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[ Biologia ]

A síntese Primeiro organismo


controlado por
genoma artificial

da criação prova que o DNA é


realmente a receita
química da vida

Marcos Pivet ta

Q
uando anunciou no dia 20 do mês passado a sintético da levedura e o transplantaram para
criação da primeira linhagem de células viáveis as células de uma outra bactéria, a Mycoplasma
de um ser vivo controlada por um genoma to- capricolum. O cromossomo artificial conseguiu
talmente sintetizado em laboratório, o cientista tomar o controle das células receptoras, que
norte-americano Craig Venter não economizou passaram a produzir todas as proteínas típicas
palavras para descrever o feito. Lembrou a todos da M. mycoides. Dois dias após o transplante,
que, nunca antes na história deste mundo, a hu- as células deixaram de conter o DNA original
manidade tinha sido apresentada a uma criatura desprovida da M. capricolum (seja porque ele foi destruído
de ancestrais. Sem pais. A mensagem era clara: a Mycoplas- ou diluído no processo de replicação) e apre-
ma mycoides JCVI-syn1.0 – nome dado à variedade dessa sentavam um único tipo de material genético,
bactéria cujo DNA fora produzido por químicos de uma o cromossomo sintético da M. mycoides. Em
empresa de biotecnologia, a Blue Heron – era filha de uma toda essa operação (ver infográfico na página
nova era. Da biologia sintética. “É a primeira espécie do 46), apenas 14 genes sem muita importância da
planeta que se autorreplica cujo pai é um computador”, M. mycoides se perderam ou foram anulados.
afirmou o ousado pesquisador-empresário, que, anos atrás, “Trata-se de um avanço tanto filosófico como
já havia se tornado famoso ao liderar um projeto privado técnico”, disse Venter, resumindo, a seu ver, as
de sequenciamento do genoma humano capaz de rivalizar implicações da empreitada.
(e acelerar) o trabalho feito pelo consórcio público. Ápice de um esforço que consumiu US$
A alusão à máquina como o pai da bactéria não é gratuita. 40 milhões e quase 15 anos de pesquisa de
Afinal, as informações necessárias para fabricar um genoma, um time de 24 pesquisadores do JCVI, entre
na forma de uma enorme sequência de bases químicas (A, C, os quais Ham Smith, Prêmio Nobel de Medi-
T e G), ficam guardadas em computadores. No caso da varie- cina em 1978, o surgimento da linhagem de
dade natural da bactéria M. mycoides, trata-se da se­quência bactéria com genoma sintético foi elogiado
composta de 1,08 milhão de pares de bases (com cerca de por cientistas de todo o mundo. Alguns pre-
mil genes) presentes em seu único cromossomo. Foi com feriram situar o trabalho, que foi publicado
essa receita química que se fez, em laboratório, uma cópia eletronicamente na revista científica Science,
sintética do DNA natural da bactéria, seguindo uma série de como um grande feito tecnológico, uma mu-
especificações da equipe do J. Craig Venter Institute (JCVI), dança de escala na capacidade de o homem
instituto fundado por Venter. O genoma não foi sintetizado modificar o DNA de organismos, mas não
como uma única grande sequência de DNA, mas em mais de como uma revolução científica. Outros pes-
mil pequenos pedaços. O conjunto de fragmentos foi inserido quisadores, embora reconheçam o caráter téc-
numa levedura, onde foram reunidos e retomaram a forma nico da empreitada, salientam que o trabalho
do cromossomo. Por fim, os cientistas retiraram o genoma tem, sim, relevância para a ciência. A visão

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Ciência

Linhagem sintética da bactéria Mycoplasma mycoides: vida artificial

de três desses cientistas está publicada outros organismos semelhantes que Segundo a geneticista Lygia da Vei-
jcvi

em artigos especialmente escritos para viveram no passado. “O trabalho de ga Pereira, da USP, Venter terá mui-
esta edição de Pesquisa FAPESP, entre Venter demonstra que a vida pode ser to trabalho pela frente para exercer a
as páginas 47 e 51. interrompida e reiniciada”, afirma Rei- biologia sintética em sua plenitude. “O
O biólogo Fernando Reinach não nach, fazendo alusão ao fato de que a maior desafio será desenhar um geno-
tira os méritos científicos do experi- bactéria não tem ancestrais biológicos, ma totalmente novo e escolher que ge-
mento de Venter. Segundo ele, o tra- é fruto da sequência de letras químicas nes serão colocados para que um orga-
balho é a prova cabal de um conceito, armazenadas num computador. nismo desempenhe uma determinada
o de que a matéria viva não tem nada A geneticista Mayana Zatz, coorde- tarefa”, diz Lygia. Ainda que os esfor-
de especial e também está submetida nadora do Centro de Estudos do Ge- ços do cientista americano demorem
às leis da química e da física. Apenas noma Humano da Universidade de São para gerar frutos palpáveis, a simples
com a informação do DNA é possível Paulo (USP), comparou a repercussão presença no ambiente de pesquisa de
recriar um genoma e, por tabela, uma causada pelo trabalho de Venter a um um sujeito como Venter, polêmico e
forma de vida. “Isso todo mundo já episódio semelhante ocorrido há 14 provocativo, sem dúvida, é vista como
sabia em tese, mas faltava alguém de- anos. “Esse feito me lembrou da clona- salutar por alguns de seus pares. “Para
monstrar na prática essa teoria ampla- gem da ovelha Dolly, por Ian Wilmut, entender Venter, eu costumo pensar no
mente aceita”, afirma Reinach. “Depois em 1996. Os dois causaram uma revo- ser humano como uma criança, uma
da publicação do genoma humano, o lução midiática”, escreve Mayana num criança largada numa sala bem grande
trabalho de Venter é o de maior rele- artigo publicado na página 47. chamada mundo. Ela fica mexendo em
vância que saiu. Não há por que tentar Grande parte do financiamento das tudo, às vezes se queima ao colocar o
relativizar sua importância”, diz José pesquisas do JCVI vem da Synthetic dedo numa tomada, mas outras vezes
Fernando Perez, presidente da Recepta Genomics Inc (SGI), empresa fundada acaba descobrindo como subir numa
Biopharma e diretor científico da FA- por Venter que fez 13 pedidos de paten- cadeira para alcançar as guloseimas lá
PESP entre 1993 e 2005. “Ele coroa todo te sobre métodos usados nos trabalhos em cima”, escreve João Meidanis, da
um esforço de entendimento científico com biologia sintética. Venter diz que o Universidade Estadual de Campinas
do DNA. Os grandes avanços científi- experimento com a M. mycoides vai per- (Unicamp), em artigo na página 48.
cos não vêm de grandes ideias, mas de mitir desenhar microrganismos úteis
feitos tecnológicos.” Reinach também ao homem, capazes de, por exemplo,
Artigo científico
salienta um segundo ponto importan- produzir vacinas e biocombustíveis. A
te, igualmente de ordem científica, que empresa petrolífera Exxon já se com- GIBSON, D.G. et al. Creation of a bacterial
emerge da análise do artigo na Science. prometeu a investir US$ 600 milhões cell controlled by a chemically synthesized
Até agora, a vida sempre foi vista como na SGI para o desenvolvimento de algas genome. Science. publicado on-line em
algo contínuo. Todo ser descende de que consigam produzir etanol. 20 mai. 2010.

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O transplante de DNA passo a passo
Como os cientistas fizeram a célula de uma bactéria ser controlada pelo genoma sintético de outra

Os pesquisadores do JCVI sequenciaram o


genoma da bactéria Mycoplasma mycoides,
um único cromossomo com cerca de 
1,1 milhão de pares de bases, e
armazenaram os dados num computador.

Em seguida, pediram a um laboratório que


todo o DNA do organismo fosse sintetizado
em 1.078 fragmentos de acordo com
especificações bastante precisas.
Denominado tecnicamente cassette, cada
fragmento tinha 1.080 pares de bases
e mais uma determinada sequência de
80 pares de bases em cada extremidade,
útil para a remontagem de todo o genoma.

Quebrado em pedaços,
o genoma sintético foi
inserido na Saccharomyces O cromossomo foi então
cerevisiae. Dentro da retirado da levedura e
levedura, os fragmentos transplantado para células
de DNA foram unidos de uma bactéria
progressivamente na semelhante, a Mycoplasma
ordem correta com o capricolum. As células
auxílio do sistema genético receptoras aceitaram o
do fungo. Primeiro, os DNA implantado, passaram
cientistas juntaram todos a produzir as proteínas da
os cassettes em trechos de M. mycoides e a se replicar
DNA com 10 mil pares de normalmente. Nascia o
bases. Depois, cada trecho primeiro organismo regido
foi ligado até originar por um genoma sintético,
11 segmentos com 100 mil a bactéria M. mycoides
pares de bases. Por fim, os JCVI-syn1.0.
segmentos foram unidos e
o cromossomo, remontado
na célula de levedura.  
daniel das neves

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O impacto da
transformação
de uma vida
em outra
Feito tecnológico de Venter causou revolução midiática como
a clonagem da ovelha Dolly em 1996 | Mayana Zatz

C
riada vida artificial”, “Ciência cria primeira que permitiu acelerar muito o seu se-
célula sintética” foram algumas das manchetes quenciamento. Para quem desenvolveu
citando o trabalho de Craig Venter, publicado tecnologias capazes de sequenciar um
na revista Science, “Creation of a bacterial cell genoma de 3 bilhões de pares de ba-
controlled by a chemically synthesized geno- ses – o genoma humano – remontar os
me”. Na realidade foi uma bela obra de engenharia gené- pedaços de DNA de um genoma de 1
tica, mas não se criou vida. A equipe de cientistas utilizou milhão de pares de bases, como é o caso
vidas existentes, tanto de bactérias como de leveduras, da bactéria Mycoplasma mycoides, pare-
para conseguir esse feito. É importante deixar isso muito cia fácil. Afinal, ela é 3 mil vezes menor.
claro. O que os pesquisadores fizeram foi transformar Mas, mesmo assim, foram 15 anos de
uma vida em outra, no caso uma bactéria Mycoplasma trabalho envolvendo 24 cientistas, a um
capricolum em outra, a Mycoplasma mycoides. Esse feito custo de US$ 40 milhões. Nada trivial!
me lembrou a clonagem da ovelha Dolly, por Ian Wilmut, A sequência do genoma da Mycoplasma
em 1996. Os dois causaram uma revolução midiática e mycoides já estava disponível no banco
podem até ser comparados. Wilmut transferiu o genoma de dados do computador. Mas, para co-
retirado de uma célula – no caso, da glândula mamária da piar a receita e sintetizar um cromos-
ovelha Dolly – para um óvulo sem núcleo e, após inseri-lo somo artificial no laboratório, os pes-
em útero, gerou um clone de Dolly. Venter transferiu o quisadores tiveram que usar leveduras
genoma de uma bactéria em outra que assumiu o com- – que também são organismos vivos – e
portamento da primeira. que têm a capacidade de unir pequenos
Não poderia haver ninguém mais capacitado do que pedaços de DNA. Uma vez sintetizado o
Venter para montar o quebra-cabeça do genoma de uma DNA, o próximo obstáculo era inseri-lo
bactéria – com 1 milhão de pares de bases – e sintetizá-lo em outra bactéria, conseguir que a cé-
no laboratório. Afinal, foi ele que inventou um método lula receptora não destruísse o genoma
para desmontar o quebra-cabeça do genoma humano – o exógeno e o incorporasse como se fosse
seu. Sem dúvida, um grande feito de
engenharia genética.
Trata-se de uma revolução? Midiá­
wikimedia commons

tica, sem dúvida. A repercussão na


imprensa do trabalho de Venter me
lembrou da clonagem da ovelha Dolly
por Ian Wilmut em 1996. Vocês devem
se lembrar. “Vão clonar seres humanos!
Estão brincando de Deus. Vamos criar
imediatamente comitês científicos para
proibir a clonagem reprodutiva huma-
na.” Isso era repetido constantemente
pela mídia. Lembro-me muito bem
Dolly e DNA porque fui convidada a fazer parte de
sintético: um desses comitês, todos preocupadís-
polêmicas simos em proibir a clonagem humana.

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Eu estava muito menos temerosa com
os riscos de se fazerem clones huma-
nos e muito mais interessada em que se
Craig Venter,
aprovassem as pesquisas com células-
-tronco embrionárias. E foi o que acabou um bem necessário
acontecendo. Hoje, 14 anos depois, nin-
guém mais fala de clonagem reproduti-
va humana. Mas estamos revendo esse
filme, agora com o suposto risco de se
criar “vida em laboratório”. O presidente
dos Estados Unidos, Barack Obama, já
Cientista é como um
determinou a instituição de comitês de moleque travesso atrás
ética para que sejam identificados os li-
mites éticos e minimizados os possíveis das guloseimas, sejam elas
riscos. Por outro lado, o pediatra Carlo terminar o genoma humano
Bellieni, no diário do vaticano L’ Osser-
vatore Romano, diz que “a pesquisa é um o mais rápido possível
trabalho de engenharia genética de alto ou fabricar uma bactéria
nível, mais um passo na substituição de
parte de DNA, mas na realidade não se do zero | João Meidanis
criou vida”. Concordo com ele.
Quais são as implicações futuras?
Quais serão as aplicações? É difícil pre-
ver. No caso da ovelha Dolly a grande
revolução foi descobrir que uma célula
adulta poderia ser reprogramada e vol-

C
tar a ser totipotente, o que abriu cami-
nho para as pesquisas com células-tron- raig Venter está novamente nas notícias
co. Já a estratégia para criar a bactéria de jornais e revistas do mundo intei-
de Craig Venter poderá permitir apri- ro, desta vez por causa do artigo sobre
morar as técnicas de engenharia genéti- uma célula bacteriana guiada por um
ca, produzindo novos microrganismos genoma que seu grupo sintetizou em
úteis ao homem, como por exemplo laboratório. Esse é o capítulo mais recente de um
bactérias mais eficientes em degradar projeto ao qual Venter tem se dedicado por mais de
a celulose ou o plástico, gerando novas uma década: criar um organismo vivo do zero. E há
formas de combustível biodegradável. vários competidores perseguindo a mesma coisa.
Ou bactérias intestinais que nos permi- Grande descoberta? Ou impensada ousadia, cai-
tissem digerir a celulose tão bem como xa de Pandora que pode nos levar à autodestruição?
os ruminantes. Além disso, ela poderia As reações ao artigo que ele publicou na Science vão
contribuir para melhorar as técnicas de rasgados elogios a severos ataques, como sempre
de terapia gênica, corrigindo genes parece acontecer com Venter. Ele é um tipo raro de
defeituosos em pacientes com doen- cientista, incômodo para muitos, mas a meu ver
ças genéticas. Um outro grande feito extremamente necessário.
do qual se falou pouco foi a estratégia Para começar, está em boa companhia. Seu
utilizada por Venter para que a bactéria grande parceiro de longa data, Hamilton Smith,
receptora não destruísse o genoma da ou Ham Smith, como é carinhosamente conheci-
bactéria doadora e o adotasse como do, é um gênio da biologia molecular. No artigo
se fosse seu. Essa tecnologia poderia da primeira bactéria sequenciada vemos lá Venter
abrir novos caminhos para impedir a e Smith. Na diretoria da Celera, a empresa criada
rejeição no caso de transplantes alogê- para competir com o projeto público (mas lento)
nicos ou talvez até xenotransplantes. de sequenciar o genoma humano, encontramos de
O futuro dirá. Deu-se mais um salto novo Venter e Smith. E agora, neste recente artigo,
qualitativo tecnológico que certamente quem são os cabeças? Venter e Smith, é claro, agora
merece ser aplaudido. » também incorporando um outro peso-pesado da
biologia molecular: Clyde A. Hutchison III, que eles
Mayana Zatz é professora titular do trouxeram para o time em 2003.
Instituto de Biociências da Universidade Os especialistas lembrarão de Hutchison como
de São Paulo e coordenadora do Centro de um dos pioneiros na introdução de mutações diri-
Estudos do Genoma Humano da USP. gidas em genomas. Por sua vez, Ham Smith rece-

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JCVI

As reações ao
artigo que ele
publicou na
Science vão
de rasgados
elogios a
severos ataques,
como sempre
acontece
Venter (à esq.)
e o Nobel Ham
Smith: dupla fez
o primeiro
genoma sintético maioria é um meio-termo entre estes usos considerados prejudiciais, não há
dois extremos. neste momento um organismo multi-
E, cá entre nós, a espécie humana lateral suficientemente forte para fazer
não vai durar para sempre, com ou sem valer suas resoluções contra a vontade
Venter. As espécies evoluem, umas de- individual dos países.
beu o Prêmio Nobel muitos anos atrás saparecem, outras surgem. É preciso A meu ver não caberia, como de-
(1978) pela descoberta de nada mais, ter uma visão mais sóbria, menos apai- fendem alguns, proibir pesquisas nessa
nada menos que as enzimas de restri- xonada da vida. Embora tenhamos a linha. Acredito que a geração do co-
ção, uma das ferramentas mais básicas tendência natural de achar que o ser nhecimento deve ser livre, desde que
de manipulação genômica. As enzimas humano é central e importante para o respeitadas as normas éticas vigentes.
de restrição são para a engenharia gené- mundo, é mais provável que o ser hu- Do ponto de vista da ética científi-
tica o que lápis e papel são para estudar mano seja só mais uma espécie, que ca, Venter e seu grupo fizeram o que
na escola fundamental. veio e irá. Já passamos por outros epi- manda o figurino: não utilizaram seres
Para entender Venter, eu costumo sódios onde nos colocamos em posição humanos, não impuseram sofrimento
pensar no ser humano como uma de destaque não merecida: achávamos desnecessário a cobaias e publicaram
criança, uma criança largada numa sala que a Terra era o centro do Universo, seus resultados em veículo de ampla
bem grande chamada mundo. Ela fica achávamos que Deus nos tinha criado circulação internacional, que inclusive
mexendo em tudo, às vezes se queima especiais. Duas grandes decepções da tomou a decisão de disponibilizar esse
ao colocar o dedo numa tomada, mas humanidade, que até hoje muitos não artigo a qualquer um que tenha acesso à
outras vezes acaba descobrindo como engolem (principalmente a segunda). internet, independentemente de ter ou
subir numa cadeira para alcançar as não assinatura da revista. Dessa forma,
guloseimas lá em cima. Venter é esse Contra proibir pesquisa todos terão acesso: pesquisadores, estu-
moleque travesso que vai atrás das Dois papéis fundamentais da ciência dantes, terroristas, curiosos etc.
guloseimas, sejam elas terminar o ge- são aumentar o conhecimento da hu- Então, gente, relaxa. Não vamos exis-
noma humano o mais rápido possível manidade e descobrir novas tecnolo- tir para sempre. Se vamos sumir mesmo,
ou fabricar uma bactéria do zero. Se gias. Se essas tecnologias serão usadas pelo menos tentemos influenciar um
essa busca desenfreada vai nos levar à para salvar vidas, construir armas ou pouco o futuro, dando nosso pitaco
autodestruição? É possível. Mas parece outras finalidades, não compete somen- sobre quais serão as novas espécies que
que há algo mais forte dentro de nós, te aos cientistas determinar: trata-se de habitarão o planeta. Eu, pelo menos, não
uma curiosidade tão violenta que faz uma decisão da sociedade como um abro mão de acompanhar isso, e agora,
esquecer tudo. É claro que existe todo todo, geralmente ao nível dos países. graças ao trabalho de Venter e seu grupo,
tipo de gente no mundo. Alguns têm No mundo atual, cada país tem sobe- me sinto mais próximo de fazê-lo. »
esta curiosidade implacável, outros rania para decidir como vai utilizar as
preferem ser meros espectadores da tecnologias que possui. Embora exista João Meidanis é diretor da Scylla Bioin-
vida sem mexer em muita coisa, e a uma forte pressão internacional contra formática e professor titular da Unicamp.

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A biologia sintética
e a bioenergia
Como a descoberta de que é possível transferir um
genoma criado em laboratório pode afetar as tecnologias
para biocombustíveis | Marcos Buckerid ge

J á pensou se, a partir da sequência com-

uc san diego
pleta do seu genoma, o leitor conseguisse
sintetizar o seu próprio DNA, introdu­
zi-lo em uma célula humana e depois
fazer com que o seu DNA assumisse o
comando dessa célula, formando tecidos, ór-
gãos e até uma cópia idêntica de si mesmo, para
a qual você poderia transferir suas memórias?
Como no romance de ficção científica de Phillip
K. Dick, que originou o roteiro do filme Blade
Runner, parece que pelo menos uma impor-
tante prova de conceito foi conseguida. O J.
Craig Venter Institute (JCVI) publicou em 20
de maio no site da revista Science um artigo em
que reporta a ativação de um genoma sintéti-
co de um microrganismo em outro, a bactéria
Mycoplasma mycoides. A medida de sucesso,
nesse caso, foi o fato de que o genoma sintético
adquiriu o controle de uma outra célula e essa
célula passou a se reproduzir em laboratório.
Fundador do JCVI, o cientista Craig Ven-
ter, em várias entrevistas, diz que agora vai
atrás do genoma de uma alga para produzir Algas: aposta
bioenergia. Eu o ouvi dizer algo similar em da biologia
uma palestra no último Congresso Mundial de sintética para
Biotecnologia em Barcelona em 2009. Um dos produzir
grandes desafios que temos atualmente é pro- combustíveis
duzir bioenergia de forma barata e ambiental-
mente sustentável. A descoberta do JCVI abre
caminho para que pesquisadores consigam quisador Richard Ward, reportou no
microrganismos “engenheirados” que façam último workshop do INCT, em abril,
o trabalho de produção de etanol ou biodiesel ensaios com uma enzima quimérica,
com excelentes padrões. ou seja, uma proteína montada arti-
Aqui no Brasil, no Laboratório Nacional de ficialmente que tem a capacidade de
Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em atacar dois componentes da parede
Campinas, já estamos “engenheirando” bacté- celular ao mesmo tempo, a lignina e a
rias e fungos com enzimas que atacam a parede hemicelulose.
celular vegetal e podem ajudar no desenvol­ Assim, mesmo que não tenhamos
vimento da rota tecnológica da segunda gera­ção feito (ainda) algo tão espetacular co-
do etanol. Um dos laboratórios do Instituto mo Venter, a bioenergia brasileira já
Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol começa a mergulhar na era da biologia
(INCT do Bioetanol), comandado pelo pes- sintética. Há várias vias a escolher e
demorar bem mais. Mesmo assim, os sistemas industriais com elas para pro-
biólogos já estão se movimentando dução de bioenergia.
nesse sentido e o estão fazendo através Mas há uma reflexão biológica im-
da compreensão dos organismos como portante a ser considerada. Se as ciano-
sistemas complexos. bactérias são assim tão boas para pro-
duzir bioenergia, por que a civilização
Um grande passo, mas ainda inicial não é baseada nelas para obter comida e
Colocar um genoma sintético numa energia até hoje? Por que nossa comida
célula é, sem dúvida, um passo im­­ é baseada principalmente em plantas
portante na área da biologia. Se consi- terrestres? Uma das respostas é que o
derarmos que um gene corresponde, aumento de complexidade que houve,
em média, a 10 a 15 kbps (1 kbp equi- com a evolução da multicelularidade e
vale a mil bases do DNA), o que o gru- o desenvolvimento de sistemas fotos-
po do JCVI fez foi construir um geno- sintéticos cada vez mais eficientes, fez
ma com 600 a mil genes, transferi-lo com que as plantas dominassem o pla-
para uma célula cujo DNA tinha sido neta. Dentre elas, as gramíneas, como o
retirado, e fazer com que essa célula milho e a cana-de-açúcar, produziram
bacteriana receptora do genoma sinté- um dos sistemas fotossintéticos mais
tico funcionasse. eficientes que existem. Elas têm um
É um avanço técnico sensacional sistema de fotossíntese chamado C4,
e as implicações disso são enormes. com o qual produzem maior quanti-
Porém, a dificuldade de aplicar isso em dade de biomassa em menos tempo do
organismos mais complexos é maior que outras plantas. E é por isso que a
ainda. Isso porque no genoma de uma civilização como a conhecemos é for-
planta de milho estima-se que exis- temente baseada nessas espécies.
tam 32 mil genes, ou seja, é 32 vezes A biologia sintética já vem sendo
maior do que o do genoma sintético adotada para alterar a fotossíntese em
que o JCVI utilizou. É provável que plantas. A soja, por exemplo, não tem
na nossa cana-de-açúcar tenhamos fotossíntese tão eficiente quanto as gra-
aproximadamente o mesmo número míneas. Mas um grupo internacional
de genes que no milho. No entanto, di- de pesquisadores já vem traçando es-
ferentemente da Mycoplama mycoides, tratégias de como fazer para “implan-
na cana há oito cópias de cada gene. tar”, utilizando biologia sintética, um
Isso quer dizer que há, nominalmente, sistema C4 nas folhas dessa leguminosa.
cerca de 240 mil genes interagindo no Esse é um objetivo imensamente mais
genoma do organismo e fazendo com difícil do que o que o JCVI alcançou.
que ele funcione perfeitamente bem Isso porque não estamos lidando com
a ponto de produzirmos o etanol que um genoma apenas, mas, no caso do
usamos para encher os nossos tanques. sistema C4, com três genomas diferen-
Se o grau de dificuldade fosse linear tes: um que fica no núcleo da célula e
em relação ao tamanho do genoma, mais dois que ficam nos dois tipos de
fazer com a cana o que foi feito com cloroplastos encontrados nas diferentes
a bactéria M. mycoides seria 400 vezes células das folhas das plantas C4.
mais difícil. Porém há dificuldades Venter deu um grande passo, mas
adicionais que tornam a relação mais ainda falta muita investigação e criati-
complexa e difícil ainda. vidade para que possamos realmente
problemas a resolver usando essa tec- A bioenergia de que necessitamos, quebrar o código da complexidade que
nologia. Uma delas é “engenheirar” o em parte por contingência da nossa tec- a vida esconde. Há um grande número
metabolismo da Saccharomices cerevi- nologia de motores, está armazenada de pesquisadores, inclusive no Brasil, se
siae, a levedura que usamos para fazer em ligações entre átomos de carbono e movendo na direção do uso da biologia
álcool, de forma que ela seja capaz de a única forma de guardar a energia desse sintética como principal arma para de-
usar os açúcares de cinco carbonos que modo é através do processo de fotos- senvolver novas biotecnologias. O que
vêm das hemiceluloses, algo que ela síntese.Há bactérias capazes de realizar vem por aí promete ser extremamente
não faz muito bem. fotossíntese e elas são geralmente colo- divertido e interessante. n
Com microrganismos, as aplicações cadas como um dos alvos da biologia
da biologia sintética serão bem mais sintética. As cianobactérias, por exem- Marcos Buckeridge é um dos coordena-
rápidas e deverão produzir resultados plo, são boas produtoras de lipídios que dores do programa Bioen-FAPESP e diretor
impressionantes. Por outro lado, com podem funcionar como biodiesel, o que científico do Laboratório Nacional de Ciên-
organismos mais complexos, podem indica que podemos pensar em montar cia e Tecnologia do Bioetanol (CTBE).

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