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Universidade de Brasília

Faculdade de Direito
Direito, Cinema e Literatura
Prof. Cristiano Paixão
Al. Gabriela Almeida Fritz – 160088089

O PROCESSO DE LUTO E SEUS DETERMINANTES


Uma análise à luz de abordagens específicas no cinema e na literatura

Introdução
No presente trabalho, tratarei a repeito do processo de luto a partir da análise de três
obras principais: o livro K., relato de uma busca, do escritor brasileiro Bernardo Kucinski; o
documentário Honestino, cuja direção é de Maria Coeli; e o filme argentino O segredo dos
seus olhos, dirigido por Juan José Campanella. Em todas as histórias, as mortes trabalhadas
são violentas e inesperadas e isso, junto com outros aspectos, interfere diretamente no
processo de luto.
Assim, no primeiro tópico, abordarei os aspectos principalmente psicológicos que
envolvem o luto, bem como as particularidades que interferem em seu andamento. Em
seguida, utilizarei como base as histórias do livro e do documentário para expor as condições
de luto dos familiares e amigos de desaparecidos e as condições específicas que situações
desse tipo envolvem, como a ausência do corpo e a incerteza da morte. Então, o terceiro
tópico refere-se a casos de homicídios que geram no enlutado uma necessidade de “justiça” e
uma inconformidade diante da não responsabilização do criminoso, discussão que será
orientada a partir do filme.

1.. O luto, suas fases e determinantes


É importante, antes de explorar o tema no âmbito dos filmes e textos propostos,
abordar um pouco do estudo psicossocial acerca do luto, para que a exposição posterior se
torne mais clara. É consensual que a morte é uma das perdas mais difíceis de ser superada, em
decorrência de sua irreversibilidade e de envolver um conjunto de perdas adjacentes que não
se limitam à pessoa em si. Assim, são criadas diversas formas de lidar com o sentimento de
pesar, de defender “os que ficam” da dor devastadora. Nesse sentido, o luto é uma das
tradições humanas mais universais: apesar das muitas variações, consiste em um conceito
global para designar as reações emocionais, as mudanças e as condições decorrentes da perda
e é um processo pelo qual a grande maioria das pessoas passa em algum momento da vida. É
extremamente conflituoso e envolve muita carga de sofrimento emocional, mas, em condições
normais e quando decorre naturalmente, têm um elevado valor adaptativo.
Uma característica importante do luto é que ele deve ser vivenciado, enfrentado, para
que resulte na superação saudável; portanto requer uma postura de certa forma ativa do
enlutado. Nesse sentido, algumas “tarefas” são básicas para a recuperação e, se não realizadas,
há o risco de que se ultrapasse a linha tênue entre o luto comum e o patológico. Portanto, sua
duração “parece estar relacionada à forma como o enlutado faz o ‘trabalho de luto’, que
requer reajustes frente a ausência do falecido, a formação de novas relações e a ‘libertação’
em relação ao pesar” (MOURA, p. 22). Dentre o processo, fazem parte a procura (reflexão
sobre o que foi perdido); a rememoração das lembranças relacionadas à perda, o que requer
que elas não sejam evitadas; e a conciliação entre a perda e as crenças individuais a repeito do
mundo.
Há a possibilidade de se sistematizar o luto em fases (ou tarefas) 1, mas é necessário
pontuar que nem sempre todas elas são vivenciadas e a ordem não é necessariamente a que
será seguida na exposição, bem como podem ocorrer simultaneamente. Ou seja, não há como
prever como será o processo ou seu tempo de duração, mas há alguns aspectos que são mais
padronizados (ver MOURA, p. 23). Inicialmente, é usual o choque diante da notícia e uma
negação do ocorrido, bem como o entorpecimento, o qual serve como uma barreira emocional
de autoproteção. Em sequência, a fase de anseio ou busca é muito comum, pois há o desejo de
retorno do ente falecido, mesmo após a tomada de consciência quanto a morte e a
impossibilidade da volta. Nessa etapa, há uma extrema dificuldade de concentrar-se e de
pensar em qualquer coisa que não esteja relacionada à perda. Aqui também, a raiva está muito
presente, podendo ser generalizada, sem um destinatário próprio; ligada à culpabilização do
outro; ou revertida para si e, nesse caso, pode-se sentir a necessidade de autopunição.
Então, há o momento de encarar as mudanças, possivelmente drásticas, decorrentes da
ausência do ente, o que envolve um sentimento de desorganização e desconsolo. Até porque,
muitas vezes, esse enfrentamento é forçado pela própria rotina e a pessoa pode não estar
emocionalmente preparada. Assim após o reconhecimento do caráter permanente da perda, o
enlutado deve adaptar-se à nova realidade, deve reorganizar-se (proposta como última
fase/tarefa do processo), o que vai desde uma reorientação emotiva e econômica até a revisão

1 Bowlby (1985) e Worden (1998) são os primeiros estudiosos a apresentar essa sistematização do luto. O
primeiro indica uma sucessão de fases do luto, já o segundo prefere o termo tarefas, pois considera que fases
pressupõe um sujeito passivo e isso é incoerente com a realidade do processo, que exige uma postura ativa do
enlutado.
dos próprios papeis que antes se desempenhava, mas que precisam ser realocados – ou seja,
no caso da perda de um cônjuge, p. ex., deve-se lidar com a perda do papel marital
anteriormente exercido, tanto próprio quanto do parceiro que morreu. Então, é necessário se
redescobrir, encontrar outros hábitos e papeis que se adéquem à nova rotina e identidade
individual.
Phillippe Ariès indica que após a Primeira Guerra Mundial, as atitudes tradicionais em
face da morte foram abandonadas na Europa – principalmente nos países industriais do
noroeste europeu – e nos Estados Unidos, o que acabou por se disseminar pela sociedade
ocidental. A modernidade, com sua tendência à urbanização e à racionalização, trouxe uma
interdição da morte, limita-se os rituais do luto ao mínimo e interdita-se a manifestação
pública da dor, o processo torna-se preferencialmente solitário e envergonhado. Ou seja, a
morte tornou-se um tabu e o luto passou a ser desvalorizado, o que dificulta a superação e
torna a perda mais traumática e dolorosa.
Além desse fator social, há outras condições que influenciam as respostas psicológicas
e comportamentais do enlutado: outras experiências de perda, idade (do falecido e do
enlutado), o apego, o tipo de relacionamento que se tinha (e o grau de parentesco), estresses
secundários, dentre outros. Um dos fatores que mais determina as condições – quais reações
irão se manifestar, sua intensidade e frequência – e resultado (normal ou patológico) do luto é
o modo de morte. A morte esperada ou natural é notadamente mais fácil de ser aceita e o
processo de luto tende a ser menos duradouro e doloroso. Já nos casos de mortes inesperadas
e violentas, o luto torna-se muito mais complexo e o risco de um luto mal elaborado, ou até
mesmo patológico, é bem maior. Em todas as obras tratadas, verifica-se que as mortes se
encaixam no segundo caso, são súbitas e violentas e isso traz consequências específicas a cada
um dos enlutados que abordarei a seguir.

2. A procura interminável e o luto não elaborado dos familiares de desaparecidos


A partir da abordagem das obras K., relato de uma busca e Honestino, tratarei um
pouco sobre o caráter peculiar do luto de desaparecidos, especificamente no contexto da
ditadura civil-militar brasileira. É notável que o desaparecimento de civis por motivação
política – que desobedece as normas da Convenção de Genebra (1949) – é uma invenção das
ditaduras latino-americanas como uma forma de estender a tortura, não só infligida
fisicamente aos presos, mas também psicologicamente a seus familiares. Essa característica
particular que difere os governos repressivos da América Latina é pontuada pelo protagonista
do livro, em um dos muitos trechos (KUCINSKI, p. 145) que retrata seu fluxo de consciência:
Na Polônia, embora a repressão fosse dura, quando prendiam, registravam, avisavam a
família. Depois tinha julgamento. Havia acusação e defesa, visitas à prisão. Lá não
sumiam com os presos.

O livro de Kucinski relata a procura de K. – judeu imigrante da Polônia durante o


Holocausto – pela filha após seu súbito desaparecimento em 1974. Ele se angustia no décimo
dia sem receber suas ligações e então vai à Universidade de São Paulo, onde ela ministrava
aulas de química, mas as colegas de trabalho constatam que ela faltava há onze dias. Percebe-
se no trecho a inquietação das colegas, o que é um dos primeiros indícios do envolvimento
político de Ana Rosa. Esse silêncio, inquietação, “meias palavras”, está presente o tempo todo
ao longo dos diálogos, o que mostra o clima de medo generalizado causado pela repressão. Só
o ato de falar já é perigoso e isso torna a busca ainda mais difícil, pois não só o Estado
esconde as informações, mas as pessoas que conviviam com a vítima tendem a não se expor,
num instinto de autoproteção.
Ao longo da procura, K. relembra algumas conversas que teve com a filha, suas
atitudes e recomendações – por exemplo, o fato de ela tê-lo orientado a não procurá-la em
determinado endereço e telefone a não ser em casos emergenciais –, as quais indicavam sua
atividade clandestina, mas que ele não notou. Nesse sentido, há um intenso sentimento de
culpa, expressado muitas vezes ao longo da história. Ele vincula sua ausência como pai à
dedicação excessiva ao iídiche2, inclusive no final do livro compromete-se a abandonar a
língua e a nunca mais escrever nada no idioma que lhe custou a filha. Essa raiva revertida a si,
com a necessidade de personificar a causa da morte para projetar a culpa, gera uma
necessidade de autopunição que é evidenciada nos últimos capítulos do livro quando ele já
constatou a busca como inútil, mas indica que é uma forma de se redimir, de se punir por não
ter sido mais presente e por não ter feito nada para evitar o ocorrido.
Outra questão que se soma a esses conflitos é o fato de ela ter se casado sem que ele
soubesse e, pior ainda, o fato de a família do noivo saber. Isso o mortifica, pois não há um
motivo óbvio para o segredo quanto ao matrimônio, então ele conjectura possibilidades, todas
voltadas à culpabilização de si mesmo. Há de certa forma uma estagnação quanto ao mundo
externo, sua vida passa ao segundo plano e a morte da filha torna-se o foco. Tal
comportamento é característico da melancolia, a autoestima é rebaixada de uma forma que
não ocorre no luto em si. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o

2 Língua judaica que foi se perdendo após o Holocausto.


próprio ego” (Freud, 1917, pp. 251). Por isso, o enlutado melancólico/depressivo busca
punição, culpa-se, degrada-se” (MOURA, p. 28).
Já em Honestino, não é retratada a situação do luto em si, mas ao longo das narrativas
e dado o modo da morte, pode-se fazer inferências. No documentário, a trajetória de
Honestino Monteiro Guimarães, estudante da Universidade de Brasília assassinado pela
ditadura em 1973, é construída a partir do testemunho de seus amigos e companheiros de luta,
da mãe Rosa e do irmão Norton. Algumas características do estudante de geologia são
reiteradas ao longo do vídeo, como sua capacidade nata de liderança, companheirismo e bom
humor. Outra característica citada é que era um leitor ávido 3 e que foi o primeiro da família a
ingressar em um curso de graduação e isso é abordado por sua mãe de uma forma
extremamente orgulhosa. Percebe-se uma certa idealização do falecido – assim como de Ana
Rosa por parte de K. –, bem como a evocação constante de boas lembranças. Como afirma
Moura (p. 17), é uma tendência que enlutados busquem idealizar e manter a boa imagem do
falecido e que sobreponham as lembranças aprazíveis e aspectos positivos do relacionamento,
de forma que essas sejam as memórias a se perpetuar.
Também é relevante no documentário a influência da idade do falecido no processo de
luto. A morte de uma pessoa jovem, que não teve a oportunidade de realizar projetos, que
viveu pouco tempo, é mais difícil de aceitar do que a de um idoso, considerada mais “natural”
por nossa sociedade. Além disso, a idade do enlutado também interfere: pessoas mais velhas
costumam lidar mais com a culpa do que enlutados jovens, que tem como aspecto marcante a
revolta (ver MOURA, p. 34). Pode-se perceber isso na grande comoção nacional e
intensificação dos movimentos sociais com a morte do estudante Edison Luiz, citada durante
o documentário, e também do próprio Honestino. Assim, a raiva se orienta para o regime,
responsável pelos homicídios, e percebe-se o movimento estudantil como o mais influenciado
pelos desaparecimentos em decorrência da identificação que os estudantes tinham com as
vítimas, tanto pela militância comum quanto pela faixa etária próxima.
Um aspecto importante presente nas duas situações descritas é a impossibilidade dos
ritos de despedida, já que não há corpo. “A ocultação de corpos é um crime que perdura o
crime de morte, que não cessa enquanto não se localizam os restos mortais (…). São duas
formas de dor: a da certeza da perda e a da incerteza da perda, gerada pela falta do corpo”

3 Pode-se fazer um paralelo entre ele e o marido de Ana Kucinski, o qual também tinha grande apreço por livros,
principalmente os revolucionários. Ele deixou uma grande biblioteca particular cujos livros eram, em parte,
furtados das principais livrarias da cidade, pois, segundo ele, esses livros deveriam alimentar a causa socialista e
não sustentar grandes lojas. Outros, eram de livrarias clandestinas envolvidas politicamente com o ideal, das
quais ele comprava, afinal, como afirma, é um revolucionário e não um ladrão.
(RUBERT, p. 1349). O enterro é um dos rituais mais importantes no sentido de concretizar a
despedida e a certeza da morte. Apesar de a ausência do corpo sugerir a morte, não permite
que ela se concretize no imaginário dos enlutados. Como já foi exposto, essa é uma das
tarefas indispensáveis do luto, a percepção da morte como uma certeza, só assim é possível ao
enlutado se reorganizar e seguir a própria vida adaptando-se às novas condições. Nesse
sentido, além de impossibilitar o enterro, o “muro de silêncio em torno do sumidouro de
pessoas” (KUCINSKI, p. 145) prolonga uma permanente dúvida quanto ao que aconteceu de
fato, perpetua indefinidamente a tortura.
Nesses casos de mortes súbitas e inesperadas, os enlutados tendem a buscar
informações que os permitam entender os detalhes relacionados à morte e isso os ajuda a
compreender de forma “racional” suas circunstâncias e a reduzir sua ansiedade e confusão.
Em K., ele não tinha conhecimento nem dos riscos que a filha corria, portanto a surpresa foi
ainda maior e isso é muito nítido ao longo da narrativa. Já a família de Honestino era
consciente de sua luta política e dos riscos, tanto que o irmão tenta convencê-lo a sair do país.
No entanto, de qualquer forma são mortes não naturais e sobre as quais as famílias não têm
nem confirmação nem detalhes mínimos. Mesmo após os esclarecimentos da Comissão
Nacional da Verdade, a maioria das mortes não foi totalmente desvendada: o que se fez com o
corpo, onde morreram, sob quais condições, etc.
Percebe-se, então, que os familiares continuam indefinidamente na fase da busca, “em
estado de vigília, de movimentação para os locais onde a pessoa normalmente estaria (…)
como formas de descaracterizar a perda, pois se ela é procurada, ela não morreu” (LOPES,
OLIVEIRA, p. 218). Mesmo depois que K. constata a morte da filha, ele continua a busca. Tal
constatação ocorre quando um general nega a prisão e levanta a hipótese de que ela teria
fugido com um amante – acusação que ele já tinha ouvido anos antes de um delegado quanto
a sua irmã, assassinada pelo nazismo na Polônia. Essa negativa da prisão é repetida pelo
ministro da justiça Armando Falcão, que se pronuncia sobre 27 desaparecidos, incluindo
Honestino, cuja prisão também é negada – segundo um dos narradores do documentário, essa
foi a confirmação de que o amigo estava morto. Em alguns momentos a insistência na procura
é justificada pela necessidade de informações e tentativa de encontrar o corpo, mas em outras
passagens, percebe-se a necessidade da busca, como forma de manter a morte da filha no
plano da dúvida. Tal persistência impede que os familiares e amigos de desaparecidos sigam
suas vidas e reorientem sua rotina. Ou seja, segue-se um luto contingente – já que não há uma
confirmação clara da morte – e permanente, pois não é elaborado e, portanto, não é superado
em sua totalidade.
3. Abdicação total do ego e paralisação diante da intencionalidade punitiva
No filme O segredo dos seus olhos, o protagonista Benjamin Espósito trabalha no
Departamento de Justiça na Argentina de 1974. Ele é designado para a investigar um caso de
estupro seguido de assassinato de uma jovem de 24 anos chamada Liliane. Nesse ínterim, ele
conhece o marido da vítima, Ricardo Morales. A resolução do crime se desenrola em meio à
narração dos relacionamentos de Espósito: o romance com Irene, a amizade com Sandoval e o
compadecimento e solidarização em relação ao viúvo. Inicialmente, o assassino não é
identificado, mas depois descobre-se que se trata de Isidoro Gómez, conterrâneo de Liliana,
com quem ela se relacionou quando mais nova.
Para abordar o tema proposto, focarei a análise no drama vivenciado pelo esposo da
falecida, Ricardo Morales. Trata-se de um luto decorrente de homicídio brutal, uma morte
inesperada e violenta que gera para o viúvo um processo extremamente dificultado. É
importante diferenciar essa situação das que foram abordadas no tópico anterior. Uma
primeira diferença é que não envolve o desaparecimento, portanto não há o elemento da
incerteza. Também, aqui o assassino é uma pessoa física, não é o Estado repressor, ente
abstrato; assim, a raiva e a culpabilização têm um destinatário específico e facilmente
identificado pelo enlutado. Outro fator distintivo é que se trata de uma tragédia privada, não
há como nos casos anteriores uma solidarização coletiva, mesmo que velada, ou impacto
relevante em pessoas que não estejam diretamente envolvidas, portanto o processo é ainda
mais solitário. Um último fator extremamente relevante é que a vítima não tinha nenhum
conhecimento quanto aos riscos que corria, envolve um elemento repentino tanto em relação
ao enlutado quanto em relação à falecida.
No que concerne ao luto propriamente dito, percebe-se em Morales, no momento em
que Espósito o interroga no início do filme, as características da primeira fase do luto de
entorpecimento e choque. Ele mesmo afirma em uma cena posterior sua negação: segundo
ele, ajuda-o a continuar vivendo, até que o assassino seja encontrado. A impressão passada é
que ele está em uma transição entre o choque e o momento de reflexão sobre o que foi
perdido, que envolve a raiva, nesse caso destinada ao assassino ainda indeterminado, e a
fixação no ocorrido. Todos esses aspectos são características comuns e consideradas normais
no contexto do luto.
Então, através das investigações de Espósito, o assassino é identificado e Morales
passa a se ocupar em procurá-lo para que ele seja devidamente punido. A vontade de punir o
criminoso é corresponde a uma necessidade que o enlutado tem de infligir sua dor ao
indivíduo que a causou para assim buscar amenizá-la. Isso fica nítido quando o viúvo afirma
que a pena de morte é “injusta”, afinal ele mesmo gostaria de uma injeção que o fizesse
“dormir tranquilamente”. Em sua concepção, a prisão perpétua é mais adequada, pois imporia
ao assassino a mesma condição que ele lhe impôs ao tirar-lha a esposa: “uma vida cheia de
nadas” (CAMPANELLA, 2010). Nesse sentido, é perceptível tanto nessa fala quanto ao longo
do filme que o enlutado atribuía ao afeto marital toda a significação de sua vida, de sua
existência. Portanto, perder a esposa foi perder sua motivação, tanto que em vários momentos
ele demonstra uma ausência de apego à própria vida. Assim, para manter-se, ele orienta sua
identidade não mais na relação afetiva com a esposa, mas no ódio ao responsável por
impossibilitar a realização dessa afetividade.
Assim, mesmo depois de um ano da tragédia, Morales continua se dedicando
totalmente à morte da esposa, especificamente em encontra e punir o assassino. Ele vai às
estações de trem todos os dias, de forma sistemática e organizada, esperando que em algum
momento Isidoro passe por lá. Isso demonstra não mais uma postura de enlutamento, mas de
obsessão. As fases próprias do luto, de choque, reflexão, desespero e reorganização, foram,
em seu sentido estrito, vivenciadas. Contudo, a conclusão do luto pressupõe que o enlutado se
desvincule afetivamente do falecido e passe a viver em prol do próprio ego, não mais preso à
morte do ente. Já Morales segue o caminho oposto, ele se reorienta e cria uma nova rotina
sem a esposa, mas vincula totalmente sua vida à tragédia, abdica do ego e se mantém com
base na raiva e na culpabilização do outro, que alimentam a vontade punitiva.
Ao longo do filme, Isidoro é capturado, mas, em decorrência da inefetividade e
corrupção do sistema de justiça, é solto e passa a ocupar um cargo de poder. É mandatário do
assassinato de Sandoval, morto por ter sido confundido com Espósito, que se muda às pressas
para se proteger. Pouco tempo depois, o criminoso desaparece. Então, transcorridos vinte e
cinco anos, o protagonista volta, pois está escrevendo a respeito desse caso que afetou tanto
sua vida e pretende se encontrar com os envolvidos para saber suas situações atuais. Assim,
ele vai ao sítio onde mora o viúvo de Liliane, em um local isolado. Lá, Morales lhe
recomenda que esqueça o ocorrido, afinal, é um problema que não lhe diz respeito. Contudo,
ao perceber a determinação de Espósito em encontrar Gómez, o viúvo lhe conta que matou o
criminoso, que “lhe deu quatro tiros”.
Pensando a respeito do diálogo que acabaram de ter e de outros do passado, o escritor
desconfia e retorna ao sítio. Lá, nos fundos do casebre, ele flagra Morales levando comida
para um Isidoro prisioneiro. O enlutado concretiza a punição ao criminoso, condenando-o a
prisão perpétua, na qual o mantém sem nunca nem conversar com ele, o priva de sua
humanidade. Porém, para isso também abdica da própria vida e da possibilidade de um futuro.
Ou seja, ele se paralisa no tempo, no momento da tragédia, sem nunca superá-lo.

Conclusão
O luto é um processo pelo qual a grande maioria das pessoas já passou ou vai passar
ao longo da vida e tem uma grande importância adaptativa. Apesar disso, foi desvalorizado
com as mudanças decorrentes da modernização pós Primeira Guerra Mundial. Assim, a morte
tornou-se um tabu e cobra-se rituais agilizados e privados, o que impõe certa solidão. Quanto
ao processo de enlutamento, é necessário que a pessoa enfrente algumas fases/tarefas, para
que, ao final, consiga retomar a própria vida e superar a perda de forma saudável. Nesse
âmbito, alguns aspectos influenciam as manifestações emocionais típicas, além de
determinarem sua duração.
No contexto da ditadura civil-militar brasileira, muitos foram os casos de
desaparecimentos de civis que lutavam contra a repressão, como Honestino Guimarães e Ana
Rosa Kucinski. Tal situação de incerteza e ausência do corpo impõe aos enlutados a procura
incessante e a incerteza e isso prolonga e dificulta imensamente a superação. É uma forma de
estender a tortura e prolongá-la, ampliando, com isso, o próprio alcance do regime.
Outra situação peculiar de luto são os casos de homicídios violentos, em que o
assassino não é punido pelo sistema jurídico falho. Isso é demonstrado por meio de Ricardo
Morales, cuja esposa foi brutalmente assassinada. Nesse caso, o enlutado não só não superou
a morte como também orientou todo o seu futuro com base nela, a partir do esforço para punir
o assassino. Ele se despersonifica para penalizar o causador de sua perda.
Dessa forma, além do que foi exposto, há muito ainda a ser abordado quanto ao
processo de luto. Em decorrência da já citada desvalorização, a literatura acadêmica a respeito
do tema é escassa. Além disso, os profissionais da saúde, que hoje em dia são, na maioria das
vezes, as primeiras pessoas a lidarem com o enlutado, não têm uma orientação consistente a
respeito de como facilitar o processo ou das particularidades possíveis. Isso é extremamente
prejudicial no âmbito do indivíduo enlutado, pois ele não tem um suporte consistente e nem
orientação adequada para lidar com a perda, e também num âmbito social, visto que a morte
assume um caráter de tabu e o enfrentamento é dificultado, bem como todo o processo e a
superação.
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