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Proposta do tema: Uma leitura antropológica da cultura cabo-verdiana à luz das

teorias antropológicas clássicas

Motivação do estudo

Fatos históricos testemunham o povoamento das ilhas de Cabo Verde, logo após o seu
achado em 1460, concretamente em 1462, por elementos humanos provenientes da
Europa, na sua maioria portugueses, como colonos, e africanos predominantemente
escravos da costa ocidental africana pertencentes a diferentes etnias. Deste
cruzamento de europeus e africanos, num espaço geográfico à partida apátrida, Cabo
Verde, se enformou um tipo populacional denominado: cabo-verdianos com uma
cultura híbrida e um tanto ou quanto complexa.

Portanto, é evidente a existência de um povo com uma personalidade e identidade


própria, fruto de um trabalho lento de cinco séculos de aculturação. Esta
heterogeneidade harmonizou-se, formando um todo social no qual as reminiscências
africanas e europeias são perfeitamente observáveis.

Importa referir que ao longo da sua história, mormente no período colonial, devido a
sucessivas crises que assolaram o Arquipélago com marcas trágicas e pelo fato de não
haver na altura uma elite expressiva, muito pouco se preocupou com estudos acerca
da cultura cabo-verdiana e com a sua natural dinâmica. Com a independência ocorrida
em 1975 do século transacto, os atores políticos de então engendraram novas
estratégias de governação do país privilegiando, sobremaneira, a formação humana
traduzida na criação de escolas em diferentes níveis e espaços urbanos e não só, em
prol do desenvolvimento do mesmo.

Assim, a partir dos anos 80 pode-se enxergar aqui e acolá alguns trabalhos avulsos
sobre a questão cultural, sobretudo nas arenas académicas que segundo um dos
eminentes intelectuais do nosso país do século XX, Baltazar Lopes da Silva (1973), são
trabalhos parcelares, timidamente ensaísticos alguns, vêm trazendo a sua achega, mas
bem longe estamos daquele corpo coerente e sistematizado de estudos que seria
necessário para que os problemas da antropocultura em Cabo verde dispusessem de
suporte sério para conclusões seguras. Contudo, hoje se regista tanto dentro como
fora do país estudos académicos versando, muitas vezes de forma parcelar, a nossa
cultura que no nosso singelo olhar não passa de trabalhos etnográficos que carecem
de uma engenharia etnológica.

Tendo nós formação de base em Antropologia (licenciatura), mestrado em Estudos


Africanos, exercendo docência universitária, desde logo tem constituído o nosso
anseio/desiderato e hoje um desafio, desenvolver um amplo, profícuo e consistente
estudo acerca da questão em apreço com fito de enriquecer o nosso conhecimento e
competência, podendo trazer, estribada na nossa história cultural, novos elementos e
quiçá novas roupagens para os já existentes, visando, em última análise, abertura de
novos debates em prol de um necessário conhecimento da nossa realidade
sociocultural entendida sob holofote antropológica.

Acrescenta-se ainda que o desafio da pesquisa é cada vez maior com o substancial
aumento da mobilidade humana fruto de globalização onde Cabo Verde, um país de
emigração, num lapso espaço de tempo, passou a ser também país de imigrantes
provenientes essencialmente da Costa Ocidental da África, da Europa, América do Sul
nomeadamente Brasil, da Ásia, China entre outros. Este fato novo, ocorrido a partir da
década de 90 do anterior século, trouxe algumas mudanças expressivas no
comportamento cultural cabo-verdiano com adopção de certos hábitos e estilos de
vida, queda de alguns valores tradicionais tidos como peculiares, provocando, em
certa medida, aquilo que chamamos crise identitária sobretudo no segmento jovem.

Num conjunto de opções de especialização que o curso de doutoramento em Ciências


da Cultura dá, pela natureza da nossa formação, privilegiamos Cultura Clássica,
pretendendo ter como âncora bibliográfica os clássicos da Antropologia,
principalmente os das teorias culturais antropológicas como sejam: Lewis H. Morgan
(1818-1881), Edward B. Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941), evolucionistas;
Franz Boas (1858-1881), escola americana que evoluiu mais tarde para culturalismo
Norte-americano; Grafton Elliot Smith (1871-1937), William J. Perry (1887-1949), W. H.
R. Rivers (1864 – 1922), Friedrich Ratzel (1844 – 1904), Fritz Graebner (1877-1934) e
Wilhelm Schmidt (1868 - 1954, difusionismo); Bronislaw Kasper Malinowski (1884-
1942), Radcliffe-Brown (1881-1955), escola funcionalista; Claude Lévi-Strauss (1908—
2009), estruturalismo.

Estes são os conhecidos clássicos da arena antropológica que deverão funcionar como
pilares norteadores da nossa discussão teórica do estudo, ciente que a partir deles
outros, certamente poderão entrar na urdidura da revisão de literatura.
Portanto, este pequeno texto apresenta algumas ideias soltas e mesmo desgarradas,
mas que no projecto iremos sistematizá-las, do ponto de vista científico, avançando
com problemas centrais da investigação, definição de propósitos e pressupostos, bem
como estratégias metodológicas adequadas à natureza do estudo que pretendemos
efectivar.

Problema central da investigação

Tendo em conta a história cultural de Cabo Verde, erigida a partir do seu povoamento
em 1462, pelos africanos provenientes da Costa Africana e os europeus, sendo estes os
colonizadores, a cultura cabo-verdiana emergente desse processo terá tido, em termos
de traços culturais, maior peso ou influência europeia ou africana? Ou pelo fato dos
africanos serem em maior número (explicar esta afirmação com dados históricos),
terão maior predomínio nesse mesmo processo de construção e evolução dessa
cultura? Citando Carreira (2000, p.282), para suportar a nossa asserção, “a classe dos
brancos, composta de portugueses, e estrangeiros, é sem dúvida a mais diminuta”. O
mesmo autor ainda lembra que em “em 1552, para 13. 700 escravos havia em
Santiago e no Fogo talvez uma centena de brancos…” (p.284). A História reza que a
coabitação entre as duas culturas nem sempre foi pacífica, como de resto, é próprio do
processo dessa natureza. Lopes Filho (2010), nos recorda que no povoamento das
ilhas, senhores e escravos tiveram de se entender, pois ambos estavam isolados das
suas pátrias-mães e disso resultou uma convivência, que pode ter sido violenta nas
suas emoções e complexa nas suas atitudes, mas que se tornou estável pela força das
circunstâncias e tolerância social em que a cabo-verdianidade ganhou força.
Convém realçar que as evidencias do quotidiano cabo-verdiano patenteia,
inequivocamente, as marcas afro-europeias traduzidas na música, na literatura, nas
crenças e práticas religiosas, nas indumentárias, na organização e estruturação do
espaço habitacional, na culinária, nos lazeres, também na engenharia política, entre
outras práticas.
Sublinha-se que há uma preferência manifesta dos cabo-verdianos para os continentes
europeu e americano, devido ao trajeto histórico pelo qual Cabo Verde vivenciou, com
destaque para o sistema de colonização, por um lado, e, por outro, pela história e
cultura de migração que nasceu com o povoamento do arquipélago. Essa preferência
traduz-se na predilecção desses espaços para formação a diversos níveis, gozo de
férias das elites e não só, transacção comercial, asilo político e todo o sistema de
cooperação tanto bilateral, como multilateral. Este fato faz com que os cabo-verdianos
terem pouco conhecimento acerca do continente africano. Os poucos que o
conhecem, restringe-se, essencialmente, à África Lusófona através de emigração
forçada ou não, outros, em menor número, como funcionários ou administradores
intermediários. (Consultar Carreira: Migrações…).

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