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ISSN 1982 - 1913

2008, Vol. II, nº 1, 45-52


www.fafich.ufmg.br/mosaico

A técnica da psicanálise frente a um caso de histeria: as


reminiscências como fenômenos do inconsciente

The technique of the psychoanalysis front to a case of histerya: the


reminiscences as phenomena of the unconscious

Allan Moura Oliveira Gonçalves*


Celso Renato Silva**
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade Betim, Betim-MG, Brasil

Resumo
O objetivo deste artigo é demonstrar a relação entre a teoria psicanalítica e a
manobra do estudante psicanalista tomando como índice um caso de neurose
histérica. Nesse sentido, trata-se de um caso clínico com sintomas peculiares à
histeria, como dores que mudam de lugar no corpo da paciente em questão;
reminiscências em sonhos traumáticos; e pesadelos. Sintomas esses que
convocam a uma tentativa de escrita, de transposição para o papel, ato que
se norteia justamente por um importante pilar que deve haver nesta clínica: a
ética. A partir do trato dado a alguns sonhos da paciente e das subseqüentes
interpretações clínicas, colocamos no cerne da discussão a metáfora paterna
que traz consigo a interdição da castração do sujeito. Uma vez internalizada
essa metáfora, falaremos da busca significante pelo pai simbólico de que é
privada a histérica.

Palavras-Chave: histeria, metáfora paterna, reminiscências, sonhos.

Abstract
The objective of this article is to demonstrate the relationship between the
theory of the psychoanalysis and the student psychoanalyst’s maneuver taking
as index a case of hysterical neurosis. In that sense, it is treated of a clinical case
with peculiar symptoms to the hysteria, as pains that change of place in the
patient’s body in subject; reminiscences in traumatic dreams; and nightmares.
Symptoms those that summon it a writing attempt, of transposition for the paper,
action that is orientated exactly by an important pillar that should have at this
clinic: the ethics. Starting from the given treatment the some dreams of the
patient and of the subsequent clinical interpretations, we put in the duramen
of the discussion the paternal metaphor that brings with itself the interdiction
of the subject’s castration. Once assimilated that metaphor, we will speak about
the significant search for the symbolic father that the hysterical is deprived.

Keywords: hysteria, paternal metaphor, reminiscences, dreams.

* Agradeço aos professores Jacqueline Moreira, José Tiago e Renato Diniz, sendo Renato uma fonte de força. À Mariana
Furtunato e à Juliana Outemuro; eterna.
** Agradeço aos amigos Renato Diniz Silveira e José Tiago dos Reis Filho.
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Allan Moura Oliveira Gonçalves - Celso Renato Silva

A clínica é um espaço que tem por gar da mãe, sendo que a tomada desse lugar
ethos o emergir da verdade. Essa verdade é compreendida como o ponto axial, ou seja,
que é singular, específica e una, surge do como a responsável pelo início da progres-
encontro do analista – causa de desejo – com são representada pelo complexo de Édipo.
o analisante. O analista, ao debruçar escuta A ordem simbólica em que se inscreve o pai
clínica, possibilita ao analisante a re-vivên- é responsável por toda a correspondente
cia de seus sintomas, de seus traumas ou de cadeia significante, a qual o Nome-do-Pai
suas reminiscências, estas advindas, muitas dá início, permeando a relação simbiótica
vezes, em sonhos. Vemos aqui, sob a insíg- entre mãe e filho. O Nome-do-Pai assume
nia de sonhos relatados por uma paciente importância além da experiência real, já
diagnosticada pelos critérios que corres- que sua função vai além, ao inscrever-se
pondem à histeria, conceitos que perpas- no triângulo filho-pai-mãe em sua vertente
sam esse encontro. Tais conceitos, alicerça- simbólica. A fim de explicitar tal preposi-
dos em uma prática clínica com seu sentido ção, recorremos a Lacan:
ético, são capazes de fazer com que nossa
paciente dê um “novo” significado às suas “A posição do pai como simbólico não de-
pende do fato de as pessoas haverem mais ou
vivências, incitando-nos a posição analítica,
menos reconhecido a necessidade de uma
a respeitar a dialética entre teoria e prática. certa seqüência de acontecimentos tão dife-
Os sonhos a que nos referimos apre- rentes quanto um coito e um parto. A posição
sentam em seu âmago símbolos indiretos e do Nome-do-Pai como tal, a qualidade do pai
distorcidos que trazem à consciência a re- como procriador, é uma questão que se situa
no nível simbólico. Pode materializar-se nas
presentação de uma mesma figura que, ao diversas formas culturais, mas não depende
longo do processo, fomos capazes de identi- como tal forma cultural, é uma necessidade
ficar, calcados no olhar da psicanálise, como da cadeia significante. Pelo simples fato de
uma representação da efígie paterna, que vocês instituírem uma ordem simbólica, algu-
ma coisa corresponde ou não a função defini-
será discutida no decorrer do texto. Além
da pelo Nome-do-pai, e no interior dessa fun-
dos sonhos, pretendemos discorrer sobre o ção vocês colocam significações que podem
conceito de Retificação Subjetiva e suas im- ser diferentes conforme os casos, mas que de
plicações na clínica. Por fim, propomos al- modo algum dependem de outra necessida-
gumas correlações extraídas da interseção de que não a necessidade da função paterna,
à qual corresponde o Nome-do-Pai na cadeia
entre a teoria e alguns sonhos apresentados significante” (Lacan, 1958/1999, p. 187).
pela paciente referida. Este artigo é resulta-
do do encontro entre analista e analisante,
propiciado por meio de um estágio de aten- Por conseguinte, falaremos sobre o
dimento psicanalítico. Complexo de Édipo. Lacan (1958/1999) afir-
Antes de iniciarmos a nossa discus- ma em seus seminários que o filho em sua
são e introduzirmos à nossa temática os re- cena edípica acaba, ao fim, identificando-se
latos do caso clínico que nos ceva, vemos com o falo, no caso, com o pai, como repre-
a necessidade de tomar certas descrições sentante de tal, em função de a mãe ser pri-
sobre alguns conceitos que a psicanálise vada pelo pai de seu objeto fálico, ou seja, o
nos oferece. Ao se tratar do amor pelo pai, objeto de seu desejo. Desejo esse que, num
em um caso clínico que estamos nos empe- primeiro tempo da cena edípica, torna mãe
nhando em trabalhar, vemos a necessidade e filho fálicos um para o outro, configuran-
de resgatar o que se conhece em psicanálise do assim uma simbiose a qual, em momento
como Metáfora Paterna. Mas o que este con- posterior, sofre uma ruptura em função da
ceito nos apresenta? De acordo com Lacan interferência privadora do desejo, esta fei-
(1958/1999), seria a introdução simbólica ta pela representação simbólica do pai. To-
substitutiva do pai como significante no lu- davia, para Freud (1905/1996), o abandono
do desejo e a renúncia da identificação da

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criança pela mãe - que a posteriori passa a os casos; a questão do ter ou não ter é regida
se identificar com o pai - dá-se, no caso do – mesmo naquele que, no fim, tem o direito
de tê-lo, ou seja, o varão – por intermédio do
menino, pelo temor da castração, ou seja, complexo de castração. Isso supões que, para
pelo medo da perda de seu órgão viril. A tê-lo, é preciso que haja um momento em que
fim de manter seu pênis, o menino renuncia não se tem. Não chamaríamos o que está em
ao amor materno, passando a identificar-se jogo de complexo de castração, de certa ma-
neira, isso não pusesse em primeiro plano
com o pai, ou seja, a um correspondente ao
que, para tê-lo, de modo que a possibilidade
falo. Entretanto, para Lacan (1958/1999), a de ser castrado é essencial na assunção do
descrição de Freud pode ser ainda mais de- fato de ter o falo” (Lacan, 1958/1999, p.192).
senvolvida, já que a identificação do menino
com o pai pode ser tomada como o ponto Apesar da descrição minuciosa so-
nodal do Édipo. Em momento anterior, o pai bre a metáfora paterna, discutir de maneira
é tido como o privador do desejo entre mãe aprofundada as cenas edípicas e a histeria
e filho, sendo que nesse tempo edípico, tan- como estrutura não são o objetivo principal
to faz se ao menino ou à menina, pois ambos deste artigo. Por enquanto, iremos nos pau-
acabam desejando o que a mãe deseja. Por- tar apenas pelo argumento de que a estrutu-
tanto, o pai apresenta-se na cena edípica para ra histérica seria aquela em que a angústia
a menina como aquele que castra, no plano e a aceitação da castração inscrevem-se de
do simbólico, pois não há como castrar um maneira mais incisiva. Nesse sentindo, man-
órgão viril em mãe ou filha. É o pai aquele teremo-nos a compartilhar elementos pre-
que interpela o desejo, privando mãe e filha sentes na concepção teórica do complexo
de continuarem seus engodos, sua simbio- de Édipo em seus entrelaces fálicos.
se. O pai passa, a posteriori, a ser o objeto Subsidiados pelas reflexões aqui ex-
de amor também da menina. Recalcada, ela postas, vamos, a partir de agora, ilustrar nos-
aceita sua castração, pois o pai entra na cena sa escrita com os eventos que se sucederam
como significante fálico, futuro objeto de em atendimentos clínicos que seguiram seu
desejo, fazendo com que a menina siga sua curso sob a proposta de retificação subjeti-
neurose e renuncie ao amor da mãe, indo na va, todavia conduzida com base no eixo da
direção do falo, que lhe fora privado. Ter ou teoria psicanalítica. Ao buscar o estabeleci-
não o falo é tratado por Lacan (1958/1999) mento de uma relação terapêutica entre pa-
quando, em seu quinto seminário, ele tenta ciente e clínico, consiste em fazer com que o
elucidar a lógica de castração, trazendo ao primeiro, em sua noção de eu, compreenda
seu discurso a teorização psicanalítica feita sua queixa e se posicione frente aos seus
aos três tempos do Édipo: sintomas, responsabilizando-se por todos
aqueles que se apresentam em seu discurso.
“(...) hão de estar sentindo que há um passo Há, nesse processo, uma definição do espa-
considerável a dar para compreender a dife-
rença entre essa alternativa e aquela de que
ço psicológico em que o paciente ganha luz
se trata num outro momento, e que afinal de sobre sua realidade e tem a chance de se
contas é preciso esperarmos encontrar – a deparar com ela no início do processo tera-
do ter ou não ter, para nos basearmos numa pêutico em questão, encontrando possibili-
outra citação literária. Dito de outra maneira,
dades para trabalhar por um saber que seja
ter ou não ter o pênis não são a mesma coisa.
Entre os dois, não o esqueçamos, há o com- seu, que remeta a sua verdade. O paciente,
plexo de castração. Aquilo de que se trata no por meio de sua queixa, apresenta-nos sua
complexo de castração nunca é articulado e realidade. E o nosso papel consiste em aju-
se faz quase que completamente misterioso. dá-lo a localizar sua posição frente à reali-
Sabemos, no entanto, que é dele que depen-
dem estes dois fatos: que, de um lado, o me-
dade que ele nos figura. Nosso objetivo é
nino se transforme em homem, e de outro, a intervir, no sentido de fazê-lo posicionar-se
menina se transforme em mulher. Em ambos perante seus sintomas, recobertos pela in-

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tenção de que o paciente possa localizar-se um caso de histeria: a paciente somava do-
frente a estes, ou seja, que minimamente o res inexplicáveis em seu corpo, que nenhum
analisando possa reconhecê-los como seus. médico pudera entender e curar, além de
Para Nasio (1999), esse processo chama-se sempre colocar-se como vítima dos proble-
Retificação Subjetiva, em que: mas mundanos, ou seja, assim como refe-
renciado anteriormente, tratava-se de uma
“(...) no fim da primeira entrevista e na se- forma de dar sentido a seu mundo em um
guinte, introduzimos o paciente numa primei- lugar que, nas entrelinhas de seu discurso,
ra localização da sua posição na realidade foi por nós identificado, como um lugar de
que ele nos apresenta. Ele pode falar da sua
realidade, inscrita numa família, num casal,
vítima. Eram, pois, características notórias
numa situação profissional. O que nos impor- de uma histérica clássica tomada pela lógi-
ta, principalmente, se refere à relação da pes- ca da castração e pela aceitação incondicio-
soa que faz uma consulta mantém com seus nal da mesma. Embora não possamos negar
sintomas. É sobre esse ponto que intervirá
seu sofrer, já tínhamos em mãos a possibi-
o que chamamos de “retificação subjetiva”.
(...) Essa relação com os sintomas é uma re- lidade de fazer nossa primeira intervenção
lação de sentido. O paciente dá um sentido a de sentido. Compreendemos a questão do
cada um dos seus sofrimentos, a cada um dos gozo histérico como ganho secundário em
seus distúrbios. E é nesse nível, no nível do sua posição passiva de vítima sobre o caos
sentido, que temos que fazer nossa primeira
intervenção, chamada por nós, segundo a ex-
que a acometia, todavia nossa primeira in-
pressão de Ida Macalpine e Lacan, de “retifi- tervenção de efeito mais substancial ultra-
cação subjetiva” (Nasio, 1999 , p.11-12). passava um pouco os elementos que com-
punham nossa proposta de “retificar”.
A paciente, nas primeiras sessões, A paciente relatava que, em toda a
apresentava, como sintoma principal, dores sua vida, fora maltratada pelo pai, que era
que transitavam, mudavam de lugar em seu extremamente severo e que não demonstra-
corpo. Reclamava ainda da saudade que va amor por ela. Essa situação veio a pro-
sentia de uma filha querida que havia se mu- longar-se, segundo ela, durante os 23 anos
dado para a Europa, manifestava muita preo- vividos com o ex-marido, que só a fazia so-
cupação com duas filhas portadoras de uma frer e nunca fora romântico ou companheiro.
doença chamada trombose venosa, queixa- Colocava, assim, toda a responsabilidade
va-se de solidão e depressão. Estava abati- da sua condição atual ao seu péssimo pai e
da, sem dormir, pois preferia não dormir a ao marido, dizendo ter sido vítima da negli-
conviver com os pesadelos que por todas as gência e da crueldade dos dois. Elucidemos
noites abarcavam seu sono. Queixava-se de aqui que o sintoma que nos salta aos olhos,
que quando não tomava seus remédios para neste caso, seria a posição de gozo de nossa
depressão nunca conseguia dormir sem que paciente durante o seu casamento. De acor-
os pesadelos a acometessem. Dissera que do com ela, que ficticiamente chamaremos
só tomava os remédios quando era possível de Josefa, foram os anos de casada apenas
pegá-los no posto de saúde. Chorava dema- de sofrimento, em que não teve outra esco-
siadamente e, em função disso, na primeira lha a não ser submeter-se ao marido.
sessão, retivemos-nos em estabelecer um Uma das nossas primeiras interven-
espaço de acolhimento. Entretanto, depois ções foi fazer perguntas com o intuito de
de esvaziar-se um pouco de seus excessos, cindi-la, dividi-la, elaborar questionamen-
as demandas da paciente, características da tos sobre sua responsabilidade diante de
clínica clássica psicanalítica, começaram a uma posição tão passiva, a supor, nas entre-
sobrevir. Anterior a isso, o seu diagnóstico
fora possível apenas nas sessões em que 1Paciente atendida e registrada na clínica escola Núcleo de
Referência em Psicologia José Tiago dos Reis Filho – da PUC
houve somente o acolhimento. Tratava-se de MINAS Unidade Betim, tendo seu nome resguardado a fim de
cumprir princípios éticos.

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linhas, que Josefa desfrutaria de um ganho pela fixação no momento em que o trauma
secundário por meio da posição de vítima ocorreu. (...) Não é de meu conhecimento,
contudo, que as pessoas que sofrem de neu-
em que se colocava em seu discurso, daí en- rose traumática estejam muito ocupadas, em
tão, obtivemos elementos para intervir nos suas vidas despertas, com lembranças de seu
principiando através da proposta de Retifi- acidente. Talvez estejam mais interessadas
cação Subjetiva. em não pensar nele. Qualquer um que acei-
te, como algo por si mesmo evidente, que os
Segundo Josefa, a violência do ex-
sonhos delas devam à noite fazê-las voltar à
marido lhe fora traumática. Por muitas vezes situação que as fez cair doentes, compreen-
apanhou dele e, em muitas situações, entra- deu mal a natureza dos sonhos. Estaria mais
vam em luta corporal. Até que um dia o ex- em harmonia com a natureza destes, se mos-
marido lhe feriu com uma facada no abdô- trassem ao paciente quadros de seu passado
sadio ou da cura pela qual esperam. Se não
men. Os pesadelos de Josefa assiduamente quisermos que os neuróticos traumáticos
remetiam a esse trauma e sempre continham abalem nossa crença no teor realizador de
conteúdos, em que Josefa lutava contra algo desejos dos sonhos, teremos ainda aberta a
ou alguém. O mais curioso é que nesses pe- nós uma saída; podemos argumentar que a
função de sonhar, tal como muitas pessoas,
sadelos, que tanto reincidiam, a efígie do
nessa condição está perturbada e afastada
marido nunca esteve presente. de seus propósitos, ou podemos ser levados
A idéia de que os sonhos não são a refletir sobre as misteriosos tendências ma-
apenas manifestações de desejos incons- soquistas do ego (Freud, 1920/1996, p. 24)”.
cientes, mas também reminiscências à fixa-
ção de um trauma, foram trabalhas por Freud Reflitamos sim, sugestionados por
(1920/1996), quando este descreveu as pul- Freud (1900/1996), sobre as tendências ma-
sões de morte, que faziam frente à lógica rí- soquistas do Ego e faremos tal reflexão to-
gida do aparelho psíquico regulado apenas mando aqui a analogia do iceberg proposta
pelo princípio do prazer. Desse modo, ao tra- por ele. Em tal correspondência análoga,
tar das pulsões de morte pela primeira vez, Freud assevera que os conteúdos da cons-
Freud (1920/1996) recorreu aos sonhos refe- ciência são apenas a ponta do iceberg e que
rentes às neuroses traumáticas, pois acredi- eles manifestam na consciência unicamen-
tava serem os sonhos um método fidedigno te o que é suportável, e como é suportável,
para a investigação de processos mentais pois, segundo ele, o conteúdo inconsciente
mais profundos. Argumentava, a partir de é muito maior que o fenômeno consciente a
seus minuciosos estudos com os ex-comba- que se assiste e encontra-se submerso em
tentes da Primeira Guerra Mundial, que as sua grandeza. A fim de dar luz sobre o que
repetições do evento traumático presentes está inscrito no inconsciente, Freud desen-
nos sonhos caracterizavam tais sonhos como volveu sua teoria e propôs que a prática clí-
fixação de um trauma – reminiscências – em nica fosse a livre-associação.
vez de sua inferência anterior, em que con- Munidos disto, fora que interior ao
siderava estes apenas manifestações de de- processo terapêutico superintendido à Jo-
sejos inconscientes. No ano último citado, sefa, que nos propusemos a tentar evocar
Freud dava um passo importante em sua te- conteúdos inconscientes a partir dessa téc-
oria propondo algo além: nica com desígnio de usar disso em nossa
proposta clínica. Quando pedimos a Josefa
“As fixações na experiência que iniciou a para nos dizer a que a palavra “luta”, tão
doença há muito tempo nos são familiares na presente em seus sonhos, a remetia, facul-
histeria. Breuer e Freud declararam em 1893
que os histéricos sofrem principalmente de
tamos que Josefa entrasse num exercício
reminiscências. Nas neuroses de guerra tam- de associação, prática em que ela começou
bém, observadores como Ferenezi e Simmel a empenhar-se, dizendo que toda sua vida
puderam explicar certos sintomas motores fora uma grande luta. Prosseguiu com uma

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narrativa sobre suas dificuldades de sobre- visto, Josefa, nesse percurso associativo,
viver com seu ofício de costureira. Ao relatar falava de questões que pareciam difíceis
os empecilhos para adquirir suas máquinas de reencontrar e, nesse sonho, o véu que
de costura, ela acabou por lembrar que seu cobria o ex-marido, novamente escondia o
primeiro curso de corte e costura foi pago mesmo conteúdo inconsciente, o falo inal-
por seu pai, depois de muita insistência e cançável. Percebemos então, adentrados
choro, não sem antes ele dizer que Josefa em uma circunspecção interpretativa, que
não era merecedora de tal presente. Em- os pesadelos remetiam à questão edípica da
bora não detalhemos aqui de maneira mais busca eterna pelo representante do falo já
particularizada todas as amarrações da pa- tratadas a priori por nós. Contudo, acrescen-
ciente, constatamos que, de um modo geral, temos em nossa discussão que essa busca é
foi isso o que sucedeu em sua livre-associa- incessante, sendo até capaz de evocar trau-
ção, lembrando que ela falou livremente em mas que implicam em uma posição de gozo,
um exercício singular, excluído de qualquer uma postura masoquista sustentada por um
intervenção. sonho traumático.
Ao término de seu discurso, que teve Em conseqüência de tais interpreta-
como centelha apenas uma palavra, Jose- ções, como também calcados na coerência
fa encontrou, em sua nomeação significan- interior em que a psicanálise mantém-se a
te, palavras que novamente traziam ao seu qualquer retorquir, é que podemos nos sus-
conhecimento conteúdos alusivos ao seu ter que o próximo sonho sobre o qual iremos
ex-marido. Pessoa que, reiteramos, nunca nos inclinar a descrever não nos demandou
aparecera configurado explicitamente nos sugerir à nossa paciente que fizesse nova-
conteúdos de seus sonhos, mas que, por fun- mente um exercício clínico de livre-associa-
cionalidade técnica e pelo bom movimento ção. Não obstante, postulemos aqui a possi-
ao qual a paciente veio a fazer lógica na as- bilidade de usar tal sonho em favor clínico,
sociação que lhe fora proposta, tornou-se sob medida interpretativa, sem que tenha-
assumptível em uma lacuna consciente, re- mos feito usufruto de uma nova livre-asso-
presentada por suas palavras. Contudo, in- ciação de nossa paciente com o conteúdo
ferimos que as “lutas” em seus sonhos eram do sonho descrito a posteriori. Sobre tal, fo-
suportáveis em sua consciência, mesmo mos capazes de tomar sentido baseados na
que fossem reminiscências de um trauma. lógica clínica para a qual o caso tendia, per-
Uma tendência masoquista do ego permitia mitindo-nos uma condução dialética a partir
um gozo nesse manifestar de tantas “lutas”, de uma interpretação que dispensava um
mas, ainda assim, o ex-marido aparecia nos novo exercício de associação da paciente. A
sonhos velado por elas. Admitamos o cará- coerência que defendemos, dessa vez, não
ter interpretativo dessa nossa premissa, mas se fez presente apenas no âmbito teórico
que, no entanto, é sustentada pela descrição psicanalítico, mas também no estreitamento
anterior de Freud e por outro sonho que ire- entre teoria e prática, ou seja, factual.
mos relatar a posteriori. Em umas das primeiras sessões na
Em uma das sessões adiante, Josefa qual atendemos individualmente nossa pa-
contou outro pesadelo, em que marginais ciente, ela nos contou que, em certas situa-
novamente a faziam lutar em uma situação ções, a raiva que tinha pelo ex-marido, que,
em que ela era perseguida. Após fazer as- lembrando, sempre a machucava e a maltra-
sociações com a palavra “marginal”, Josefa tava, era capaz de fazê-la pensar em matá-
terminava seu discurso dizendo sobre seu lo enquanto dormia, golpeando sua cabeça
ex-marido: “ele me marginalizou a vida in- com algum pedaço de pau. Ainda assim, ela
teira”. Embora, sob um olhar vinculado à hesitara em fazê-lo, alegando que poderia
lógica psicanalítica, isso já pudesse ser pre- ser presa pela lei. Argumentava em seu dis-

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curso que esse era o motivo primordial que consciente de uma satisfação inconscien-
a impedia de cometer o assassinato. Toda- te, operante em um psiquismo tendente ao
via, apesar de termos, nesse momento, sub- masoquismo, em detrimento de uma busca
sídios teóricos para uma pontuação clínica a desmedida pelo falo privado.
fim de cindir nossa paciente, hesitamos, pois Chegamos ao ponto de sugerir que
acreditávamos ainda não haver o nível se- o amor pelo pai tirano seria apenas uma
guramente desejável de transferência. Por busca pulsional incansável pelo falo que
conseguinte, em uma situação posterior, já foi privado ao sujeito histérico. Essa busca
envolvida em uma dinâmica transferencial manter-se-á pulsante, mesmo que tenha de
segura para conosco, nossa paciente nos re- encontrar representação no desprazer para
latou outro sonho - que iremos chamar aqui obter satisfação. A breve ilustração clínica
de “sonho do jacaré” - que nos possibilitou do “caso Josefa” é trazida aqui apenas para
pontuá-la, lembrando-a das palavras que problematizar certos conceitos psicanalí-
ela nos confiara, sobre sua vontade de ma- ticos que nos autorizam a tomar demandas
tar seu marido. clínicas e a conduzir nossa prática sob uma
Josefa ainda se encontrava investida orientação teórica capaz de nos ajudar a de-
de pesadelos nas últimas sessões a que se bruçar saber e acolher os sujeitos que nos
submetera, sendo que em uma delas nos vem à clínica, sobretudo à clínica escola.
contou sobre um sonho que tivera com um As manobras realizadas pelo analista
jacaré. Josefa dizia que sonhou estar em um no setting devem conduzir o sujeito em di-
rio e que um feroz jacaré tentou comê-la e reção à cura, em que a retificação subjetiva
que, nesse sonho ela pôde realizar o desejo tem um papel sine qua non. Pudemos per-
de matá-lo com um pedaço de pau. Entre- ceber que, das inúmeras queixas dolorosas
tanto, depois de matar o jacaré em seu so- apresentadas por Josefa, desde aquelas que
nho, ela foi tomada por fulminante angústia deslizavam pela superfície do seu corpo, até
e posterior culpa, pois em sua fantasia iria aquelas que povoavam os recôncavos da sua
ser presa por algum órgão de defesa dos mente, houve um processo de foco em uma
animais. Josefa confessou que se sentiu cul- figura simbólica que dialetizava sua condi-
pada por matar esse jacaré em seu sonho, ção no mundo, a figura paterna. Figura esta
não obstante ele fosse comê-la se ela não que foi atualizada na pessoa do marido que
o tivesse aniquilado. Quando nos foi relata- encenava a postura tirana do pai. Este, por
do tal sonho, apenas intervimos lembrando sua vez, foi representado pela dinâmica in-
Josefa do que nos contara em sessões pre- consciente da soma de sintomas corpóreos
cedentes, sobre seu desejo de matar seu e pesadelos reincidentes.
marido enquanto dormia. Lembremos que Assim, após vislumbrar reminiscên-
o marido era muito semelhante a seu pai, cias e sonhos, sintomas e palavras, fatos
grosseiro, rude e tirano. Entretanto, tal dese- e fantasias, podemos afirmar e sustentar a
jo inconsciente só pôde ser realizado em um clínica voltada ao sujeito em sua condição
sonho em que a figura do marido apareceu última de único detentor e responsável por
distorcida, embora a distorção de tal efígie uma verdade: a sua. Verificamos que, neste
não livrasse Josefa da culpa de matar o “pai contexto, figuras surgem como representa-
fálico”. Após nossa intervenção, Josefa não ções, tomadas por sentido particular, capa-
apresentou nenhuma resistência e assumiu, zes de operar e de se tornarem dinâmicas
em seu discurso, que não conseguira li- no respectivo ao subjetivo. Dentre estas fi-
vrar-se do ex-marido que, mesmo após oito guras, há a paterna que, às vezes, é tirânica,
anos de separação, ainda a atormentava em como vemos em Kafka:
seus pesadelos, embora saibamos que ele
é apenas evocado a cumprir representação “Você me perguntou recentemente por que
eu afirmo ter medo de você. Como de cos-

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tume, não soube responder, em parte justa-


mente por causa do medo que tenho de você,
em parte porque na motivação desse medo
intervêm tantos pormenores, que mal pode-
ria reuni-los numa fala” (Kafka, 1919/1997, p.
7).

Referências Bibliográficas:

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___________. (1996c). O Id e o Ego. Rio de Janeiro: In: Edição Standard brasileira das obras
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___________. (1996d). A interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: In: Edição Standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, IV, 1ª ed. (p.p. 11-363) ( W. Ismael de
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Recebido em:10/08/2007
Revisado em: 30/06/2008
Aceito em: 03/07/2008

Sobre os autores:

Allan Moura Oliveira Gonçalves é aluno do curso de graduação em psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade Betim. E-mail: allanmog@yahoo.com.br

Celso Renato Silva é aluno do curso de graduação em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais – Unidade Betim. E-mail: celsorenato@hotmail.com

52 Mosaico: estudos em psicologia ♦ Belo Horizonte-MG ♦ 2008 ♦ Vol. II ♦ nº 1 ♦ p. 45-52

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