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Introdução
A imagem que um autor faz de si e de sua obra talvez esteja entre os traços
comuns entre a narrativa epistolar que ele expede e o discurso nas entrevistas jornalísticas
que concede – e, às vezes, como se verá neste texto, nas entrevistas que realiza. Se muitas são
as missivas e as entrevistas realizadas no decorrer da vida desse escritor, pode-se dizer que
muitas serão também as estratégias discursivas1 para a tessitura de um “imaginário de si”,
bem como para o entendimento e a avaliação cambiantes da própria obra em função dos
destinatários, durante os diálogos epistolares, ou dos repórteres/entrevistadores, estes que
mediarão, de algum modo, segundo elementos formais do gênero entrevista, a construção
dessa imagem.
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“[...] não se pense que o leitor de cartas seja o único forçado a ocupar a posição analítica. Também o missivista,
antecipando-se à decodificação em diferentes ângulos, efetuada pelo receptor, e conhecendo de antemão todos os
aspectos desta mecânica comunicativa complexa, é levado a jogar com ela de maneira mais ou menos
estratégica” (DIAZ, José-Luis. Qual genética para as correspondências? Trad. Cláudio Hiro e Maria S. I.
Barsalini. Manuscrítica. Revista de Crítica Genética, n. 15, 2007, p. 144).
editorial” de cada publicação. Trata-se, portanto, da construção de uma imagem/perfil de
escritor a qual se submete, é possível supor, a diferentes forças composicionais: as
declarações do entrevistado, “a imagem de si”, mediada pelas perguntas do repórter; a
utilização de tais declarações pelo entrevistador na composição de seu texto de entrevista, seja
na forma de discurso indireto, seja no modo perguntas e respostas (ou pingue-pongue) com
texto introdutório; e a linha editorial das empresas de comunicação2, que interferirá na
atuação do entrevistador e definirá a finalidade das entrevistas, a depender da publicação.
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Cf. SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.
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“Clarice – Uma vez que comecei a conhecer Clarice Lispector através dos Diálogos Possíveis [sic], que tal se
ela completasse o quadro fazendo um monólogo? – Luís Antônio Barbosa Ximenes – Cruz das Almas, BA” (“O
leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 866, 23 nov. 1968, p. 11) e “Clarice – Apenas para confirmar:
a obra de estreia da Sra. Clarice Lispector, colaboradora desta revista, não foi ‘O Lustre’? – Isabel Ramón – Rio,
GB” (“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 904, 16 ago. 1969).
Os entrevistados de Clarice Lispector pertencem a áreas notadamente distintas
entre si, o que também confere aspecto insólito ao texto e talvez justifique o “diálogos
possíveis” que intitula a seção: uma escritora considerada “hermética” pela crítica
entrevistando empresários, socialites, músicas, pilotos, políticos, esportistas, artistas. No que
concerne à área artística, convém destacar que, especialmente nas entrevistas de 1976 e 1977,
não apenas a personalidade e a relevância dos entrevistados motivaram a entrevista, como em
outros casos, mas também algum fato em torno de sua produção intelectual – neste caso,
lançamento de obras. Nos “diálogos possíveis” com Antonio Callado e Lygia Fagundes
Telles, há perguntas relacionadas a Reflexos do baile (1977) e Seminário dos ratos (1977);
com Fayga Ostrower e Vinicius de Moraes, por sua vez, Clarice trata de Criatividade e
processos de criação (1977) e do show no Canecão que resultaria no importante disco
Gravado ao vivo no Canecão (1977), respectivamente. E, ainda, com Ferreira Gullar, o
retorno do exílio e a publicação de Poema sujo (1976) são temas centrais do “diálogo”. É
partindo da leitura da entrevista de Clarice Lispector com Gullar – ambos, escritores – que
este texto intenciona discutir alguns elementos da epistolografia – e do gênero entrevista,
procurando apontar elementos comuns entre os dois textos e suas particularidades.
(“De volta ao Brasil, o poeta Ferreira Gullar encontra os cariocas mais agitados, mais apressados...”, em Fatos &
Fotos/Gente. Brasília: Bloch Editores, 1961-2000?, n. 821, 16 maio 1977, p. 16-7. Reprodução.)
Sou fervente admiradora de Ferreira Gullar, desde os tempos de A Luta Corporal até
esse escandalosamente belíssimo Poema Sujo. Nossos mútuos contatos se fizeram
no tempo da primeira revista Senhor, para a qual nós dois escrevíamos. Mas eu tinha
um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu
seria aniquilada. Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele
rejeitava a minha ‘literatura’. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do
que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança
antiga era errada. Aleluia! Ele esteve em minha casa. Verifiquei que, praticamente,
não mudou: tem o rosto como que talhado em madeira. Madeira sensível, madeira-
de-lei. É pessoa extremamente simpática e com ar de bondade (LISPECTOR, C. Em
Fatos & Fotos/Gente, 16/V/1977, n. 821, p. 16. Entrevista. e idem, 2007, p. 51).
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“Il semblerait que, même en recherchant une forme de réclusion et en proclamant la necessite du retrait,
l’écrivain reste attaché à ce réseau d’amis qu’il s’est constitué, de même que (par les jounaux et ces
correspondances), il reste à l’écoute de ce qui se dit, s’écrit, se pense autour de lui” (LERICHE, Françoise;
PAGÈS, Alain, 2012, p. 9). É preciso constatar que, tanto para o espaço epistolar quanto para a série de
entrevistas, no caso de Clarice Lispector em especial, tal rede de amigos para quem o escrito se dirige é a
mesma. Fernando Sabino, por exemplo, participa de certa “escrita colaborativa” na gênese de A maçã no escuro
(1961), opera como intermediário entre Clarice e as editoras/imprensa e também foi entrevistado pela escritora.
Sabe-se, também, que a entrevista feita com a comadre de Clarice, Maria Bonomi, foi vertida de uma carta
enviada pela artista plástica.
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Em entrevista a Carla Mühlhaus, Carlos Heitor Cony – também entrevistador de Manchete – chega a afirmar o
que se segue: “em Manchete eu tinha como norma que o entrevistado atrapalhava a entrevista. [...] Por causa da
linha editorial da Manchete. As entrevistas eram feitas sempre para levantar a bola do entrevistado” (2007, p.
118). Tal afirmação nos ajuda a entender o teor sempre elogioso dos textos de entrevista da Bloch, não somente
os de Clarice. A escolha de seus amigos e conhecidos – como ela, igualmente personalidades –, supõe-se, deve
ter auxiliado no cumprimento desse parâmetro editorial.
não as clássicas perguntas e respostas (CAMBARÁ, Isa. “Escritora mágica”. Em
Veja, 30/VII/1975, p. 88. Entrevista).
Que exposição seria essa, considerado o alcance que uma entrevista jornalística
pode obter? Tal desvelamento não seria antes uma forma de construir uma imagem de si? E
no caso das entrevistas claricianas – e por extensão, talvez, do gênero entrevista – a exposição
não estaria entre as estratégias de construir a própria “imagem pública de escritor”, na relação
com o outro? E de que forma isso se dá ao entrevistar um escritor? Em todo o caso,
reconheça-se por ora, pelo menos nas entrevistas de Clarice, um espaço discursivo de
exposição para a escritora – é por meio da entrevista citada, por exemplo, que o leitor pode
descobrir que Lispector e Gullar colaboraram para a revista Senhor e a opinião de um escritor
sobre outro – e de estratégias para que tanto o entrevistado quanto o entrevistador criem
“narrativas de si”, tendo em vista a imagem de “figura pública” do escritor e pressupondo
certos “juízos estéticos generalizados” em torno de suas obras. Como foi dito, prevalece o
interesse de “conhecer o homem por detrás do autor”, no qual “literatura e vida literária se
confundem” – e tal “exposição” de certos detalhes biográficos, como se viu no texto
introdutório de Clarice, pode ser uma das estratégias de esclarecer, compartilhar, informar,
convencer, conduzir e, por que não, ludibriar o público.
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“[...] — [...] Você trabalha só quando está inspirado ou tem uma disciplina?/ — Trabalho por uma disciplina:
escrevo sempre, mesmo que seja para jogar fora ou refazer trinta vezes. Reescrever é mais importante que
escrever, não é, Clarice?/ — Minha situação é outra: eu acrescento ou corto, mas não reescrevo./ — Você
escreveu Uma Galinha assim? Porque me parece fruto de um trabalho enorme./ — Escrevi Uma Galinha entre
meia hora ou quarenta minutos, o tempo de bater na máquina. Daí o meu espanto quando vejo esse conto
republicado tantas vezes. Você trabalha de manhã, de tarde ou de noite?/ — A madrugada é a minha hora. Só à
noite, o silêncio é que convida. Desde meninote, durante o dia eu tinha que trabalhar, então fui descobrindo a
noite” (LISPECTOR, C. Em Manchete, 9/XI/68, n. 864, p. 116 e idem, 1999, p 34-5).
exílio na Argentina e a publicação de Poema Sujo. Por essa razão, espera-se haver
questionamentos que tocam tais assuntos – como se observa no fragmento anterior. No
entanto, as entrevistas de Clarice Lispector trazem consigo uma situação sui generis: trata-se
de uma escritora entrevistando um poeta – com isso, quer-se dizer que as perguntas
realizadas, mediadas pela exposição da entrevistadora, demonstram mais o interesse de um
escritor que de um jornalista. Diferentemente da entrevista preconizada pelos manuais, ambas
as vozes possuem igual relevância: o leitor se interessará sobre as impressões e os
questionamentos de Clarice sobre o “Poema sujo”, bem como as respostas de Gullar.
Considerações finais
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Com isso, não se quer propriamente contestar a veracidade das informações ditas pelos escritores quanto à
gênese das obras, mas considerar estratégias e elementos genéticos que eles omitem – conscientemente ou não –
para sustentar determinada “imagem de autor”. Leia-se o caso de Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres (1969): tem-se a narrativa, segundo Nádia Gotlib, de que Clarice recolhe-se a um hotel e
escreve o romance em nove dias (2009, p. 624). No entanto, sabe-se que fragmentos desse texto foram
publicados previamente no Caderno B do Jornal do Brasil, como “Ritual” (1999, p. 119) e “Se eu fosse eu”
(ibidem, p. 156).
uma narrativa indireta ou sintética, tal qual ocorre por vezes na correspondência. Mas
certamente estará impossibilitada, dada a sua natureza jornalística, de acompanhar
“microscopicamente” as etapas da gênese. De qualquer forma, essa narrativa não deixa de ser
leitura privilegiada da criação, a qual pode iluminar sentidos e tecer relações inesperadas com
a obra depois de publicada.
Referências bibliográficas
CAMBARÁ, Isa. “Escritora mágica”. Em Veja, 30/VII/1975, p. 88. Entrevista.
DIAZ, José-Luis. L’épistolaire: genèse des oeuvres, gènese de soi. In: Processos de criação e
interação: crítica genética em debate nas artes, ensino e literatura. Belo Horizonte: C/Arte,
2008, v. 2.
DIAZ, José-Luis. Qual genética para as correspondências? Trad. Cláudio Hiro e Maria S. I.
Barsalini. Manuscrítica. Revista de Crítica Genética, n. 15, 2007.
LERICHE, Françoise; PAGÈS, Alain (orgs.). Avant-Propos. Genèse & Correspondances.
Paris: Éditions Archives Contemporaines/ITEM, 2012.
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Edusp, 2009.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector – Entrevistas. Claire Williams (org.). Rio de Janeiro,
Rocco, 2007.
LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, C. Em Manchete, 9/XI/68, n. 864, p. 116. Entrevista.
LISPECTOR, C. Em Fatos & Fotos/Gente, 16/V/1977, n. 821, p. 16-7. Entrevista.
MÜHLHAUS, Carla. Por trás da entrevista. / Carla Mühlhaus; [entrevistados] Ana Arruda...
[et al.]. Rio de Janeiro: Record, 2007.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.
“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 866, 23/XI/1968, p. 11.
“O leitor em Manchete”. Manchete. Rio de Janeiro, n. 904, 16/VIII/1969.
SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.