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O Sujeito Da Loucura PDF
O Sujeito Da Loucura PDF
OF FUNDAMENTAL
PSYCHOPATHOLOGY ONLINE
O sujeito da loucura
Rochelle Gabbay
Junia de Vilhena
2. “Un hôpital d’aliénés est un instrument de guérison”. (Esquirol E, [1838] 1989, tomo II,
p. 133).
tal não reconhecerá como seu. Ao inaugurar um novo campo e instituir novas
práticas sobre a loucura, o passado das práticas será acusado de pertencer a uma
era de crendices e superstições, fundadas na mais absoluta irracionalidade. En-
fim, uma ciência da observação dos fatos contra as discussões metafísicas e as
divagações do ideologismo.3
Pinel e seus seguidores farão a crítica do passado para enaltecer as luzes do
presente, fazendo o elogio da ciência finalmente triunfante, chegada à idade da
razão. A questão que irá demarcar esse corte é a seguinte: como teria sido pos-
sível, na negra noite anterior ao nascimento das Luzes, terem confundidos tipos
tão diversos como o louco, o vagabundo, o desempregado, o libertino e o agita-
dor social para os quais eram exigidas abordagens diversas? Como puderam ser
misturados e confundidos numa mesma realidade?
A anatematização do passado, o estabelecimento de contrastes entre as no-
vas concepções e as velhas ideias, o desprezo pelas práticas até então vigentes
foram os recursos de que lançaram mão Pinel e seus discípulos para postular o
início de uma nova era, sob as luzes da ciência e mais conforme a nova ordem
política estabelecida na França, pós-revolucionária.
Pinel é um legítimo representante dessa corrente de pensamento e buscará
aplicar no campo mental “o espírito de ordem e investigação que reinam em to-
das as partes da história natural.4 43
Philippe Pinel entrou para história da loucura como fundador da clínica psi-
quiátrica e, ao romper as correntes dos loucos, e libertá-los de seus calabouços,
integrou-os ao campo médico, ao reconhecê-los como doentes.
Embora seja discutível a validade de seus conceitos ou o caráter inovador
de suas propostas institucionais, num plano, pelo menos, todos os autores con-
cordam quanto ao alcance do corte efetuado por Pinel: o método, por meio do
qual inscreve definitivamente o campo do mental na medicina moderna. É tam-
bém por meio dele que funda uma tradição, a da clínica, de forma ordenada e sis-
3. Veut-on se rendre raison des phénomènes observés, on a à crainde un autre écueil celui de mêler
des discussions métaphysiques et certaines divagations de l ´idéologisme à une science des faits
(Pinel, P. [1809], 1976, p. vij-viij).
4. “... et surtout l’esprit d’ordre et de recherche qui règne dans toutes les parties de l’Histoire
Naturel ,...” (op. cit., p. xxxij).
temática. Pinel rompe com a tradição anterior que fazia com que se interpenetras-
sem sem limites claros a forma mórbida e o conceito que a explicava. Dessa ma-
neira estabelece uma distância metodológica entre a observação dos fenômenos
e o esboço de uma explicação para eles, operando uma ruptura que deu nascimento
à clínica.
Pinel é um representante, no campo médico, do pensamento renovador que
marcou a ciência do século XVIII. Comparte com a corrente dos Ideólogos os
princípios metodológicos que fundamentam o trabalho científico. Segundo eles,
o conhecimento é um processo cuja base é a observação empírica dos fenôme-
nos que constituem a realidade. O cientista recolhe esses fenômenos, observa-os,
agrupa-os segundo suas semelhanças e diferenças e constituí classes, gêneros e
espécies, cuidando de não tisnar a objetividade da observação com aspectos de
sua subjetividade. Pinel funda as bases “de um tratamento médico estabelecido
unicamente na observação e na experiência”.5
A História Natural é a disciplina que serve de modelo para essa construção
teórica, balizando a postura do médico-cientista em relação ao seu objeto, libe-
rando-o dos dogmas, dos sistemas filosóficos e dos preconceitos vigentes, abrin-
do seu espírito para perceber a multiplicidade da vida.
Pinel abre a exploração sistemática de um campo e procede ao ordenamen-
44 to dos fenômenos que o constituem. Os sintomas deveriam ser observados com
atenção e empenho constante, identificados e classificados com base na referência
à faculdade (intelecto, vontade, afetividade etc.) comprometida, sem que o mé-
dico se perdesse pelas variegadas formas de manifestação da loucura. A inova-
ção teórica consiste na ideia de que a essência da loucura reside no desarranjo das
funções psíquicas ou mentais, ainda que eventualmente causado por fatores or-
gânicos. É a partir do Traité (1976) que o termo psicopatologia adquire o signi-
ficado de teoria da loucura.
De sua doutrina depreende-se que o louco não é essencialmente diverso do ho-
mem sadio, pois qualquer um pode ser indiferente à razão ou ao bom senso. A
loucura é vista então como uma possibilidade humana, de qualquer ser racional.
Ao contrário de Descartes, que percebia uma incompatibilidade radical en-
tre a razão e loucura, alijando o louco da espécie dos racionais, para Pinel a lou-
cura é uma contradição no interior da própria razão. Ela se manifesta como um
desequilíbrio na razão ou nos afetos, preservando o louco a sua identidade hu-
mana, a sua reserva de razão.
5. d’un traitement médical établi uniquement sur l’obervation et l’expérience. ( Pinel, op. cit., p.
xxxij).
6. “La folie n’est pas une perte abstraite de la raison, ni sous l’aspect de l’intelligence, ni sous
celui de vouloir et da responsabilité...” ( Hegel, [1830] 1970, p. 377).
7. “(...) un simple dérangement, une simple contradiction a l ´intérieur de la raison, laquelle se
trouve encore présente...” (Ibid, p. 377).
Para se avaliar o passo dado por Freud, seu significado na história da filo-
sofia e da ciência, faz-se necessário perguntar por suas linhas de filiação, de um
lado e, por outro, pelo que ele inaugura.
Um bom ponto de partida talvez possa ser tomado emprestado nas reflexões
do próprio Freud (1917) ao comentar a ruptura produzida pela psicanálise no pen-
samento ocidental. Ele a compara com dois eventos caracterizados como feridas
narcísicas da humanidade. O primeiro é atribuído a Nicolau Copérnico, que for-
46 mula no século XVI a teoria do descentramento da terra, ou seja, destrói a cren-
ça vigente até então de que o universo girava em torno da terra e esta seria o
centro de todo o sistema. Freud chama esta ruptura de “golpe cosmológico” ao
amor próprio do homem. O segundo evento é aquele criado por Charles Darwin
ao romper com a ideia de um homem soberano sobre todas as outras espécies que
habitam o planeta.
A psicanálise vai causar a terceira ferida narcísica, a mais sensível, de na-
tureza psicológica, isto é, a ideia de um inconsciente, de um descentramento do
próprio sujeito, onde o eu não é dono nem senhor em sua própria casa, ideia por
meio da qual se vislumbra o que está por vir. Depreende-se, porém, das reflexões
acima seu distanciamento em relação a Descartes, com quem se inaugura, no sé-
culo XVII, a questão da subjetividade enquanto problema do pensamento filosó-
fico. Diante da incerteza quanto à realidade do mundo objetivo, Descartes afirma
8. Hegel percebeu o enorme passo dado por Pinel, como se depreende do texto na Enclyclopédie:
“ Avoir découvert ce reste de raison dans les aliénés et le maniaques, l’y avoir décuvert comme
contenant le principe de leur guérison, et avoir dirigé leur traitement d´aprés ce principe, c’est
lá un titre qui appartient surtout à Pinel, dont l’écrit sur cette matière doit être conisdeéré
comme le meilleur qu’on possède; aliénés; consideré; dont; Freud après (Hegel, op. cit. ,
p. 377).
a certeza do cogito.9 Mas se ele nos diz o que é o pensamento, não nos respon-
de o que é o eu. Para ele, o eu é a consciência, é uma substância pensante que,
junto com a res extensa e a res infinita, conformam o domínio do real. A subje-
tividade seria dotada de ideias e princípios inatos.
O axioma cartesiano cogito ergo sum assinala a emergência da subjetivida-
de mas, paradoxalmente, não do sujeito. Se o cogito é o fundamento reflexivo do
pensamento sobre o homem, este só está presente como gênero ou como espé-
cie. O eu não tem nenhuma concretude individual, pois não é do homem concreto
que Descartes fala, mas sim de uma natureza humana, de um universal. Não afir-
ma a singularidade do sujeito, mas a universalidade da consciência. O logos in-
dividual é uma manifestação do logos universal.
A identificação da subjetividade com a consciência parece ser um ponto ina-
balável não apenas do cartesianismo, mas de toda a filosofia moderna. A referência
a regiões de opacidade da subjetividade não contradiz a afirmação anterior, mas
é tomada como um estágio no desenvolvimento da consciência. A consciência é
o absoluto. Nada pode ameaçar a certeza absoluta do cogito. E quase três sécu-
los depois de Descartes, ainda é em torno dessa certeza que gira o pensamento
filosófico.10
Descartes e a filosofia moderna, embora trazendo novas problemáticas à re-
flexão filosófica, permanecem ligados às mesmas exigências e aos mesmos ob- 47
jetivos do discurso platônico. Seu ideal continua sendo a da epistéme platônica,
isto é, o da constituição da ciência, verdadeiro conhecimento e o conhecimento
da verdade. Mantém-se inalterada a crença na universalidade da verdade. No
Teeteto de Platão já encontramos a afirmação de que a ciência (epistéme) consiste
na posse da verdade e que esta nada mais é do que a revelação do ser. Essa de-
finição de ciência coincide com a definição de razão (logos), sendo que na lín-
gua grega a mesma palavra – logos – significa razão e discurso. Daí a definição
platônica de ciência como revelação do ser pelo discurso.
Platão distingue a doxa, a opinião, o que é da ordem dos dizeres e o que é
da ordem do discurso filosófico, discurso legitimado, cujo estatuto de universa-
9. René Descartes (1596-1650), que se atormentava com o problema dos acasos, sonhou com um
homem livre do tempo e das contingências e, por esse sonho, foi um dos pioneiros das uto-
pias modernas. Em sua origem, o método dedutivo de Descartes estava à procura de um pon-
to fixo em torno do qual giraria o conhecimento, que seria traduzido na idéia do cogito. Fazendo
a distinção entre sujeito e objeto, e identificando a causalidade com a verdade, Descartes es-
tabeleceu as bases para a construção do método científico.
10. Esclareço que neste e nos parágrafos seguintes tomei como referência o volume sobre Descartes
da coleção Os Pensadores, 1999.
Falar sobre o trabalho do analista nos remete a Freud (1937), que se per-
gunta sobre o sentido de sua tarefa:
Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que
deixou atrás de si, ou, mais corretamente, construí-lo... Na verdade, como sabe-
mos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser
vítima de destruição total. Depende exclusivamente de o trabalho analítico obter
sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto. (p. 293-94)
Lat. Am. Journal of Fund. Psychopath. Online, v. 7, n. 2, p. 40-53, novembro de 2010
LATIN AMERICAN JOURNAL
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Freud chama a atenção não apenas para a tarefa do analista, mas também
coloca em dúvida se alguma estrutura psíquica possa ser objeto de destruição,
parecendo sugerir que mesmo nas situações mais radicais resta sempre algo a
partir do qual se pode trabalhar ou reconstruir. O grande mérito de Freud foi ini-
cialmente o de emprestar seus ouvidos às histéricas, e postular que por trás de
sua fala bizarra e de seu sofrimento pudesse haver um sentido a ser decifrado,
contrariando com isso a opinião psiquiátrica de sua época. Torna-se assim o pri-
meiro a fazer da fala e da sintomatologia dos pacientes um complexo trabalho de
tradução do inconsciente e das suas formações.
O trabalho analítico não obedece a um modelo psiquiátrico que tenha uma
resposta já catalogada nos seus manuais de classificação, mas constitui-se numa
aposta no discurso do sujeito. A condição, de certo modo, é chegar até o limite
de dizer que o sujeito é responsável pelas suas decisões, escolhas e caminhos. Ele
tem sua cota de responsabilidade no sofrimento de que se queixa. Isso pode ser
ilustrado pela intervenção de Freud (1905) logo no início do tratamento de Dora:
ela se insurge como uma “bela alma” hegeliana revoltada contra a desordem no
mundo. Interpretando o sentido da intervenção freudiana, Lacan aponta as inver-
sões dialéticas provocadas pelo questionamento sobre a responsabilidade do su-
jeito nos sintomas ou no mal estar de que se queixa: “qual é a sua parte na
50 desordem de que você se queixa?”, esclarecendo a posição subjetiva que Dora
ocupava no círculo formado por ela própria, seu pai, o sr. K e a sra K. O senti-
do dessa intervenção é o de provocar uma verdadeira retificação subjetiva, per-
mitindo que o sujeito saia da posição de vítima inocente para se apropriar do saber
que produz no dizer dos sintomas.
Para que uma análise seja possível, a condição essencial é que o sujeito as-
suma a responsabilidade subjetiva pelo seu sofrimento. Da posição inicial da “bela
alma” que contempla a desordem do mundo, que se queixa dos demais, deve pas-
sar para a posição na qual aquilo de que se queixa é de sua inteira responsabili-
dade.
Mas, responsabilidade em que sentido? Com Lacan (1965-66), podemos di-
zer que “por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” (p. 873). Res-
ponsabilidade deriva precisamente de responder. Responder o (a) quê? E ele
responde: responder por sua posição subjetiva.
Assim, pode-se dizer que o sujeito ao qual o psicanalista se dirige é sempre
o sujeito de direito, que possa responder pelo que faz e pelo que diz. É o sujeito
da enunciação, que toma posição em relação ao seu enunciado, não se confun-
dindo com ele. Trata-se, pois, de um sujeito ético, capaz de julgar a si próprio
quanto ao feito e ao dito. É essa a condição sine qua non para que a experiência
psicanalítica tenha curso.
Referências
Resumos
Cet article essaie de situer une question: y-at-il un sujet dans la folie? En réalité,
52 ce n’est une question nouvelle une fois qu’elle atraversé une bonne partie de de l’
histoire de la folie. En effet, le début peut être situé dans le siècle des Lumière, héritier
du sujet cartésien défini par la raison et la conscience. C’est, paradoxalement, dans
le siècle des Lumières que la folie quitte la vie de la pólis pour être confinée das les
asiles. Le silence en découlant ne será rompu qu’à la fin du XIX ème siècle, au moment
où Freud, en reprenant une tradition déjà oubliée, confère de la légitimité et de la
valeur au discours du fou.
Mots clés: Psychanalyse, Psychiatrie, histoire, sujet, responsabilité
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ROCHELLE GABBAY
Psicanalista; doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, RJ, Brasil (PUC-Rio); assistente social e supervisora do Instituto de Psiquiatria
do IPUB/Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil; pesquisadora do Laborató-
rio Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social/ LIPIS da Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio de Janeiro, RJ, Brasil (PUC-Rio); membro analista da Escola Brasileira de
Psicanálise Movimento Freudiano/EPBMF/RJ, Brasil.
e-mail: rochelle_gabbay@yahoo.com.br
JUNIA DE VILHENA
Psicanalista; Doutora em Psicologia Clínica; Professora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ, Brasil (PUC-
Rio); Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ, Brasil (PUC-Rio); Bolsista da
CAPES (PROCAD); membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia
Fundamental; Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et
Médecine, CRPM-Pandora, Université Denis-Diderot Paris VII.
www.juniadevilhena.com.br
e-mail: vilhena@puc-rio.br