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O rendimento dos Treasuries americanos não está alto ou baixo; está onde a Janet
Yellen quer que esteja. O que guia os mercados são os discursos, ora cifrados, do
Fed e do BCE. Não importa mais se a dívida está aumentando. Importa apenas se
os bancos centrais estão injetando mais liquidez.
Há um descasamento entre o preço dos ativos e o risco subjacente. Os preços já
não refletem os fundamentos, mas sim a vontade dos banqueiros centrais. Os
fundamentos foram solapados pela injeção de liquidez.
A presunção de crer que preços podem ser determinados por decreto ou modelos
econométricos.
Essas noções são igualmente válidas para o preço dos ativos financeiros, sejam
eles títulos de dívida, sejam ações de empresas. O preço de um bônus deveria
refletir a percepção dos investidores com relação à qualidade e à saúde financeira
do emissor em face da preferência temporal e da aversão ao risco em dado
instante no tempo. A convergência entre os investidores e os tomadores
determina o valor de mercado dos ativos. Dito de outra forma, os preços dos
ativos são formados pelos demandantes e ofertantes de poupança.
Isso nos traz a uma discussão fundamental: a alta continuada dos títulos
soberanos poderia ser considerada uma bolha? Para Andy Haldane, diretor
executivo de Estabilidade Financeira do Banco da Inglaterra, não há dúvidas. Em
uma audiência do Comitê do Tesouro, em 2013, Haldane foi assertivo: "Sejamos
claros, nós inflamos intencionalmente a maior bolha de títulos soberanos da
história".
Mas poderíamos contra-argumentar com a seguinte indagação: pode uma bolha
durar tantos anos? Afinal de contas, os rendimentos dos bônus soberanos vêm
caindo consistentemente desde o início dos anos 1980, ou dito de outra forma, os
títulos governamentais estão em uma ascensão continuada há mais de três
décadas. Seria razoável uma bolha com mais de 30 anos de alta?
Primeiro de tudo, grande parte dos casos históricos de bolhas de ativos sempre
teve como força motriz alguma forma de expansão monetária, de crédito farto e
barato. Mas os "participantes" dos episódios eram, normalmente, agentes
privados. Era o mercado quem comprava e vendia. Os governos — por meio dos
Bancos Centrais — como protagonistas de um processo deliberado e sustentado
de boom em classes inteiras de ativos é algo inédito na história.
Para começar, títulos soberanos são os principais ativos utilizados pelos bancos
centrais para fins de política monetária. Isso, por si só, já assegura uma demanda
mínima e relevante para a dívida governamental.
Mas isso não é tudo. Porque, atualmente, além das circunstâncias acima expostas,
temos os Bancos Centrais no mundo desenvolvido criando moeda em dimensões
assombrosas para a aquisição direta de bônus soberanos ao longo de toda a curva
de juros. E o que é pior, prometendo ao mercado implícita e explicitamente
comprar ainda mais títulos de dívida na quantidade e pelo tempo que forem
necessários.
Diante disso tudo, devemos parar e levantar algumas questões essenciais para
reflexão. Por exemplo, por que os agentes ainda investem nesses ativos,
considerando que a situação fiscal em grande parte dos emissores é preocupante,
se não calamitosa? Por causa da liquidez? E quanto da alta liquidez dos bônus
soberanos dependeu ou depende dos três fatores acima mencionados?
O mercado altista (bull market) dos títulos soberanos que sobrevive há décadas
talvez não siga rigorosamente a definição clássica de bolha justamente porque
ainda não estourou. Mas certamente é um caso especial de bolha porque: i) os
preços dos ativos guardam pouca relação com os fundamentos; e ii) os grandes
compradores são detentores do monopólio de emissão de moeda com "poder de
compra" quase infinito e, precisamente por isso, são capazes de impedir ou adiar
o eventual colapso da bolha.
Outra consequência grave é a forma como uma distorção nos mercados repercute
em todo o restante dos ativos e influencia o comportamento dos agentes.
A verdade é que, com juros próximos de zero, qual empresário não se sentiria
atiçado a tomar um pouco mais de risco? Será que uma transação como a da AB
Inbev-SAB Miller teria acontecido em uma conjuntura com taxas de juros mais
normais? É tudo uma questão de incentivos. E os incentivos dados pelos Bancos
Centrais são os mais perversos, com potencial de desestabilizar os mercados
financeiros e a economia como um todo.
E aí vem a pergunta: e se tudo isso não der certo? E se todas essas medidas —
por mais estapafúrdias que sejam — forem implantadas e ainda assim os
consumidores não gastarem o suficiente a ponto de escapar da deflação,
alcançando a meta de 2% de inflação ao ano? Quais alternativas restarão aos
BCs?
Se comprar ativos e dar dinheiro à população não funcionar, a única saída para
elevar os preços será os próprios Bancos Centrais iniciarem uma compra
volumosa e direta de bens e mercadorias no mercado. Algo como uma "Cesta-
Básica Purchase Programme", ou "Consumer and Durable Goods Purchase
Programme".
Você acha que enlouqueci? Isso jamais aconteceria? Que seria uma maluquice
completa, não discordo. Mas essa é a consequência lógica das estratégias de
elevação dos índices de preços pelos BCs.
Não deixa de ser irônico quando apontam o mercado financeiro como o arquétipo
máximo do capitalismo, uma vez que os bancos centrais estão deliberadamente
confundindo ou obstruindo por completo a descoberta honesta de preços, cujo
processo só pode ocorrer em um mercado genuinamente livre. Porque preço
monitorado, controlado ou intervindo não é preço, é apenas um dado arbitrário.
Então, as perguntas de trilhões de dólares são: por quanto tempo mais os Bancos
Centrais conseguirão manter essa situação? Até quando conseguirão manter a
ilusão de que tem tudo sob controle? Até quando os economistas enxergarão a
discricionariedade dos Bancos Centrais como uma virtude e não uma falha? Por
quanto tempo mais defenderão a ideia de que estabilidade de preços ao
consumidor é o essencial, independentemente de as cotações dos demais ativos
estarem subindo indefinidamente? Até quando os banqueiros centrais se aterão à
ideia de que suas intervenções no mercado financeiro não causam sérios
desequilíbrios? Por quantos anos mais conseguirão conter uma reversão
desordenada nos preços dos ativos, especialmente nos dos títulos soberanos?
O que podemos prever é que, à medida que o tempo passa, à medida que as
intervenções se agravam, as distorções se acentuam e os problemas permanecem
insolúveis, a confiança dos agentes no sistema vai se esvaindo.E como todos
muito bem sabem, confiança é a palavra-chave.