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Faculdade de Direito
Direito, Cinema e Literatura
Prof. Cristiano Paixão
Al. Gabriela Almeida Fritz – 160088089
Introdução
No presente trabalho, tratarei a repeito do processo de luto a partir da análise de três
obras principais: o livro K., relato de uma busca, do escritor brasileiro Bernardo Kucinski; o
documentário Honestino, cuja direção é de Maria Coeli; e o filme argentino O segredo dos
seus olhos, dirigido por Juan José Campanella. Em todas as histórias, as mortes trabalhadas
são violentas e inesperadas e isso, junto com outros aspectos, interfere diretamente no
processo de luto.
Assim, no primeiro tópico, abordarei os aspectos principalmente psicológicos que
envolvem o luto, bem como as particularidades que interferem em seu andamento. Em
seguida, utilizarei como base as histórias do livro e do documentário para expor as condições
de luto dos familiares e amigos de desaparecidos e as condições específicas que situações
desse tipo envolvem, como a ausência do corpo e a incerteza da morte. Então, o terceiro
tópico refere-se a casos de homicídios que geram no enlutado uma necessidade de “justiça” e
uma inconformidade diante da não responsabilização do criminoso, discussão que será
orientada a partir do filme.
1 Bowlby (1985) e Worden (1998) são os primeiros estudiosos a apresentar essa sistematização do luto. O
primeiro indica uma sucessão de fases do luto, já o segundo prefere o termo tarefas, pois considera que fases
pressupõe um sujeito passivo e isso é incoerente com a realidade do processo, que exige uma postura ativa do
enlutado.
dos próprios papeis que antes se desempenhava, mas que precisam ser realocados – ou seja,
no caso da perda de um cônjuge, p. ex., deve-se lidar com a perda do papel marital
anteriormente exercido, tanto próprio quanto do parceiro que morreu. Então, é necessário se
redescobrir, encontrar outros hábitos e papeis que se adéquem à nova rotina e identidade
individual.
Phillippe Ariès indica que após a Primeira Guerra Mundial, as atitudes tradicionais em
face da morte foram abandonadas na Europa – principalmente nos países industriais do
noroeste europeu – e nos Estados Unidos, o que acabou por se disseminar pela sociedade
ocidental. A modernidade, com sua tendência à urbanização e à racionalização, trouxe uma
interdição da morte, limita-se os rituais do luto ao mínimo e interdita-se a manifestação
pública da dor, o processo torna-se preferencialmente solitário e envergonhado. Ou seja, a
morte tornou-se um tabu e o luto passou a ser desvalorizado, o que dificulta a superação e
torna a perda mais traumática e dolorosa.
Além desse fator social, há outras condições que influenciam as respostas psicológicas
e comportamentais do enlutado: outras experiências de perda, idade (do falecido e do
enlutado), o apego, o tipo de relacionamento que se tinha (e o grau de parentesco), estresses
secundários, dentre outros. Um dos fatores que mais determina as condições – quais reações
irão se manifestar, sua intensidade e frequência – e resultado (normal ou patológico) do luto é
o modo de morte. A morte esperada ou natural é notadamente mais fácil de ser aceita e o
processo de luto tende a ser menos duradouro e doloroso. Já nos casos de mortes inesperadas
e violentas, o luto torna-se muito mais complexo e o risco de um luto mal elaborado, ou até
mesmo patológico, é bem maior. Em todas as obras tratadas, verifica-se que as mortes se
encaixam no segundo caso, são súbitas e violentas e isso traz consequências específicas a cada
um dos enlutados que abordarei a seguir.
3 Pode-se fazer um paralelo entre ele e o marido de Ana Kucinski, o qual também tinha grande apreço por livros,
principalmente os revolucionários. Ele deixou uma grande biblioteca particular cujos livros eram, em parte,
furtados das principais livrarias da cidade, pois, segundo ele, esses livros deveriam alimentar a causa socialista e
não sustentar grandes lojas. Outros, eram de livrarias clandestinas envolvidas politicamente com o ideal, das
quais ele comprava, afinal, como afirma, é um revolucionário e não um ladrão.
(RUBERT, p. 1349). O enterro é um dos rituais mais importantes no sentido de concretizar a
despedida e a certeza da morte. Apesar de a ausência do corpo sugerir a morte, não permite
que ela se concretize no imaginário dos enlutados. Como já foi exposto, essa é uma das
tarefas indispensáveis do luto, a percepção da morte como uma certeza, só assim é possível ao
enlutado se reorganizar e seguir a própria vida adaptando-se às novas condições. Nesse
sentido, além de impossibilitar o enterro, o “muro de silêncio em torno do sumidouro de
pessoas” (KUCINSKI, p. 145) prolonga uma permanente dúvida quanto ao que aconteceu de
fato, perpetua indefinidamente a tortura.
Nesses casos de mortes súbitas e inesperadas, os enlutados tendem a buscar
informações que os permitam entender os detalhes relacionados à morte e isso os ajuda a
compreender de forma “racional” suas circunstâncias e a reduzir sua ansiedade e confusão.
Em K., ele não tinha conhecimento nem dos riscos que a filha corria, portanto a surpresa foi
ainda maior e isso é muito nítido ao longo da narrativa. Já a família de Honestino era
consciente de sua luta política e dos riscos, tanto que o irmão tenta convencê-lo a sair do país.
No entanto, de qualquer forma são mortes não naturais e sobre as quais as famílias não têm
nem confirmação nem detalhes mínimos. Mesmo após os esclarecimentos da Comissão
Nacional da Verdade, a maioria das mortes não foi totalmente desvendada: o que se fez com o
corpo, onde morreram, sob quais condições, etc.
Percebe-se, então, que os familiares continuam indefinidamente na fase da busca, “em
estado de vigília, de movimentação para os locais onde a pessoa normalmente estaria (…)
como formas de descaracterizar a perda, pois se ela é procurada, ela não morreu” (LOPES,
OLIVEIRA, p. 218). Mesmo depois que K. constata a morte da filha, ele continua a busca. Tal
constatação ocorre quando um general nega a prisão e levanta a hipótese de que ela teria
fugido com um amante – acusação que ele já tinha ouvido anos antes de um delegado quanto
a sua irmã, assassinada pelo nazismo na Polônia. Essa negativa da prisão é repetida pelo
ministro da justiça Armando Falcão, que se pronuncia sobre 27 desaparecidos, incluindo
Honestino, cuja prisão também é negada – segundo um dos narradores do documentário, essa
foi a confirmação de que o amigo estava morto. Em alguns momentos a insistência na procura
é justificada pela necessidade de informações e tentativa de encontrar o corpo, mas em outras
passagens, percebe-se a necessidade da busca, como forma de manter a morte da filha no
plano da dúvida. Tal persistência impede que os familiares e amigos de desaparecidos sigam
suas vidas e reorientem sua rotina. Ou seja, segue-se um luto contingente – já que não há uma
confirmação clara da morte – e permanente, pois não é elaborado e, portanto, não é superado
em sua totalidade.
3. Abdicação total do ego e paralisação diante da intencionalidade punitiva
No filme O segredo dos seus olhos, o protagonista Benjamin Espósito trabalha no
Departamento de Justiça na Argentina de 1974. Ele é designado para a investigar um caso de
estupro seguido de assassinato de uma jovem de 24 anos chamada Liliane. Nesse ínterim, ele
conhece o marido da vítima, Ricardo Morales. A resolução do crime se desenrola em meio à
narração dos relacionamentos de Espósito: o romance com Irene, a amizade com Sandoval e o
compadecimento e solidarização em relação ao viúvo. Inicialmente, o assassino não é
identificado, mas depois descobre-se que se trata de Isidoro Gómez, conterrâneo de Liliana,
com quem ela se relacionou quando mais nova.
Para abordar o tema proposto, focarei a análise no drama vivenciado pelo esposo da
falecida, Ricardo Morales. Trata-se de um luto decorrente de homicídio brutal, uma morte
inesperada e violenta que gera para o viúvo um processo extremamente dificultado. É
importante diferenciar essa situação das que foram abordadas no tópico anterior. Uma
primeira diferença é que não envolve o desaparecimento, portanto não há o elemento da
incerteza. Também, aqui o assassino é uma pessoa física, não é o Estado repressor, ente
abstrato; assim, a raiva e a culpabilização têm um destinatário específico e facilmente
identificado pelo enlutado. Outro fator distintivo é que se trata de uma tragédia privada, não
há como nos casos anteriores uma solidarização coletiva, mesmo que velada, ou impacto
relevante em pessoas que não estejam diretamente envolvidas, portanto o processo é ainda
mais solitário. Um último fator extremamente relevante é que a vítima não tinha nenhum
conhecimento quanto aos riscos que corria, envolve um elemento repentino tanto em relação
ao enlutado quanto em relação à falecida.
No que concerne ao luto propriamente dito, percebe-se em Morales, no momento em
que Espósito o interroga no início do filme, as características da primeira fase do luto de
entorpecimento e choque. Ele mesmo afirma em uma cena posterior sua negação: segundo
ele, ajuda-o a continuar vivendo, até que o assassino seja encontrado. A impressão passada é
que ele está em uma transição entre o choque e o momento de reflexão sobre o que foi
perdido, que envolve a raiva, nesse caso destinada ao assassino ainda indeterminado, e a
fixação no ocorrido. Todos esses aspectos são características comuns e consideradas normais
no contexto do luto.
Então, através das investigações de Espósito, o assassino é identificado e Morales
passa a se ocupar em procurá-lo para que ele seja devidamente punido. A vontade de punir o
criminoso é corresponde a uma necessidade que o enlutado tem de infligir sua dor ao
indivíduo que a causou para assim buscar amenizá-la. Isso fica nítido quando o viúvo afirma
que a pena de morte é “injusta”, afinal ele mesmo gostaria de uma injeção que o fizesse
“dormir tranquilamente”. Em sua concepção, a prisão perpétua é mais adequada, pois imporia
ao assassino a mesma condição que ele lhe impôs ao tirar-lha a esposa: “uma vida cheia de
nadas” (CAMPANELLA, 2010). Nesse sentido, é perceptível tanto nessa fala quanto ao longo
do filme que o enlutado atribuía ao afeto marital toda a significação de sua vida, de sua
existência. Portanto, perder a esposa foi perder sua motivação, tanto que em vários momentos
ele demonstra uma ausência de apego à própria vida. Assim, para manter-se, ele orienta sua
identidade não mais na relação afetiva com a esposa, mas no ódio ao responsável por
impossibilitar a realização dessa afetividade.
Assim, mesmo depois de um ano da tragédia, Morales continua se dedicando
totalmente à morte da esposa, especificamente em encontra e punir o assassino. Ele vai às
estações de trem todos os dias, de forma sistemática e organizada, esperando que em algum
momento Isidoro passe por lá. Isso demonstra não mais uma postura de enlutamento, mas de
obsessão. As fases próprias do luto, de choque, reflexão, desespero e reorganização, foram,
em seu sentido estrito, vivenciadas. Contudo, a conclusão do luto pressupõe que o enlutado se
desvincule afetivamente do falecido e passe a viver em prol do próprio ego, não mais preso à
morte do ente. Já Morales segue o caminho oposto, ele se reorienta e cria uma nova rotina
sem a esposa, mas vincula totalmente sua vida à tragédia, abdica do ego e se mantém com
base na raiva e na culpabilização do outro, que alimentam a vontade punitiva.
Ao longo do filme, Isidoro é capturado, mas, em decorrência da inefetividade e
corrupção do sistema de justiça, é solto e passa a ocupar um cargo de poder. É mandatário do
assassinato de Sandoval, morto por ter sido confundido com Espósito, que se muda às pressas
para se proteger. Pouco tempo depois, o criminoso desaparece. Então, transcorridos vinte e
cinco anos, o protagonista volta, pois está escrevendo a respeito desse caso que afetou tanto
sua vida e pretende se encontrar com os envolvidos para saber suas situações atuais. Assim,
ele vai ao sítio onde mora o viúvo de Liliane, em um local isolado. Lá, Morales lhe
recomenda que esqueça o ocorrido, afinal, é um problema que não lhe diz respeito. Contudo,
ao perceber a determinação de Espósito em encontrar Gómez, o viúvo lhe conta que matou o
criminoso, que “lhe deu quatro tiros”.
Pensando a respeito do diálogo que acabaram de ter e de outros do passado, o escritor
desconfia e retorna ao sítio. Lá, nos fundos do casebre, ele flagra Morales levando comida
para um Isidoro prisioneiro. O enlutado concretiza a punição ao criminoso, condenando-o a
prisão perpétua, na qual o mantém sem nunca nem conversar com ele, o priva de sua
humanidade. Porém, para isso também abdica da própria vida e da possibilidade de um futuro.
Ou seja, ele se paralisa no tempo, no momento da tragédia, sem nunca superá-lo.
Conclusão
O luto é um processo pelo qual a grande maioria das pessoas já passou ou vai passar
ao longo da vida e tem uma grande importância adaptativa. Apesar disso, foi desvalorizado
com as mudanças decorrentes da modernização pós Primeira Guerra Mundial. Assim, a morte
tornou-se um tabu e cobra-se rituais agilizados e privados, o que impõe certa solidão. Quanto
ao processo de enlutamento, é necessário que a pessoa enfrente algumas fases/tarefas, para
que, ao final, consiga retomar a própria vida e superar a perda de forma saudável. Nesse
âmbito, alguns aspectos influenciam as manifestações emocionais típicas, além de
determinarem sua duração.
No contexto da ditadura civil-militar brasileira, muitos foram os casos de
desaparecimentos de civis que lutavam contra a repressão, como Honestino Guimarães e Ana
Rosa Kucinski. Tal situação de incerteza e ausência do corpo impõe aos enlutados a procura
incessante e a incerteza e isso prolonga e dificulta imensamente a superação. É uma forma de
estender a tortura e prolongá-la, ampliando, com isso, o próprio alcance do regime.
Outra situação peculiar de luto são os casos de homicídios violentos, em que o
assassino não é punido pelo sistema jurídico falho. Isso é demonstrado por meio de Ricardo
Morales, cuja esposa foi brutalmente assassinada. Nesse caso, o enlutado não só não superou
a morte como também orientou todo o seu futuro com base nela, a partir do esforço para punir
o assassino. Ele se despersonifica para penalizar o causador de sua perda.
Dessa forma, além do que foi exposto, há muito ainda a ser abordado quanto ao
processo de luto. Em decorrência da já citada desvalorização, a literatura acadêmica a respeito
do tema é escassa. Além disso, os profissionais da saúde, que hoje em dia são, na maioria das
vezes, as primeiras pessoas a lidarem com o enlutado, não têm uma orientação consistente a
respeito de como facilitar o processo ou das particularidades possíveis. Isso é extremamente
prejudicial no âmbito do indivíduo enlutado, pois ele não tem um suporte consistente e nem
orientação adequada para lidar com a perda, e também num âmbito social, visto que a morte
assume um caráter de tabu e o enfrentamento é dificultado, bem como todo o processo e a
superação.
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