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I.

A PERSPECTIVA STANDARD

No curso comum dos eventos, as pessoas alegam conhecer muitas coisas, e elas atribuem
aos outros numa variedade de casos. Daremos exemplos abaixo. As alegações de conhecimento
com as quais nós estamos preocupados não são irrefletidas ou esquisitas. Antes, elas são juízos
sensatos e ponderados. Assim, a lista que segue reflete um conjunto de pensamentos acerca do
conhecimento e da racionalidade ao qual muitas pessoas provavelmente chegariam se elas
refletissem honesta e cuidadosamente acerca do tópico. Você pode não concordar com cada
detalhe da perspectiva a ser descrita, mas é justo dizer que ela captura acuradamente o senso
comum reflexivo.

A. O Que Nós Conhecemos


A maioria de nós pensa que conhecemos muitas coisas. A lista seguinte identifica algumas
categorias gerais dessas coisas e dá exemplos de cada uma. As categorias podem se sobrepor e
elas estão longe de serem precisas. Ainda assim, elas nos dão uma boa idéia dos tipos de coisas
que nós podemos conhecer.

a. Nosso meio-ambiente imediato:


“Há uma cadeira aqui.”
“O rádio está ligado.”
b. Nossos próprios pensamentos e sentimentos:
“Estou animado com o novo semestre.”
“Eu não estou ansioso para preencher meus formulários de imposto.”
c. Fatos do senso comum acerca do mundo:
“A França é um país da Europa.”
“Muitas árvores deixam cair suas folhas no outono.”
d. Fatos científicos:
“Fumar cigarros causa câncer de pulmão.”
“A terra gira em torno do sol.”
e. Estados mentais dos outros:
“Meu vizinho quer que sua casa seja pintada.”
“Aquela pessoa ali que está rindo muito achou a piada que ela recém ouviu engraçada.”
f. O passado:
“George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.”
“O presidente Kennedy foi assassinado.”
g. Matemática:
“2 + 2 = 4”
“5 . 3 = 15”
h. Verdades conceituais:
“Todos os solteiros são não-casados.”
“Vermelho é uma cor.”
i. Moralidade:
“A tortura gratuita de crianças é errada.”
“Não há nada de errado em tirar uma folga do trabalho de vez em quando.”
j. O futuro:
“O sol nascerá amanhã.”
“Os Chicago Cubs não ganharão a World Series no próximo ano.”1
k. Religião:
“Deus existe.”
“Deus me ama.”

Existem, naturalmente, muitas coisas destas categorias que nós não conhecemos. Alguns
fatos acerca do passado distante estão irrecuperavelmente perdidos. Alguns fatos acerca do
futuro estão, ao menos por enquanto, além de nós. Algumas das áreas de conhecimento da lista
são controversas. Você pode ter dúvidas acerca de nosso conhecimento nas áreas da moralidade
e da religião. Ainda assim, a lista proporciona uma exemplificação adequada dos tipos de coisas
que nós tipicamente alegamos conhecer.
Assim, a primeira tese da Perspectiva Standard é

PS1. Nós conhecemos uma grande variedade de coisas das categorias (a) – (k).

B. Fontes de Conhecimento
Se (PS1) está correta, então existem algumas maneira pelas quais nós chegamos a
conhecer as coisas que ela diz que conhecemos; existem algumas fontes para o nosso
conhecimento. Por exemplo, se nós conhecemos alguma coisa acerca do nosso meio-ambiente
imediato, então a percepção e a sensação jogam um papel central na aquisição desse
conhecimento. A memória obviamente é crucial para o nosso conhecimento do passado e
também para certos aspectos do nosso conhecimento de fatos correntes. Por exemplo, meu
conhecimento de que a árvore que vejo através de minha janela é um bordo depende de minha
percepção da árvore e de minha lembrança de como os bordos se parecem. Outra fonte de boa

1
Os fãs dos Cubs podem não gostar deste exemplo. Mas aqueles que acompanham beisebol sabem que, não
importa o que aconteça, os Cubs nunca vencem. Nem o Boston Red Sox.
parte de nosso conhecimento é o testemunho das outras pessoas. O testemunho não se restringe
aqui às declarações feitas por testemunhas sob juramento. Ele é muito mais amplo do que isso.
Ele inclui o que as outras pessoas dizem a você, incluindo o que eles dizem a você na televisão ou
em livros e jornais.
Três outras fontes de conhecimento merecem também uma breve menção aqui. Se a
percepção é a nossa consciência das coisas externas através da visão, da audição e dos outros
sentido, então a percepção não dá conta do nosso conhecimento de nossos próprios estados
internos. Você pode agora saber que se sente sonolento, ou que está agora pensando acerca do
que irá fazer no final de semana. Mas isso não ocorre por meio da percepção no sentido recém
estabelecido. Ocorre, antes, por meio da introspecção. Assim, está é outra potencial fonte de
conhecimento.
Além disso, algumas vezes nós conhecemos coisas por raciocínio ou inferência. Quando
nós conhecemos alguns fatos e vemos que aqueles fatos sustentam algum outro fato, nós
chegamos a conhecer esse outro fato. O conhecimento científico, por exemplo, parece surgir de
inferências a partir de dados observacionais.
Finalmente, parece que conhecemos algumas coisas simplesmente porque nós podemos
“ver” que elas são verdadeiras. Isto é, nós temos a habilidade de pensar acerca das coisas e de
discernir algumas verdades simples. Embora isso seja matéria de alguma controvérsia, nosso
conhecimento de aritmética elementar, de lógica simples e de verdades conceituais parece cair
nessa categoria. Por falta de um termo melhor, nós iremos dizer que conhecemos essas coisas por
meio de insight racional.
Nossa lista das fontes de conhecimento, então, se parece com isto:

a. Percepção
b. Memória
c. Testemunho
d. Introspecção
e. Raciocínio
f. Insight racional

Sem dúvida, em muitos casos nosso conhecimento depende de alguma combinação


dessas fontes.
A Perspectiva Standard sustenta que nós podemos ganhar conhecimento dessas fontes. Ela
não diz que essas fontes são perfeitas. Sem dúvida, elas não são. Algumas vezes nossas
lembranças estão equivocadas. Algumas vezes nossos sentidos nos enganam. Algumas vezes nós
raciocinamos mal. Ainda assim, de acordo com a Perspectiva Standard, nós podemos obter
conhecimento usando essas fontes.
Se a lista de fontes de conhecimento deveria ser expandida é matéria de alguma
controvérsia. Talvez algumas pessoas acrescentassem insight religioso ou místico à lista. Talvez
outras pensassem que existissem formas de percepção extra-sensorial que devêssemos
acrescentar. Entretanto, estas são questões sobre as quais há maior desacordo. Acrescentá-las à
lista, assim, pode fazer a lista parecer menos com alguma coisa que mereça o nome de “Perspectiva
Standard”. Assim, nós não as acrescentaremos aqui. Outros podem querer acrescentar a ciência à
lista das fontes de conhecimento. Embora possa não ser objetável fazê-lo, a ciência é
provavelmente melhor vista como uma combinação de percepção, memória, testemunho e
raciocínio. Assim, pode não ser necessário acrescentá-la à lista.
Assim, a segunda tese da Perspectiva Standard é

PS2. Nossas fontes de conhecimento primárias são (a) – (f).

A Perspectiva Standard, então, é a conjunção de (PS1) e de (PS2).


FONTES DO CONHECIMENTO
I- PERCEPÇÃO:
De acordo com o senso comum a percepção é o principal meio pelo qual conhecemos
algo sobre o mundo que nos envolve. Uma teoria da percepção deveria responder questões
tais como:
1- O que é perceber algo?
2- De que tipo de coisas a percepção nos torna conscientes?
3- De que modo a percepção nos capacita a obter conhecimento do mundo que nos
rodeia?

1. O Representacionalismo clássico. O representacionalismo sustenta que, na


percepção, estamos diretamente ‘conscientes’ de certos estados mentais internos - algo a que
vários filósofos se referem seja como ‘idéias’ (Locke), ‘impressões’ (Hume). Normalmente se
diz que as imagens mentais são causadas por objetos ou eventos físicos externos, e que estas
imagens os ‘re-presentam’. Os representacionalistas também dizem normalmente que
podemos obter conhecimento, ou crenças justificadas, sobre o mundo externo, inferindo fatos
acerca do mundo exterior a partir do caráter das imagens mentais. O representacionalismo
presta-se, provavelmente mais que qualquer outra posição, a ser chamado entre os filósofos de
teoria tradicional da percepção.
2. O Realismo (ingênuo). Por contraste, o realista direto sustenta que, na percepção,
estamos diretamente conscientes de objetos externos, ou seja, que nossa consciência de
objetos externos não depende da consciência de imagens mentais ou de qualquer outra coisa
não-externa. Realistas diretos geralmente dizem também que temos conhecimento imediato da
existência.
3. Idealismo. O idealismo assume que não existe mundo externo; tudo o que existe
são as mentes e as ‘ideias’ na mente. O idealismo foi formulado por George Berkeley que
afirma que “existir é ser percebido”. Assim, as coisas deixam de existir quando não há
nenhum observador para percebê-las. Não podemos obter crenças justificadas por meio da
percepção.
4. Ceticismo. Por fim, os céticos assumem que não podemos saber se um mundo
exterior existe ou não; e nem podemos saber algo a respeito de como ele é, se é que ele existe.
Note-se que esta posição não se confunde com o idealismo, porque o cético não nega, como o
idealista, a existência de objetos externos; eles dizem meramente que nada sabemos sobre sua
existência.

II- MEMÓRIA
A maior parte de tudo o que você sabe agora consiste em coisas que você aprendeu
antes, e que é capaz de se lembrar no presente. Questões epistemológicas sobre a memória
incluem pontos tais como: “Como sabemos se os eventos de que parecemos nos lembrar
efetivamente ocorreram?” Neste tema é útil distinguir ‘memória eventual’ ou ‘memória
episódica’ (lembrar de um evento que foi previamente testemunhado) de ‘memória factual’
(lembrar de um fato que foi previamente aprendido). É possível ter memória factual mesmo
na ausência de qualquer memória eventual relevante. Eu me lembro, por exemplo, de que o
Brasil proclamou a República em 1889 (memória factual), mas não sou idoso o suficiente para
lembrar da Proclamação ela mesma, e nem mesmo me lembro de minha experiência de
quando, pela primeira vez, aprendi algo sobre a Proclamação da República. Ambos os tipos de
memória cumprem um importante papel em nossa retenção de conhecimento, ainda que a
memória factual pareça ser mais ubíqua (onipresente).
III- A RAZÃO

Um longo debate em epistemologia tem sido mantido acerca do papel da razão na


cognição. Os empiristas argumentam, aproximadamente, que todo conhecimento é derivado
da observação (experiência sensorial e introspecção), e que o papel da razão é apenas fazer
inferências a partir das informações proporcionadas pela experiência. Em contraste, os
racionalistas dizem que possuímos algum conhecimento substantivo que é independente da
experiência, e que a faculdade da razão pode ser uma fonte de novos conhecimentos.
A posição racionalista retrocede ao menos até Platão. Platão acreditava em um reino
de objetos abstratos, chamados de ‘Formas’, que existiriam independentemente de nossas
mentes. As Formas foram supostas a fim de explicar o que possuem em comum as coisas
particulares do múltiplo concreto, e como podemos possuir o conceito de coisas perfeitas (tal
como um círculo perfeito) que não existem no mundo físico. As Formas incluem coisas tais
como o número 2, a Justiça (em abstrato) e o círculo perfeito.
Immanuel Kant, no séc. XVIII, com a Crítica da Razão Pura fez avançar o debate
entre racionalistas e empiristas ao promover duas distinções importantes: a distinção entre
juízos analíticos e sintéticos, e a distinção entre juízos a priori e a posteriori (ou empírico).
Kant assim definiu estes termos:

- juízos analíticos: um juízo no qual o conceito do sujeito contém o conceito do


predicado. Exemplo: “todos os solteiros não são casados” (pois o conceito de ‘solteiro’
contém o conceito de ‘não casado’).
- juízos sintéticos: um juízo que não é analítico. Exemplo: “todos os solteiros são
babões”.
O juízo sintético pode ser negado sem contradição, o analítico não - o que distingue a
verdade necessária da contingente.
- juízos a priori: um juízo que não é baseado na experiência. ‘Experiência’ aqui inclui
experiência sensorial e introspecção; ‘baseado na’ é usado no sentido de ‘justificado por’ (e
não ‘causado por’). Em tempos mais modernos nós falamos usualmente de ‘justificação a
priori’ ou ‘conhecimento a priori’ (em lugar de meramente ‘juízo’ a priori).
- juízos a posteriori: ou ‘juízos empíricos’. Um juízo que é baseado na experiência.

Racionalistas são criaturas que acreditam que exista algum conhecimento sintético a
priori. Empiristas negam esta possibilidade. Deste modo estes acreditam que não há
absolutamente nenhum conhecimento a priori (a posição do ‘empirismo extremo’), seja que
existe apenas conhecimento analítico a priori (a posição do ‘empirista moderado’).
É importante distinguir ‘conhecimento a priori’ de ‘conhecimento inato’. Todo
conhecimento inato (se é que existe algum) é a priori, mas nem todo conhecimento a priori
precisa ser inato. O conhecimento de geometria do jovem escravo de Platão pode ser a priori
(se ele é produzido pela faculdade da razão e não por observação) mesmo que não seja inato
(ou seja, que já existisse ao nascer).

IV- TESTEMUNHO
‘Testemunho’ inclui todos os casos nos quais uma pessoa diz algo e outra pessoa
ouve, lê ou tem contato de qualquer outro modo com a afirmação. Neste sentido, minha
crença de que a China fica na Ásia, de que a Terra orbita em torno do sol, de que o aniversário
de meu amigo é dia 13 de setembro, são todas baseadas em testemunhos. O testemunho
cumpre também um importante papel na ciência, onde o testemunho do cientista assim como
o de suas observações são bases confiáveis para outros cientistas que estão construindo suas
teorias.
Uma razão para tal negligência pode residir na visão tradicional, desenvolvida por
pensadores como Locke e Hume, sobre o valor de prova do testemunho. Locke disse que as
outras pessoas são uma fonte altamente insegura de informação, como que, mesmo quando
elas falam alguma verdade, não se pode obter conhecimento simplesmente fazendo suas as
palavras alheias.
David Hume é um pouco mais conciliatório. Ele diz que a probabilidade de um evento
é proporcional à freqüência com que eventos daquele tipo tenham ocorrido na experiência
passada de alguém. Estaremos justificados em acreditar no testemunho de alguém se no
passado, tivermos checado o evento descrito, assim verificamos o testemunho desta pessoa é
verdadeiro.
Thomas Reid notou que se devemos nos apoiar apenas na probabilidade, como Hume
propôs, teríamos muito pouca base para acreditar na maioria das coisas em que de fato
acreditamos com base no testemunho alheio. A situação seria particularmente difícil para uma
criança que, antes de aceitar qualquer coisa dita pelos adultos, teria primeiro de adquirir uma
extensa experiência a fim de conferir alguma confiabilidade ao testemunho dos adultos. Sendo
assim, muitas crianças morreriam atropeladas ou envenenadas antes de ter sucesso em reunir
as evidências necessárias. Afortunadamente, observa Reid, os seres humanos possuem duas
tendências inatas que os capacitam a obter conhecimento mais facilmente através do
testemunho: a primeira é nossa tendência instintiva a dizer a verdade e a segunda é
simplesmente a tendência a acreditar no que os outros dizem.

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