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Introdução
I
A distinção entre fenômeno e coisa em si sintetizada por Kant em sua crítica
da razão pura, foi um marco na concepção de realidade até então aceita na Europa
do séc. XIX. A elaboração de que a forma como nossas faculdades cognitivas1
absorvem e percebem o mundo, não corresponde com o que o mundo é em si,
promove uma mudança de paradigmas sem precedentes ao desconstruir o
entendimento dos princípios da razão. Entender o mundo que o humano experimenta
como fenômeno consiste em admitir que não mais o mundo natural corresponde à
visão humana, mas sim que o homem como agente que experimenta o mundo, o faz
projetando no mundo a forma que suas capacidades permitem2. Nietzsche desenvolve
sérias consequências dessa distinção de mundos, ao elaborar como se dá a criação
dos conceitos no intelecto humano. Para ele, o ser humano se caracteriza pela
capacidade de enganar e mentir, -- compensação natural por sua inferioridade física
perante os outros animais -- sendo essa habilidade que viabiliza sua sobrevivência
subjugando os outros animais que não o fazem. É o gênio ilusório que permite ao
humano caçar com armadilhas, atrair, ludibriar predadores e adestrar outros animais
(e outros humanos). Quando se transposta para a vida em comunidade, a faculdade
de fingir convenciona mentiras comuns a todos afim de permitir a vida em uma
superficial harmonia. A essas mentiras sociais é dada a denominação de "verdade" e
sob essa perspectiva, atribui-se valor erroneamente ao intelecto e seus produtos.
3 NIETZSCHE, 2007.
excluindo suas diferenças sensíveis e concretas. Depois, a esse resultado abstrato é
dado o status de “mais valoroso” que o das coisas concretas e fenomênicas. E por
fim, o ser racional se lança em uma busca eterna e infundada rumo a um conceito de
realidade que por ser conceito, nunca poderá ser alcançado.
4 RICOUR,1976
5 NIETZSCHE, 1990.
II
A redenção possibilitada pela arte, para ser plenamente entendida, levará em
conta não só a natureza do que aqui está denominado como arte, como suas origens
e ligações com a tragédia da vida humana. Os deuses gregos da arte são usados por
Nietzsche para ilustrar os impulsos do artista (a apolínea como figurador plástico, e a
Dionisíaca o da música) a fim de aproximar analogamente as pulsões artísticas tanto
do que possui forma – as pinturas e esculturas – quanto do que é intangível – as
atuações e as músicas. O apolíneo é associado ao que Nietzsche denomina como
“sonho” ou “embriaguez”. Nos sonos em que sonhamos, nada escapa de nossa
compreensão, todas as formas nos significam algo e não há nada que não saibamos.
Ainda assim, temos uma reluzente sensação de sua aparência, de sua realidade não
totalmente desvelada. Transportando esse sentimento para o mundo em vigília, o
homem de propensão filosófica assim como a pessoa suscetível ao artístico, interpreta
a vida baseado nas ocorrências do sonho e elabora sua arte sobre as fundações
móveis das metáforas humanas. Na outra extremidade das representações oníricas,
estão presentes também as imagens sombrias, tristes, escuras: as Dionisíacas. A
capacidade de aceitar e afirmar a vida até em seus momentos mais duros e sofridos,
alegrando-se no sacrifício e “ é a outra dimensão despertada pelo artista, que não
nega nada do que é do ser, como o fazem os que se enganam com as metonímias
edificadas como verdade social necessária à vida em comunidade:
6 NIETZSCHE, 1990.
ou seja, vivendo no futuro. Do não se adequar a vida social e sentir-se culpado por
isso. Do distanciar-se do sofrimento, do escolher permanecer na menoridade, do
perceber o sofrimento como avesso a vida humana. Ele cria as mentiras sociais, afim
de infundir firmeza e edificar a vida. A ideia de arte como exercício da linguagem
humana sem pesar, parte da ideia Nietzschiana do intelecto humano que naturalmente
engana e necessita enganar. Assim como a característica definidora da condição
humana é a mentira, o tropo e a alegoria, a arte permite que o cérebro humano
exercite sua principal faculdade sem prejuízos. Tão somente pelo sonho ou pela
embriaguez, pela tragédia e pelo acolhimento, artista é capaz de realizar os instintos
naturais sem negar culpa de fazê-lo e o espectador, de deixar-se ludibriar exercendo
sua humanidade. A arte efetua a vontade de potência em sua mais genuína
expressão: onde antes existia uma tradução mundana antropomorfizada em conceito
de um humano em sono tranquilo, agora manifesta-se uma potência que desperta o
homem no realizar-se tanto em um apolíneo que pratica a beleza, a luxúria e o prazer,
quanto de um dionisíaco que aceita sua tragédia e a abraça, e a exerce, e o existir em
sofrimento não o assusta. Com as fronteiras do saber cada vez mais liquidas e
debates dicotômicos de ordem racional não prospectando outro desfecho se não o
eterno “certo versus errado”, essa construção legitimamente humana em sua
concepção profundamente natural pode ser uma alternativa aos ruídos que constituem
os diversos passos que intelecto precisa dar na aproximação ao comunicar-se bem.
A arte sob a perspectiva do jovem Nietzsche, parece sugerir recorrermos a nossas
potencias mais primitivas, expressões da enganação humana que tanto regozijam o
cérebro racional, para fugir da alienação linguística e encontrar a redenção do
intelecto. A música democratiza e integra as diferentes linguagens das diversas
nações existentes no mundo globalizado. A pintura coloca no mesmo patamar o idoso
letrado e o jovem exacerbador de gírias e tipos. A comunicação, sempre problemática
por diferentes pessoas fundarem sua linguagem sob a heterogeneidade inerente a
sua humanidade, é elaborada em um campo neutro, onde a mentira é honestamente
contada e escrupulosamente aceita.
REFERÊNCIAS
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo B. Moosburger. São Paulo:
Abril Cultural, 1980. (Coleção os pensadores).