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Do construtivismo de superfície às estruturas cognitivas.

A falsa antinomia entre conteúdos e habilidades, que outrora privilegiava conteúdos,


e hoje privilegia habilidades, ao romper com a relação mediada pelas competências, está
fadada a promover a memorização e / ou adestramento. Entretanto, considerar a relação
em sua totalidade e capitaneada pelas competências ( operações cognitivas ), significa
investir em formação pedagógica e condições de trabalho ( equipamento, jornada, salário,
segurança etc ). O mais são comodismo, boas intenções, oportunismo.

Dentre vários recursos utilizados para expressar as operações de raciocínio pesquisadas, sobretudo
no estádio formal ( hipotético – dedutivo ), Jean Piaget e seus colaboradores utilizaram um
instrumental matemático chamado cálculo das proposições.
Em A Igualdade dos Ângulos de Incidência e de Reflexão e as Operações de Implicação Recíproca ( ver
Da lógica da criança à lógica do adolescente ), estudo que mostra a transição do estádio operatório –
concreto para o estádio operatório – formal, Jean Piaget e Bärbel Inhelder apresentam o raciocínio
hipotético – dedutivo, dos sujeitos pesquisados, na seguinte representação:

p q porque ( p . q ) v ( p . q ) são verdadeiros e ( p . q ) v ( p . q ) são falsos;

onde p = ângulo de incidência e q = ângulo de reflexão

Desta forma, à medida que queiramos, de fato, compreender, ainda que de forma panorâmica, os
estudos de Piaget acerca das competências cognitivas, torna-se necessidade vital que conheçamos
métodos e instrumentos utilizados nos estudos piagetianos.
Como será mostrado abaixo um dos muitos estudos realizado por Piaget e seus colaboradores, o
relativo à REFLEXÃO , conforme resultado mencionado acima, faremos uma brevíssima incursão
meteórica, visto que pesam nossa ignorância e necessária brevidade, sobre o tema cálculo das
proposições, do qual será visto o essencialmente básico para que compreendamos a experiência
mencionada, e com base na obra do próprio Piaget: Ensaio de lógica operatória.
Vejamos:

Simbologia básica utilizada aqui:


p = verdade de p ; p = não – p ( negação ); ( . ) e=conjunção; ( v ) ou=disjunção;
( )=implicação; ( )=implicação recíproca / se ... então; ( )=correspondência

Uma proposição p, que pode ser verdadeira ( valor 1 ) ou falsa ( valor 0 ), apresenta as seguintes
possibilidades de aplicação:

P 1 2 3 4
1 1 0 0 1
0 1 0 1 0

A 3ª possibilidade expressa a negação de p = p e a 4ª expressa a verdade de p = p.

No caso de duas proposições p e q, independentes uma da outra, com cada uma delas passível de
assumir os valores 1 = verdade ou 0= falso, o número de possibilidades de aplicação é 16 conforme o
quadro abaixo:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
pq - pq - - pq pq - pq - pq - pq - pq -
pq - pq - pq - - pq pq - - pq pq - - pq
pq - pq - pq - pq - - pq - pq - pq pq -
pq - - pq pq - pq - pq - pq - - pq - pq

A 3ª possibilidade expressa uma disjunção ( p v q ) p ou q; a 6ª expressa uma conjunção


( p . q ) p e q . Conforme mencionado acima, o desfecho da experiência feita por Piaget, com o
raciocínio hipotético – dedutivo ( p q ), está expresso na 11ª possibilidade.

A igualdade entre i e r é descoberta no estádio II ( 11-12 a 14 anos) e formulada no estádio formal (14-
15 anos. A noção de igualdade de ângulos é conhecida desde 7-9 anos, porém utilizada mais tarde na
indução de lei elementar porque operações formais são necessárias.

Estádio I ( até 7 – 8 anos ), atenção apenas ao objetivo (acerto), não interiorizam ações
(irreversibilidade), apenas no final do estádio percebem trajetória retilínea, rebote e ângulos.PER: ( 6;
6 anos ) ... ao contrário, continua, apesar de sua idade, nas trajetórias curvilíneas: “Vai para lá e depois
continua de outro jeito” ( gesto de curva).
Estádio II ( níveis IIA e IIB ), início das operações concretas / ações interiorizadas e combinadas com
outras em sistemas de conjuntos reversíveis. VIR: ( 7; 7 anos ) ... acerta depois de várias tentativas.
Mostra com o dedo, e depois desenha as trajetórias com dois segmentos retilíneos, dizendo “Para
atingir mais à esquerda, é preciso girar ( o taco ) para a esquerda”. KAR: ( 9; 6 anos ) “Quanto mais eu
coloco o taco neste sentido ( à esquerda, isto é, orientado para o alto ), mais a bola virá deste jeito
( ângulo muito agudo ), e mais eu coloco deste jeito ( inclinado para a direita ), mais a bola irá assim
( ângulo obtuso crescente )”. KAR chegou até a descobrir que a bola volta ao seu ponto de partida
quando o taco está bem reto, isto é, perpendicular à parede de rebote.
Nesse estádio, os sujeitos isolam os elementos necessários para a descoberta da igualdade entre os
ângulos, mas como lidam apenas com operações concretas de seriações e correspondências entre as
inclinações dos segmentos de trajetórias ( antes e depois do rebote ), sem se preocuparem com a
razão das correspondências encontradas, não generalizam. Operações realizadas no estádio :
x < y < z < ... ( taco ) ou x’ < y’ < z’ < ... ( rebote ) seriação
x x’; y y’; z z’; ... correspondência
Portanto, os sujeitos limitam-se a uma leitura dos fatos, leitura agora exata porque organizada
através de operações concretas de seriação e correspondência, mas não procuram a razão desses
fatos por via de operações formais de implicação etc, isto é, das condições de pensamento hipotético
– dedutivo.
Estádio Formal ( acima 14 anos ), início das operações formais com suas operações de implicação ou
equivalência ( implicação recíproca ), que permitem a instauração da lei necessária que explica o
evento. DOM: ( 15; 5 anos ) começa igualmente pelo estabelecimento de correspondências: “ Eu olho
um pouco o ângulo ... Quanto mais a gente quer visar o alto, maior precisa ser o ângulo ( como MÜL,
calcula a partir da complementaridade )”. Para verificar essa hipótese, espontaneamente coloca o taco
perpendicularmente ao amortecedor: “se a alavanca está reta, a bola volta exatamente ao mesmo
ponto”. Depois disso, ajusta o taco em três posições diferentes, mas sem deslocar o alvo e sem visar, e
conclui imediatamente: “Há necessidade de dois ângulos: a inclinação do taco igual ao ângulo da
trajetória da bola ( do amortecedor ao alvo )”.
Segundo Piaget, enquanto as operações concretas, embora formadas por sistemas de conjuntos
( classificações, seriações, correspondências etc ) vão de ligação a ligação, e passo a passo, sem
considerar, em cada ligação específica, o conjunto das outras; o característico das operações formais é,
ao contrário, considerar em cada caso todas as combinações possíveis, e assim agrupar as ligações
parciais em função contínua do conjunto das partes.
Portanto, consideradas as proposições p e q ( i=ângulo de incidência e r=ângulo de reflexão ), assim
como suas negativas p e q, que dão, a partir de suas quatro conjunções elementares ( p . q ) v ( p . q )
v ( p . q ) v ( p . q ), 16 combinações possíveis que caracterizam respectivamente a implicação, a
disjunção etc, podemos acompanhar o percurso das operações cognitivas dos sujeitos do estádio
formal. Segundo a tabela das 16 possibilidades de interproposições, temos:
1 7 11
pq pq pq
pq - -
pq pq -
pq pq pq
Assim, a implicação de q por p e p por q correspondem respectivamente às somas de três conjunções:
( p . q ) v ( p . q ) v ( p . q ) e ( p . q ) v ( p . q ) v ( p . q ), conforme a 7ª possibilidade; a equivalência
de p e q ( ou implicação recíproca ) corresponde à soma de duas conjunções: ( p . q ) v ( p . q ),
conforme 11ª possibilidade. Mas, para afirmar a verdade de cada uma dessas três ligações, é preciso
estabelecer a possibilidade de erro para cada uma delas, que são: ( p . q ) para p q, ( p . q )
para q p, e ( p . q ) + ( p . q ) para p = q.
Portanto, conforme Piaget e Inhelder, é na dupla consideração de combinações possíveis e de
ligações necessárias que aflora a construção hipotético – dedutiva dos sujeitos de 14 – 16 anos, cuja
síntese é:
p q porque ( p . q ) v ( p . q ) são verdadeiros e ( p . q ) v ( p . q ) são falsos; onde p e q são
a verificação de inclinações correspondentes de valores respectivos x e y
OU ( x = 0 ) (y=0)
e (x=z) ( y = z ) onde z é uma inclinação determinada > 0
Portanto, x y
e âng. x âng. Y onde âng. X e âng. Y são os ângls. De incidência e de reflexão
( ou seus complementares ).
Conclusão.
Como visto acima, acompanhar os desdobramentos das operações cognitivas ( competências ) está
muito além de: primeiro, esgotá-las em orientações-comando inferir, relacionar, identificar etc,
conforme material pedagógico oficial; segundo, consideração vaga dos estádios do desenv/to
cognitivo para efeito de aprendizagem; terceiro, constatação óbvia da necessária interatividade
socioeducativa educador/educando. O nó górdio da questão refere-se a como transplantar para sala
de aula os mecanismos utilizados no processo de investigação, visto que, além das gritantes diferenças
entre as condições ideais de investigação e condições de aula, que dispensam comentários, como
também da sanha em atender as metas quantitativas relativas a conteúdos e/ou habilidades,
prevalece a concepção fragmentada entre objetivos, conteúdo, didática, avaliação etc. Ora, o
contraponto à exposição do objeto de estudo, que sugere uma relação passiva entre ouvinte e
expositor/objeto de estudo, é a releitura aproximada do processo investigativo do objeto com base na
relação conteúdo/ método ( didática ) mediada por prof./aluno e presença constante da avaliação
permanente, que tem como centralidade a relação conteúdo/habilidade mediada pelas operações
cognitivas. Nessas condições, o objeto de estudo é retomado em seu movimento de constituição, o
que, para o educando, significa a construção do conceito, e, para o educador, pode significar o
surgimento de inúmeras e simultâneas possibilidades de estratégias com vistas à construção do
caminho a ser percorrido no processo de desvelamento do objeto a ser estudado.
Bibliografia consultada.
PIAGET, Jean. Psicologia da inteligência. São Paulo : Fundo Cultural, 1967.
PIAGET, Jean.Ensaio de lógica operatória. São Paulo: Globo/Edusp, 1976.
INHELDER e PIAGET, Bärbel e Jean. Da lógica da criança à lógica do adolescente: ensaio sobre a construção das estruturas
operatórias formais. São Paulo: Editora Pioneira,1976
VIGOTSKI, Liev Seminióvitch. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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