com
acumulação de riquezas, onde, por exemplo,
o consumismo, a efemeridade da identidade
a competitividade que supostamente exige
através do consumo, a busca pelo sentimento
custos salariais extremamente baixos em con-
de pertença através do consumo, a descartabi-
dições sub-humanas de trabalho e existência,
lidade do produto, o fetiche da mercadoria e a
em contrapartida, acomoda-se perfeitamente
insaciável lógica de acumulação de bens que aos custos patronais dos mais elevados.
imperam no capitalismo. A economia solidária A autora remonta o conceito de monocul-
as reconhece como mazelas sociais, frutos da tura da obra citada de Boaventura de Sousa
lógica do mercado capitalista, e concebe uma Santos (2006, 2007a, in Santos, 2011) em que
existência livre destas amarras do consumis- descreve a produção de ausências nos espaços
mo prevendo uma sociedade mais igualitária, da vida cotidiana referindo-se às invisibilida-
polifônica, diversa e solidária, onde a coisa tem des produzidas pelo pensamento hegemônico
valor de coisa e o homem tem valor de homem. ocidental, onde o que é produzido fora do con-
texto da racionalidade ocidental dominante é
Consumo na economia solidária sob produzido como inexistente, o que implica o
a ótica dos Clubes de Trocas estigma de irrelevante ou incompreensível.
Deste modo, todos os saberes, temporalidades,
Este tópico se dedicará a abordar alguns escalas, produtividades e diversidades que de-
elementos do capítulo intitulado “Os Clubes safiem ou ponham em questão a construção da

Otra Economía, vol. 10, n. 18, enero-junio 2016 43


Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

realidade sob a ótica do mundo ocidental são bem quer a realidade que considera subjacen-
veementemente silenciados. te. Considerando que todas as monoculturas
A sociologia das ausências, termo cunhado se materializam simultaneamente nas expe-
pelo mesmo autor, seria a forma transgressi- riências de consumo, a autora acredita ser esta
va de desvelar todos os silenciamentos e criar uma sexta categoria de monocultura que inter-
modos alternativos de viver e construir sen- vém pela consolidação de uma representação
tido. Remeto aqui à teoria da construção da social totalmente dependente das perspectivas
realidade social (Berger e Luckmann, 1972), de identidade e distinção social típicas da reali-
onde se afirma que o ser humano é sim ca- dade ocidental, justamente porque o consumo
paz de conceber e construir outra realidade a como sistema simbólico moderno-ocidental co-
partir do coletivo e das relações sociais que se loniza o desejo e prepara o território para que
estabelecem a partir das convergências de sen- as sementes neocoloniais encontrem solo fértil
tido. Ou seja, o conceito de sociologia das au- mediante dominação simbólica. Sobre como
sências seria perfeitamente possível ainda que a monocultura do consumo articula saberes e
sob uma sociedade e cultura majoritariamente mercado, Santos aponta:
opressoras e silenciadoras.
Dentre as formas de silenciamento e invisi- A (meta) monocultura do consumo evoca o dis-
bilidade, a sociologia das ausências evidencia curso científico como base legitimadora para a
cinco formas atuais de monocultura e produ- pesquisa e o desenvolvimento contínuo de novos
produtos, agora disponíveis segundo a lógica do
ção de ausências: monocultura do saber, do
mercado. A todo o momento, propagandas, em-
tempo linear, da naturalização das diferenças, balagens e matérias jornalísticas, sustentadas
da escala dominante e do produtivismo ca- pelo discurso científico, sugerem ao indivíduo
pitalista. A monocultura do saber define que que ele pode ter o corpo que quer, o rosto que
fora da ciência não há saber válido, desconsi- deseja, a idade que precisa. Ao mesmo tempo, a
derando todas as outras formas de saber que lógica temporal do capitalismo se espalha por to-
são construídas fora do discurso científico. das as dimensões da vida cotidiana, pontilhando
A do tempo linear naturaliza e dissemina a de competição e desempenho não só os momentos
ideia de que o tempo possui relação direta ao de trabalho, mas também os de lazer. O tempo
nervoso do capital atravessa rotinas, prometendo,
dinheiro e converte a simultaneidade em não
pela via do consumo e através dos bens, costurar
contemporaneidade (Santos, 2007 in Santos, relações e fazer circular sentidos. [...] De modo
2011). A monocultura da naturalização das di- geral, a dinâmica do mercado se encarrega de
ferenças transforma todo tipo de diferença em tudo atrelar ao sistema de especulação financeira,
um mote para hierarquizar que torna as dife- dilacerando os valores de uso e submetendo-os às
renças sempre desiguais, utilizando-as como oscilações de troca (Santos, 2011, p. 185).
fundamentos e recursos para criar e justificar
o escalonamento social. Já a monocultura da A autora segue seu pensamento denotan-
escala alia-se ao discurso científico e cria a ilu- do o quanto o mercado capitalista reduz em
são de que apenas as soluções universais são importância, quando não inviabiliza, as expe-
relevantes e válidas para a construção da reali- riências locais de troca, valendo-se de todas
dade, e silencia experiências locais como casos as formas de produção de invisibilidade para
isolados e irrelevantes para uma (re) produção deslegitimar realidades outras que não partici-
universal. A quinta forma de produção de au- pem da ordem hegemônica ocidental, utilizan-
sência, a monocultura do produtivismo capi- do os recursos naturais de modo não susten-
talista, consiste em um parâmetro norteador tável e perverso para maximizar a produção
da produção que fundamenta a intensificação de bens na quantidade e intensidade para as
da mais-valia. quais pressupõe o consumo.
Neste sentido, Santos (2011), ao analisar o Para Lévi-Strauss (1976, in Santos, 2011),
consumismo na sociedade contemporânea e a sociedade se funda no mundo das trocas,
ao debruçar-se sobre a teoria da monocultura ainda que as trocas na contemporaneidade te-
de Boaventura de Sousa Santos, cunha o ter- nham sofrido uma intensa mercantilização, o
mo monocultura do consumo como forma de que faz com que sua compreensão seja reduzi-
aglutinação das cinco formas de produção de da a seu caráter econômico. A partir da análise
ausência e de ilustrar a construção cotidiana de em sociedades não ocidentais, Santos verifica
invisibilidades, constituindo-se como espaço que não é a acumulação que fundamenta a
social que, por excelência, constróí parâme- reprodutibilidade, mas a reciprocidade e a re-
tros de racionalidade ocidental e molda como distribuição que aparecem como fenômenos

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Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi

estruturantes da vida social. Neste sentido, a acumulação dos mercados hegemônicos, é a


autora aponta para as trocas como alternativa “Feira de Trocas de Sementes Tradicionais e
de organização social e econômica para a cons- Crioulas” de São Paulo, onde agricultores fa-
trução de outra racionalidade, ainda que não miliares e interessados fazem ressurgir e cir-
aponte para a ruptura com o mercado capita- cular espécies raras de sementes, reduzindo a
lista, mas espera que o alastramento de expe- dependência econômica da indústria transna-
riências pautadas em modos alternativos que cional de alimentos.
enfrentem os interesses hegemônicos cause in-
cômodos à reprodução no sistema do capital e As trocas de sementes firmam a identidade co-
empodere politicamente coletividades. Intro- letiva do agricultor. Ao valorizar e disseminar o
duz o conceito de dádiva (Mauss, 2003 in San- saber camponês, promovem uma ação afirmativa
tos, 2011), fundamental para a compreensão pela soberania alimentar e uma barreira indireta,
no tecido microssocial, à indústria de transgê-
das relações que se estabelecem nas trocas e se
nicos. [...] Uma vez que as sementes, aqui, não
define como a ação sem garantia de retribui- seguem o protocolo especulativo típico das indús-
ção, mas não destituída de obrigatoriedade. trias transnacionais de beneficiamento, a tempo-
Ao mesmo tempo, é obrigatória e espontânea, ralidade nas trocas não remete ao ritmo nervoso
gratuita e interessada, incondicional e condi- das commodities. Nem tampouco a produtividade
cional, e tem por finalidade a criação, manu- remete ao circuito usual de exploração do traba-
tenção ou regeneração do laço social, por se lho; antes segue o ritmo da terra e do saber tradi-
tratar de um processo sem fim, onde a relação cional do campo (Santos, 2011, p. 193)
importa mais do que a coisa dada.
No que tange à economia solidária, ainda O exemplo das trocas de sementes denota
que esta não seja uma economia da dádiva, San- a não sujeição de pessoas à monocultura das
tos (2011) afirma que as relações de troca sina- seis ordens vigentes no mercado do capital e
lizam para a emergência de outros objetivos no reconhece a diversidade como um recurso in-
circuito das trocas, como o da coesão social e do dispensável para a boa qualidade de vida, sem
fortalecimento das identidades coletivas. Afir- opressão e os ditames das indústrias transna-
ma que o princípio da dádiva deve ser resga- cionais, permitindo ao indivíduo colocar-se
tado como uma forma de construir uma ponte no mundo da forma que lhe apraz através de
relacional com o outro, calcada na valoração de um processo autônomo de escolha, mudando
sistemas cognitivos diversos, na compreensão e ressignificando novos sentidos para o consu-
da diversidade como fator de enriquecimento, mo e a própria realidade à sua volta.
na coesão social e, portanto, na constituição de A segunda experiência significativa que vale
redes colaborativas e solidárias. destacar é a do mercado solidário da Granja do
Neste sentido, Santos (2011) apresenta Ulmeiro em Portugal. Este grupo organizou
exemplos que ilustram a relação de troca como um clube de trocas em 2006, predominante-
parcerias colaborativas que apontam para a mente rural, que promove múltiplas possibi-
criação de uma realidade subjacente às trocas lidades de trocas a partir de sua moeda social
capitalistas. São eles: feiras de troca de semen- – GRANJAS – com a qual é possível adquirir
tes crioulas que promovem diversidade bioló- roupas, tecidos, peças de artesanato, verduras,
gica e o silenciamento dos saberes que foram legumes, podendo circular até serviços como
marginalizados. cuidados médicos básicos. Além disso, o clube
proporciona um espaço de convivência e troca
A riqueza epistemológica de uma “outra econo- de experiências em oficinas, jantares comunitá-
mia” vai na contramão do sistema classificatório rios e eventos culturais que proporcionam um
que o consumo, como força motriz do mercado, espaço único de reflexão individual sobre sua
aciona. Neste caso, as trocas materializadas no fe-
inserção em um meio plural e diverso.
nômeno social de um consumo alternativo criam
espaço de circulação para sistemas cognitivos di- Neste sentido, a autora afirma que a econo-
versos, gerando coesão, protagonismo econômico mia solidária e a economia popular como for-
e social e a desarticulação de sistemas dominantes mas alternativas de produção, distribuição e
(Santos, 2011, p. 192). consumo provocam um rearranjo de forças no
tecido microssocial, no âmbito de uma “etnoe-
O primeiro de outros dois importantes conomia” do consumo, para promover novas
exemplos citados, que não se configuram como alternativas de compreensão do mundo dos
clube de trocas, mas também acenam com a bens e sua circulação para construir e validar
possibilidade de uma ruptura com a lógica de as trocas.

Otra Economía, vol. 10, n. 18, enero-junio 2016 45


Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

Para a autora, os clubes de troca constituem sociedade contemporânea e capitalista, este


uma experiência democrática e participativa tópico tem o objetivo de contribuir para a
que vai na contramão da monocultura do con- compreensão da articulação entre a vivência
sumo, neutraliza ausências, suscita emergên- do trabalho na economia solidária e o proces-
cias e redimensiona aspectos sociais e políticos so de construção de identidade e subjetividade
da troca. Com os mercados solidários, fortale- neste âmbito.
cem-se as condições de ação e palavra do in- Pelo lado das teorias sociológicas sobre
divíduo, contribuindo para que ele, o coletivo, identidade, temos o interacionismo simbóli-
seja copresente, contemporâneo e não residual. co, citado anteriormente, concepção na qual a
identidade não seria fixa, mas sujeita às trans-
Do mesmo modo, ao proporcionar um encontro formações ocorridas ao longo do processo de
não residual entre conhecimentos e estabelecer interação do indivíduo com seus grupos so-
uma temporalidade que respeita os ritmos diver- ciais. Para Berger e Luckman, (1972), a identi-
sos dentro do clube, a rede de trocas solidária res- dade é sempre assimilada através de um pro-
gata a questão identitária, sem atrelá-la ao con-
cesso de interação e só depois de confirmada
sumo que diferencia hierarquicamente (Santos,
pelos outros é que pode tornar-se real para o
2011, p. 196).
indivíduo ao qual pertence.
Para Silva (2004 in Esteves e Veronese,
Neste sentido, é permitido ao sujeito ressig-
2011), identidade e diferença são produzidas
nificar sua identidade dentro dos pressupos-
ativamente na linguagem, na cultura e no so-
tos autônomos que sua individualidade quiser
cial e referem-se às identidades como “cria-
eleger como relevantes, no espectro da socio-
turas da linguagem” híbridas, múltiplas e
logia das ausências, onde a diversidade e poli-
plurais e mostram que não existe mais espaço
fonia imperam e as redes de trocas consistem
para oposições simplistas e binárias, e tampou-
em um mecanismo possível para demonstrar
co existem identidades válidas e outras não,
como o consumo pode ser entendido de outra
provindas das relações de poder assimétricas,
forma e pode abarcar formas de socialização
reproduzindo desigualdades e ausências (San-
que ressignifiquem toda a realidade posta com
tos, 2004 in Esteves e Veronese, 2011, p.153).
as consequências deletérias em todos os níveis
Dado o caráter central do trabalho na vida
da lógica do capital.
humana e considerando-se que distintas situa-
Para Santos (2011), os clubes não só resga-
ções e modos de trabalhar produzem distintas
tam o valor das trocas locais para autonomia
perspectivas da realidade e de viver, o traba-
material e simbólica das comunidades, como
lho surge como importante eixo condutor da
apresentam potencial significativo para a soli-
análise do processo de construção de relações
dariedade entre escalas, podendo constituir-se sociais e identidade.
como experiência compartilhada. No que se
refere à sociologia das ausências, os mercados Sobre a participação central do trabalho na con-
solidários se mostram como uma alternativa formação da subjetividade, há muito se sabe que
transgressiva à ordem homogênea e apontam as vivências compartilhadas entre os trabalha-
respostas às cinco monoculturas definidas an- dores abrangem dimensões cognitivas, afetivas
teriormente: configuram uma situação em que e políticas, possibilitando que eles/as construam
os saberes diversos enriquecem a experiência, representações de si diretamente ligadas às si-
o ritmo da produção e da troca não é ditado tuações e relações de trabalho, que são também
atributos de um eu (Jacques, 2002 in Esteves e
pela necessidade do mercado, mas pelo com-
Veronese, 2011, p. 159).
promisso com a autonomia material e sim-
bólica do grupo, verifica-se potencial para a
Neste sentido, importa saber quais caracte-
solidariedade crescente entre escalas, há um rísticas identitárias diferem o sócio-trabalhador,
incentivo explícito à diversidade epistemoló- cooperado e trabalhador associado dos demais
gica, e a produtividade é proporcional às ne- sujeitos sociais unicamente voltados ao traba-
cessidades econômico-sociais dos envolvidos. lho na lógica capitalista – ainda que a economia
solidária se desenvolva no seio do capitalismo
Construção de identidade e o e apresente algumas de suas características em
sujeito na economia solidária sua práxis. Se for possível listar algumas carac-
terísticas identitárias que fazem deste novo su-
Do mesmo modo como foi abordada a jeito social, distinto e singular, portador de uma
construção de identidade e subjetividade na identidade psicossocial própria, é porque eles

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Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi

mesmos falam sobre isso (Esteves e Veronese, tividade que anima cada pessoa na sua singula-
2011). Em outro estudo, as mesmas autoras es- ridade. Desse modo, o sócio-trabalhador pode
tudaram cooperativas entrevistando os coope- criar, junto com sua própria identidade, novas
rados a fim de avaliar quais as características maneiras coletivas de viver, pautadas pelos va-
psicossociais de quem vive a condição social de lores da cooperação e da solidariedade.
um sócio-trabalhador e, ao mesmo tempo, refu-
ta outras como oposta a esta condição. Conclusão
O resultado foi: “um cooperador, na visão
dos membros das cooperativas UNIWIDIA E A realidade e os significados produzidos
METALCOOP, deve apresentar engajamento e a partir dela, e que compartilhamos não são
compromisso com o sucesso e o bem-estar do algo estanque e limitado. O homem é consti-
grupo e cooperadores, dentro e fora da coo- tuído por meio das interações simbólicas em
perativa; responsabilidade e pró-atividade com o que participa tanto como agente quanto como
trabalho próprio e alheio no cotidiano de tra- paciente da construção simbólica da cultura,
balho; envolvimento e prontidão no atendimento estruturas sociais, e interações que estabelece
às demais necessidades da cooperativa (para formando uma circularidade constante entre a
além do trabalho); transigência e comedimento formação de sua identidade e da realidade em
ao considerar opiniões, posições e interesses que habita. Neste sentido, tem-se como produ-
diferentes dos próprios; consideração e solidarie- to desta circularidade a sociedade contempo-
dade com a comunidade e o local onde reside a rânea com todo o espectro de signos e sentidos
maioria dos membros e/ou onde está situada que ela acarreta nesta conformação interativa.
a cooperativa. Simetricamente, são caracterís- Dentro da sociedade contemporânea, o tra-
ticas refutadas pelos membros dessas coopera- balho deveria assumir uma inegável importân-
tivas: pensar em si sem implicar-se com o sucesso cia como fonte de satisfação de necessidades
ou bem-estar do grupo; ser reativo ao trabalho, es- básicas, identificação, autoestima, desenvol-
perando que o mandem trabalhar; indispor-se vimento das potencialidades humanas, e de
e distanciar-se das demais necessidades da coope- alcançar sentimento de participação nos objeti-
rativa; ser presunçoso e intransigente ao ouvir a vos da sociedade. Porém, o que se observa na
opinião alheia; desapreço e descaso com a comuni- atualidade é completamente antagônico a esta
dade” (Esteves e Veronese, 2011). ideia: o trabalho é vivenciado como fonte pere-
Não raro, ao analisar as características su- ne de desigualdades, hierarquização, exclusão,
pracitadas, percebe-se um antagonismo entre opressão e sofrimento para o sujeito contempo-
cada uma que não reflete apenas o que é e o râneo, consequências todas que refletem o mo-
que não é, mas quais características presentifi- delo hegemônico de produção capitalista.
cam a identidade do sócio-trabalhador e quais Tal como foi abordado, as consequências
as características do trabalhador no sistema ca- deste modelo não se limitam ao trabalho: o
pitalista. Aqui, o processo de construção iden- consumo assume papel central na sociedade,
titária pode ter ocorrido na fronteira, no limite definido por valores que seguem a lógica e in-
entre quais são as características subjetivas do teresse do capital, o que implica consumir para
trabalho no capitalismo e quais se quer con- subsistir e não o contrário, onde as pessoas têm
quistar com o trabalho na economia solidária. o valor daquilo que consomem e não daquilo
A construção dessa identidade prototípica que são. A mercadoria passa a ser fetichizada
é realizada no cotidiano da cooperativa auto- e tanto brilha que pouco importa aos consumi-
gestionária durante o trabalho, nas refeições, dores o que aconteceu com o meio ambiente e
na hora do cafezinho e por meio de conversas os indivíduos, tão legítimos quanto ele, para
espontâneas e se configura numa construção que determinado produto estivesse pairando
coletiva e psicossocialmente compartilhada como uma solução “divina” nas prateleiras
(Esteves e Veronese, 2011), mas que permita a das lojas. Os produtos são criados para terem
singularização de cada sujeito, o que fortalece curta validade, prevendo a manutenção cíclica
e empodera as comunidades ao terem auto- e nervosa do consumo e, como não, para tam-
nomia para delinear as características que, de bém sustentar a reprodução do capitalismo e
fato, convirjam para o que desejam concretizar de pessoas alienadas da busca ativa e crítica
em seu trabalho e em sua vida pessoal. por seus próprios valores, experiências, sabe-
Na concepção de Santos (2002 in Esteves res, pluralidades, desejos e identidades.
e Veronese, 2011), para recriar a promessa de Como resposta ao grito calado dos vários
emancipação social, é necessário recriar a subje- silenciamentos e ausências que as formas de

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Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

monocultura criam e reiteram continuamente vo do processo social, o que permite aos traba-
na sociedade ocidental, tem-se a manifestação lhadores associados a sentirem-se parte, outra
opositiva e de não aceitação do modelo vigen- vez, da sociedade, recuperando a autoestima
te capitalista que, muito longe de ser inclusivo de seus participantes, empurrando-os a novos
e participativo para todos, gera padrões legiti- desafios e conquistas pessoais – voltar a es-
mados pela sua própria lógica de segregação, tudar, participar politicamente, libertar-se de
hierarquização, dominação e tipos de identi- relações opressivas, etc. (Cruz e Santos, 2011).
dade preconcebidos para todos os âmbitos da Na concepção de Esteves e Veronese (2011),
vida que podem ser consumidos cotidiana- é de extrema importância que a organização
mente nas prateleiras da forma mais esquizo- autogestionária do trabalho permita a singula-
frênica e insana que se possa introjetar na bus- rização do sujeito que trabalha, pois esta signi-
ca incessante pela aceitação do outro social. fica o processo no qual o sujeito se converte em
Estas respostas surgem com a construção agente e criador de ruptura. Contudo, apon-
de alternativas possíveis de existência que não tam que ainda é necessário esclarecer como se
se coadunam com a hegemonia da monocultu- manifestam as mudanças na dimensão iden-
ra e, muito pelo contrário, denunciam e revol- titária a partir de uma inserção no campo da
vem tantos silenciamentos e ausências criadas economia solidária, e que a avaliação da efi-
ao longo de décadas, e que apontam para uma ciência dos Empreendimentos Econômicos
lógica da inclusão; do trabalho solidário, au- Solidários (EES) deve estar ligada não apenas
togestionário, democrático, não precarizado, à remuneração dos sócios, mas à avaliação de
justo e equânime; da assunção das necessi- ganhos subjetivos, como rupturas nas relações
dades humanas de forma legítima e integral, tradicionais de gênero, empoderamento, am-
impregnado dos princípios éticos, solidários pliação dos horizontes intelectuais, etc. Afinal,
e sustentáveis. como prever uma alternativa ao capitalismo,
Para Cruz e Santos (2011), cada vez mais baseando-se a avaliação da economia solidária
um número maior de seres humanos buscam nos mesmos pressupostos apenas de ganhos
alternativas concretas, e o período histórico financeiros?
em que surgem essas alternativas é marcado Ainda, para Santos (2011), a economia so-
por turbulências, incertezas e novas disputas lidária sinaliza a emergência de outros objeti-
hegemônicas. A economia solidária se apre- vos no circuito das trocas, do fortalecimento
senta como portadora de um sentido antitético das identidades coletivas e daestruturação da
à dupla contradição do capitalismo contem- experiência simbólica a partir do laço social
porâneo. Ela se confronta com relações sociais que talvez seja a chave para a constituição de
de produção capitalistas, propondo formas mercados criativos e o fio condutor para outra
igualitárias de apropriação econômica ou, na racionalidade. Afirma que ela talvez seja uma
pior das hipóteses, tolerando a existência de das formas ocidentais mais complexas de tro-
desigualdades, mas que são controladas e atri- ca-capitalista, constituindo os alicerces de uma
buídas em sua magnitude pelo controle social, teoria emancipatória do consumo que preconi-
pelo coletivo de empreendedores. za mudanças relevantes nas formas de socia-
Da mesma forma, ela representa espaço lização. Dado que, se a moeda social não for
possível onde a solidariedade é expressa na gasta, perde seu valor, esta corre na contramão
forma de valores compartilhados por todos e da acumulação e institui diversos efeitos nos
onde o trabalho aparece como substrato ma- valores individuais e na dinâmica social que
terial da consciência coletiva, o que permite à evoca certa polifonia de saberes, identidades
comunidade ou sociedade reproduzir-se eco- e ritmos.
nomicamente, reforçando os valores comuns
que foram construídos de forma coletiva por As alternativas de consumo a partir dos merca-
todos, legitimados e reiterados todos os dias. dos solidários não devem ser vistas apenas como
Na economia solidária, o exercício de integra- uma alternativa econômica: o teor emancipatório
ção ao grupo econômico, pela via do trabalho, destas experiências vincula-se à percepção mais
ampla daquilo que se obtém no circuito das tro-
recupera a inserção econômica e social dos
cas. Se um dos pontos mais importantes do con-
indivíduos, o que permite também a recom- sumo capitalista é a construção identitária, no
posição da própria sociedade, à medida que caso do consumo solidário, a questão não perde
garante inclusão do indivíduo no grupo social valor. É fundamental que, com o redimensiona-
da empresa coletiva e no próprio mercado: o mento político da troca, a identidade individual
indivíduo recupera a crença no caráter coleti- e coletiva se forje a partir de outros ganhos, que

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Arij Mohamad Radwan Omar Chabrawi

não a distinção: a coesão social, o enriquecimento de sociabilidade e que, talvez, resida aí uma
pelo encontro com a diferença, o protagonismo de suas maiores contribuições, ao oxigenar o
econômico e social, o fortalecimento da ação e da mundo capitalista com outras racionalidades.
palavra (Santos, 2011, p. 198). O fato que se aclara com os exemplos e a re-
visão literária é de que outra realidade não só
Contudo, é também evidente que nem to- é possível, como já está sendo construída ape-
dos os trabalhadores envolvidos em iniciativas sar de todas as suas contradições e seu caráter
no âmbito da economia solidária se percebem de escala reduzida. A pretensão da economia
como sócios-trabalhadores. Na pesquisa sobre solidária não é a revolução econômica e polí-
o processo de construção identitária de Este- tica, mas apontar problemas provindos da ló-
ves e Veronese (2011), foi demonstrado que gica capitalista, conceber alternativas viáveis,
muitos se percebem não como sócios-trabalha- ainda que dentro do capitalismo, e colocá-las
dores, mas como empregados, já que em sua em prática mesmo com todas as dificuldades
vivência da condição societária de sócios-tra- e percalços do caminho. O caráter de proces-
balhadores não percebem suficientes carac- so é inerente a todo tipo de mudança e, como
terísticas do protótipo para se identificarem tal, demanda tempo e construção coletiva para
com ele e, por outro lado, identificam nessa seu crescimento e consolidação, de iniciativas
vivência características daquilo que é próprio a iniciativas.
da condição de empregado. As pessoas que No ensejo de se pensar a consolidação
não assumem a identidade prototípica sofrem da economia solidária, é inevitável a assun-
com a não conformidade entre sua condição ção por parte do Estado sobre a necessidade
societária e sua identidade psicossocial: umas de construção de políticas públicas para seu
se calam e seguem trabalhando, outras aban- apoio, ampliação e fortificação. Contudo, uma
donam a cooperativa. As informações apon- política desta ordem só será efetiva a partir do
tadas demonstram a condição de se viver em amplo conhecimento apriorístico da sociedade
um modelo hegemônico extremamente impo- contemporânea em todas as suas vertentes,
sitivo. Apesar de muitas vezes tentar construir principalmente para os efeitos de uma daque-
alternativas, os indivíduos acabam por carre- las que mais move o mundo: a subjetiva, em
gar muitos estigmas e valores que consequen- suas nuances identitárias, simbólicas, de re-
temente minam o alcance dos objetivos reais e presentação comportamental pelo consumo,
concretos da economia solidária. de saúde mental e todas as significações da
Neste sentido, incorre-se na mesma pergun- realidade que esta vertente possa construir.
ta abordada no estudo de Esteves e Veronese Também se faz necessário o mesmo tipo de
(2011, p. 79): Em que medida os trabalhadores conhecimento prévio das dificuldades e dis-
associados serão capazes de se transformarem torções no momento da prática da economia
de “classe-em-si em classe-para-si” e articula- solidária, para que seja possível criar ações
rem de forma coerente um projeto macrosso- voltadas a um contexto real e previamente co-
cial (econômico e político) à experimentação nhecido para se alcançar a tão almejada cons-
microeconômica? As autoras concluem que trução de uma sociedade plural, igualitária,
a resposta a esta indagação somente o tempo inclusiva, justa e solidária.
histórico poderá dar, mas que sua conforma-
ção aponta para o futuro e a emancipação. Referências
A este ponto, agrego a tese de Santos (2011,
p. 199) em que seu entendimento pode se ge- BAUMAN, Z. 2001. Modernidade líquida. Rio de
neralizar não apenas ao consumo, mas a todas Janeiro, Jorge Zahar, 280 p.
BERGER, P; LUCKMANN, T. 1972. A construção so-
as iniciativas de economia solidária por par-
cial da realidade. Petrópolis, Editora Vozes, 247 p.
ticiparem das mesmas condições e contradi- CRUZ, A.; SANTOS, A.M. 2011. A economia soli-
ções: as experiências solidárias de consumo, dária e as novas utopias: permanências e rup-
bem como outras de caráter popular, não de- turas no movimento histórico do associativismo
vem ser prematuramente desconsideradas ou econômico. In: P. HESPANHA; A.M. SANTOS
descartadas quando configuram experiências (orgs.), Economia solidária: questões teóricas e meto-
pontuais. O que pode parecer fracasso, dada dológicas. Coimbra, Edições Almedina, p. 57-82.
DEBORD, G. 1997. A sociedade do espetáculo. Rio de
a descontinuidade, deve ser entendido como Janeiro, Contraponto, 164 p.
um processo. Deve-se levar em conta que este ESTEVES, E.G.; VERONESE, M.V. 2011. Identidade
processo implica, antes mesmo do resultado e economia solidária: sobre o processo de cons-
econômico, a aprendizagem de novas formas trução identitária no trabalho autogestionário.

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Perspectivas sociopsicológicas do trabalho na contemporaneidade sob a lógica do capitalismo e da economia solidária

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