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Lacan: psicanálise, ontologia e política

Aula 1

Há algumas maneiras possíveis de começar um curso como este. Uma primeira


possibilidade começaria por lembrar como o advento da psicanálise representou
uma inflexão importante na compreensão do que política realmente significa. Ou
seja, eu poderia começar insistindo no fato de não podermos falar de política da
mesma forma antes e depois da psicanálise. Na medida em que a psicanálise
moldou a sensibilidade social contemporânea a respeito dos processos de
socialização dos desejos e das pulsões, ela necessariamente influenciou os modos
de problematização das configurações sociais aí produzidas. Não será possível
compreender a transformação da sexualidade, da corporeidade, da memória em
problemas políticos maiores do século XX, nossa forma de questionar o que se
produz nos campos da sexualidade, da corporeidade, da memória sem levarmos
em conta o impacto social da psicanálise em nosso horizonte de crítica social.
No entanto, notemos a especificidade da abordagem psicanalítica. Pois ela
se dá através da questão sobre a forma com que tais processos de socialização
produzem modalidades de sofrimento. Ou seja, o sofrimento psíquico se
transforma em uma categoria política central por indicar sistemas de
expectativas não realizadas no interior da vida social. Ele não aparecerá como
desvio em relação a estruturas tipificadas de normalidade, mas como modo de
denúncia da articulação, necessária para nós, entre socialização e violência, entre
instauração da vida psíquica e sujeição social. A psicanálise não falará, por
exemplo, dos desajustes da família, mas da maneira com que a família produz
necessariamente desajustes para funcionar de maneira “normal”, ou seja, de
acordo com sua própria normatividade. Ela não falará do uso neurótico da
religião, mas de como a vinculação ao poder pastoral nos coloca necessariamente
em posição neurótico obsessiva. Neste sentido, a insistência nas feridas
provocadas pela nossa inscrição no interior da vida social serão as marcas de
uma revolta que não encontrou voz e que, por isto, aparece no corpo, nos rituais
compulsivos, nas inibições, na angústia. Revoltas que aparecem naquilo que os
sujeitos tem de mais verdadeiro.
Assim, não se trata de insistir na proposição equivocada de que as
sociedades ocidentais teriam esperado a psicanálise para iniciar seus
questionamentos a respeito da política implícita em estruturas disciplinares
responsáveis pela constituição de uma civilidade indissociável da normalidade
psíquica. Trata-se, na verdade, de lembrar que um passo decisivo é dado pela
psicanálise na medida em que tais estruturas disciplinares poderão ser
questionadas não tendo em vista a norma que elas deveriam realizar, mas
simplesmente o sofrimento que elas produzem ao, de forma paradoxal,
“funcionarem bem”. A psicanálise não precisou partir do normal para discutir os
desvios da vida social, um pouco como fazia a medicina social do século XIX ou
ainda como certa sociologia do século XIX. Pensemos, por exemplo, nos usos
feitos por Durkheim da noção de patologia social enquanto desvio em relação à
média. Na verdade, a psicanálise partirá da expressão do patológico, da
expressão do sofrimento psíquico compreendido como marcas da violência e da
sujeição social.
Sujeição libidinal e emancipação social

Mas, e este é um ponto fundamental, ao se indagar sobre as formas da


vida social, a psicanálise procurou sobretudo descrever os regimes de adesão à
sujeição social, ou seja, a esta maneira de associar a própria instauração da vida
psíquica, a constituição de suas instâncias à modalidades de adesão ao que nos
faz sofrer. Pois a sujeição não poderia se dar apenas através da coerção, da
violência direta, embora ela não deixe de apelar a tais expedientes, se necessário
for. Há processos identificatórios, demandas de amor, expectativas de amparo,
ou seja, há todo um circuito de afetos com seus medos, esperanças, melancolias
que sustenta o poder, que dá ao poder a força de sujeitar sujeitos, de gerir suas
expectativas e sofrimentos, e é deste circuito que a psicanálise fala. Nós
paradoxalmente amamos aquilo que nos sujeita, e não seria de outra forma que
tal sujeição conservaria sua força.
Por esta razão, a psicanálise logo se consolidou como uma referência
maior na análise de fenômenos de regressão social. Que lembremos, por
exemplo, do recurso massivo da Escola de Frankfurt à psicanálise na análise de
fenômenos como o antisemitismo, o nazismo e a constituição de personalidades
autoritárias. Este recurso está presente desde o início dos anos trinta, com os
estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do operariado alemão ao
nazismo a partir da análise das articulações entre “impulsos emocionais do
indivíduo e suas opiniões políticas”1. Fromm procurava, para além da expressão
explícita do engajamento político, compreender e tipificar as estruturas
motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua compreensão
visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre comportamentos
públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o sistema de
modificações bruscas das posições políticas da classe operária, como a deserção
do comunismo em direção ao nazismo.
Mas para além do uso da psicanálise na análise das dinâmicas de
regressão social, os frankfurtianos foram os primeiros a mostrar como a
integração da psicanálise no interior de uma reflexão sobre a crítica social
permitiria desenvolver uma verdadeira crítica da economia libidinal do
capitalismo. Esta era a consequência da compreensão de que a análise dos
processos de racionalização social e seus descaminhos deveria, se quiser
esclarecer seu fundamento, incorporar considerações mais amplas sobre a
ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos2. No entanto, Freud
mostraria como tal ontogênese seria indissociável da reflexão sobre a dinâmica
conflitual dos processos de socialização das pulsões e do desejo no interior de
esferas de interação como a família, as instituições sociais e o Estado, fornecendo
novas bases para uma perspectiva materialista na medida que derivava

1
FROMM, Erich; Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stutgart: Deutsche
Verlags-Anstalt, 1980, p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações de Erich Fromm ao
Instituto de Pesquisas Sociais, ver JAY, Martin; The dialectical imagination, California University
Press, 1996
2
Daí porque Adorno lembrará: “Freud mostrou de maneira bem convincente que as forças que
assumem a função do cimento irracional de grupos, como lembrada por autores tais como Gustave Le
Bon, são atualmente efetivas no interior de cada participante do grupo e não pode ser compreendida
como entidades independentes das dinâmicas psicológicas” (ADORNO, Theodor; Vermischte
Schriften I, p. 279).
dinâmicas amplas de racionalização social das experiências materiais de
interação tendo em vista problemas de satisfação e reconhecimento.

Emancipação

Mas eu poderia começar este curso ainda de outra maneira, não apenas
lembrando que a psicanálise modificou a compreensão ocidental do que política
significa, redimensionando o escopo da crítica social ao tematizar a sociedade
inconsciente de si mesma, mas que ela nos permitiu pensar em outras bases o
processo de emancipação social. Esta é uma dimensão muitas vezes ignorada, no
entanto decisiva. A psicanálise é solidária do redimensionamento da noção de
emancipação, ao conservar a temática de uma liberdade possível, de uma crítica
possível da alienação, mas impedindo-a de ser pensada como a realização social
da autonomia da consciência. A noção psicanalítica de inconsciente nos obriga à
reformulação profunda do conceito de autonomia, reformulação a respeito da
qual ainda não medimos de forma efetiva suas consequências. Isto não poderia
deixar de trazer consequências para a noção de ação política. Pois o que é uma
ação política que não se coloca mais como ação de uma consciência, seja ela
individual ou consciência de classe? O que é uma ação política que não pode mais
apelar a conceitos de deliberação racional tal como entendemos este conceito até
agora?
Insistir na existência de uma reflexão psicanalítica sobre as condições de
emancipação social significa recusar a noção, muito presente entre nós, de que a
psicanálise freudiana poderia, no máximo, nos fornecer uma visão deceptiva da
vida social. Se há emancipação possível, ela deve se realizar como instauração de
laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade. O que significa
recusar a ideia de que só seria possível pensar laços sociais a partir das
exigências de contenção possível de uma violência imanente à vida comum. Por
exemplo, creio que vocês todos conhecem afirmações como:

O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo
pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus
dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em
consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a
tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-
lo. Homo homini lupus3.

A metáfora hobbesiana utilizada por Freud, que afasta do horizonte toda


pressuposição de uma tendência imediata à cooperação, deixaria claro como o
vínculo social só poderia se constituir a partir da restrição a esta crueldade inata,
a esta agressividade pulsional que parece ontologicamente inscrita no ser do

3FREUD, Sigmund; O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 76-77.
Lembremos ainda do tom claramente hobbesiano da descrição da violência do “estado de
natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razão própria de existência,
consiste em nos defender contra a natureza” (FREUD, Sigmund; Der zukunft einer Illusion, In:
Gesammelte Werke XIV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336)
sujeito. Desta forma, uma “hostilidade primária entre os homens” seria o fator
permanente de ameaça à integração social. O que teria levado alguém como
Derrida a afirmar que “se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é
irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade,
que são no fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença)
então nenhuma política poderá erradicá-la”4. Tal crueldade não pareceria ser
completamente maleável de acordo com transformações sociais. Daí porque
Freud dirá: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor,
desde que restem outras contra as quais se exteriorize a agressividade”5. Ou seja,
os vínculos cooperativos baseados no amor ou em alguma forma de
intersubjetividade primária só seriam realmente capazes de sustentar relações
sociais alargadas à condição de dar espaço à constituição de diferenças
intoleráveis alojadas em um exterior que será objeto contínuo de violência. Tais
vínculos de amor permitiriam a produção de espaços de afirmação identitária a
partir de relações libidinais de identificação e investimento. Mas a constituição
identitária seria indissociável de uma regulação narcísica da coesão social, o que
explica porque Freud fazia questão de lembrar que “depois que o apóstolo Paulo
fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a
intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-
se uma consequência inevitável” 6 . Não é difícil compreender como tal
exteriorização da agressividade, assim como toda e qualquer aceitação de
restrições pulsionais só poderá ser feita apelando ao medo como afeto político
central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessão produzida pelo
outro ou ainda da destruição produzida por si mesmo.
Neste ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo núcleo
metafísico da política, presente nesta forma de radicalizar a irredutibilidade da
violência como constante antropológica. Podemos falar em “núcleo metafísico”
porque a violência irredutível das relações interpessoais, além de ser elevada a
paradigma intransponível do político, pareceria fadada a só se realizar de uma
forma, a saber, como experiência da vulnerabilidade diante da agressividade
vinda do outro. Tal invariabilidade das figuras da violência parece expressão de
uma certa crença metafísica na essência intransponível das relação humanas.
No entanto, esta leitura é errada e não faz jus àquilo que a psicanálise
produziu de pontencialidades a respeito de uma teoria da emancipação. Pois há
de se lembrar que a psicanálise não é apenas uma crítica social, ela é uma
reflexão sobre as possibilidades de emergência de corpos políticos capazes de
bloquear os sistemas de alienação e suas formas de sofrimento social. Eu diria
que sem este horizonte em vista não é possível entender o sentido de textos
como Moisés e o monoteismo, Por que a guerra? Ou O futuro de uma ilusão.

Uma teoria das identificações políticas

Foi levando em conta esta dupla inscrição da psicanálise no interior do


campo político desde Freud que gostaria de propor este curso a vocês. Trata-se
de insistir que esta dupla tarefa política da psicanálise será um dos eixos

4 (DERRIDA, Jacques; Estados de alma da psicanálise, Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 34)
5 FREUD, Der Zukunft einer Illusion, p. 81
6 FREUD, O mal-estar na civilização, op. cit. p. 81
principais do desenvolvimento da experiência intelectual de Jacques Lacan, ela
pode nos fornecer o sentido de elaborações clínicas maiores de Lacan.
O destino das consequências políticas do pensamento lacaniano é algo
que está longe de ser estabelecido sem problematizações. Críticas significativas
foram desenvolvidas por leitores de Lacan como Guattari, Deleuze, Foucault,
Derrida, Castoriadis, entre outros. No entanto, eu gostaria de insistir que tais
críticas erram de alvo e que uma leitura atenta dos textos pode nos mostrar uma
outra imagem do pensamento.
Para tanto, neste curso, gostaria de desenvolver quatro eixos de
organização das relações entre psicanálise e política a partir da obra de Jacques
Lacan. Tais eixos respondem por problemas constitutivos da experiência política
e já foram, cada um a sua maneira, elaborados ou criticados por teóricos e
filósofos que se confrontaram com a obra lacaniana. No entanto, gostaria de
insistir que, a meu ver, todos esses eixos encontram-se ainda subaproveitados
em suas potencialidades imanentes. Eles carecem ainda de maior sistematização.
Estes eixos visam dar conta do que poderíamos chamar de “os quatro
conceitos fundamentais da política a partir da psicanálise lacaniana”. Eles
acabam por cobrir, à sua maneira, problemas centrais para a teoria política
como: a questão da emergência e da mobilização, da crítica da situação e da
organização. Os conceitos são: identificação, ato, gozo e reconhecimento. A sua
maneira, eles desdobram o campo organizado por aquilo que Lacan chamou de
“os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a saber: a transferência, a
repetição, o inconsciente e o objeto a.
O primeiro eixo que gostaria de analisar com vocês diz respeito a uma
teoria das identificações políticas que se desdobra em uma concepção sobre
modalidades de instauração de corpos políticos. Neste eixo, encontramos
inclusive reflexões sistemáticas sobre processos de organização política
advindos das exigência que Lacan se impôs de constituir um vínculo social
renovado através da transformação do problema da comunidade de analistas em
um problema interno à clínica, isto ao constituir a Escola Freudiana de
Psicanálise. O que de fato produziu problemas suplementares dificilmente
resolúveis.
Lacan parte de um diagnóstico social referente àquilo que ele chama de
“declínio da imago paterna” e dos efeitos sociais que tal declínio produziria.
Como gostaria de mostrar já na aula que vem, longe de estarmos diante um
tópico social vinculado ao colapso das autoridades tradicionais devido ao
processo de modernização social e a potencial anomia que tal desregulação das
normas sociais produziria (como vemos, por exemplo, em Durkheim), tópico
articulado normalmente com demandas de instauração de um institucionalismo
forte, temos em Lacan uma reflexão original vinculada à consciência do advento
de uma era histórica na qual o declínio da imago paterna não equivalerá à
liberação dos sujeitos de estruturas patriarcais fortemente normativas, mas à
consolidação de outra forma de sujeição social vinculada à redução das relações
sociais às formas imaginárias do conflito, da agressividade e da rivalidade
narcísica.
A promessa de liberação advinda do fim da sociedade patriarcal não se
realizou, é o que diz Lacan. Na verdade, nós já viveríamos em uma sociedade sem
pais, pois as figuras paternas estariam necessariamente reduzidas à condição de
rivais narcísicos. Sociedades nas quais o verdadeiro pai só pode ser um pai
morto. O que produz um efeito social de generalização do narcisismo como
estrutura de defesa contra a fragilidade do Eu em uma situação na qual as
identificações simbólicas tendencialmente não conseguem operar enquanto tais.
Antes da temática das sociedades narcísicas tomar conta da sociologia dos anos
sessenta, Lacan apontava para um problema estruturalmente semelhante como a
verdadeira forma de reprodução social das sociedades capitalistas
contemporâneas, sem ter que referendar a crítica ao hedonismo que muitas
vezes acompanham tais críticas, transformando-as muitas vezes em críticas
morais do capitalismo.
Há de se salientar ainda que a compreensão lacaniana do narcisismo
generalizado apontava para dois fenômenos sociais fundamentais. Primeiro, a
submissão dos sujeitos a um tipo de injunção superegóica não mais vinculada à
repressão advinda de figuras paternas de autoridade, mas a uma demanda
indeterminada de satisfação que só poderia levar ao colapso depressivo da
capacidade individual de ação. Segundo, a possibilidade de produção
generalizada de demandas por figuras superegóicas de autoridade em clara
chave autoritária.
Isto mostra como tal economia psíquica trará consequências maiores para
o campo político. A sua maneira, Lacan tentará lidar com elas desde seu texto de
1947 “A psiquiatria inglesa e a guerra” no qual saúda o experimento de Bion e
Rickmann a respeito de grupos sem chefe. Em uma era de declínio da imago
paterna, sua aposta parece caminhar em direção à possibilidade não de
fortalecimento das figuras paternas de autoridade, mas de constituição de laços
sociais a partir da identificação a um lugar vazio, algo que de certa forma
veremos se realizar com um filósofo político leitor de Lacan, a saber, Claude
Lefort. O mesmo Lefort que tentará desenvolver uma teoria da democracia a
partir de uma apropriação das distinções lacanianas entre os registros do
simbólico e do imaginário. Daí afirmações como:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder não é de ninguém7.

Assim, da mesma maneira com que o desejo do analista aparecerá inicialmente


como um desejo puro, as identificações no campo social, se não quiserem abrir
espaço a regressões autoritárias, deveriam saber se guiar pela explicitação do
lugar vazio simbólico do poder com suas consequências pretensamente
apaziguadoras para os conflitos sociais.
No entanto, da mesma forma que o desejo do analista acabará por
demonstrar não poder ser pensado como um desejo puro, esta teoria das
identificações políticas que visa sustentar a força do lugar vazio para além da
reduções imaginárias de conflitos próprios a sujeitos narcísicos impulsionados
pela agressividade terá de ser revista. Se na teoria dos quatro discursos, a
discurso do analista será caracterizado exatamente pelo fato de não haver

7 Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.


sujeitos como agentes, mas a posição da agência ser dada por um objeto que
causa o desejo, então há de se perguntar o que esta nova compreensão do lugar
do objeto a traz para uma teoria das identificações socio-políticas.
Notem que se no primeiro modelo, a abertura à dimensão simbólica com
o vazio que ela implica permitiria uma transposição do conflito social à cena de
um horizonte possível de preservação dos oponentes e de garantia de certa
pluralidade agonística, no segundo a identificação ao objeto a nos remete a uma
dinâmica própria ao registro do Real. Estas dinâmicas do Real serão de outra
ordem, como nos mostrará um texto que poderá nos orientar, a saber,
“Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”.
Conhecemos um filósofo político que, na contramão de Lefort, recupera a
centralidade dos processos identificatórios na constituição de corpos políticos
apoiando-se de forma explícita e sistemática em Lacan. Trata-se de Ernesto
Laclau. Gostaria de discutir as estratégias de Laclau, em especial seu uso de
noções homólogas ao objeto a na compreensão dos processos populistas de
identificação. Assim, o primeiro eixo de nosso curso terá como textos
fundamentais: “A psiquiatria inglesa e a guerra”, a “Proposição de 9 de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, o capítulo de A razão populista intitulado
“O povo e a construção política do vazio”, de Laclau, e o subcapítulo de A
invenção democrática, “Contribuições para a compreensão do totalitarismo”, de
Claude Lefort.

Uma teoria da emergência de sujeitos

O segundo eixo de nosso curso refere-se a uma teoria da emergência de


sujeitos políticos que encontra configuração através das temáticas lacanianas do
ato analítico e de sua capacidade em problematizar teorias da deliberação
racional e da autonomia ainda tributárias dos limites de uma filosofia da
consciência muitas vezes não explicitada. Ou seja, é através das discussões sobre
a anatomia do ato que podemos encontrar, em Lacan, uma compreensão das
dinâmicas de agência política não mais dependente dos limites de uma filosofia
da consciência.
Em seu seminário O ato analítico, Lacan fornece aquilo que ele chama de
“a fórmula do ato”. Esta fórmula encontra-se enunciada em um poema de
Rimbaud chamado À uma razão:

Um bater de seu dedo contra o tambor descarrega/ todos os sons e


começa a nova harmonia./ Um passo seu é o levante de novos homens/ E
seus em-marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor!/ Tua cabeça se volta:
o novo amor! /“Muda nossos destinos, alveje as pragas, a começar pelo
tempo”, cantam-te essas crianças. “Cultiva não importa onde a substância
de nossas fortunas e desejos”, te suplicam./ Vinda de sempre, quem irá
contigo por toda parte.

A escolha do poema de Rimbaud não poderia ser mais apropriada,


principalmente se lembrarmos que estamos aqui a falar do poeta que canta a
Comuna de Paris e seus desejos de transformação. É clara a constelação da
ruptura, dos destinos que mudam ao alvejar o tempo vivido como praga, do
espaço que se abre para um “não importa onde”, para um “por toda parte”. Neste
horizonte, a psicanálise procura pensar as condições de transformações
subjetivas capazes de trazer uma agência que não é completamente coordenada
pela estrutura. Daí porque: “se eu posso aqui caminhar falando a vocês, isto não é
um ato, mais se um dia ultrapasso um certo solo no qual coloco-me fora da lei,
neste dia minha motricidade terá valor de ato” 8. No que se percebe como há uma
suspensão da estrutura que é constitutiva da noção de ato analítico.
Lacan articula a estrutura do ato ao manejo da transferência,
especialmente na sua forma de liquidação do sujeito suposto saber e de extração
do objeto que sustenta a relação de suposição, a saber, o objeto a. Tal extração
retira o objeto a de sua posição de suporte imaginário da consistência da
estrutura e lhe permite aparecer na posição de resto, ou seja, de um inassimilável
que só pode impulsionar a “um novo amor”, a “um levante de novos homens”. Há
uma queda de um saber suposto, queda de um saber deliberar que aparece como
efeito fundamental do ato analítico. Daí porque Lacan afirmará que se trata de:
“um ato tal que destitui em seu fim o próprio sujeito que o instaura”9.
Este ato analítico, por sua vez, não é a inscrição no interior de uma
rememoração capaz de integrar as dimensões da experiência à historicização e a
seus mecanismos de construção. Por isto, o ato analítico não é uma “tomada de
consciência”. Ele é uma repetição específica. É esta recompreensão da repetição
que permitirá o recurso clínico à noção de ato. Ou seja, haverá uma relação
profunda entre ato e repetição, todo verdadeiro ato será uma forma específica de
repetição (o que nos exige constituir uma gramática dos modos de repetição),
algo que todo leitor de Hegel e Marx conhece bem através do tema da repetição
histórica. Ou seja, o ato instaura uma temporalidade própria, uma repetição que
não é nem simbólica, no sentido de meramente atualizar as posições de uma
estrutura, nem imaginária, no sentido de meramente repetir conformações
imaginárias, vestimentas de outra época. O ato instaura uma temporalidade real
que permite a emergência de sujeitos que não podem mais ser pensados sob a
figura de indivíduos. Há de se entender o que pode ser este registro real das
repetições que se encarna na própria natureza do ato analítico.
Notem a importância desta discussão sobre o ato analítico para o campo
político. Em maio de 1968, os estudantes escrevem nos muros de Paris: “as
estruturas não descem às ruas”. Esta era uma maneira de dizer que as formas da
revolta social mostravam a inanidade de teorias incapazes de dar espaço a uma
agência emancipada que não seria, a sua maneira, reiteração das posições
previamente normatizadas por uma estrutura metaestável. A resposta de Lacan
será: “se há algo que a revolta estudantil mostrou foi a descida às ruas da
estrutura”. Ou seja, havia para Lacan algo de reiteração de posições na revolta
estudantil, de impossibilidade de produção de rupturas efetivas. Não será a
primeira vez que Lacan insistirá que a revolta estudantil não seria um ato, seria
um acting out, já que lhe faltaria, no fundo, a capacidade de emergência de
sujeitos políticos. “O que vocês aspiram como revolucionários é a um mestre”,
dirá Lacan aos estudantes, “vocês o terão”10. Maneira de insistir que as demandas
políticas teriam dois destinos possíveis: ou ficar na posição histérica de ter de se
garantir graças a presença de um poder questionado que deve continuar no
mesmo lugar para poder ser continuamente exigido e questionado ou permitir a

8 LACAN, S XV, sessão de 15 de novembro de 1967


9 LACAN, Autres écrits, p. 375
10 LACAN, S XVII, p. 239
incorporação dos sujeitos da demanda na estrutura do próprio saber
questionado. Nos dois casos, há uma adesão da resistência à gramática do que é
questionado, à sua forma de organização do saber, de inscrição e
reconhecimento de sujeitos.
Mas o que haveria no ato analítico que demonstraria o impasse das ações
de revolta? Veremos como o ato não pode ser ato de uma consciência que se
assenta na afirmação da autonomia de suas decisões. Ele não pode sequer ser
expressão de uma consciência de classe que se produz como identidade coletiva
por vir com todos os riscos de sua reificação identitária posterior. Ele só pode ser
a tentativa de extração do que causa nosso desejo das sendas de seu
aprisionamento no interior de certa noção de sujeito, de demanda e estrutura. Há
uma singular forma de emancipação através da noção lacaniana de ato. Ela deve
ser tematizada.
Das críticas à posição lacaniana a respeito de maio de 68, talvez a mais
elaborada seja a de um ex-militante dos movimentos de juventude maoísta, a
saber, Alain Badiou. No entanto, Badiou construirá sua própria teoria do ato
político através de uma leitura singular das dinâmicas de conversão religiosa, tal
como ela aparece em São Paulo: a fundação do universalismo. Teremos ocasião de
organizar tal debate através do trabalho com os textos: “O ato analítico” e
“Discurso à Escola Freudiana de Paris”, de Lacan e o pequeno livro de Badiou.

A economia libidinal do capitalismo

O terceiro eixo, talvez o mais discutido pela fortuna crítica, nos fornece
uma crítica da economia libidinal do capitalismo através do uso extensivo de um
conceito de gozo forjado na relação entre psicanálise freudiana e teoria social de
Georges Bataille (de onde o conceito realmente vem). Lacan acredita que a crítica
social do capitalismo deve estar inicialmente atenta às formas de incitação
libidinal necessárias à reprodução das formas sociais. A compreensão das
articulações entre instauração da vida psíquica e modos de sujeição social
passam, no caso de Lacan, por uma dinâmica que não é legível através dos
problemas ligados aos destinos dos processos repressivos, mas aos modos de
expropriação das experiências de gozo.
Na verdade, Lacan parte inicialmente da perspectiva batailleana relativa à
compreensão dos processos de reprodução material da vida sob o capitalismo
através da elevação dos princípios utilitaristas de maximização do prazer e de
afastamento do desprazer. Em Bataille, tal tópica servia para lembrar que o
capitalismo deveria procurar eliminar do horizonte da vida social todos estes
fatos totais que não poderiam ser pensados através da estrutura calculadora do
prazer, em especial o erotismo e o sagrado. Pois sagrado e erotismo seriam fatos
sociais motivados pelo gozo, não pelo prazer.
Esta distinção entre prazer e gozo será transposta para o interior da
teoria psicanalítica por Lacan, principalmente a partir do Seminário VII, sobre a
ética da psicanálise. Na ocasião, Lacan fará uma importante elaboração a respeito
da experiência analítica como uma prática dirigida por uma ética que, no
entanto, não promete forma alguma de adaptação possível entre virtudes
privadas e virtudes públicas nas condições atuais. “Il n’y a aucune raison que
nous nous fassions les garants de la rêverie bourgeoise”11. Nas condições atuais,
a realização do gozo só pode se dar de forma disruptiva em relação às exigências
de auto-conservação dos indivíduos. No entanto, ele é abertura para a
possibilidade de realização de ações que não se mesurem mais ao princípio do
prazer. Desta forma, a existência de um para-além do princípio do prazer ganha
em Lacan uma dimensão ética que não existia em Freud.
Esta crença na força disruptiva de experiências de gozo, no entanto, terá
que lidar com uma economia libidinal própria ao capitalismo, que não se baseia
apenas na repressão do gozo e afirmação do prazer, mas na espoliação do gozo
no interior de uma lógica de reprodução de sua desmedida, mas no interior da
lógica de produção do valor. O capitalismo não apenas codifica nossos desejos,
ele nos espolia de nosso gozo. Com isto, Lacan cria uma teoria da economia
libidinal do capitalismo no qual os processos de socialização não serão mais
pensados sob a forma da repressão, mas da incitação contábil, da eliminação da
força disruptiva do gozo através da própria colonização do gozo.
Esta racionalidade própria a uma sociedade organizada a partir da
circulação do que não tem outra função a não ser se auto-valorizar, que
determina as ações dos sujeitos a partir da produção do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da intensificação, pelo puro
empuxo à ampliação que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem em última
análise uma subjetivação do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
indefinida de si”12. Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura
medida da intensificação, pede uma economia psíquica não mais assentada em
um supereu repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condição de
imperativo transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua própria
encarnação, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunção contínua ao gozo13.
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo
capitalista de acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusões de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relações por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se
transforma em modificação qualitativa. Ao contrário, todo excesso é
financeiramente codificável, é confirmação do código previamente definido14.
Como diria Hegel a respeito de outros fenômenos, esse excesso é marca de uma
má infinitude, pois não passa ao infinito verdadeiro do que muda sua própria
forma de determinação a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceção de si. Uma exceção que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito ruim do que é sempre assombrado por um para além que
nunca se encarna, para além cuja única função é marcar a efetividade com o selo

11 LACAN, S VII, p. 350


12 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
13 Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Cinismo e falência da crítica, op. cit.
14 Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de

conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”. A sua maneira, Lacan nos
lembra que a análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. Os destinos do gozo só podem ser pensados no interior de uma teoria
dos dois infinitos.
Para tanto, trabalharemos sessões dos Seminários VII, A ética da
psicanálise, e XVII, O avesso da psicanálise. Neste ponto, gostaria de retomar as
críticas de Foucault à “desqualificação dos prazeres” feita por Lacan e de
Deleuze/Guattari a sua teoria do capitalismo.

Uma prática de organização

Por fim, o último eixo de reflexão sobre a relação entre política e psicanálise em
Lacan diz respeito à forma com que ele tematiza práticas de organização. A partir
de 1964, são vários os textos nos quais Lacan se confronta com problemas de
organização na qual seria necessário pensar a possibilidade de constituição de
laços sociais em situações nas quais a travessia da fantasia teria se realizado.
Uma organização que, por isto, deveria ser capaz de fazer circular a angústia, e
não se defender dela, que deveria ser capaz de afirmar o desamparo, e não
construir representações superegóicas que visam realizar promessas de amparo.
Ou seja, há principalmente uma pergunta a respeito do circuito de afetos
próprios a organizações e grupos que queiram ser espaços de atos analíticos, o
que poderia ser uma matriz para a compreensão de grupos capazes de realizar
expectativas de emancipação.
No entanto, a prática de organização de Lacan termina sob a égide de um
fracasso representado pelo autodissolução de sua Escola. O eixo da explosão de
sua Escola foi, de forma sintomática, a tentativa de reintroduzir algo dos
processos de comunicação e intersubjetividade através da noção de “passe”. Eu
gostaria de terminar o curso pensando as dimensões políticas deste fracasso a
fim de compreendermos o que ele nos diz, quais os desafios que ele nos deixa
para uma teoria geral de grupos e organizações. Principalmente, em que
condições poderemos pensar a inscrição comum da posição de sujeitos. Esta será
uma maneira de demonstrar a necessidade de conservar, no interior do
pensamento lacaniano, a temática do reconhecimento como horizonte normativo
de realização de demandas políticas.

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