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Entrevista entre escritores e epistolografia: uma aproximação

Paulo Felipe Costa e Silva

Introdução

A imagem que um autor faz de si e de sua obra talvez esteja entre os traços
comuns entre a narrativa epistolar que ele expede e o discurso nas entrevistas jornalísticas
que concede – e, às vezes, como se verá neste texto, nas entrevistas que realiza. Se muitas são
as missivas e as entrevistas realizadas no decorrer da vida desse escritor, pode-se dizer que
muitas serão também as estratégias discursivas1 para a tessitura de um “imaginário de si”,
bem como para o entendimento e a avaliação cambiantes da própria obra em função dos
destinatários, durante os diálogos epistolares, ou dos repórteres/entrevistadores, estes que
mediarão, de algum modo, segundo elementos formais do gênero entrevista, a construção
dessa imagem.

Talvez outro traço compartilhado pela entrevista jornalística e a


correspondência de escritores seja o desejo, segundo José-Luis Diaz, de “connaître l’homme
sous l’auteur” (2008, p. 135), acompanhando, no caso do estudo de cartas, os caminhos da
gênese de determinadas obras e certa “gênese de si” que o texto epistolar desses autores pode
revelar. E, no caso da entrevista jornalística, pelo menos por parte da opinião pública, tal
desejo se transforma em curiosidade, em mexerico. O escritor pertence ao rol das celebridades
dos magazines, e os leitores dessas publicações desejam conhecer a “vida literária”, o “espaço
íntimo” do autor antes da obra: “a literatura [...] confunde-se com a vida literária e os
escritores tornam-se figuras públicas” (MÜHLHAUS, 2007, p. 31). Se, na correspondência de
um escritor, a parcela de gênese que cabe à crítica varia “de zero ao infinito”, respeitando-se
os limites de cada missiva, entre os diferentes interesses suscitados pela leitura desse gênero;
nas entrevistas publicadas em revistas semanais, por exemplo, às vezes a obra literária – e, no
interior desse universo, eventualmente elementos mais gerais de sua gênese – constitui apenas
um elemento entre tantos outros a serem abordados pelo repórter, os quais, no conjunto,
visam a construir “perfis de comportamentos”, em suposta harmonia com o “plano/guia/linha

1
“[...] não se pense que o leitor de cartas seja o único forçado a ocupar a posição analítica. Também o missivista,
antecipando-se à decodificação em diferentes ângulos, efetuada pelo receptor, e conhecendo de antemão todos os
aspectos desta mecânica comunicativa complexa, é levado a jogar com ela de maneira mais ou menos
estratégica” (DIAZ, José-Luis. Qual genética para as correspondências? Trad. Cláudio Hiro e Maria S. I.
Barsalini. Manuscrítica. Revista de Crítica Genética, n. 15, 2007, p. 144).
editorial” de cada publicação. Trata-se, portanto, da construção de uma imagem/perfil de
escritor a qual se submete, é possível supor, a diferentes forças composicionais: as
declarações do entrevistado, “a imagem de si”, mediada pelas perguntas do repórter; a
utilização de tais declarações pelo entrevistador na composição de seu texto de entrevista, seja
na forma de discurso indireto, seja no modo perguntas e respostas (ou pingue-pongue) com
texto introdutório; e a linha editorial das empresas de comunicação2, que interferirá na
atuação do entrevistador e definirá a finalidade das entrevistas, a depender da publicação.

Inusitada é a condição de Clarice Lispector como jornalista. Depois de atuar


como repórter, tradutora, colunista de página feminina e cronista – além de publicar seus
primeiros textos ficcionais – na mídia carioca dos anos 1940 e 60, Clarice passa a colaborar
para publicações de Adolpho Bloch realizando entrevistas em dois importantes momentos,
tanto para a história do Brasil quanto para a biografia clariciana: durante as turbulências
políticas de 1968-9, a autora de A mulher que matou os peixes (1968) assina a seção
“Diálogos possíveis com Clarice Lispector” em Manchete, realizando 60 entrevistas nesse
período; e nos últimos meses de vida, entre dezembro 1976 e outubro de 1977, Clarice publica
mais 27 “diálogos” para Fatos & Fotos/Gente, sendo este seu último trabalho antes de morrer,
em dezembro de 1977.

Vale ressaltar que a escritora, paralelamente aos diálogos possíveis de 1968 e


69, publicava crônicas e outros textos semanalmente no Caderno B do Jornal do Brasil, além
de ter lançado A mulher que matou os peixes (1968) e Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres (1969) – publicações, note-se, posteriores ao romance A paixão segundo G.H. e à
coletânea A legião estrangeira, ambos de 1964. Nesse sentido, é possível constatar uma
Clarice em franca fase de popularização de sua obra, deslocando-a do reconhecimento de um
pequeno círculo de intelectuais para o alcance do público da mídia impressa. O interesse desse
público pode ser atestado, por exemplo, nas seções de “carta do leitor” de Manchete em que
por vezes se encontram comentários e perguntas desses supostos leitores a respeito de Clarice
e sua produção de entrevistas3.

2
Cf. SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.
3
“Clarice – Uma vez que comecei a conhecer Clarice Lispector através dos Diálogos Possíveis [sic], que tal se
ela completasse o quadro fazendo um monólogo? – Luís Antônio Barbosa Ximenes – Cruz das Almas, BA” (“O
leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 866, 23 nov. 1968, p. 11) e “Clarice – Apenas para confirmar:
a obra de estreia da Sra. Clarice Lispector, colaboradora desta revista, não foi ‘O Lustre’? – Isabel Ramón – Rio,
GB” (“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 904, 16 ago. 1969).
Os entrevistados de Clarice Lispector pertencem a áreas notadamente distintas
entre si, o que também confere aspecto insólito ao texto e talvez justifique o “diálogos
possíveis” que intitula a seção: uma escritora considerada “hermética” pela crítica
entrevistando empresários, socialites, músicas, pilotos, políticos, esportistas, artistas. No que
concerne à área artística, convém destacar que, especialmente nas entrevistas de 1976 e 1977,
não apenas a personalidade e a relevância dos entrevistados motivaram a entrevista, como em
outros casos, mas também algum fato em torno de sua produção intelectual – neste caso,
lançamento de obras. Nos “diálogos possíveis” com Antonio Callado e Lygia Fagundes
Telles, há perguntas relacionadas a Reflexos do baile (1977) e Seminário dos ratos (1977);
com Fayga Ostrower e Vinicius de Moraes, por sua vez, Clarice trata de Criatividade e
processos de criação (1977) e do show no Canecão que resultaria no importante disco
Gravado ao vivo no Canecão (1977), respectivamente. E, ainda, com Ferreira Gullar, o
retorno do exílio e a publicação de Poema sujo (1976) são temas centrais do “diálogo”. É
partindo da leitura da entrevista de Clarice Lispector com Gullar – ambos, escritores – que
este texto intenciona discutir alguns elementos da epistolografia – e do gênero entrevista,
procurando apontar elementos comuns entre os dois textos e suas particularidades.

Clarice entrevista Gullar: “Poema sujo” e processos de criação em pauta

(“De volta ao Brasil, o poeta Ferreira Gullar encontra os cariocas mais agitados, mais apressados...”, em Fatos &
Fotos/Gente. Brasília: Bloch Editores, 1961-2000?, n. 821, 16 maio 1977, p. 16-7. Reprodução.)

Em geral, nos textos introdutórios de entrevista, Clarice tece impressões


eminentemente pessoais a respeito de seu entrevistado, atribuindo-lhe feições e atributos, e
informa ao leitor o tipo de relação que cultiva com esse interlocutor – de mero desconhecido a
amigo de longa data. E por esses entrevistados pertencerem, em parte significativa das vezes,
à rede de amigos4 e conhecidos da escritora, o teor do texto é quase sempre elogioso, em
consonância com a linha editorial das revistas da Bloch 5. Acompanhemos, pois, a abertura da
entrevista com Ferreira Gullar:

Sou fervente admiradora de Ferreira Gullar, desde os tempos de A Luta Corporal até
esse escandalosamente belíssimo Poema Sujo. Nossos mútuos contatos se fizeram
no tempo da primeira revista Senhor, para a qual nós dois escrevíamos. Mas eu tinha
um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu
seria aniquilada. Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele
rejeitava a minha ‘literatura’. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do
que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança
antiga era errada. Aleluia! Ele esteve em minha casa. Verifiquei que, praticamente,
não mudou: tem o rosto como que talhado em madeira. Madeira sensível, madeira-
de-lei. É pessoa extremamente simpática e com ar de bondade (LISPECTOR, C. Em
Fatos & Fotos/Gente, 16/V/1977, n. 821, p. 16. Entrevista. e idem, 2007, p. 51).

Assim como nas cartas, o texto de entrevista, em oposição ao manuscrito


literário, é “destinado a ser naturalmente exibido” (DIAZ, 2007, p. 142), embora não seja
escrito currente calamo, segundo a tradição epistolar. A obviedade dessa constatação se
transforma em ponto de partida para a análise quando se observa o excerto acima. Se nas
entrevistas que concede Clarice dissimula – evitando falar de si, de sua obra e de outros
escritores –, nas entrevistas que realiza é a exposição que se faz presente. Ou pelo menos é
imagem que ela faz de si como entrevistadora:

Eu me expus nessas entrevistas e consegui assim captar a confiança de meus


entrevistados a ponto de eles próprios se exporem. As entrevistas são interessantes
porque revelam o inesperado das personalidades entrevistadas. Há muita conversa e

4
“Il semblerait que, même en recherchant une forme de réclusion et en proclamant la necessite du retrait,
l’écrivain reste attaché à ce réseau d’amis qu’il s’est constitué, de même que (par les jounaux et ces
correspondances), il reste à l’écoute de ce qui se dit, s’écrit, se pense autour de lui” (LERICHE, Françoise;
PAGÈS, Alain, 2012, p. 9). É preciso constatar que, tanto para o espaço epistolar quanto para a série de
entrevistas, no caso de Clarice Lispector em especial, tal rede de amigos para quem o escrito se dirige é a
mesma. Fernando Sabino, por exemplo, participa de certa “escrita colaborativa” na gênese de A maçã no escuro
(1961), opera como intermediário entre Clarice e as editoras/imprensa e também foi entrevistado pela escritora.
Sabe-se, também, que a entrevista feita com a comadre de Clarice, Maria Bonomi, foi vertida de uma carta
enviada pela artista plástica.
5
Em entrevista a Carla Mühlhaus, Carlos Heitor Cony – também entrevistador de Manchete – chega a afirmar o
que se segue: “em Manchete eu tinha como norma que o entrevistado atrapalhava a entrevista. [...] Por causa da
linha editorial da Manchete. As entrevistas eram feitas sempre para levantar a bola do entrevistado” (2007, p.
118). Tal afirmação nos ajuda a entender o teor sempre elogioso dos textos de entrevista da Bloch, não somente
os de Clarice. A escolha de seus amigos e conhecidos – como ela, igualmente personalidades –, supõe-se, deve
ter auxiliado no cumprimento desse parâmetro editorial.
não as clássicas perguntas e respostas (CAMBARÁ, Isa. “Escritora mágica”. Em
Veja, 30/VII/1975, p. 88. Entrevista).

Que exposição seria essa, considerado o alcance que uma entrevista jornalística
pode obter? Tal desvelamento não seria antes uma forma de construir uma imagem de si? E
no caso das entrevistas claricianas – e por extensão, talvez, do gênero entrevista – a exposição
não estaria entre as estratégias de construir a própria “imagem pública de escritor”, na relação
com o outro? E de que forma isso se dá ao entrevistar um escritor? Em todo o caso,
reconheça-se por ora, pelo menos nas entrevistas de Clarice, um espaço discursivo de
exposição para a escritora – é por meio da entrevista citada, por exemplo, que o leitor pode
descobrir que Lispector e Gullar colaboraram para a revista Senhor e a opinião de um escritor
sobre outro – e de estratégias para que tanto o entrevistado quanto o entrevistador criem
“narrativas de si”, tendo em vista a imagem de “figura pública” do escritor e pressupondo
certos “juízos estéticos generalizados” em torno de suas obras. Como foi dito, prevalece o
interesse de “conhecer o homem por detrás do autor”, no qual “literatura e vida literária se
confundem” – e tal “exposição” de certos detalhes biográficos, como se viu no texto
introdutório de Clarice, pode ser uma das estratégias de esclarecer, compartilhar, informar,
convencer, conduzir e, por que não, ludibriar o público.

Até agora, observou-se a voz de Clarice apenas. Isso porque a entrevistadora


optou por estruturar quase todos os seus textos de entrevista em: introdução, como a que se
leu anteriormente neste trabalho; o jogo de perguntas e respostas, o qual teoricamente confere
maior autonomia às declarações do entrevistado, uma vez que os discursos dos participantes
da entrevistadora são discriminados mediante recursos textuais/gráficos; e, ocasionalmente,
conclusão. Continuemos a leitura da entrevista com Gullar observando a maneira como ocorre
esse jogo:

— Há quanto tempo você não vinha ao Brasil?


— Há cinco anos e oito meses. Voltei no dia 10 de março deste ano.
[...]
— Olhe, Gullar, no Poema Sujo você me fez sentir uma criança diante de uma
selva ou de um altíssimo monumento. E quando você falou em ‘noites
envenenados de jasmim’ – pois bem, senti-me de volta a Recife, que é a minha
terra.
— É, suponho que o jasmim é algo muito forte. Assim o senti em Valparaíso,
quando tomei um susto em relação ao intenso perfume dessa flor. Também então eu
fui transportado de novo à minha cidade e infância. Em Lima, perto da casa onde
morava, havia um muro, de onde se debruçava um jasmineiro.
[...]
— Marques Rebelo me disse uma vez6 que reescrever era mais simples que
escrever. Quanto a mim, Gullar, eu discordo, pois minhas frases já vêm
prontas. E com você, como se processa o ato criador? Você reescreve?
— Não só me sento para escrever quando sinto que a coisa está praticamente pronta
dentro de mim. Depois que escrevo, faço, como você, eventualmente, algumas
emendas, mas é só.
— Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil e que eu mesma não saberia
como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra
escrita?
— Em mim o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer.
Por exemplo, quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte
modo: eu acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra.
À porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo para
as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o choque. Eu
pensei: se fosse no Vietnã aquela senhora poderia encontrar a sua casa em chamas.
Eu própria havia marcado para sair de férias, um mês depois. Pensei: num país em
guerra deve ser impossível planejar a vida, marcar férias, ir ao cinema, tudo pode ser
desfeito de um momento para o outro. É a insegurança total. O choque emocional já
por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las, elas
jorram.
[...]
— O Poema Sujo é um poema de exílio?
— Não somente. Acredito que a condição de exilado penetra todo o poema e deve
ter sido uma de suas motivações. Mas creio que o poema vai além disso – ele é uma
tentativa de dizer tudo, como se depois dele eu fosse morrer. O que ele significa
exatamente, eu não sei.
— Você está escrevendo atualmente algum poema?
— Não. Em 1975 escrevi um curto poema sobre a arquitetura de Oscar Niemayer.
Mas é praticamente inédito pois só foi publicado uma vez, numa revista
especializada de arquitetura.
— Ah, se você soubesse de cor esse poema desconhecido, nós, que gostamos
tanto de você e de Oscar, ficaríamos muito contentes...
— Sei de cor... chama-se “Lições de Arquitetura”: No ombro do planeta/ (em
Caracas)/ Oscar depositou/ para sempre uma ave uma flor/ (ele não faz de pedra
nossas casas: faz de asas). No coração de Argel sofrida/ fez aterrissar uma tarde/
uma nave estelar/ e linda como ainda há de ser a vida/ (Com seu traço futuro/ Oscar
nos ensina que o sonho é popular)/ Nos ensina a sonhar/ mesmo se lidamos com
matéria dura:/ o ferro o cimento a fome/ da humana arquitetura/ Nos ensina a viver/
no que ele transfigura:/ no açúcar da pedra/ no sonho do ovo/ na argila da aurora/ na
pluma da neve/ na alvura do novo/ Oscar nos ensina/ que a beleza é leve.
— É uma beleza, Gullar, digna de Oscar. E o que é que você gostaria de ter
escrito e não escreveu?
— Um poema capaz de abarcar toda a história sofrida e obscura da gente brasileira.
(op. cit., p. 51-6).

Assim como no gênero epistolar, a entrevista tangencia diferentes temas, desde


aspectos biográficos e factuais até elementos relacionados à gênese de determinada obra.
Como se disse, entre as motivações para entrevista com Ferreira Gullar estão seu retorno do

6
“[...] — [...] Você trabalha só quando está inspirado ou tem uma disciplina?/ — Trabalho por uma disciplina:
escrevo sempre, mesmo que seja para jogar fora ou refazer trinta vezes. Reescrever é mais importante que
escrever, não é, Clarice?/ — Minha situação é outra: eu acrescento ou corto, mas não reescrevo./ — Você
escreveu Uma Galinha assim? Porque me parece fruto de um trabalho enorme./ — Escrevi Uma Galinha entre
meia hora ou quarenta minutos, o tempo de bater na máquina. Daí o meu espanto quando vejo esse conto
republicado tantas vezes. Você trabalha de manhã, de tarde ou de noite?/ — A madrugada é a minha hora. Só à
noite, o silêncio é que convida. Desde meninote, durante o dia eu tinha que trabalhar, então fui descobrindo a
noite” (LISPECTOR, C. Em Manchete, 9/XI/68, n. 864, p. 116 e idem, 1999, p 34-5).
exílio na Argentina e a publicação de Poema Sujo. Por essa razão, espera-se haver
questionamentos que tocam tais assuntos – como se observa no fragmento anterior. No
entanto, as entrevistas de Clarice Lispector trazem consigo uma situação sui generis: trata-se
de uma escritora entrevistando um poeta – com isso, quer-se dizer que as perguntas
realizadas, mediadas pela exposição da entrevistadora, demonstram mais o interesse de um
escritor que de um jornalista. Diferentemente da entrevista preconizada pelos manuais, ambas
as vozes possuem igual relevância: o leitor se interessará sobre as impressões e os
questionamentos de Clarice sobre o “Poema sujo”, bem como as respostas de Gullar.

Nesse sentido, é possível notar, a partir do último excerto, dois elementos da


entrevista entre escritores que compartilham características com a narrativa epistolar
engendrada por esses artistas: (1) por tratar de aspectos gerais da gênese artística, em espécie
de troca de informações entre a entrevistadora-escritora Clarice e Gullar (“E com você, como
se processa o ato criador? Você reescreve?”/“Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil
e que eu mesma não saberia como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a
palavra escrita?”) – talvez estejam aí a dimensão do diálogo, na perspectiva do gênero
entrevista, e a gênese “exibicionista”, “inventada ou encenada” (DIAZ, 2012, p. 125), ainda
que de maneira generalizada, a qual não deixa de ser uma “imagem de escritor” 7 sustentada
pelo autor. E (2) por servir, como às vezes ocorre nas correspondências, de dispositivo de
promoção da obra do entrevistado – e, de maneira indireta, da entrevistadora –, como é caso
do poema de Gullar que quase encerra a entrevista, “Lições da arquitetura”, editado em livro
pela primeira vez três anos depois, em Na vertigem do dia (1980).

Considerações finais

A leitura da entrevista de Clarice Lispector com Ferreira Gullar, alinhavada de


acordo com alguns conceitos da crítica genética sobre a epistolografia, fez perceber algumas
semelhanças entre o discurso desses escritores nas cartas e nas entrevistas, bem como algumas
diferenças elementares. A entrevista com um escritor pode relatar a gênese literária segundo

7
Com isso, não se quer propriamente contestar a veracidade das informações ditas pelos escritores quanto à
gênese das obras, mas considerar estratégias e elementos genéticos que eles omitem – conscientemente ou não –
para sustentar determinada “imagem de autor”. Leia-se o caso de Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres (1969): tem-se a narrativa, segundo Nádia Gotlib, de que Clarice recolhe-se a um hotel e
escreve o romance em nove dias (2009, p. 624). No entanto, sabe-se que fragmentos desse texto foram
publicados previamente no Caderno B do Jornal do Brasil, como “Ritual” (1999, p. 119) e “Se eu fosse eu”
(ibidem, p. 156).
uma narrativa indireta ou sintética, tal qual ocorre por vezes na correspondência. Mas
certamente estará impossibilitada, dada a sua natureza jornalística, de acompanhar
“microscopicamente” as etapas da gênese. De qualquer forma, essa narrativa não deixa de ser
leitura privilegiada da criação, a qual pode iluminar sentidos e tecer relações inesperadas com
a obra depois de publicada.

Referências bibliográficas
CAMBARÁ, Isa. “Escritora mágica”. Em Veja, 30/VII/1975, p. 88. Entrevista.
DIAZ, José-Luis. L’épistolaire: genèse des oeuvres, gènese de soi. In: Processos de criação e
interação: crítica genética em debate nas artes, ensino e literatura. Belo Horizonte: C/Arte,
2008, v. 2.
DIAZ, José-Luis. Qual genética para as correspondências? Trad. Cláudio Hiro e Maria S. I.
Barsalini. Manuscrítica. Revista de Crítica Genética, n. 15, 2007.
LERICHE, Françoise; PAGÈS, Alain (orgs.). Avant-Propos. Genèse & Correspondances.
Paris: Éditions Archives Contemporaines/ITEM, 2012.
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Edusp, 2009.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector – Entrevistas. Claire Williams (org.). Rio de Janeiro,
Rocco, 2007.
LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, C. Em Manchete, 9/XI/68, n. 864, p. 116. Entrevista.
LISPECTOR, C. Em Fatos & Fotos/Gente, 16/V/1977, n. 821, p. 16-7. Entrevista.
MÜHLHAUS, Carla. Por trás da entrevista. / Carla Mühlhaus; [entrevistados] Ana Arruda...
[et al.]. Rio de Janeiro: Record, 2007.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.
“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 866, 23/XI/1968, p. 11.
“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 904, 16/VIII/1969.
SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.

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