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SACERDÓCIO
fonte de espiritualidade
Priesthood, Source of spirituality

frei Antonio Quirino de Oliveira, O.P. *

RESUMO: O presente trabalho pretende, compreendendo o sacerdote como agente de


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santidade de vida e de salvação, extrair das bases da fé católica algumas lições acerca do bom
desempenho das funções sagradas do sacerdócio, isto visando fundamentar traços de uma
espiritualidade sacerdotal. Deste modo, desde um resgate da exposição da função sacerdotal
na Israel veterotestamentária até uma aproximação de uma breve história da vida consagrada
e seu vínculo com a experiência sacerdotal a partir das considerações dos Padres da Igreja,
pretende-se reconhecer uma espiritualidade para a sacramentalidade sacerdotal, a qual deve ser,
fundamentalmente, evangélica, eclesial e humana. Portanto, tendo sempre clara a essencialidade
do sacerdócio como fruto da gratuidade de Deus, este trabalho visa, a começar do reconhecimento
da função sacerdotal como exercício da mediação, santificação e oblação, a qual dispõe para a
restauração das relações entre os homens, tendo em vista a comunidade de amor com o Criador,
esboçar os alicerces, cristocêntricos, da mística do sacerdócio.

PALAVRAS CHAVE: sacerdócio; espiritualidade sacerdotal; função sacerdotal.

ABSTRACT: This study understands the priesthood as an agent of sanctity, of life and of salvation.
The text aims to extract from the bases of the Catholic faith some lessons about the good
performance of the sacred roles of the priesthood. This is how it will substantiate features for a
priestly spirituality. Starting from a bailout of the exposure of the priestly role in the Israel Vetero-
testamentary to the approach of a brief history of the consecrated life and of considerations
of the fathers of the Church, it is intended to recognize a priestly spirituality, which should be
fundamentally evangelical, ecclesial and human. Therefore, having always clear the sacramental
essence of priesthood as fruit of God’s gratuitousness, this paper aims to outline the christocentric
pillars of the mystique of priesthood. And for such, initially it emphasizes the acknowledgment
of the priestly roles as an exercise of mediation, sanctification and oblation. for the restoration of
relationships between men, this role aims at a community of love with the Creator.

KEY WORDS: priesthood; priestly spirituality; priestly role.

* Mestre em Teologia, especialista em filosofia da Educação, licenciado em Ciências bíblicas. Professor de


Sagrada Escritura e Patrística na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e no Studium Theologicum.
1. NOTAS PRELIMINARES SOBRE O SACERDÓCIO

Sempre houve, entre os povos civilizados, vizinhos de Israel, a função


sacerdotal, normalmente exercida pelo rei, assistido por um clero hierarquizado.
Na maioria das vezes esse clero era hereditário, e formavam uma verdadeira
casta. Entre os patriarcas hebreus não houve nada desse tipo. São os próprios
patriarcas que construíam altares (Gn 12,7; 13,18; 26,25)1 e ofereciam sacrifícios
(Gn 22;31,54;46,1). Eles exerciam um sacerdócio familiar, praticado, como na
maioria dos povos antigos.

Os sacerdotes que aparecem nesse meio são estrangeiros, como é o caso


de Melquisedec, sacerdote-rei de Salém (Gn 14,18ss). Também o faraó tinha seus
servidores sacerdotes.

Antes do êxodo, a tribo de Levi é simplesmente uma tribo profana entre


as outras, sem funções sagradas (Gn 34,25-31; 49,5s). A partir da aliança do
26 Sinai Moisés deu uma organização mais complexa do povo israelita, e partir de
então a tribo de Levi foi consagrada para funções cultuais. O caráter essencial do
sacerdócio dessa tribo está expresso em Ex 32,25-29. A tribo de Levi é escolhida e
consagrada pelo próprio Deus para o serviço do culto divino. A benção de Moisés
atribui aos descendentes de Levi as tarefas específicas dos sacerdotes (Dt 33,8-
11).

Os Levitas são os sacerdotes por excelência, porém, ao lado do sacerdócio


levítico, o sacerdócio familiar, ou do chefe de família, continua e existindo (Jz 6,18-
29; 13,19; 17,5; 1 Sm 7,1).

No tempo da monarquia hebraica, o rei exerce diversas funções


sacerdotais, como acontecia também entre os povos vizinhos de Israel (1Sm 13,9;
2Sm 6,13-17; 24,22-25; 2 Rs 16,13; 2 Sm 6,18; 1 Rs 8,14). São menções abrangendo
o período que vai desde Saul, Davi até Acaz. Contudo o rei não recebe o título
de sacerdote – a não ser no Salmo 110, 4 – que compara o rei a Melquisedec.
Excetuando essa alusão ao sacerdócio régio de Canaã, o rei é, sobretudo patrono
do sacerdócio, não um membro da casta sacerdotal. A seguir, a casta sacerdotal
tornou-se uma instituição organizada, notadamente no santuário de Jerusalém,
onde há um sacerdote chefe e diferentes subalternos.

A reforma de Josias, feita em 621 a.C., suprimiu os atuários


locais, estabeleceu o monopólio levítico e a supremacia do clero de Jerusalém.

1 As citações bíblicas, em todo este artigo, foram retiradas da bíblia Ave Maria.
O espírito da reforma religiosa empreendida por Josias exigia essas medidas na
tentativa de restaurar a religião tradicional. Indo além do Deuteronômio (18,6-
8), a reforma reservou efetivamente o exercício das funções sacerdotais apenas
para os descendentes de Sadoc (Rs 23,5.9). É o prelúdio da futura distinção entre
sacerdotes e levitas, distinção essa que aparecerá mais claramente em Ez 40,10-
31.

Novo contexto geral se delineia por volta de 536, final do exílio babilônico.
Mas a partir desse período, então livres das tentações e das influências do poder
político exercidas por pagãos e também livres da tutela régia, os sacerdotes
se tornam guias espirituais da nação, que não é mais um povo politicamente
independente, mas uma etnia oficialmente reconhecida.

Doravante a hierarquia sacerdotal não conhecerá maiores variações,


exceto para a designação do sumo sacerdote. Em 172, antes da era cristã, o último
sumo sacerdote, descendente de Sadoc, Onias III, foi assassinado em conseqüência
de intrigas política.

Os sucessores de Onias III eram designados pelos reis sírios. É o tempo


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conturbado das lutas dos Macabeus. Tendo a revolta macabaica conseguido
algum sucesso, foi designado sumo sacerdote Jonatan, irmão de Judas Macabeu.
Mais tarde foi sucedido por Simão, ambos saídos de família sacerdotal. foi o ponto
de partida para a dinastia dos Asmoneus, sacerdotes e reis (134-37 a.C.).

A evolução da história do povo judeu, até chegar ao limiar do N.T., foi um


período de perturbações de toada sorte. Pesava sobre o povo judeu o jugo dos
romanos e a esperança de um libertador estava viva. Ansiava-se pela chegada
de um messias político que devolvesse ao povo a liberdade. Era uma dolorosa
mistura de anseio político impulsionado por fanatismo religioso. Os sumos
sacerdotes eram designados pela autoridade política de turno de acordo com as
conveniências políticas recheadas de intrigas e traições.

Gostaria de encerrar esta anotações preliminares sobre o sacedócio


anterior ao de Cristo, com as palavras do Cardeal francis Arinze, no seu livro
Reflexões sobre o sacerdócio: carta a um jovem padre, referindo-se às raízes do
sacerdócio de Cristo no A. T., escreve que “o sacerdócio tinha lugar de relevo em
Israel, o povo eleito, no seio do qual Deus tinha prometido suscitar o Salvador. A
nação inteira de Israel é descrita como um povo sacerdotal (cfr Ex 19,6)” (Arinze,
2009, p. 15).
2. O SACERDÓCIO DE JESUS CRISTO

Não vamos defi o sacerdócio e nem discutir seus aspectos formais


ou dogmáticos. Tomaremos em conta apenas o que a fé católica nos diz sobre o
sacerdócio procurando extrair dessa função sagrada lições que sirvam para o bom
desempenho do mesmo bem como a construção de uma espiritualidade sacerdotal.

O sacerdócio e, essencialmente, a atualização sacramentalmente perene da


presença de Cristo no mundo, ao longo da história. O sacerdote atua in persona
christi: alter christus é uma defi tradicional do sacerdote. Pelo sacramento da
ordem opera-se no sacerdote uma transformação profunda; é uma identifi
que converte o sacerdote na presença sacramental de Jesus Cristo entre os seres
humanos.

Para os Santos Padres a substituição sacramental do sacerdote, que age in


persona christi, deve realizar-se na identidade da própria pessoa. Antes de pensar na
28 consideração das funções e dos deveres ministeriais que derivam da ordem sagrada,
deve haver uma identifi pessoal. Ser o que é, ser, em primeiro lugar, o que é
Cristo independentemente do modo específi o de desempenhar o sacerdócio para
exercer o papel de mediador, santifi e sacrifi .

“Permanecendo eternamente, Jesus tem um sacerdócio imutável” (hb 7,24).


Com estas palavras a carta aos hebreus procura defi a “mediação de Cristo”
relacionando-a com a função dos sacerdotes, que já existia no A.T., como em todas
as regiões vizinhas de Israel. Para compreender o sacerdócio de Jesus é importante,
pois, conhecer com exatidão o sacerdócio do Antigo Testamento, que prefi ou o
sacerdócio de Jesus Cristo.

O sacerdócio de Cristo continua nos sacerdotes da Nova Aliança não só


como fi a, mas também na forma concreta de realização plena. Jesus é o Emanuel,
o Deus conosco, porque é o mediador entre Deus e os humanos. Essa mediação
é realizada em três dimensões bem características. Jesus é o agente principal da
função de apóstolo, pastor e sacerdote, cuja ação principal é oferecer sacrifícios. A
esse respeito São Cirilo de Alexandria diz:

“O sacerdote é a figura de Cristo e sua forma concreta. A ele dá o


nome Emanuel porque é mediador entre Deus e os homens, apóstolo
e sumo sacerdote de nossa fé que penetrou no santuário uma vez
para sempre, não com sangue, conseguindo uma redenção eterna
e por essa oblação santificou todos para sempre” (de adoratione in
spiritu et vaeritate, xIV, PG 68,822. in: Rodero, s.d.).
Antes, porém, de examinar essas três dimensões do ministério de Jesus,
devemos nos lembrar que o pecado é uma profunda ruptura que se produziu
entre Deus e sua criatura humana, obra prima e coroamento da criação (Gn 3,17-
24). Essa ruptura, ou afastamento, atingiu também a relação entre o homem e a
mulher, entre irmão e irmão (Gn 4) e ainda entre um povo e outro (Gn 11,1-9). A
árvore da sabedoria e da vida, da união, da justiça, da paz e da concórdia, está
cortada pela raiz, jaz por terra aos pedaços. O paraíso está fechado aos seres
humanos. Apenas a fonte que jorra do centro do jardim deixa suas águas saírem
para fora das fronteiras fechadas do Éden. Será isto um sinal de esperança de
salvação? Pode ser. Porém, o pecado continua sendo uma ruptura, que necessita
de reparo. Deus não podia deixar sua criatura amada à mercê dos desvarios
induzida por uma mente desorganizada, presa do orgulho, deixando a vontade
sem governo e orientação. A imagem do criador impressa na natureza humana
estava desfi ada. O homem criado na perfeição não mais existia. havia
necessidade premente de uma restauração.

Deus tinha um plano de salvação que, tempo certo, daria ao homem e à


mulher a oportunidade de recuperar a vida perdida. Conforme os pensamentos
paulino e agostiniano, o homem‘nova criatura’ é melhor do que o criado, porque
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Adão foi criado em graça sem o seu consentimento; já o homem redimido, só
será participará da nova criação com seu consentimento. O projeto de Deus,
que não era nem A e nem b, mas único, foi previsto pela sabedoria eterna de
Deus, para dar aos humanos a possibilidade de recuperar a dignidade perdida.
Agora, o ser humano não será mais sujeito passivo da salvação, mas deve tomar
parte ativa no projeto de redenção.

A salvação é comunhão com a fonte de vida que é Deus; comunhão


com os outros, e é o amor vivifi te, vida e amor eterno. É esta comunhão que
pedimos quando recitamos o Pai Nosso: “(...) perdoai-nos nossas ofensas assim
como nós perdoamos a nossos devedores”.

Só Deus, só o filho eterno do Pai pôde estabelecer a comunhão


perdida. Apenas ele pode ser o ministro o servidor efi te dessa vida e desse
amor que é Deus mesmo. O filho de Deus, o Verbo eterno, encarnando-se em
Jesus de Nazaré, torna-se o mediador da Nova Aliança. Plenamente Deus e
plenamente homem, Jesus une Deus e a humanidade em sua pessoa (hb 1,1-
2). É o Cristo sacerdote, portador de um sacerdócio único, que será exercido na
tríplice mediação: apostólica, pastoral e sacrifi . Jesus Cristo é pontífi e por
excelência.
2.1. A MEDIAÇÃO APOSTÓLICA DE JESUS

Esta mediação tem por finalidade buscar encontros, criar relações,


conquistar. É o sentido de ser sal da terra (Mt 5,13). Os reis antigos distribuíam sal
para os amigos, pagavam seus militares com sal, etc. O simbolismo do sal é muito
significativo. Esse tempero não só dá sabor aos alimentos, mas é também usado
para conservar os alimentos. Assim, uma conquista, uma relação estabelecida
deve ser boa, agradável, e deve ser conservada em bom estado. É a famosa
responsabilidade por quem se conquistou. No sermão da montanha Jesus dá
seus discípulos outra missão além de criar relações: ser luz do mundo (Mt 5,14).
Ser luz do mundo significa tocar os corações, efetivar o reconhecimento dos
outros, atingir o ser humano na sua interioridade, na sua mente e no seu coração.
Ora, dizendo isto Jesus está dando a seus discípulos a missão de continuar a sua
missão; ele disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12).

Como mediador apostólico, Jesus cumpre uma trajetória precisa. É


30 enviado aos humanos para eliminar as divisões causadas pelo orgulho, pela
competição, pelo egoismo, e outros tantos vícios que corroem a convivência
humana. Jesus deixou-nos os meio para restabelecer a fraternidade para criar a
comunidade de amor e fé. Essa comunidade criada pelo perdão e que vive no
amor fraterno deve preocupar-se em levantar o que caiu e procurar o que se
perdeu. É nesta perspectiva que deveriam ser tomadas a bem-aventuranças. A
comunidade criada pela mediação pastoral necessita ser alimentada, preservada
por um cuidado especial (cfr. Jo 6,1-15; 10,1-210; Sl 22).

2.2. A MEDIAÇÃO PASTORAL DE JESUS

Pastorear o rebanho do Senhor não pode ser tarefa para qualquer um.
Neste ministério não é a força bruta ou a coragem que conta, nem mesmo o brilho
da inteligência. O pastor deve estar na liderança munido de qualidades espirituais
e pelo amor. Deve haver entre o pastor e as ovelhas um conhecimento recíproco.
As velhas devem conhecer a voz do pastor. Ora, isso exige convivência, cuidado
e dedicação amorosa. Santo Agostinho, comentando o capítulo 34 de Ezequiel,
tece uma série de considerações sobre os bons e os maus pastores, entre as quais
encontramos ricas e sérias reflexões úteis a quem exerce o cargo de pastorear
em nome de Jesus. O pastor responsável não só deve conhecer o caminho que
conduz as ovelhas para as águas limpas e frescas, mas também deve saber onde
encontrar as pastagens verdejantes para alimentar o rebanho. A água da doutrina
e o pão dos sacramentos, o calor da amizade, a mão estendida do perdão para
levantar o que caiu, coragem para ir buscar os que se perderam. Reger o rebanho
de Cristo exige coragem e disposição de fazer como Cristo, estar disposto a dar a
vida pelas ovelhas. Não se trata apenas de ser mártir, como nos primeiros séculos
do cristianismo. Trata-se dessa morte que nos consome um pouco de cada vez, na
luta diária. Morrer para si e viver para Deus.

São João Crisóstomo, na sua obra de sacerdotio, (São João Crisóstomo,


1979, II, 2) refletindo sobre a conduta do pastor mostra claramente que se
tratasse animais, que se perdessem, ou ainda de ladrões que as roubassem, ou
animais que as dilacerassem, ou ainda de epidemias, ou desastre eventual que
as dizimassem, certamente haveria meios de reparar qualquer tipo de dano. Aos
pastores de Cristo não são confiados animais irracionais, mas seres humanos que
não podem ser resgatados, nem indenizados ou compensados por dinheiro. Aos
que deixarem as ovelhas do Senhor se perderem é pedida sua própria alma (Ez
18,1ss)

A luta do pastor de Cristo será muito mais árdua do que se tratasse apenas 31
de defende-las de lobos ou outros animais ferozes. Não é apenas questão de
defesa contra epidemias ou doenças. Mas, então, contra que ou o que lutar para
defender o rebanho? Consideremos o que São Paulo diz: “Não temos que lutar
contra a carne e o sangue, mas contra as chefias, os poderes, os dominadores deste
mundo das trevas e os espíritos malignos dos ares” (Ef 6,12). Infelizmente, não são
apenas essas ameaças; há outras piores:

“São bem conhecidas as obras da carne: prostituição, impureza,


libertinagem, idolatrias, feitiçaria, inimizades, brigas, ambições, ira,
cobiça, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, rancores, intrigas,
arrogâncias, orgias e outras coisas semelhantes” (Gl 5,19-20; 2 Cor
12,20).

A função pastoral exige do sacerdote uma sólida espiritualidade


evangélica, eclesial e humana. É necessária também uma virtude própria de quem
tem a obrigação de dirigir, a virtude da prudência, que os gregos chamavam
de phrónesis, que é a capacidade que o chefe deve ter para tomar decisões
necessárias, no momento preciso, com os meios de que dispõe. Essa pode
também ser chamada de sabedoria, no sentido bíblico como Salomão pedia antes
de começar a governar o povo de Israel (1Rs 8,22-53). Essa sabedoria, ao mesmo
humana e divina, é também saber ver e saber fazer dentro de um contexto em que
o pastor se encontra, tudo temperado com uma boa dose de amor gratuito, ou
ágape, como se costuma dizer. O pastor de Cristo deve ter a mente voltada para a
clarividência e discernimento.

Os perigos que rondam o rebanho não ameaçam apenas as ovelhas. Não


raro as dificuldades pastorais levam o pastor a se acomodar ou fugir, procurando
se eximir de suas responsabilidades. O pastor passa a ter atitudes de mercenário,
quando não se nutre das ovelhas, mas também pisoteia as enfermas e fracas.
O sacerdote pastor deve praticar o amor misericordioso, como o pai lembrado
na parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32); é necessária a paciência de esperar,
confiar na graça e na providência que determina a hora de Deus.

2.3. A MEDIAÇÃO SACERDOTAL DE JESUS

Jesus sacerdote, modelo e origem do sacerdócio cristão (Jo 17,14-19).


32 Quando examinamos a vida de Jesus, descobrimos que ele nunca exerceu
qualquer função cultual para“oferecer”ou“sacrificar”qualquer coisa. O sacerdócio
de Cristo não foi cumprido em cerimônias. É a sua própria pessoa que cumpre toda
a função de um verdadeiro sacerdote. Ele, Jesus, se apresentou como aquele que
o Pai consagrou, santificou e enviou ao mundo (Jo 10,36). Jesus disse “Por meus
discípulos a mim mesmo me consagro para que sejam consagrados na verdade”. Mas,
em que consiste essa consagração, essa santificação? Sem dúvida, a própria vida
de Cristo é o sacrifício consumado na oferenda de sua própria morte, vida e morte
glorificadas na ressurreição para santificação e divinização de seus discípulos; não
só para eles, mas “sua vida em resgate de muitos” Mc 10,45).

A carta aos hebreus procura demonstrar que o sacerdócio judaico foi


posto de lado para dar lugar ao verdadeiro e único sacerdócio de Cristo. Essa carta
deixa bem claro que não é mais possível a confusão entre o sacerdote judaico e
o Salvador. Por isso a carta denomina Jesus, com insistência, “sacerdote” e “sumo
sacerdote”. Jesus é o “apóstolo e sumo sacerdote da nossa fé” (hb 3,1). Note-se
que as palavras sacerdote, sacerdócio, sacrifício, não te absolutamente o mesmo
sentido. Dá-se, agora, a passagem das figuras para a realidade. Não se trata mais
de girar em torno de um altar fazendo gestos recitando fórmulas. Trata-se agora
de ser filho de Deus; não mais se trata de ritos, mas de amor; não mais sacrifícios
de animais; é a hora do sacrifício de si mesmo (hb 5,7-10; 9,11-15).

Na cruz, Jesus realizou plenamente o seu papel de mediador. Mediação


apostólica, pastoral e sacerdotal sacrificando-se a si mesmo.
O sacerdócio de Jesus, deixada para continuar a obra de Cristo, na Igreja,
é modelo e estímulo para reaver uma sólida espiritualidade sacerdotal. Os Santos
Padres nos oferecem abundantes reflexões a esse respeito. Aliás, o papa João
Paulo II, na Carta Apostólica, Patres ecclesiae, escrita por ocasião do xVI centenário
de São basílio, recomenda:

“Padres ou pais foram, e pais continuam a ser para sempre: eles


mesmos, de fato, são estruturas estáveis da Igreja, e, favor da Igreja
de todos os séculos, exercem uma função perene. De maneira que
todo o anúncio e magistério seguintes, se quer ser autêntico, deve
pôr-se em confronto com o anúncio e magistério deles; todo o
carisma e todo o ministério deve beber na fonte vital da paternidade
deles; e toda pedra nova, acrescentada ao edifício santo que todos os
dias cresce e se santifica de,deve colocar-se nas estruturas já por eles
postas e a elas soldar-se e ligar-se” ( Introdução, § III. in: Rodero, s.d.).

Por que o sacerdote de Cristo deve ter uma vida espiritual adequada
ao seu trabalho? Vejamos o que nos diz João Paulo II na Exortação pós-sinodal, 33
Pastores dabo Vobis: sobre a formação dos sacerdotes:

“Sem sacerdotes, de fato, a Igreja não poderia viver aquela


fundamental obediência que está no próprio coração de sua
existência e de sua missão na história ¾ a obediência à ordem de
Jesus: ‘Ide, pois, ensinai todas as nações’ (Mt 22,19) e ‘’fazei isto
em minha memória’’ (Lc 22,19; cfr 1Cor 11,24), ou seja, a ordem de
anunciar o Evangelho e de renovar todos os dias o sacrifício do seu
Corpo entregue e do seu Sangue derramado pela vida do mundo”.
(Introdução, § III).

Quanto à necessidade de espiritualidade para os sacerdotes, é uma


questão que história do cristianismo nos dá uma luz. havia, no cristianismo
dos inícios, certa distinção marcada entre os monges ascetas e inteiramente
dedicados à vida de oração e praticas das virtudes cristãs que deviam conduzir
o asceta à perfeição e os sacerdotes deviam se preocupar com as tarefas de
pastores, evangelizadores e celebrantes dos sacramentos. São João Crisóstomo,
no tratado já citado o sacerdócio, marca com clareza a diferença entre a forma
de vida dos sacerdotes e a dos monges. Parece estranho que se reserve para o
monge a vida de ascese e penitência, como se a busca do aperfeiçoamento no
caminho das virtudes não fosse necessário ao sacerdote. O sacerdócio era visto
como apenas um ministério, uma função e nada mais? Não. A obra do Crisóstomo
(SãO JOAO CRISÓSTOMO, 1979). explica-se pelo fato de ele preocupar-se em
marcar nitidamente o que é específico do sacerdote.

Todavia, deve-se notar que, historicamente, na evolução da vida


monástica e dos sacerdotes, houve uma contínua aproximação dos dois tipos
de vida. Com passar dos séculos, os sacerdotes foram assumindo certas práticas
e usos da vida monástica, —como o celibato, oração em comum, abandono dos
bens materiais —; ao passo que os monges vêm a participar, em grau maior ou
menor, das preocupações pastorais da Igreja. Muitos monges pro fi tornam
sacerdotes.

3. GRANDEzA DO SACERDÓCIO

Muitos Padres da Igreja tinham uma idéia tão elevada do sacerdócio que
34 chegaram a ponto de recusar recebe-lo, ou receberam a ordenação sacerdotal
a contra gosto. Pode-se dizer só aceitaram a ordenação como serviço prestado
à comum idade cristã, como foi o caso de Gregório de Nazianzo e São Jerônimo.

São Gregório de Nazianzo (RODERO, s.d.), refletindo, explica no


Apologeticus in fuga, que não se considerava capacitado para exercer as grandes
responsabilidades inerentes ao sacerdócio. Não ignorava a elevação do ministério
sacerdotal: pennsei se não seria melhor dedicar-me a louvar a deus serenamente, ao
invés de mostrar-me esclarecedor de coisas que superam minhas forças”. (oratio II,
LxIV, PG, 35,43).

Ele pensava que poderia manchar com sua indignidade e infidelidade a


mais sagrada função de um ser humano:

“Doía-me profundamente e me envergonhava daqueles que, não


sendo melhores do que outros¾ oxalá não fossem piores ¾ se
aproximassem dos mistérios sacrossantos com espírito profano e
com as mãos sujas, como se costuma dizer. Sem ser verdadeira e
suficientemente dignos, rodeiam o altar empurrando uns aos outros”.
Não precisamente como exemplo de virtude e de zelo, mas pensando
que estas coisas são uma ocasião para saciar sua fome e avareza.
Pensando que este não é um ofício religioso, como na realidade o é,
mas um estado imune de toda censura e risco.” (Idem, oratio V, PG,
35,411. in: Rodero, s.d.).
O texto deixa entreve algumas atitudes que o sacerdote devia ter: grande
respeito e consciência da responsabilidade diante do sacerdócio, o qual devia ser
uma função que lida com o mais sublime dos mistérios da fé, a saber, a eucaristia.
São Gregório recusa, inicialmente, também por temor de acontecer como a
alguns que buscam o sacerdócio porque desejam-no como meio de vida, lugar
de prestígio e privilégios; busca de bens à custa de competições e exclusões. Ora,
é o que acontecia com o clero bizantino que vivia na corte.

há também uma tradição que diz que Santo Ambrósio teria fugido
de Milão e se refugiado num túmulo para evitar ser ordenado sacerdote e
consagrado bispo. Santo Agostinho teria ficado surpreso com o anúncio de que
tinha sido indicado pela comunidade de hipona para receber o presbiterato. Ele
ficou sabendo durante a oração da tarde. Conta-se que ele foi visto chorando
copiosamente antes da ordenação. Seu pranto era motivado pela consciência
da profunda indignidade que sentia interiormente em face da graça tão grande
de divina do sacerdócio. De fato, no comentário que Agostinho tece sobre os
pastores (Salmo 46) mostra amplamente em dois quadros a respeito dos bons e
dos maus pastores. Suas reflexões giram em torno de dois pontos importantes
acerca sacerdócio: a dignidade do sacramento do qual está investido e a
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responsabilidade das funções que decorrem do estado de consagrado para o
ministério na sua tríplice dimensão de apóstolo, evangelizar; de pastor, cuidar
das ovelhas conquistadas para Cristo, e dar-lhes o alimento para a vida (sacrifício
eucarístico). Diante da inevitabilidade de sua escolha para o sacerdócio afirma:
“eu, irmãos, porque deus quis assim, certamente sou seu sacerdote, com vocês bato
no peito, com vocês peço perdão, com vocês, deus usará comigo de misericórdia” (
Sermo 1135, PL, 38,749. in: Rodero, s.d.).

Santo Efrém nunca foi ordenado presbítero, ainda que considerasse o


sacerdócio como “pérola preciosíssima”.

São João Crisóstomo escreveu um tratado sobre o sacerdócio. Essa obra


é também conhecida como diálogo sobre o sacerdócio, no qual o santo doutor
dialogou com um amigo que se chama basílio. O motivo do diálogo é bastante
curioso: ambos os amigos tinham sido escolhidos para o sacerdócio, mas, na
última hora as coisas tomaram rumo inusitado. basílio foi conduzido para a
ordenação mediante enganos.João foge apesar de ter prometido a basílio que
neste assunto de ordenação eles agiam de acordo tanto para aceitar como
para recusar. As explicações que João Crisóstomo dá a basílio para justificar o
engano constituem a ocasião para que ele exponha sua elevada opinião sobre o
sacerdócio e temor que lhe inspiram as exigências da vida daqueles que exercem
o sagrado ministério.
Para João Crisóstomo, o sacerdote é um embaixador e como poderia ser
ele digno de Deus nessa função?

“É tanto maior o empenho e perfeição que o trato com Deus requer.


Porque tal deve ser aquele que está constituído embaixador diante
de Deus de uma cidade inteira? E que digo de uma cidade inteira?
De toda a terra é embaixador, e pelos pecados de todos roga a Deus,
não somente pelos vivos, mas também pelos mortos, a fim de que
a todos seja propício?” (de sacerdotio IV, 4, PG 48,680. SãO JOAO
CRISÓSTOMO, 1979.).

Após uma experiência eremítica nas montanhas da Capadócia, experiência


que lhe valeu uma enfermidade, ele voltou ao povo onde a Igreja o reclamava
para sustentar e aumentar a fé dos fiéis de Antioquia e Constantinopla.

Qual teria sido o motivo quelevou os Santos Padres a enaltecer o sacerdócio


36 e a figura do sacerdote? Primeiramente, porque o sacerdócio é um dom que só
pode ser compreendido pela Vontade livre e amorosa de Deus que quis fazer de
alguns participantes da missão redentora de seu filho para que sejam sinais vivos
do projeto divino de salvação.

Silvestre II, assim, se expressa a esse respeito:

“Quem confere, irmão, a graça episcopal? Deus ou o homem? Sem


dúvida que respondes que é Deus; Deus por meio do homem: o
homem impõe as mãos e Deus confere a graça. O sacerdote suplica
com suas mãos e Deus abençoa com sua poderosa mão; o bispo inicia
a ordem sacerdotal e Deus dá a dignidade... Deus é o que confere a
ordem” (de dignitate sacerdotali, V, PL, 17,577. in: Rodero, s.d.).

O sacerdócio é assim uma graça conferida por Deus porque o ser


humano, por suas forças, não pode alcançar a graça que supera os limites de
suas possibilidades. João Crisóstomo tinha consciência muito clara sobre o que
considerava como graça que desce do alto, do Pai das luzes.”Recebei o espírito
Santo. A quem perdoais os pecados, ficam perdoados” (Jo 20,22), para benefício de
toda a humanidade, e particularmente da Igreja. Ninguém pode sentir-se digno
do sacerdócio de Cristo. É um dom, uma graça; portanto, Deus concede na mais
absoluta liberdade. João Crisóstomo assim se expressa:
“Se é certo que o sacerdócio se exerce sobre a terra, no entanto
pertence à ordem das instituições celestes, e com muito razão;
porque não foi um homem, nem um anjo ou arcanjo, nem alguma
outra potestade criada, mas o próprio Paráclito que ordenou este
ministério, fez que homens ainda que revestidos de carne pudessem
exercer o ofício de anjo” (de sacerdotio, III, 4, PG, 48,642. SãO JOAO
CRISÓSTOMO, 1979.)

O sacerdócio é, essencialmente, a atualização sacramental e perene da


presença de Cristo no mundo, ao longo da história. O sacerdote atua in persona
christi: alter christus, é uma definição tradicional do sacerdote. Pelo sacramento
da ordem opera-se no sacerdote uma transformação profunda ¾ alguns teólogos
chegam dizer ontológica ¾, que o converte na presença sacramental de Jesus
Cristo entre os humanos.

Para os Santos Padres a substituição sacramental do sacerdote que age in


persona christi deve se realizar na identidade da própria pessoa. Antes de pensar
na consideração das funções e dos deveres ministeriais que derivam da ordem
sagrada, deve haver uma identificação pessoal. Ser o que é, ser em primeiro 37
lugar, o que é Cristo independentemente do modo específico de desempenhar o
sacerdócio como habilitação para mediar, santificar e sacrificar.

4. O SACERDOTE COMO APÓSTOLO E TESTEMUNHO: RAzÕES PARA QUE O


SACERDOTE SE ESFORCE PARA TER UMA VIDA EXEMPLAR.

Toda necessidade de esforço para uma espiritualidade sacerdotal nasce


das próprias raízes do sacerdócio. Este sacerdócio é um dom gratuito de Deus.
Mas, ao mesmo tempo requer aceitação da parte de quem o recebe uma tomada
de consciência das responsabilidades que essa função requer. Não podemos
discutir aqui o problema da vocação, de quem é o responsável para traduzir,
interpretar ou mediar, para o candidato ao sacerdócio, o chamado, quem chama,
para que chama, etc. Porém, uma coisa é certa: Nesse processo há necessidade de
mediação, como, por exemplo, promotor vocacional, formador, bispo, ou outra
pessoa, contanto que seja cristão comprometido com Jesus Cristo e seu projeto
de salvação. O decreto Presbyterorum ordinis, do Concílio Vaticano II – no n° 11
– declara que a “(...) missão sacerdotal, em virtude da qual o presbítero é feito
participante da solicitude de toda Igreja, para que jamais faltem na terra operários
para o povo de Deus.”
Ao colocar em evidência a dignidade do caráter sacerdotal e seu ministério,
fica claro que é necessário descobrir a essência do sacerdócio e a responsabilidade
que com ele se assume. Ousaria dizer que o sacerdote é um agente de santidade
de vida, de salvação, ainda que não seja o único a fazer isso. Para fazer frutificar
e consolidar a graça recebida, como sacerdote, é preciso ter algumas virtudes
básicas, como por exemplo, a humildade, a disponibilidade e abertura, para
se tornar cada vez mais alter christus. A humildade deve ser acompanhada do
esforço humano para crescer em Cristo, com Cristo e como Cristo. Eis a ascese, o
treinamento, a busca amorosa da meta sagrada para a qual Cristo chama.

Paulo, no seu discurso de adeus pronunciado em Mileto aos anciãos de


Èfeso, disse: “cuidai de vós mesmos e todo o rebanho de cuja guarda o espírito Santo
vos constituiu responsáveis, apascentai a igreja de deus que ele adquiriu para si com
seu próprio sangue” (At. 20,28). Paulo propunha a si mesmo como testemunho
para seus leitores: “Agora encontro minha alegria nos sofrimentos que suporto por
vós; e o que falta às tribulações de Cristo, eu o completo em minha carne em favor do
seu corpo que é a igreja” (Col 1,24), e ainda mandava um recado a Arquipo: “Atende
38 ao ministério que recebestes no Senhor e esforça-te por cumpri-lo bem” (Col 4,17).

Como foi apontado anteriormente, a sacralidade do ministério sacerdotal,


o fato de que o sacerdote tem a missão de lidar com o sagrado, exige dele
a necessidade, que nasce do seu ser sacerdote, dar o exemplo, como Paulo
propunha. Ele deve ser uma página viva do Evangelho, alguém que não sente
vergonha de Sua Mãe Igreja, ainda que tenha de sentir na própria missão o que
significa pertencer a uma Igreja onde se acotovelam santos e pecadores. Mas, é
preciso estar atento às palavras de Jesus:

“Na cátedra de Moisés sentaram os escribas (doutores) e fariseus.


Praticai o que ordenarem; não imiteis o que fazem; pois amarram
fardos e os põem nos ombros das pessoas, enquanto eles se negam a
move-los com um dedo. Gostam dos primeiros lugares nas sinagogas;
de serem saudados pelas pessoas na rua e serem chamados mestres”
(Mat, 23,2-7).

A fuga do orgulho, da vaidade e do egoísmo, é fundamental para que


os sacerdotes cristãos não repitam o triste exemplo dos escribas e fariseus. Não
a secularização, mas o secularismo tem causado grandes estragos na Igreja,
sobretudo após o Vaticano II.

Já no Antigo Testamento formara-se uma noção bastante clara da função


sacerdotal como dádiva de Deus, vista como uma herança muito agradável. O
sacerdote tem nas mãos a sorte que o salmista assim expressa: “Senhor, minha
herança e minha parte na taça, meu destino, o tens nas mãos. A sorte que me toca
é deliciosa, o quinhão que me coube é o mais belo” (Sl 16,5-6). Numa leitura cristã,
pode-se dizer que a vontade do Pai foi verdadeiramente para Jesus a porção de
herança e seu cálice (Sl 16,5-6; Mat 26,39). Desde o instante da encarnação até a
morte na cruz, a vida de Cristo é dominada pela única preocupação de atender
às coisas do seu Pai (Cf. Lc 2, 49). Essa colocação leva-nos a tomar consciência
da escolha amorosa de Jesus quando chama seus discípulos tratando-os de
amigos, e não de servos. Jesus deposita neles confi quando ordena que
façam o que ele fez (Cf. Lc 22,42), dá a eles o Espírito Santo e os envia (Jo 20,22).

5. CONHECER O REBANHO

O bom pastor deve conhecer o seu rebanho e ter com ele um


conhecimento amoroso autêntico. Não basta ser um efi te funcionário do 39
culto, um bom organizador; uma boa paróquia não é aquela que tem um fi io
perfeito, grupos ditos de pastoral bem organizados, festas rendosas. Dom Luiz
Colussi, bispo de Lins e alhures, já falecido, disse em uma aula inaugural, no
Studium theologicum, em Curitiba no ano de 1979, que uma “boa paróquia não
é aquele de fi perfeito, mas aquela paróquia onde o espírito se manifesta”,
aquela onde a seiva da caridade irriga seu corpo, cabeça e membros. Não só é
necessário conhecer o rebanho, mas também alimentá-lo com pão da Palavra e
o pão da Vida.

É necessário ouvir as ovelhas, conhecer suas necessidades, descobrir


seus males, limpar suas feridas, atinar com os remédios adequados. Não basta
servir-se da lã, do leite e da carne das ovelhas sadias deixando as doentes
perecerem, as perdidas sem rumo e não procuradas. faz-se necessário cuidar
do rebanho com os meios propostos por Cristo e ministrados pela Igreja, Mãe
do rebanho, lugar de encontro com Deus e sinal de salvação. Mas, infelizmente
há pastores que se benefi e se sustentam às custa do rebanho, sobretudo
das ovelhas sadias, e pisoteiam as enfermas e fracas.

Como se preparar para tão sublime trabalho? Como reacender a chama


da graça do sacerdócio e torná-lo apto para os ministérios cotidianos? Além
de ter-se presente a imagem do bom Pastor, sugerimos que sejam usados os
meios adequados para que a Palavra de Deus sempre esteja soando aos nossos
ouvidos. Essa palavra portadora de vida é efi como diz o profeta Isaías:
“Como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam mais para lá
sem ter embebido a terra, fecundando-a e fazendo-a germinar, para
que ela dê a semente ao semeador e o pão comestível, da mesma
maneira, a Palavra que sai da minha boca não retorna a Mim sem
resultado, sem ter feito o que Eu queria e conseguido o êxito na sua
missão” (Is 55,10-11).

Quanto aos meios específicos, a indicação prática foi dada por São Carlos
borromeu, no sermão proferido no último sínodo de Milão (século xVI). Nesse
sermão o Sato alerta o clero ambrosiano a respeito das fraquezas de todos e
propõe os meios para supera-las:

“Somos todos fracos, confesso, mas o Senhor Deus nos entregou


meios com que, se quisermos, poderemos ser fortalecidos com
facilidade. Tal sacerdote desejaria possuir uma vida íntegra, que dele
é exigida, ser continente e ter um comportamento angélico, como
convém, mas não se resolve empregar estes meios: jejuar, orar, fugir
40 das más conversas e de nocivas e perigosas familiaridades. Queixa-se
de que, ao entrar no cora para a salmodia, ao dirigir-se para celebrar
a missa, logo mil pensamentos lhe assaltam a mente e o distraem de
Deus. Mas, antes de ir ao coro ou à missa, que fez na sacristia, como
se preparou, que meios escolheu e empregou para fixar a atenção?
Queres que te ensine a caminhar de virtude em virtude e como
seres mais atento ao ofício, ficando assim, teu louvor mais aceito de
Deus? Escuta o que digo. Se ao menos uma fagulha do amor divino
já se acendeu em ti, não a mostres logo, não a exponhas ao vento!
Mantém encoberta a lâmpada, para não se esfriar e perder o calor,
isto é, foge, tanto quanto possível, das distrações; fica recolhido junto
de Deus; evita as conversas vãs.Tua missão é pregar e ensinar? Estuda
e entrega-te ao necessário para bem exerceres este encargo. faze,
primeiro, por pregar com a vida e o comportamento. Tua missão
é pregar e ensinar? Estuda e entrega-te ao necessário para bem
exerceres Não aconteça que, zombem de tuas palavras, abanando a
cabeça, vendo-te dizer uma coisa e fazer outra.Exerce cura de almas?
Não negligencies por isso o cuidado de si mesmo, nem dês com tanta
liberalidade aos outros que nada sobre para ti. Com efeito, é preciso
te lembrares das almas que diriges, sem que isto te faça esquecer da
tua. Entendei, irmãos, nada mais necessário aos eclesiásticos do que
a oração mental que precede, acompanha e segue todos os nossos
atos: Salmodiarei, diz o Profeta, e entenderei (cf Sl 100,1 Vulg.) Se
administras os sacramentos,ó irmão,medita no que fazes; se celebras
a missa, medita no que ofereces; se salmodias no coro, medita a que
e no que falas; se diriges as almas, medita no sangue que as lavou
e, assim, tudo o que é vosso se faça na caridade (1 Cor 16,14). Deste
modo, as dificuldades que encontramos todos os dias, inúmeras e
necessárias (para isto estamos aqui), serão vencidas com facilidade.
Teremos, assim, a força de gerar Cristo em nós e nos outro”. (Acta
Ecclesiae Mediolanensis, Mediolani 1599-1177-1178, Séc. xVI. Apud.
Liturgia das horas, 2000.)
São Carlos borromeu indicou com poucas palavras, não só os meios para
evitar ou superar as dificuldades, mas também deixou claro que esses meios
são elementos de crescimento espiritual para o pastor que deseja viver com
Cristo, como Cristo e não apenas para Cristo como mero funcionário do culto.
O cardeal francis Arinze, no mesmo trabalho acima citado, falando dos quatro
amores do sacerdote, destaca a importância primordial do hábito de freqüentar
assiduamente a Sagrada Escritura. Leiamos o que ele diz:

“A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto consignada


por escrito sob a inspiração do Espírito divino.”(Dei Verbum, 16).
“Deus, inspirador e autor dos livros de ambos o Testamentos, dispôs
sabiamente que o Novo ficasse oculto no Antigo, e o Antigo se
tornasse claro no Novo (Dei Verbum, 16)”.(Arinze, 2009)

Os sacerdotes devem amar as Sagradas Escrituras, que são para eles


alimento espiritual do dia a dia. O presbítero aprende da Igreja, como escreve o
Vaticano II: 41

“A igreja sempre venerou as divinas Escrituras como sempre venerou


o próprio Corpo do Senhor, e jamais deixou, sobretudo na sagrada
liturgia, de nutrir-se do pão da vida tanto na mesa da Palavra de Deus
como do Corpo de Cristo, e de oferece-lo aos fiéis” (Dei Verbum, 21)
(Arinze, 2009, p. 24).

Charles de foucauld, nos seus escritos, ou melhor, em um de seus


cadernos de reflexão, certa vez anotou uma espécie de diálogo com Jesus. Ele
perguntava a Jesus o que era orar. Jesus lhe respondeu: “rezar é olhar para mim
amando-me”. O sacerdote precisa ter uma vida de oração que seja uma conversa
amorosa com Deus. Nessa conversa é mais importante o que se deve ouvir do
que aquilo se tem a dizer. Não basta a oração feita no culto ou na celebração.
há necessidade de uma oração pessoal que embeba toda a vida do sacerdote,
uma vida com Cristo. A melhor maneira de se realizar essa intimidade com
Deus é ter presente a espiritualidade que Deuteronômio nos sugere. Por meio
dos reformadores deuteronomistas, sob o influxo do Espírito, lembravam a seus
contemporâneos que Deus asseguraria ao povo as benções divinas se fossem fiéis
aos mandamentos, caso contrário teriam de sofrer os castigos.

Uma advertência semelhante não deveria ser necessária, no entanto,


porque estes “estatutos, mandamentos e ordenações” não são um fardo pesado
imposto de fora; eles vêm de dentro, do mais fundo do coração, como se
pode ler no Deuteronômio que “porque esta lei que hoje te prescrevo não está
além de teus meios nem fora de tuas possibilidades... a Palavra está próxima de
ti; ela está na tua boca e no teu coração, para que tu a coloques em prática” (Dt
30,11.14)

Deus é um Pai que dá sua Palavra a Israel, uma palavra vivificante,


uma palavra que traz consigo felicidade e vida longa. É também uma
palavra que desvenda mistérios, segundo o Deuteronômio, pois “as coisas
escondidas pertencem a nosso Deus; mas as coisas reveladas pertencem a
nós e a nossos filhos para sempre, a fim de que coloquemos em prática todas
as palavras desta Lei” (Dt 29,28).

REFERÊNCIAS

42 ARINZE, fRANCIS Card. Reflexões sobre o sacerdócio: carta a um jovem padre.


São Paulo, Paulus 2009.

CONCíLIO VATICANO. documentos do concílio ecumênico Vaticano ii. São


Paulo: Paulus, 2001.

SãO JOAO CRISÓSTOMO. o sacerdócio. Vozes: Petrópolis, 1979.

JOãO PAULO II. exortação pós-sinodal, Pastores dabo Vobis: sobre a formação dos
sacerdotes.

LITURGIA DAS hORAS: SEGUNDO O RITO ROMANO. São Paulo: Vozes,


Paulinas, Paulus e Ave Maria, 2000.

RODERO, f. (org.) el sacerdocio en los padres de la iglesia: antología de textos.


Ciudad Nueva, s.d.

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