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Curso Integral - Revolucao Politica Inst
Curso Integral - Revolucao Politica Inst
Este curso parte de uma tese fundamental que talvez não devesse ser enunciada logo
de início. Talvez fosse melhor deixa-la aparecer em filigrana, aos poucos no interior
de um debate sobre a arqueologia do conceito moderno de revolução. No entanto, que
me perdoem, mas eu gostaria de colocá-la logo no início, mesmo que ela talvez
provoque uma sequência grande de mal-entendidos que só serão aos poucos
redimidos no período de um semestre. Pois talvez seja o caso de apresenta-la em sua
crueza, talvez essa crueza tenha mesmo uma razão de existência. Há coisas que só se
mostram em sua crueza e é possível que essa seja uma delas. A tese a ser defendida
diz que o conceito político de revolução tal como o entendemos atualmente é,
sobretudo, o resultado de um contágio entre política e estética. Nossa ideia de
revolução, esta ideia que aparece como tão decisiva para nossas concepções de
transformação social e política é, antes de tudo, uma ideia estética.
Uma maneira pouco producente de dizer isto seria afirmar que a revolução é
simplesmente um conceito estético, um pouco como alguns que afirmam ser a
revolução um conceito teológico, baseados em perspectivas messiânicas e em crenças
a respeito da Providência no interior da história. Pois isto poderia parecer que seria o
caso de afirmar que a revolução traz no seu bojo a possibilidade de alguma forma de
estetização da existência. É certo que a instauração produzida por uma revolução
efetiva não é sem consequências na mudança nas estruturas sociais da sensibilidade e
da percepção. Há uma mutação das condições do visível e o do sensível, uma
reinstauração do espaço e do tempo em toda revolução realiza. Não por acaso, uma
das primeiras decisões motivadas pela Revolução Francesa foi a mudança no
calendário, na forma de medir o tempo. Não por acaso a modernidade conhecerá
aqueles que exigirão uma “revolução total em toda sua maneira de sentir” 1, como
diria Schiller em sua exigência de reinstaurar vínculos sociais renovados a partir de
uma educação estética do homem.
Mas, na verdade, a questão que gostaria de insistir está em outro lugar.
Sabemos que uma revolução não é apenas uma mudança no governo ou na forma de
governar. Não se trata de simplesmente descrever a modificação nas figuras que
ocupam o poder, mas na própria definição do que “poder” realmente significa. A
queda de um rei, a instauração de uma república: nada disto é necessariamente uma
revolução. Por outro lado, mesmo que problemas como a pobreza e a radicalização de
crises econômicas possam fazer parte das dinâmicas de desencadeamento de uma
revolução, há de sempre lembrar que uma revolução não é apenas uma luta por
redistribuição de bens e riquezas, ou antes, ela o é apenas na medida em que tal
redistribuição aparece, de forma imanente, como a expressão da mutações estruturais
na gramática do poder. Podemos pensar em processos bem sucedidos de
redistribuição que não representam revolução alguma. Mas pode-se modificar tal
gramática do poder a partir de dois eixos fundamentais, a saber, a partir do conceito
de demos ou do conceito de kratos. Ou seja, pode-se pensar revoluções como a
emergência do demos à cena do político, a presença, pela primeira vez, daqueles até
1
SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, p. 129
então não-contados, aqueles aos quais não era dado existência política alguma. Neste
sentido, o conceito de “povo” aparece como o conceito político central. Ou pode-se
ainda pensar a revolução como a emergência de outro kratos.
Insistamos neste segundo aspecto porque nem todas as formas de emergência
do povo no interior da cena do político podem ser descritas como “revoluções”. Para
ficarmos em apenas um exemplo, o povo é também o conceito central dentro das
dinâmicas de consolidação do populismo em suas múltiplas vertentes. O populismo é
a constituição do povo como conceito político fundamental a partir de uma plebe até
então invisível no interior das dinâmicas do poder. Da mesma forma, o povo também
é o eixo central de todas as lutas por nacionalidade e nacionalismos, pela constituição
do Estado-nação em suas definições identitárias. Em nenhum destes casos podemos
falar em emergência revolucionária do povo.
Mas há algo que talvez possa servir de primeiro elemento de distinção da
revolução como processo político, a saber, toda revolução será a emergência de um
outro kratos, de uma outra concepção de força. Só uma revolução modifica a força
que anima o exercício do poder, não porque ela instaure a força em outros agentes,
mas porque ela desconstitui sua gramática. Ao modificar a força que define o
exercício do poder, uma revolução abre as possibilidades efetivas para a instauração
de novas formas de vida.
Por isto, talvez a melhor maneira de começar um curso sobre o conceito de
revolução seja lembrar mais uma vez do contexto do primeiro uso explicitamente
moderno do termo. Tudo indica que teria sido na noite de 14 de julho de 1789 quando
o duque de La Rochefoucauld-Liancourt informou a Luís XVI sobre queda da
Bastilha, a libertação dos prisioneiros e a vitória das forças populares contra as tropas
do rei. “É uma revolta!” teria dito o rei. “Não”, diz o duque, “É uma revolução”.
Naquele momento “revolução” significava algo irresistível e para além de toda
força humana, um pouco como os movimentos astronômicos. Pois sabemos como
“revolução” significava até então o movimento astronômico de corpos celestes que
giram em torno de um corpo de massa maior e voltam ao mesmo ponto, tal como em
um círculo (para Copernico) ou uma elipse (para Kepler). Copérnico foi o primeiro a
nomea-la assim através do seu “Da revolução das esferas celestes”, de 1543. Isto
permitira a Hobbes falar da Revolução Inglesa de 1640 a 1660: “I have seen in this
revolution a circular motion”. Como se o tempo histórico fosse fechado em si mesmo
e passível de repetição.
Mas naquele momento, a metáfora foi utilizada para falar de uma força que a
todos tragava, que levava os sujeitos a fazerem ações que eles sequer julgavam
capazes até então, que eles sequer haviam projetado como um horizonte próprio às
suas representações conscientes. Em uma revolução, as sociedades seriam
atravessadas pelo caráter incontrolável da força de algo que será chamado a partir de
então de “história” e que não se reduziria à somatória dos sistemas de interesses do
indivíduos ou da compreensão das consciência individuais. Tal como a força de
atração do Sol colocaria a Terra em movimento, a força de atração da história
colocaria os sujeitos em movimento à sua própria revelia. Não por outra razão,
alguém para quem a Revolução Francesa será o fenômeno decisivo dirá a respeito do
processo histórico:
Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo
outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles
realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece
no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção2.
Ou seja, a história é feita por ações nas quais os sujeitos não se enxergam, nas quais
eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que constitui
o campo da história. Ou melhor dizendo, há um motor da história que para a
consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do
inconsciente. É a confiança neste involuntário, neste inconsciente que constitui os
“sujeitos históricos”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há uma
espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da
história. Reconciliação peculiar na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão
daquilo que ela mesma não enxerga, pois se trata de reconciliação com aquilo com o
qual ela não saberia como dispor, não saberia como colocar diante de si em um
regime de disponibilidade. De certa forma, sujeitos históricos não estão sob a
jurisdição de si mesmos, pois estão continuamente despossuídos por suas próprias
ações. Não deveríamos falar de uma “consciência histórica”, mas talvez de um
“inconsciente histórico”.
A história seria pois o espaço da manifestação de uma força que destitui os
indivíduos de seu próprio domínio e esta destituição se realiza da maneira mais
acabada na eclosão de uma revolução. Por isto, esta força transmutaria os agentes,
modificaria as estruturas das deliberações, destituiria os lugares do poder. Como dirá
Reinhart Koselleck, estamos a falar de um “coletivo singular” que:
Permitiu que se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada
acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e
impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao
qual o homem pode acreditar–se responsável ou mesmo em cujo nome pôde
acreditar estar agindo3.
Mas poderíamos nos perguntar o que a noção de “plano” está a fazer aqui.
Seria mesmo um plano aquilo que parece muito mais nos abrir à deriva e ao
impredicado? Ou que há de plano e o que há de aposta em uma revolução? Se é
verdade, como dizia Jules Michelet, que “Toda revolução é um lance de dados”, então
o que há exatamente de “plano” em um lance de dados? Não deveríamos repensar os
filosofemas da decisão, da agência, por fim, da consciência diante dos processos
revolucionários? Neste sentido, é interessante lembrar neste contexto como alguém
como Hannah Arendt verá nisto um certo paradoxo:
Ipseidade, ser si mesmo, aparece aqui em uma declinação bastante significativa. Ela
aparece indissociável da capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, de
representar-se a si mesmo e de estar em assembleia na condição de quem conserva
para si sua própria força. O que pressupõe uma identidade fundamental entre a lei e o
caso, entre a representação e o representado, entre o estar junto e o estar em seu
próprio domínio. Identidade esta que tem uma origem, que se origina na sobreposição
não tematizada entre um fundamento metafísico e um exercício político.
Tentemos entender melhor este ponto. Insistir que a democracia é o espaço
social de manifestação da força de ser si mesmo significa entre outras coisas que, por
mais que uma sociedade democrática seja uma sociedade antagônica, caracterizada
pelo reconhecimento da produtividade de conflitos sociais, acreditamos normalmente
que a multiplicidade das perspectivas pode se incorporar em um demos, em um povo,
nem que seja expulsando parte da população da condição de povo. Esta multiplicidade
pode se incorporar em um demos, porque o desdobramento da multiplicidade é a
expressão de uma força que nunca sai de si mesmo. Em democracia, o povo é o nome
Tempo em ruptura
Pode parecer um paradoxo que a produção do novo seja feita sempre com recurso à
redenção do passado. Mas isto nos mostra como o tempo em ruptura da revolução não
é nem nunca será a anulação do passado. Ele será sua contração, a contração do tempo
em um tempo de atualização espectral que dá a cada gesto a densidade de um
multiplicidade de momentos.
O que nos permite colocar uma questão importante, a saber, o que significa
um tempo, como o nosso, para o qual o conceito de revolução parece ter perdido toda
relevância? Que tipo de tempo é o nosso no interior do qual esta contração produzida
pelas revoluções parece não ter mais lugar? Pois lembremos como, a partir dos anos
oitenta do nosso século, seu lugar central no processo de realização das expectativas
de emancipação social será cada vez mais questionado. Este abandono foi feito,
muitas vezes, em nome de análises históricas que apontavam para, em larga medida,
três fatores, a saber: a transformação dos processos revolucionário do século XX em
sociedades burocráticas, a inexistência atual de sujeitos políticos capazes de se
colocar como agentes naturais da ação revolucionária desde a integração da classe
trabalhadora do proletariado ao estado do bem-estar social; por fim, a dependência do
conceito de revolução em relação a uma filosofia da história de cunho teleológico e
necessitarista. Como se a revolução, como forma de insurgência, fosse indissociável
da perda de seu élan transformador, a partir do momento em que passasse à condição
de governo, ou indissociável de uma teleologia que destrói toda possibilidade de
acontecimentos em prol de uma filosofia do progresso histórico.
Mas argumentos historicamente situados desta natureza são limitados. Que as
primeiras realizações do conceito de revolução tenham se esgotado não implica que
estejamos diante de uma limitação imanente à potência do próprio conceito. Da
mesma forma que as primeiras atualizações do conceito de república demonstraram-
se falhas sem que o próprio conceito de república fosse, por isto, descartado. A
revolução é um conceito a ser construído a partir de sua revisão interna. Para além do
problema complexo da violência (até porque, há situações nas quais a insurreição
revolucionária tem violência direta meramente residual), deveríamos insistir no fato
de haver outra força que a revolução permite emergir e é isto que as teorias atuais da
democracia tem dificuldade em aceitar, ou seja, que na esfera do político a primeira
transformação necessária seja no conceito de “força”.
Não se trata apenas de pensar a revolução como emergência da força de outros
agentes que até então estavam em posição subalterna ou não-contada. Trata-se de
Mais do que simplesmente romper com o passado, a verdadeira questão posta pela
revolução é a capacidade de operar em um tempo plástico no qual nada está
- Logo o posto de guarda devem eles erigi-lo, ao que parece, nesse lugar : na
música / - Não é por aí que a inobservância das leis facilmente se infiltra
passando despercebida? / - É – confirmei eu – a modo de brincadeira, e como
quem não faz nada de mal. / - Nada mais faz, na realidade, do que introduzir-
se aos poucos, deslizando mansamente pelo meio dos costumes e usanças. Daí
deriva, já maior, para as convenções sociais; das convenções passa às leis e às
constituições com toda a insolência, ó Sócrates, até que, por último, subverte
todas as coisas na ordem pública e na particular10.
Notemos um ponto importante neste trecho. A força dada por Platão à música,
sua capacidade de deslizar por meio dos costumes até subverter todas as coisas na
ordem pública e particular é indissociável do que poderíamos chamar de sua ação
inconsciente. A música tem uma força de παρανομια, de estar fora do nomos, que se
desenvolve de maneira λανθανει, sem se fazer perceber, de forma furtiva. Daí porque
são as fronteiras da música que a polis deve primeiramente controlar se não quiser ser
tomada por subversões. Muito mais do que limitar a circulação de certos efeitos
morais na cidade, há um problema mais fundamental vinculado à música enquanto tal.
Pois trata-se de impedir que ela se desenvolva como força do que não se controla. Se
a educação precisa contrabalançar a música pela ginástica, operando pela
Estrutura do curso
Neste sentido, a fim de levar a cabo o projeto de pensar os processos de contágio entre
revolução política e instauração estética, proponho um curso que tem três módulos
nos quais será questão de três momentos da relação entre revolução política e
instauração estética: o iluminismo francês, o pensamento revolucionário marxista com
seus vínculos com o romantismo e a relação entre modernismo e revolução no século
XX. Cada um desses módulos deve durar algo em torno de quatro seminários.
No primeiro módulo, será questão da relação entre estética e política no
iluminismo francês. Acompanharemos a constituição da noção de “tempos modernos”
desde a querela dos antigos e modernos e chegaremos às críticas de Rousseau à
alienação da sociedade moderna (“Ensaios sobre a origem das línguas”), assim como
a defesa do progresso feita por Condorcet (‘Esboço de um quadro histórico dos
progressos do espírito humano”).
No segundo módulo, será questão das relações entre romantismo e revolução.
Começaremos pela consolidação da filosofia da história em Hegel (“Curso sobre a
filosofia da história- introdução”) e trabalharemos os Manuscritos econômicos-
filosóficos e o 18 do Brumário, de Marx. A ideia fundamental é defender não apenas
o paradigma estético como horizonte fundamental de crítica à alienação em Marx, um
pouco como já se fez (Habermas, Alfred Schmidt), mas tentar expor as matrizes
estéticas do conceito de sujeito revolucionário em Marx. Isto exigirá uma discussão a
respeito da constituição da noção de proletariado, para além de sua descrição como
classe sociológica dos trabalhadores que não tem nada mais que a possibilidade de
venda de sua força de trabalho como mercadoria. Conto fazer isto através da operação
a mais improvável possível, ou seja, recuperando o desenvolvimento de certos
princípios formais de construção no romantismo musical e em suas categorias de
expressão, de sublime e de autonomia.
Por fim, o terceiro módulo será dedicado às relações entre modernismo e
Revolução Russa. O texto a ser lido é “Estado e revolução”, de Lenin, além de
discussões sobre o construtivismo e o suprematismo.
Revolução política, instauração estética
Aula 2
Ou seja, seriam nossos padrões estéticos uma mera repetição do que teria sido
produzido na Antiguidade greco-romana ou a comparação entre o século de Luís XIV
e o século do imperador romano Augusto nos permitiria colocar questões a respeito
do progresso das técnicas e do aperfeiçoamento do juízo de gosto? Pois se o segundo
caso for correto, então nada nos impede de avaliar as artes da antiguidade a partir de
padrões de perfeição próprios ao presente, isto ao invés de perpetuar o caminho
inverso:
Não foram poucos os que perceberam que por trás desta questão apresentava-
se pela primeira vez, de forma sistemática, a emergência de um tempo histórico que
deveria retirar de si mesmo seus próprios padrões de validade e certificação. A
querela não versava sobre a aparência de anãos dos filhos de Laocoonte, mas sobre a
possibilidade de submeter o passado aos critérios de validade do presente. Ou antes,
de compreender o presente como um tempo de ruptura em relação aos padrões de
repetição do passado. Não mais um círculo, o tempo poderia ser visto como uma
Poderíamos então começar por se perguntar pela razão pela qual será
exatamente no campo da crítica estética que pela primeira vez as sociedades
ocidentais tomaram consciência do problema de uma fundamentação da modernidade
a partir de si mesma. Que tipo de exigência o campo da estética porta que lhe fez o
mais apto, dentre os múltiplos setores da praxis social, a sentir as pressões de auto-
fundamentação do presente? Ou seja, porque a estética desencadeia uma dinâmica de
transformação da experiência social do tempo?
Admitamos que esta consciência da modernidade está vinculada a uma
articulação entre validade e reflexão. Se o tempo pode deixar de ser um continuum no
interior do qual o passado define as coordenadas de validade do presente, no interior
do qual a história não é outra coisa de historia magistra vitae, é porque não serão
mais as tradições, os hábitos e as relações estabelecidas de autoridade que poderão
ditar as coordenadas de validade do presente. Esta crise expressa a emergência
paulatina da reflexão subjetiva como critério de validade. Só poderá ter validade
aquilo que colocar-se como apreensível em sua necessidade no interior da auto-
reflexão do sujeito. Uma certa noção de auto-legislação emerge como consciência da
afirmação da liberdade em relação ao que aparece como conformação a
determinações exteriores. Dai porque a tópica da autonomia será tão decisiva para a
constituição da auto-consciência da modernidade. Uma autonomia cujo exercício terá
como espaço inicial da produção artística. A assunção da autonomia redimensiona o
tempo histórico ao produzir um sistema de rupturas com as estruturas sociais de
repetição de padrões gerais de conduta e julgamento.
Entendamos melhor este ponto. Podemos afirmar que o motor dos processos
de consolidação da noção moderna de revolução está na transformação da exigência
de liberdade como fator central de lutas sociais. Faz parte das tensões da modernidade
a afirmação de uma dupla inscrição temporal da liberdade. Ou ela aparece no
horizonte de uma recuperação de experiências originárias ligadas a laços sociais como
as primeiras comunidades cristãs e a polis grega ou ela aparece como a projeção de
um destino nunca antes realizado e que, por isto, pressiona o tempo em direção à sua
aceleração. De fato, as Revoluções se compreenderão ou como a atualização de
experiências originárias ou como projeção em direção ao não realizado. Neste caso, a
exigência de liberdade tem a capacidade ser compreendida como traço distintivo da
Como diria Engels, tudo se passa como se a Reforma tivesse uma dupla face.
Lutero e Calvino significariam a consolidação de um quadro social de uma burguesia
em ascensão contra o poder central do papado. Mas reformadores radicais como
Thomas Müntzer seriam a vertente proto-proletária da Reforma. Daí porque
poderíamos afirmar que tais revoltas exprimem a energia negativa das classes
subalternas que recusam as estruturas prévias do poder a fim de estabelecer como
princípio uma nova forma de existência, uma realização imediata do Reino de Deus
na qual: “Toda propriedade deve ser comum e distribuída a cada um de acordo com
suas necessidades, de acordo com o que a ocasião requeira” 23 . As exigências
camponesas de fim das relações feudais e de servidão, diminuição dos impostos sobre
a terra e a liberdade para caçar nas florestas da nobreza exprimiam um horizonte
claramente revolucionário de igualdade radical baseada na ressurgência do modelo
das primeiras comunidades cristãs.
O milenarismo de Müntzer com sua defesa da realização imediata do Reino
dos céus na Terra implica uma aceleração do tempo em direção ao seu fim. Pelas
mãos das revoltas camponesas, o tempo histórico de espera da redenção se esgota. O
tempo se realiza através da revolta. Neste sentido, se é verdade, como dirá Reinhardt
Koselleck, que o tempo na modernidade é caracterizado, principalmente, pelo
O paradigma musical
Em seu texto sobre o século de Luís XIV, Charles Perrault tece vários
comentários a respeito das linguagens artísticas como o teatro, a poesia e a pintura.
Em todos esses casos, sua defesa é de que os modelos modernos em nada tem a temer
em relação aos antigos. No entanto, algo muda quando é questão da música:
25 (WEBER, Fundamentos..., p. 86
26 WEBER, idem, p. 82
pode ser limitada devido à influência da dinâmica da fala e do recitativo. A
“legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de
sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo
mágico-religioso. Pois, enquanto estiver submetida a uma fins práticos-finalistas, a
música estará impossibilitada de desenvolver-se a partir das exigências do material
musical. Ao contrário, ao vincular-se a funções e textos sagrados: “a estereotipização
dos intervalos sonoros, uma vez canonizados por alguma razão, será
extraordinariamente intensa”27. A “legalidade própria” da esfera musical só pode se
dar, assim, através do abandono de sua ligação, de um lado, com a linguagem
prosáica e ,de outro, com o fetichismo mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do
material musical é solidária do abandono de todo princípio mimético na
racionalidade do fato musical. Note-se que a música aparece como espaço
privilegiado para a reflexão sobre este tipo de racionalização devido ao seu caráter
eminentemente não-figurativo e resistente a processos de conceitualização28.
Mas para que a música conquiste sua esfera de legalidade própria (e esta é a
segunda característica da racionalização do material musical no ocidente), ela deve
trazer, na sua lógica interna das relações sonoras, o seu próprio critério de
desenvolvimento e de julgamento. Para tanto, Weber precisa passar a um conceito
positivo de racionalidade. O que significa expor como o material musical pode ser
“dominado pelo cálculo”, ou seja, como ele pode ser racionalizado ao submeter a uma
razão matemática. Isto Weber encontra ao analisar a estrutura do sistema tonal como
sistema global de organização do material sonoro a partir de regras harmônicas de
inspiração físico-matemática.
O que interessa Weber é o fato de que, através de regras gerais de cálculo
viabilizados pelo temperamento igual da escala cromática, a harmonia da música
moderna estabelece procedimentos gerais de desenvolvimento, de progressão e de
organização do material sonoro. Assim, se é verdade que uma esfera social de valor
será mais racional na medida em que ela estabelecer seus processos de valoração
através de um plano sistêmico de organização, plano que tira de si mesmo sua própria
certificação, então é com a consolidação do sistema harmônico tonal que a música
entra na modernidade.
Este é um ponto fundamental: a racionalidade do fato musical, para Weber, é
fundamentalmente vinculada à sua dimensão harmônica. O que significa um
posicionamento, não sem conseqüências, em relação a um longo debate que teve lugar
no interior da história da estética musical. De fato, vale para Weber o que Rameau já
tinha afirmado em 1722: “Música é geralmente dividida em harmonia e melodia, mas
a última é meramente uma parte da primeira e um conhecimento de harmonia é
suficiente para um entendimento completo de todas as propriedades da música” 29. Ou
seja, a dimensão harmônica é a única a responder pela racionalidade do fato musical e
de seus processos internos de criação de sentido.
De fato, Weber admite que a dimensão harmônica é a única a responder pela
racionalidade do fato musical e de seus processos internos de criação de sentido. No
entanto, a especificidade da música ocidental não está na ausência de elementos
irracionais, mas na possibilidade de antecipar e resolver tais elementos, integrando-os
27 WEBER, idem, p. 86
28 Por outro lado, esta maneira de pensar a autonomização da esfera musical através da negação
de todo vínculo com a linguagem prosaica provoca uma aproximação inusitada entre Weber e a
temática romântica da música absoluta.
29 RAMEAU, Traité de l’harmonie, capítulo um
no interior da própria racionalidade da forma musical. Por isto, Weber pode atrelar a
dimensão expressiva da melodia a um princípio de irracionalidade (resíduo mimético
na música) sem que o protocolo geral de racionalização seja colocado em questão.
Depois de reconhecer que : “A melodia, no sentido geral do termo, é sem dúvida
condicionada e ligada harmonicamente, mas não pode mesmo na música de acordes,
ser deduzida harmonicamente” Weber afirma finalmente que: “Não haveria música
moderna sem estas tensões derivadas da irracionalidade da melodia, já que elas
constituem precisamente seus mais importantes meios de expressão” (Weber 29, p.
60). Pois é racional um sistema que aceita um elemento que o negue, desde que tal
elemento possa ser antecipado, preparado e resolvido. Como dirá Schoenberg em seu
Tratado de Harmonia: “introduzir cautelosamento [a dissonânica] e resolver
sonoramente: eis aqui o sistema! Preparação e resolução são, portanto, as duas
cobertas protetoras que vai cuidadosamente empacotada a dissonância para que não
recebe nem ocasione danos”30.
Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por assim
dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é
um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual tal indivíduo
recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a constituição do homem
para reforça-la; de substituir uma existência física e independente que todos
recebemos da natureza por uma existência parcial e moral33.
História da queda
36 Idem, p. 142
37 STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
38 Idem, p. 23
39 ROUSSEAU, Idem, p. 171
A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na
cooperação dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta
prévia contra situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra a
imanência à natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade imediata. Por
outro lado, o estabelecimento de relações de trabalho e produção se funda em
tendências imanentes de exploração e dominação. Pois, com as relações de produção,
não estamos apenas a falar do advento da propriedade, mas principalmente do
reconhecimento da importância da sanção do outro, a necessidade de reconhecimento
do outro como condição para a justificação de minha atividade. Isto é indissociável,
para Rousseau, do avento de um ser-para-outro que implica perda de si. Assim,
Rousseau espera articular de forma profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda de si
já que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da origem, isto
devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida social implica
dependência e esta dependência leva os homens a garantir a estima dos outros, a
cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles se tornam então:
“enganadores e artificiais” 40 ao submeterem seus desejos a demandas de
reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência do desejo de
reconhecimento:
40 Idem, p.173
41 Idem, p. 169
construir uma forma compensatória de autonomia baseada na emergência de uma
vontade geral. É desta forma compensatória que fala O contrato social.
Um corpo político
Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um corpo que não tem a
configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se concentra, de maneira
indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há uma soberania a animar o
corpo político de Rousseau, mas se trata de uma soberania popular que tem no espaço
da assembleia popular sua expressão máxima. Esta assembleia é expressão de um
princípio de igualdade moral ou política fundamental. Desta forma, Rousseau espera
poder instaurar uma totalidade social baseada na igualdade como virtude que modera
os apetites e nos afasta do caráter egoísta dos interesses. Como vimos, este corpo
político é uma espécie de suplemento a um outro corpo perdido, a saber, a natureza
como uma espécie de corpo nômade no qual os indivíduos podiam circular em
imanência.
Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de um
corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não é a
somatória de vontades particulares, ou seja, uma vontade de todos. Ela é a expressão
de um desejo de liberdade e de igualdade baseado, inicialmente, na ideia de auto-
legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral permite a
constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de defender e
proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, mas principalmente
defender-se do próprio poder, defender-se dos efeitos de usurpação do poder quando
alienamos a soberania popular a um outro, seja ele um príncipe, seja qualquer forma
de representante. Por isto, Rousseau dirá que o povo não obedece a um soberano, ele
não passa alguma espécie de contrato com ele. Na verdade, o povo se manifesta
através do exercício da soberania. Ele pode derrubar governos, ele deve ratificar leis,
ele se reúne em assembleia, ele não tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe
representa o povo, pois a soberania não é algo que possa ser representado sem ser
perdido. Neste sentido, deputados e príncipes são apenas “comissários” do povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que lhe
formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o homem
perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que
lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade
de tudo o que ele possui”42. Notemos a estrutura da retórica de Rousseau. Sabendo
que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis soterrada pelo processo
civilizacional, Rousseau quer realizar uma liberdade que ainda signifique
pertencimento de si apelando a uma lógica própria às individualidades proprietárias:
veja quanto se perde e quanto se ganha; deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas
ganhamos a segurança da propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau:
43 Idem,
44 Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau
com freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas
avalie, em compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de
otário?” In: A filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos
entrar no contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que
compõem a “pessoa pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas
continuam portanto a desfrutar um direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode
infligir aos súditos nenhuma que seja inútil à comunidade” (idem, p. 230).
45 ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392
46 ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
natureza em nós, mas é condição para que a cristalização de uma falsa natureza seja
deposta.
Tal vontade será o predicado fundador da humanidade do humano, isto a
ponto dela ser inalienável. Por isto, não é possível representar a vontade, não há
governo a partir da representação. Quando um povo se dá representantes ele não é
mais livre, ele deixa de ser um povo:
A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não pode ser
alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se
representa: ela é a mesma ou ela é outra, não há meio termo47.
Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos para a
imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a metáfora do corpo
político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu” no sentido que posso
dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu. Um corpo não se submete à
minha vontade como esta cadeira se submete enquanto objeto. Mesmo sendo espaço
da minha subjetividade, um corpo sempre me faz me confrontar com o que não
controlo e com o que me constitui sem me ser imediatamente próprio. No entanto,
esta exterioridade do corpo ao sistema de afirmações individuais é a instituição da
aderência a uma generalidade que constitui outra forma de existência. Existir como
um corpo é sempre existir como mais do que mim mesmo.
Música e reconhecimento
O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá
alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos
perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança da própria
natureza humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A vida política
parece não pode dar conta desta nostalgia. No máximo, ela transmuta a experiência de
auto-pertencimento própria ao estado de natureza em desejo de igualdade (forma
única de impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala
aos humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade
possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da
natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de
pura presença. A política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à
voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da
música como paradigma para a reinstauração da ordem social.
47 Idem, p. 429
48 Idem, p. 381
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao
primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da
teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia
contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de
estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria
extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado
da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista
que Dahlhaus caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado
pela música, um racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música
instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa
e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética
musical de Rousseau”49.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia,
sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere
aos modos de imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre
sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação entre música e a expressão
natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permitia vincular a
música à uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por
recuperar o vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do que diz Rousseau :
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes,
achando esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos
séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma
tenha conhecido esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na
natureza produziu outro acorde que o uníssono ou outra músical que a
melodia ; que as línguas orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com
tanta arte, nunca guiaram estes povos voluptosos e apaixonados em direção à
nossa harmonia ; que sem ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ;
que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos
povos do norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos
e explosões de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras da
arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não
desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a
respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis as
verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 50.
a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas
no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que
torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza quando
colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem
que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54.
As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um,
elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela
que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima
do canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia
sem música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um
mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em
assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das
estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o
mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das
paixões. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de
expressão, fazer dela ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de
Da virtude ao terror
67 BURKE, Edmund; An appeal from the new to the old Whigs, p. 475
68 ARENDT, Hannah; Sobre a revolução, p. 128
69 LOSURDO, ibidem, p. 162
o momento da liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade do
sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição pois
liberdade que não reconhece nenhuma possibilidade de sua institucionalização, que vê
todo direito como perda da espontaneidade livre do entusiasmo revolucionário e que,
por isto, se volta contra tudo que procura determiná-la, contra todo governo. Como
Hegel dirá na Fenomenologia do Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se
chama governo é apenas a facção vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a
necessidade de sua queda, ou inversamente, o fato de ser governo o torna facção e
culpado”70. Afinal, o terror jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitária
do Estado contra setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ela foi o
movimento autofágico de destruição da sociedade e de auto-destruição do Estado, isto
até o momento em que os próprios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo. Neste
sentido, ele se difere de outra figura do terror revolucionário: o stalinismo. Aqui,
temos a constituição de um aparelho de violência estatal legitimado pela violência
revolucionário e que se volta, de forma constante, contra a sociedade e setores do
próprio Estado. No entanto, ele garante a perpetuação de um núcleo dirigente
sustentado pela figura de um déspota, o que não é o caso no jacobinismo.
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel não deixa de salientar que
este momento negativo da liberdade é um momento necessário da história do Espírito.
Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende por “liberdade
negativa”. No parágrafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a seguinte afirmação:
70 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97. Como dirá Charles
Taylor: “a maldição da vacuidade assombra também este projeto. Sua meta não é fundar a
sociedade em nenhum interesse particular ou princípio positivo tradicional, mas fundá-la
somente na liberdade. Isso, porém, sendo vazio, não proporciona uma base para uma nova
estrutura articulada da sociedade. Apenas prescreve à destruição das articulações existentes e de
quaisquer novas articulações que ameacem surgir” (TAYLOR, Charles; Hegel e a sociedade
moderna, Belo Horizonte: Loyola, 2005, p. 103)
71 HEGEL, par. 5
da contemplação pura dos hindus, mas, volvendo-se para a efetividade, torna-
se, no domínio político, assim como no religioso, o fanatismo do
destroçamento de toda ordem social subsistente, e a eliminação dos indivíduos
suspeitos a uma determinada ordem, assim como, o aniquilamento de toda
organização que queira novamente vir à tona. Somente quando ela destrói algo
é que esta vontade negativa tem o sentimento de sua existência.
No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do querer
humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda determinação
posta. Por isto, ele deve insistir que :
Devemos recompor o contexto histórico que leva Hegel a ver nesta liberdade negativa
uma determinação essencial. Lembremos, como Hegel compreende a modernidade
como o momento histórico no qual o espírito "perdeu" a imediatez da sua vida
substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em
um poder capaz de unificar as várias esferas sociais de valores. Ou seja, a
modernidade aparece aqui como época na qual a liberdade levou à perda dos vínculos
substanciais com formas partilhadas de vida. Daí a ideia de que ela produziria um tipo
de sentimento onde a experiência subjetiva da indeterminação aparece como saldo dos
processos de socialização.
Não deixa de ser provido de interesse lembrar que a compreensão de que a
liberdade moderna exige um momento de liberdade negativa pode ser encontrada já
em Descartes, ao menos se nos fiarmos em Sartre. Como ele mesmo dirá, a respeito
da transcendência cartesiana:
verdadeiro” (323, § 595), fosse preciso que ela passasse pela tentativa da sua realização política e
pela experiência do seu impasse e da sua autodestruição no Terror”. (MÜLLER, Marcos; A
liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror, mimeo).
74 A este respeito, ver os dois primeiros ensaios de ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética,
76Ver, a este propósito as relações entre criação contínua e tempo descontínuo em WAHL, Jean;
Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920.
Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe
disso77.
A crítica da duração
Em suas Lições sobre a filosofia da história, Hegel termina por apresentar sua
conhecida interpretação a respeito da Revolução Francesa. Segundo tal interpretação,
o iluminismo teria produzido um princípio de emancipação ligado à força de
abstração do pensamento em direção à apreensão da estrutura racional do mundo. Tal
força permitiria a intelecção de princípios absolutos formais que, quando aplicados ao
campo do político, nos levariam ao desvelamento da vontade como princípio
fundador do poder. Ou seja, a vontade aparece como princípio social fundador. Uma
vontade que, compreendida em si mesma, é vontade de liberdade: “A vontade
absoluta é isso, querer ser livre”78. A liberdade da vontade será vista como o único
fundamento possível de todo direito.
Neste sentido, lembremos como: “a vontade é o dispositivo que deve articular
conjuntamente ser e ação” 79 . Uma vontade que deve unificar aquilo que aparece
irremediavelmente cindido, que não parece ter uma relação imanente e que, por isto,
será sempre vista como a manifestação potencial de um princípio negativo, sem arché,
anárquico.
Ao se perguntar sobre como a vontade livre poderia se determinar, Hegel
indica dois caminhos. Esses dois caminhos lhe servem para explicar porque não teria
havido Revolução política na Alemanha. O primeiro desses caminhos diz respeito ao
impacto do protestantismo na remissão das leis, costumes e hábitos ao princípio de
subjetividade. A remissão protestante da salvação à fé, a livre interpretação da Bíblia,
a possibilidade de revelação da palavra à interioridade de cada crente são processos
compreendidos por Hegel como dinâmicas de racionalização da vida social em
direção a institucionalização social da vontade livre. Na Alemanha protestante, este
caminho teria permitido a uma reconstrução da interioridade livre que elevaria a
filosofia própria ao idealismo como a forma máxima da realização social da liberdade.
77BENJAMIN, Walter; “Sobre o conceito de história”, in Obras Completas, v.1: Magia e técnica, arte
e política, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 223.
A temporalidade concreta
A eternidade não está nem antes nem depois do tempo, nem antes da criação
do mundo, nem depois do mundo passar. A eternidade é o presente absoluto, o
agora sem antes e depois80.
De fato, o tempo hegeliano, enquanto aquilo que não sendo, é, e enquanto aquilo que
sendo, não é, ignora a presença absoluta, tal como poderíamos encontrá-la, por
exemplo, no tempo instantaneísta cartesiano, este sim um tempo de pura presença por
desconhecer potência e ser plenamente ato 81 . Mas uma eternidade que supera o
tempo, conservando-o - ou seja, recusando uma negação simples do tempo e de suas
latências -, também não poderá estabelecer o presente absoluto como presença
absoluta. Presente absoluto é a expressão da temporalidade concreta, expressão de
como “o presente concreto é resultado do passado e está prenhe de futuro” 82 .
Podemos procurar compreender sua estrutura se partimos de uma importante
afirmação de Hegel, segundo a qual
Mas o fato de não haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora,
acontecimentos serão desprovidos de história ou a história será desprovida de
acontecimentos. Não há nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se
tornar possíveis, já que relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um
mesmo processo em curso. De certa forma, “a história chega por fim à sua essência
propriamente dita”85 transformando-se na cena da luta pela liberdade. Neste sentido,
podemos lembrar do que está pressuposto na própria construção hegeliana do conceito
de “história universal”, desta história que é o progresso na consciência da liberdade e
que se realiza de forma tão acabada através da noção de Revolução.
A aceitação de algo como uma “história universal” parece implicar que a
multiplicidade de experiências históricas e temporais deva se submeter a uma medida
única de tempo. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da
definição da história como “coletivo singular”. Definição que teria permitido que:
84 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in
der Geschichte, Hamburgo : Felix Meiner, 1994, p. 33
85 GADAMER, Hans-Gerg; Hegel, Husserl, Heidegger, Petrópolis: Vozes, 2012
86 KOSELLECK, idem, p. 52
Parece ser de fato algo desta natureza que Hegel teria em mente ao falar do espírito do
mundo como “alma interior de todos os indivíduos”, como um corpo social unificado
na multiplicidade de seus espaços nacionais pela força da Providência.
No entanto, a figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo simultâneos e
passados, não permite pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral
unívoco a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de
um tempo definido como a relação entre tempos que são incomensuráveis sem ser
indiferentes entre si. Tal concepção de tempo não é sem relação com o fato dos
espaços nacionais animados pelo espírito do mundo não poderem, segundo Hegel, ser
submetidos a um plano comum de paz eterna, já que o campo das relações entre os
espaços nacionais está sempre sujeito a decisões soberanas marcadas pela
contingência. Os espaços nacionais que compõem a história universal entram em
relação sem garantia alguma de paz e estabilidade87.
Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes
interpenetram-se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da
universalidade produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato
da produção capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em
“história universal” implica simplesmente defender que temporalidades
incomensuráveis não são indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades
incomensuráveis significa abertura constante àquilo que não se submete à forma
previamente estabilizada do tempo, o que faz da totalidade representada pela história
universal, do presente absoluto que ela instaura, uma processualidade em contínua
reordenação, por acontecimentos contingentes, da forma das séries de elementos
anteriormente postos em relação. Daí sua plasticidade cambiante.
Glorificar o existente
87 Cf. a conhecida crítica de Hegel à paz perpétua de Kant em HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der
Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, par. 333
88 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
89 Idem, p. 266
Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o
caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da
história. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensível para si
mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus
dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo
que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo se
confundiriam com a sua própria existência berlinense90
Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo
outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles
realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece
no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção92.
Ou seja, a história é feita por ações nas quais os homens não se enxergam, nas
quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que
constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um motor da história que para a
consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do
inconsciente. É a confiança neste involuntário, neste inconsciente que constitui os
“homens históricos”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há
uma espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da
história. Reconciliação peculiar na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão
daquilo que ela mesma não enxerga, pois se trata de reconciliação com aquilo com o
qual ela não saberia como dispor, não saberia como colocar diante de si em um
regime de disponibilidade. De certa forma, homens históricos não estão sob a
jurisdição de si mesmos, pois estão continuamente despossuídos por suas próprias
ações (e, a sua maneira, poderíamos dizer que Hegel leva ao extremo esta
contradição: ser despossuído pelo que me é próprio).
Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por uma vida passada, forte e rica?94.
Ruínas, cuja descoberta aparece agora inicialmente como signo de melancolia. Uma
melancolia que parece expressar fixação em um passado arruinado que aparentemente
poderia ter sido outro, deveria ter permanecido em seu esplendor. Fixação que
desqualifica o existente por pretensamente não estar à altura das promessas que as
ruinas das grandes conquistas um dia enunciaram. O que poderia esta melancolia
produzir além do circuito da perda e da reparação, além da crença de que a
transitoriedade nos revela o sofrimento de nossa vulnerabilidade extrema diante da
contingência e do gosto amargo do presente? Ainda mais se lembrarmos que “a
história universal não é o lugar de felicidade”. Posição melancólica na qual a rejeição
do existente (o que poderia ter sido o presente se Cartago, Palmira, Roma não
tivessem tal destino?) pode facilmente se transmutar em acomodação conformista
com o que é.
Contudo, é para nos livrar da fixação melancólica no passado, abrindo uma
processualidade retroativa, que o conceito trabalhará. Daí porque, no mesmo trecho,
93 Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op. cit.; ARANTES,
Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Gérard; L’envers de la dialectique, op. cit..
94 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in
Sabemos que é este trabalho de luto que estará profundamente associado ao conceito
de Revolução, ao menos se seguirmos as considerações de Benjamin:
Isto mostra como a Revolução é comparada a um certo trabalho de luto que não opera
por mera substituição do objeto perdido, mas que é produção de uma certa forma de
existência espectral. Uma existência espectral que, longe de ser um flerte com o
irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força as determinações
presentes através de ressonâncias temporais 97 . Por não ser a mera história dos
vencedores, mas por ser a ressureição dos vencidos. Daí porque: “a consciência de
destruir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no momento de
sua ação” 98 . Esta destruição do contínuo é a confirmação de uma outra forma de
existência e de presente: “um presente que não é passagem, mas no qual o tempo se
fixou e parou” porque ele contraiu todos os outros tempos em um só instante.
Como Derrida compreendeu bem, a respeito de Marx: “A semântica do
Gespenst assombra a semântica do Geist”99. Esta proximidade, à sua maneira, vale
também para Hegel. Pois a existência do Espírito é descritível apenas em uma
linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma espessura
espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado à
desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma
metamorfose contínua. Metamorfose que Hegel não temeu ao encontrar sua primeira
elaboração imperfeita na representação oriental da transmigração das almas
(Seelenwanderung) 100 . Nada melhor que o Espírito hegeliano mostra, mesmo que
Derrida não queira aceitar, como:
GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo:
Editora 34, 2014
98 BENJAMIN, Walter, idem, p. 18
99 DERRIDA, Jacques; Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993, p. 175
100 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit., p. 35
Se há algo como a espectralidade, há razão para duvidar desta ordem
asseguradora de presentes e sobretudo desta fronteira entre o presente, a
realidade atual ou o presente do presente a tudo o que podemos lhe opor: a
ausência, a não-presença, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou
mesmo o simulacro em geral, etc. Há de se duvidar inicialmente da
contemporaneidade a si do presente. Antes de saber se podemos diferenciar o
espectro do passado e este do futuro, do presente passado e do presente futuro,
faz-se necessário talvez perguntar se o efeito de espectralidade não consistiria
em desmontar tal oposição, mesmo tal dialética, entre o presente efetivo e seu
outro101.
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos
homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo
medidas e segundo medidas apagando-se104.
103 No que é impossível não concordar com a colocação precisa de Rebbeca Comay, segundo a
qual “Apagamento, não comemoração, é a última palavra da Fenomenologia do Espírito – ao
mesmo tempo sua promessa iconoclasta e seu vazio (blank) repressivo. Tal vazio é ambíguo: ele
testemunha tanto a abertura radical ao futuro quanto o apagamento das oportunidades perdidas
do passado” (COMAY, idem, p. 149). Mas só se rompe tal ambiguidade apostando em um dos
pólos.
104 HERÁCLITO; Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro: Odysseu, 2012, p. 135
Revolução política, instauração estética
Aula 6
KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkraft, Hamburg: Felix Meiner, 1988 p. 154
105
Sobre o conceito de música absoluta, ver o clássico DAHLHAUS, Carl; Die Idee der absoluten
106
Musik, Bärenreiten, 1989; GOHER, Lydia; The imaginarian museum of musical works, Claredon
absoluta” designa a ideia, profundamente romântica, segundo a qual a música
instrumental, desprovida de textos, programas e funções específicas, distante da
mimesis e da representação, realiza a essência absoluta da experiência musical. Trata-
se, com isto, de vincular a racionalidade musical à autonomização da esfera da música
em relação a uma origem na qual o sentido do fato musical não estaria em si mesmo,
sentido advindo dos modos de organização funcional do material, mas seria
dependente da função da música no interior de rituais ou na sua subordinação em
relação a textos recitados ou cantados: subordinação da linguagem musical à palavra.
Desta forma, a música instrumental seria um modo privilegiado de formalização
daquilo que não se deixa expressar diretamente, que seria “qualitativamente contrário
ao conceito”, já que a linguagem musical diria aquilo que a linguagem prosaica não
saberia dizer sem produzir determinações particulares vinculadas à indexação do
mundo dos objetos107.
Dentre várias questões produzidas por esta operação decisiva, notemos
inicialmente a natureza política da decisão romântica em trazer o conceito de sublime
para o centro da experiência estética. Não é um mero acaso que a temática tanto do
sublime quanto da autonomia da forma musical ganhará força exatamente após a
abertura do campo político na Europa pós-Revolução Francesa. A possibilidade de
uma linguagem para além dos limites cognitivos da representação aparecerá como
expressão maior de uma subjetividade capaz de deixar para trás as convenção, as
estruturas de percepção ligadas ao senso comum e ao hábito. Neste contexto, a crítica
da representação impulsionada pela reconfiguração da categoria do sublime
demonstra sua função no interior de uma crítica claramente política. Pois ela marca o
apelo feito pela forma estética à experiência do que violenta o esquematismo da
imaginação, do que exige outra forma de estar no tempo e no espaço, do que suspende
a imanência de uma ordem da percepção que é o fundamento não tematizado da
ordem social. Neste sentido, ela é peça maior de uma estratégia de liberação do
sensível das amarras do ordenamento naturalizado do espaço e do tempo, o que
permite o advento de formas singulares de experiência do sensível.
Notemos ainda como o conceito de sublime deve necessariamente reconfigurar
a noção de expressão. Sabemos como Kant está interessado em mostrar como o
sublime é modo de experiência de certo aspecto da autonomia moral, pois o prazer
negativo no qual o sublime se assenta evidencia a existência de algo em nós que
coloca entre parênteses nosso desejo de auto-conservação e quebra a capacidade de
apreensão da imaginação. Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o
sublime assenta-se na disposição humana em acolher o que resiste aos interesses dos
sentidos. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de maneira
desinteressada, o sublime nos prepararia a estimar aquilo que vai contra nosso
interesse sensível. Assim, tanto na autonomia moral quanto estética (e ao menos neste
ponto tais campos convergem) o sublime apareceria como uma estratégia para a
reconstrução das expectativas de emancipação do sujeito em relação ao peso
normativo do que lhe apareceria como sua própria natureza. No interior do processos
histórico de advento da sociedade dos indivíduos, o sublime aparece como promessa
Press, 1992 et KYVI, Peter; Aesthetical arts: on the ancient quarrel between music and literature,
Oxford, 2009
107
Esta dependência da estética musical em relação à metafísica do sublime permanecerá e poderá ser
encontrada, entre outros, em Theodor Adorno, para quem: “É específico à música que seu caráter
enigmático seja enfatizado pela sua distância em relação à determinação visual ou conceitual do mundo
dos objetos” (ADORNO, Theodor; Quasi una fantasia, Frankfurt: Suhrkamp, 1988, p. 156)
de experiência daquilo que, em nós, não porta a figura do indivíduo e de seu sistemas
de interesses.
Lida desta forma, a autonomia estética em sua relação à metafísica do sublime
não pode ser o resultado de estratégias de purificação da linguagem visando constituir
uma esfera de valores organizada a partir de exigências de “legalidade própria”.
Antes, ela é a emergência de uma sensibilidade reconfigurada, ela é motor de uma
“revolução na sensibilidade” 108 capaz de fazer com que a potencialidade de novas
formas da vida social, novas formas de imbricação e síntese possam realizar
expectativas emancipatórias de produção de experiências singulares.
Esta elaboração dos românticos representava uma importante modificação em
relação à funcionalidade do conceito até então. Lembremos inicialmente como o uso
do conceito de sublime no interior de um debate propriamente estético, e não apenas
retórico, precisará esperar 1674, quando Nicolas Boileau traduz para o francês o
tratado de Longino. Boileau foi uma das figuras-chaves da Querelle des anciens et
des modernes. Representando a linha de frentes dos Anciens contra os modernos,
Boileau recorre ao sublime para mostrar como a estética clássica não seria um
formalismo estéril, mas a contínua construção de equilíbrio entre grandeza
desmesurada e concisão, entre arrebatamento e simplicidade. Para Boileau, através da
discussão sobre o sublime, os antigos teriam sido capazes de pensar o que provoca
arrebatamento sem, com isto, precisar colocar em risco a harmonia da bela forma. Ou
seja, neste momento, não há distinções estritas entre belo e sublime, como será o caso
na estética romântica.
Se no romantismo, tal distinção se consolida, vindo das reflexões de Edmund
109
Burke , é por ela ser o resultado mais visível da consciência da ruptura em relação
ao classicismo das formas harmônicas e equilibradas, da regularidade dinâmica.
Podemos mesmo dizer que a ruptura entre belo e sublime é o dispositivo central de
consolidação da estética moderna. Uma ruptura que já se apresenta no romantismo e
que chegará, como é o caso atualmente, à pura e simples eliminação do belo como
categoria adequada para dar conta dos critérios de avaliação das obras de arte.
Dentro do romantismo, é no campo da estética musical que o uso do conceito
de “sublime” ganhará mais força, graças à concepção romântica de que a música
instrumental, música desligada de textos, programas e funções sociais específicas, era
a mais sublime das artes. Pois a música instrumental teria a força de produzir
expressão sem representação, expressão sem aderência a sentimentos específicos e
determinações empíricas, expressão do que aparece quando as palavras silenciam.
Assim, ela seria capaz de dar forma àquilo que se manifesta radicalmente como crítica
à limitação de nossas convenções linguísticas e formais. Vejamos um pouco mais de
perto a aplicação de tal maneira de pensar o sublime.
O sublime musical
Contra a comunidade
112 Por tal razão, Charles Rosen lembrará que: “antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tão
claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditório” (ROSEN, Charles; Le style
classique, Paris: Gallimard, p. 488)
113 Daí porque Adorno dirá que: “a unidade em Beethoven se move por meio de antíteses: ou seja,
seus momentos, tomados individualmente, parecem se contradizer uns aos outros” (ADORNO,
Beethoven, p. 13)
para o ataque final quando sua mãe e esposa aparecem rogando-lhe que abandone seu
ódio e não invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as mulheres e
abandona seus planos, o que lhe levará à morte pelas mãos dos Volscos.
Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais.
Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos no qual
o desprezo pela pretensa inconstância e pela irracionalidade da opinião popular são
evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida, deixando mais clara
sua dimensão de herói trágico. Ele é o homem sem comunidade, sem lugar, cuja
certeza de si o exila do contato com os outros homens. Personagem que representa
com clareza a tensão da individualidade moderna nascente com sua potência de
incomunicabilidade, com sua expressão assombrada pela indeterminação. Homem só
capaz de parar diante do objeto de desejo em vias de dissolução. Assim, ao escolher
transformar a morte de Coriolano em suicídio, Collin permite a exploração da
consciência da experiência moderna da desorientação diante da tentativa de ocupar
um lugar marcado pelo desterro.
A composição de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na própria
construção da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros acordes,
é baseada nas modulações possíveis de uma relação de polaridade e conflito entre dois
grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente toda a música, aparecendo
como elemento construtor interno aos motivos (como podemos ver na partitura em
anexo). Já o motivo que aparece nos compasso 15 a 19 demonstra claramente um
procedimento no qual a polaridade opositiva entre duas notas serve de base
construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é simplesmente cortada e suspensa
antes de se completar (como no final deste primeiro motivo) ou aumenta por
acumulação e intensidade. Ela é o melhor exemplo de como:
O que é o terror?
Mas se o caráter sublime da música de Beethoven está, por um lado, nesta sua
capacidade de usar a ideia musical como um princípio inicial de indeterminação que
produz, ao final, uma ordem mais elevada e englobante, há ainda um segundo ponto a
salientar. Como diz Hoffmann, a música de Beethoven produz “medo, terror, horror”,
embora a princípio não seja claro a que fenômeno musical ele exatamente se refere.
Seria ao caráter massivo e descomunal do uso dos recursos musicais? Ou devemos
procurar a matriz de produção de tais sentimentos em outro lugar?
Voltemos momentaneamente à discussão filosófica sobre o sublime. O terror
sublime é um tema que acompanha as discussões do conceito ao menos desde
Edmund Burke e sua maneira de ligar o sublime à dimensão dos prazeres negativos.
Burke distingue dois tipos de prazeres produzidos pela contemplação estética: os
positivos e os negativos. Os primeiros estariam vinculados à harmonia, clareza,
suavidade e constituem o quadro de atributos da beleza. Já os segundos seriam
produzidos pela contemplação de objetos propícios a ocasionar dor, pois de certa
forma ameaçadores e perigosos. Foi pensando no prazer provocado pela
contemplação do que ameaça nossa existência física que Kant dirá: “sublime é o que
compraz através da sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos”116.
A fórmula de Kant é precisa. Encontrar prazer no medo e na dor significa,
neste contexto, descobrir o prazer de ir contra o interesse imediato dos sentidos, de
descobrir algo em mim que não é apenas a expressão de meus interesses individuais
de auto-conservação. Lembremos, neste ponto, da maneira com que Kant acrescenta
algo novo na ideia, própria aos sensualistas ingleses, de que seriam sublimes os
fenômenos nos quais descubro o caráter descomunal e desmedido da natureza, como
grandes tempestades, pradarias inabitadas, vastas cataratas, entre outros. Ele lembra
que não seria exatamente tais fenômenos que deveriam ser entendidos por sublimes,
mas a descoberta de algo em mim que não os teme, algo em mim que os supera e os
domina. Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant,
podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à
descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de
nossa dissociação entre existência física e personalidade. Entusiasmamo-nos com o
temível porque podemos querer o que os impulsos repudiam, porque há um querer
para além dos impulsos sensíveis. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se
harmonizam. No sublime, elas encontram seu ponto de desregramento.
Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o
sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o
sublime se assenta evidenciaria a existência de algo em nós que coloca entre
116 KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkfrat, Hamburgo: Felix Meiner, 1993
parênteses nosso desejo de auto-conservação, quebrando a capacidade de apreensão
da imaginação. Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-
se na disposição humana ao sentimento moral. Da mesma forma que o belo nos
prepara a amar algo de maneira desinteressada, o sublime nos prepara a estimar aquilo
que vai contra nosso interesse sensível117.
Neste sentido, o que é exatamente monstruoso no sublime é a descoberta de
uma força em nós que é desmedido em relação às medidas da individualidade, força
em nós que não porta a imagem do indivíduo. Uma descoberta que só se dá através da
descoberta do prazer de contemplar o que pode destruir nossa existência sensível ou
que pode esmagar nossa dimensão finita e humana. Há sempre algo de
profundamente inumano no sublime e se a inflexão romântica do conceito aparece
exatamente no momento em que as sociedades ocidentais começam a se constituir
como “sociedades dos indivíduos” é porque a arte procura guardar uma experiência
que tais sociedades só verão com os olhos de uma “nostalgia infinita”.
Mas talvez esta discussão filosófica pareça agora muito distante do universo
musical, em especial o universo de Beethoven. No entanto, se recuperarmos neste
contexto um conceito desenvolvido por Theodor Adorno para descrever as últimas
obras de Beethoven, talvez tenhamos uma aproximação sugestiva. Procuramos algo,
na música de Beethoven, desmedido e monstruoso em relação às medidas da
individualidade . Poderíamos apelar para o excesso como manifestação da desmesura,
ou seja, para a maneira com que algumas de suas obras são monumentais,
excessivamente longas para os padrões da época, mobilizando largos recursos
musicais, como a Nona sinfonia. Mas podemos também, e este me parece um
caminho muito mais contemporâneo e interessante, procurar a desmesura na
experiência da subtração. Uma subtração que, à sua maneira, nos lembra da presença
monstruosa do que nos silencia e do que anula nossa individualidade, ou seja, a
presença da morte. Este talvez seja o sentido da noção de “estilo tardio”, empregada
por Adorno para falar das últimas obras de Beethoven.
Poderíamos inicialmente imaginar que o interesse de Adorno pelo “estilo
tardio” viria de sua procura em entender experiências estéticas que parecem culminar
nas últimas obras. Mas “culminar” não significa aqui a realização mais bem acabada e
harmônica de um projeto maturado. Como bem lembra o crítico literário Edward
Said: “O poder do estilo tardio de Beethoven é negativo, ou melhor, é a própria
negatividade: lá onde poderíamos esperar serenidade e maturidade, encontramos, ao
contrário, uma mudança áspera, difícil, inflexível e, às vezes, inumana”118. Esta é uma
maneira de afirmar que o caráter tardio de uma obra expõe, na verdade, sua
capacidade de ser a forma de uma tensão explosiva entre forma e expressão. Dizer
que o poder do estilo tardio de Beethoven é negativo significa afirmar que a tensão
própria à fase dita clássica de sua obra será potencializada pelo próprio
desenvolvimento da linguagem musical do compositor.
Muitas vezes, a peculiaridade de sua última fase foi colocada na conta de
motivos psicológicos, como a extrema surdez e um certo desespero daí advindo. No
entanto, Adorno insiste que há uma razão interna ao desenvolvimento da linguagem
musical. Isso nos permite dizer que a noção de estilo tardio não será apenas uma
descrição de uma fase da experiência artística de Beethoven, mas uma chave de
compreensão de obras de compositores variados como Schoenberg, Strauss, entre
outros. Said chegará a afirmar, e neste ele não está completamente errado, que o
117 Desenvolvi esse ponto de maneira mais extensa em SAFATLE, Vladimir; O dever e seus
impasses, São Paulo: Martins Fontes, 2013
118 SAID, On the late style, p. 12
conceito de estilo tardio é o conceito central da estética adorniana. Na verdade, ele
seria a descrição da própria experiência da obra de arte em seu ponto de máxima
tensão, pois exposição da profunda instabilidade formal, do acordo frágil e
contraditório entre planos construtivos e demandas expressivas que não se colocam
mais sob as formas do que entendíamos por “expressão”.
“Na história da arte, obras tardias são catástrofes”. Esta frase de Adorno é
decisiva para nossa discussão. Se as obras tardias são catástrofes é porque elas
aparecem como o lócus de uma quebra em relação ao regime do funcionamento das
determinações da convenção. Sobre as obras tardias de Beethoven, Adorno afirma,
por exemplo, que elas faltam harmonia. Os silêncios são cada vez maiores, as quebras
muitas vezes se dão nos meios das frases musicais, os contrastes parecem
simplesmente justapostos. A princípio, poderíamos acreditar que tal falta de harmonia
seria o resultado de uma subjetividade superdimensionada que procura alguma forma
de expressão integral e que, por isto, não teme explorar extremos desprovidos de
mediação. O que explicaria porque ela procuraria quebrar, ou ao menos ignorar todas
as regras até então respeitadas.
Mas esta desmesura aparece, em Beethoven através do abandono do que
parecia garantir à forma sua organicidade, assim como através do uso de convenções
que aparecem de maneira explícita. Como se estivéssemos diante de uma espécie de
indiferença à aparência que permite ao compositor usar fórmulas e fraseados
deliberadamente convencionais. Mas um uso da convenção que não consegue mais
garantir a aparência de organicidade.
Notemos assim que, se o poder de sua música é negativo e por vezes inumano,
é porque o horror sublime que ela provoca vem de sua força de subtração e de recusa
do que era até então compreendido como elementos fundamentais para o
reconhecimento da “humanidade” da expressão, não de sua exposição grandiosa de
materiais. Levando em conta seu estilo tardio, podemos dizer que Beethoven nos
mostra como as obras sublimes parecem transformar a subtração em consciência
aguda da atrofia da linguagem. No entanto, gostaria de mostrar como tal ideia de
estilo tardio traz, no seu bojo, possibilidades de compreensão de processualidades da
forma musical que nos fornecem a genealogia de estratégias composicionais mais
próximas de nós.
119 ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p. 240
Revolução política, instauração estética
Aula 7
122 Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
123 BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
Alemanha devido à sua posição no processo de acumulação capitalista, mas ela se
desenvolveria ao ritmo de uma revolução mundial.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses sobre
Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os educadores?”
e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática revolucionária. Por
isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa
“o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que
ocorre, através de um nome próprio. Tal colocação é fruto da crença de Marx e Engels
em uma expressão imanente do real que não pode se reduzir a um discurso ideológico.
Expressão imanente baseada nas noções de contradição, de antagonismo, assim como
de um diagnóstico que eleva a alienação a condição de sofrimento social fundamental
nas sociedades modernas ocidentais e a exteriorização do ser do gênero a condição de
seu horizonte de superação.
Lembremos ainda que o processo de abolição da sociedade de classes levaria o
proletariado a ações como: a centralização dos instrumentos de produção nas mãos do
Estado com a consequente abolição da propriedade privada, a criação de imposto
progressivo, o fim do direito de herança, a centralização do crédito nos bancos do
Estado, a educação gratuita para todas as crianças e a abolição gradual da distinção
entre cidade e campo. Estes são os pontos fundamentais defendidos no Manifesto
Comunista.
O fracasso da revolução
No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria”124 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
Eis aí toda a dificuldade que Marx descobre: quando estão diante de situações
de crise que podem produzir revoluções em si mesmos e no mundo, os sujeitos
resolvem conjurar temerosamente a ajuda de espíritos do passado, tomam
emprestados seus nomes e palavras de ordem. Eles parecem assim não serem capazes
de ocupar as novas cenas da história mundial, a não ser vestindo-se de conflitos
passados não produzindo com isto um “nome próprio e original” a respeito de sua
própria situação.
Esta monarquia financeira resistiu até 1848 quando, sob o impacto de uma
insatisfação de massa devido a uma série de crises econômicas, caiu em 24 de
fevereiro depois de combates sangrentos e barricadas em Paris. Esta primeira
revolução contava com a burguesia e com o proletariado liderados, entre outros, pelos
socialistas Louis Blanc, Auguste Blanqui. Os primeiros meses da revolução viram a
colisão entre o proletariado, a pequena-burguesia republicana e a burguesia moderada.
Em 23 e 24 de abril, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. O Partido
da ordem, representando a burguesia moderada e os monarquistas, ganha a maioria
absoluta. Começa então a tentativa de impor uma série de leis que iam contra os
interesses dos socialistas. Com isto, uma novas revoltas operárias explodem em maio
e junho sob o lema: “Queremos uma República democrática e social”. A reação
governista será brutal: decretação do estado de sítio, 1500 insurretos mortos, 12000
presos e 4000 deportados para a Argélia.
Promulgada a Constituição em novembro, eleições presidenciais foram
convocadas para dezembro de 1848. Dois candidatos se apresentam: Cavaignac,
responsável direto pela repressão à insurreição operária de junho, e Luís Bonaparte,
sobrinho de Napoleão. Será Luís Bonaparte que vencerá, recebendo os votos tanto
dos operários, que detestavam Cavaignac, quanto dos conservadores. Em 1851, ele
dará um auto-golpe proclamando o Segundo Império e coroando-se imperador sob o
nome de Napoleão III. Através de dois plebiscitos, o golpe de estado e seu
coroamento foram ratificados. Ele ficará no poder até 1870, quando a França perder a
Guerra Franco-prussiana.
A derrota de 1848, em especial das insurreições de junho, será um fato
decisivo para Marx. Lembremos que o Manifesto Comunista é publicado pela
primeira vez exatamente em fevereiro de 1848. Ou seja, quando Marx e Engels falam
que um “fantasma ronda a Europa”, eles realmente acreditavam em uma revolução
mundial iminente. Os descaminhos de 1848 marcarão Marx de forma decisiva. Eles
mostrarão a Marx como é possível transformar uma revolução iminente em paródia,
como o tempo de transformação pode ser aprisionado em um processo que será, na
verdade, uma forma astuta de restauração. Nesta reflexão, Marx irá perceber que a
radicalização dos conflitos sociais não levam, necessariamente, à revolução. Ela pode
ficar aprisionada por décadas em um falso movimento
Nota-se claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de
repetição a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente,
como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter
ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas
uma repetição feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até
então não aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em
necessidade. Neste sentido, podemos falar em “revolução” porque tal transformação
só é possível à condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a
situação presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele
não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é
inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da
Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma
individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação
de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela
República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era
puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o
assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que
retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a
perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral
que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a
forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um
mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base
estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele é
complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição
histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação
de um acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições,
mas há de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal
distinção no interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo
bem descrito no capítulo III do 18 de brumário:
Genealogia do proletariado
141 RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
142 STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
144 Idem, p. 66
145 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
146 Idem, Manifesto Comunista, p. 43
147 Idem, p. 45
148 Idem, p. 51
novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva a uma estrutura
monopolista que só pode significar a abolição da propriedade privada “para nove
décimos da sociedade”. No entanto, tal desordem produzida pela burguesia em sua
escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária
de novas relações que tem em seu germe a forma de outro mundo:
Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
indivíduos locais” 150 . Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
bohème”152 e que Marx define como “lumpemproletariado”153. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária154.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
152 MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
153 Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
154 Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra coisa aqui que uma sucessão de
singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud,
1986, p. 114). De fato, mas poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação deve
ter uma universalidade que é ao mesmo tempo singular. Em que condições a universalidade é
posta no campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se singulariza implica,
neste caso, recusa a determinar o singular como uma determinação completa, sendo que a
incompletude de sua determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto
seu momento próprio. Neste sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta para o
entendimento, mas seu gênero de posição nada tem a ver com as determinações já determinadas
Neste ponto, podemos compreender melhor a importância de sublinhar que o
elemento decisivo na produção do valor é a submissão do objeto à condição do
próprio. Sua intercambialidade absoluta, resultante de um modo de determinação que
privilegia a instrumentalidade do mensurável, do quantificável e do calculável é a
afirmação maior de que as coisas agora submetem-se por completo à condição do
“próprio”. Elas são a expressão do que os indivíduos podem determinar como sua
propriedade, prontas a serem comparadas e avaliadas com outras propriedades,
prontas para circularem em um circuito de velocidades sem fricções, dominadas na
familiaridade do que conhece o tamanho e o limite, representadas sob a forma
juridicamente determinada do que pode ser descrito no interior de um contrato. Mas o
trabalho livre só pode ser a produção do impróprio. Um impróprio que não é
propriedade comunal, mas circulação do que não tem relações especulares com o
sujeito, por isto o trabalho nunca poderia ser possessão da natureza, dominação das
coisas pelas pessoas. Ele é expressão do que circula fora da utilidade suposta pela
pessoa.
Apropriar-se
como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento deste tempo através de certa leitura do que
podemos entender por “vida do gênero” em Marx.
160 MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
161 MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
162 Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE,
Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo:
Martins Fontes, 2012.
163 BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260. Trata-se de uma ideia presente também em Jacques Rancière, para quem: “os
proletários não são nem os trabalhadores manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a
classe dos não-contados, que só existe na própria declaração através da qual eles se contam a si
mesmos como os que não são contados” (RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et
philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63).
perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:
de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-ownership” como atributo
fundamental da pessoa (a este respeito, ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom
and equality, Cambridge University Press, 1995). Embora este seja um debate de várias matizes, é
certo que a tradição dialética de Hegel e Marx tende a lê-lo da maneira esboçada acima.
167 MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de
indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo
poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que,
através da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade168.
Por esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria
de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que
define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo,
isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a
provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação constante
de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada. Esta é uma
maneira de aceitar proposições como:
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Eles são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum169.
168 Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha ganhado
evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, isto demonstra como
algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito alcançou a política através de
ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal descentramento tem sua matriz na noção de
“negatividade” própria ao sujeito hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do
conceito hegeliano de sujeito acaba por voltar à cena através da influência surda em operação
nos textos de ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser.
169 RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34
170 Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308
Revolução política, instauração estética
Aula 9
Não é novidade lembrar como há algo, na relação entre arte e política, muda
de forma decisiva com o advento do romantismo, embora o sentido de tal mudança
tenha sido objeto de controvérsias de mais de um século. Reação conservadora aos
processos de modernização social, desdobramento estético de impulsos jacobinos-
revolucionários, estetização da crítica social a partir da nostalgia de modalidades de
retorno à origem e a vínculos comunitários substanciais, culto ao individualismo,
expressão de uma classe urbana sem lugar: todas essas disposições contraditórias
entre si já foram em algum momento associadas ao romantismo. Todas elas estão
corretas em sua descrição, mas incorretas em sua parcialidade. No entanto, não se
trata aqui de fornecer alguma perspectiva mais integradora a fim de permitir o
advento de mais um capítulo na remodelação contínua de interpretações a respeito do
romantismo.
Há, na verdade, uma tese a ser defendida, a saber, a experiência do
romantismo abre espaço a um modelo de emancipação social que pode redimensionar
nossos horizontes hegemônicos atuais de reconhecimento. As reações a tal abertura se
darão no interior do próprio romantismo, como se estivéssemos diante de um processo
alargado de ação e reação. Ou seja, o romantismo, em seus setores mais avançados,
iniciará uma trajetória de circulação de dispositivos que terão impacto decisivo na
consolidação de certos modelos críticos de emancipação social a partir de meados do
século XIX, assim como produzirá uma reatividade conservadora que terá também
sua caracterização estética. No entanto, é decisivo compreender como ele produzirá
uma modificação na sensibilidade responsável pela abertura a demandas de
emancipação com forte capacidade de ressonância na configuração do radicalismo
político moderno e, a sua maneira, ainda atuais até os dias de hoje.
Mas para analisarmos tal possibilidade de forma mais estruturada há uma
estratégia que deve ser colocadas em marcha. Ela diz respeito ao privilégio necessário
a ser dado àquela que foi considerada a “mais romântica das artes”, a saber, a música.
Será na música que o romantismo ganhará suas inflexões mais amplas e avançadas. O
que não poderia ser diferente. A prevalência do modelo musical a partir do
romantismo se explica, em larga medida, pelo caráter não-representativo do espaço
musical a partir do advento da música instrumental como paradigma. A afirmação
descomplexada de tal caráter anti-representativo, que já ocorre no final do século
XVIII, será decisivo para a consolidação da autonomia precoce da linguagem musical
em relação aos processos de autonomização pelos quais passarão as outras artes a
partir do final do século XIX, assim como para sua força de influência.
Notemos, inicialmente, que o deslocamento da reflexão sobre a força política
do romantismo para o campo musical complexifica a noção de que: “desde a sua
origem o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro
da melancolia’ (Nerval)”171. Uma afirmação desta natureza pressupõe que a crítica
romântica da modernidade e da civilização capitalista seria feita, preferencialmente,
em nome de valores e ideais do passado, ou seja, a temática da perda lhe seria
constitutiva. No entanto, o romantismo musical de Beethoven, Schubert, Chopin não
171 Idem, p. 37. Ou ainda: “repúdio à realidade social atual, experiência da perda, nostalgia
melancólica e procura do que foi perdido: tais são os principais componentes da visão romântica”
(p. 47).
apresenta formas de fixação melancólica em perdas que não podem ser elaboradas ou
que fazem da obra de arte o espaço de uma nostalgia infinita (embora seja verdade
que o termo de “nostalgia infinita” fora usado por E.T.A. Hofmann exatamente para
falar das sinfonias de Beethoven). Antes, mesmo os usos de materiais regressivos (por
exemplo, como o uso da fuga no estilo tardio de Beethoven) ou as estilizações da
melancolia (por exemplo, como na constituição do gênero dos Noturnos, em Chopin)
são marcados por dinâmicas instauradoras do ponto de vista das inovações formais.
Do ponto de vista formal, não há fixação melancólica, mas exploração das
potencialidades internas a dinâmicas de instauração e ruptura.
174 Ver ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996.
personalizada, a expressão será o ponto de relação ao que se coloca como
heteronomia.
Lembremos ainda que discutir o problema da expressão musical através do
desenvolvimento da técnica pianística não é uma escolha gratuita. Nenhum outro
instrumento se vinculou tão claramente à formação sentimental da burguesia em
ascensão, à definição do espaço privado da home e de sua memorabilia quanto o
piano. Uma impressionante literatura pianística foi produzida a partir das primeiras
décadas do século XIX visando, entre outras coisas, alimentar um público crescente
em formação. O piano não foi apenas um instrumento musical, mas um espaço
privilegiado de formação da sensibilidade burguesa e de sua interioridade psicológica.
O seja, o piano não foi apenas o instrumento privilegiado de educação musical, ele foi
o meio fundamental de educação sentimental, ele foi, na verdade, o primeiro divã da
sociedade burguesa. Ao menos no que diz respeito ao século XIX, não haveria a
sensibilidade burguesa como a conhecemos se não houvessem pianos. Mas como todo
bom divã, o que aparecerá diante do piano ultrapassa em muito os anseios de controle
da sensibilidade burguesa.
Assim, dentre a literatura pianística, os Estudos para piano merecem nossa
atenção por aparecer mais claramente como eixo de uma certa pedagogia da
expressão. A sua maneira, os Estudos procuram fornecer a definição das condições de
possibilidade para toda intepretação correta possível, produzindo historicamente algo
como a determinação transcendental da interpretação musical. Tais condições de
possibilidade, no entanto (e este é um ponto de suma importância), são inicialmente
expressas em um conjunto de disposições corporais. Não se aprende a tocar piano sem
aprender a controlar o peso dos dedos, a modelar as mãos, a abrir e fechar os braços a
fim de construir uma dinâmica de intensidades e velocidades. Neste sentido, a técnica
pianística impõe claramente a construção de um corpo expressivo a partir da
internalização de um sistema complexo, de tempos, de gestos e de movimentos175. Ela
demonstra, de maneira exemplar, como a personalização da expressão é totalmente
dependente da determinação de uma gramática de disposições corporais.
Por exemplo, podemos não saber se uma indicação de pianíssimo em uma
partitura indica ternura, solidão, tristeza ou quietude contemplativa, mas sabemos
quais gestos corporais são necessários para o pianíssimo aparecer. Sei como meu
corpo deve estar, de que parte do corpo deve vir o peso do toque. Essa gramática
corporal (e não a elaboração intelectual dos sentimentos) é, no fundo, a base da noção
moderna de expressão. Como se a expressão fosse, no fundo, um gênero de expressão
corporal. Pois, se a expressão pode inicialmente parecer a manifestação de uma
egoidade personalizada, tudo se passa como se a ilusão desta egoidade estivesse
profundamente relacionada a um sistema de condicionamentos corporais, a uma
imagem do corpo que a técnica de interpretação parece procurar criar. O que não
deixa de nos lembrar uma ideia cara à psicanálise, a saber, a noção de que o
sentimento da egoidade está sempre vinculado à imagem do corpo próprio176.
No entanto, tal construção de uma gramática corporal não é apenas a
internalização de processos disciplinares em direção a formação de um corpo
expressivo. Esta é a diferença maior entre Estudos de função meramente didática, que
todo estudante de piano infelizmente conhece e felizmente odeia, e as obras que
gostaria de analisar. Na verdade, em tais obras, a construção da gramática corporal é,
175 Ver, a este respeito, SZENDY, Peter; Membres fantômes: des corps musiciens, Paris: Minuit,
2002
176 Ver a este respeito : LACAN, Jacques ; « Le stade du mirroir comme formateur de la fonction
O Estudo é uma ideia romântica. Ele aparece no começo do século XIX como
um novo gênero: uma peça curta cujo interesse musical é derivado quase
inteiramente de um único problema técnico. Uma dificuldade mecânica produz
diretamente a música, seu charme e seu pathos. Beleza e técnica estão unidas,
mas o impulso criativo é a mão, com seu arranjo de músculos e tendões, sua
forma idiossincrática177.
A destituição do território
178 Ver ENGELS, Friedrich; “A revolta húngara”, In: Nova Gazeta renana, 13 janeiro 1849.
constituição disciplinar do corpo expressivo do interprete começará pela “produção”
dos dedos. Era comum à época de Chopin a defesa de que: “a clareza da execução só
pode existir enquanto todos os dedos tiverem uma força e uma flexibilidade
iguais” 179 . Ou seja, a expressão musical seria solidária aqui da produção de uma
disposição igual de forças, de uma intercambialidade absoluta que parece garantir o
domínio pleno de meu corpo através da afirmação de um horizonte abstrato de pura
homogeneidade (todos os dedos se equivaleriam, independente de sua anatomia
distinta; desta forma, posso ter o domínio de todos de forma igual). Ao produzir a
homogeneidade de forças e flexibilidade, teremos uma expressão que nasce do
domínio de si sobre o corpo e sua anatomia. Ela será por isto expressão máxima da
disciplina. Neste sentido, Chopin será praticamente o único em sua época a dizer:
Chopin chega mesmo a propor que a posição natural da mão sobre o teclado
não é a colocação de cada dedo sobre uma tecla de dó a sol, como se faz normalmente
até hoje, mas em mi, fa#, sol#, la#, si, já que os três dedos centrais, por serem
maiores, devem ficar sobre teclas pretas, que são mais altas. Assim, não se trata de
adequar a naturalidade do corpo ao fundamento primeiro do sistema tonal, no caso a
primeira pentatônica da escala fundamental de dó maior. Trata-se de elevar o próprio
corpo a princípio normativo, de produzir a expressão a partir da liberação do corpo da
posição de mero apêndice repetidor da normatividade interna ao sistema. Esta
liberação é o que permite criar uma gradação de colorações até então desconhecidas,
nunca ouvidas, que fornecerão possibilidades construtivas para a escrita pianística.
Isto nos explica porque:
Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos táteis são quase tão
importantes quanto conceitos acústicos (...) Um giro melódico ou uma figura
de acompanhamento chopinesco não é apenas ouvido, mas é também sentido
como uma forma tátil, como a sucessão de excertos musculares. Uma peça de
piano bem formada produz prazer físico182.
Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâmica dos
corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através da
repetição de movimentos. Esta inscrição da corporeidade em um processo de
produção de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de uma certa
expressão corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de artista”, ligada a uma
trabalho sobre si que faz do corpo o campo de desdobramento daquilo que Ligeti
chama de “conceito táteis”.
Mas há algo mais do que produção de um esquematismo corporal em Chopin e
é este ponto que merece nossa atenção. Se é verdade que: “nos Estudos de Chopin, o
momento de maior tensão emocional é geralmente aquele que a mão é alongada da
maneira mais dolorosa, de maneira que a sensação muscular se transforme – mesmo
sem o som – em uma mimesis da paixão”183 é porque, muitas vezes, esta escultura da
dinâmica dos corpos não é apenas a constituição de uma regularidade, mas o
aprendizado das paixões naquilo que elas tem de mais amedrontador, ou seja, na
confrontação com o ponto no qual tensão emocional e limite corporal se tocam.
Limite corporal visível em vários Estudos, como o opus 10 n. 1, no qual os arpeggios
constituídos de intervalos de oitava, quinta, quarta e terça a serem tocados em extrema
velocidade (tempo de 176 para as semínimas). O que leva o interprete ao exercício
impossível de tentar: “reduzir os espaços (écarts) até negá-los”184.
Esta gramática que não é apenas o ensino da regularidade, mas o
desenvolvimento da confrontação com o limite, não se contenta em ser o conjunto de
condições para o desenvolvimento da virtuose pianística. Ela é o desenvolvimento da
forma como passagem em direção ao limite, como se realização da forma e sua
própria dissolução fossem processos indissociáveis. Por isto, tal gramática não é
apenas um exercício de virtuose, mas a conquista da expressividade através da
reversão da normatividade em princípio de desconstituição da própria forma. Esta
dialética é uma das características maiores da expressão romântica e diz muito a
respeito da maneira com que a experiência estética poderá a partir de então ser
elevada à condição de modelo social de liberdade. Pois liberdade aqui é indissociável
da capacidade de operar o manejo de uma dialética rigorosa entre constituição e
desconstituição.
A expressão da heteronomia
Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl
186
A revolução russa forneceu o paradigma para as teorias das revoluções do século XX.
Ela foi a primeira experiência de tomada revolucionária do poder, feita em nome de
uma transformação radical de todas as relações sociais, capaz de construir instituições
que, de forma ou outra, duraram algo em torno de setenta anos. As experiências
anteriores tiveram como uma de suas características fundamentais a rápida duração.
Exemplo maior neste sentido foi a Comuna de Paris, de 1871, a primeira experiência
histórica de governo popular, que não durou mais do que alguns meses (18 de março a
28 de maio de 1871).
Esta questão da duração não é uma questão menor, se quisermos analisar o
significado da Revolução Russa a partir dos escritos de sua figura mais emblemática,
Vladimir Lenin. Desde o início, Lenin se vê diante de problemas de organização, não
apenas dos processos de insurgência e mobilização, mas posteriormente dos processos
de governo. Ele constrói um vínculo entre modelo de insurgência e modelo de
governo através da centralidade da forma-partido. Do ponto de vista pragmático, tal
construção se demonstrará extremamente eficaz durante todo o século XX, servindo
de modelo para a revolução chinesa e cubana. Ela trará também problemas
importantes para uma compreensão das paralisias internas aos processos
revolucionários.
Comunas e soviets
Esta formulação, povo agindo para si mesmo e por si mesmo chama a atenção.
Ela indica um “si mesmo” como horizonte de reconciliação que exige a constituição
do povo como sujeito que pertence a si mesmo. As metáforas são sempre muito claras
neste contexto. Marx fala em “quebrar a máquina do Estado”, como se houvesse algo
a impedir o movimento vivo, como uma máquina.
Esta figura de uma relação pura da sociedade a si mesma é um eixo
fundamental e prenhe de problemas políticos. Vimos como as revoluções apareciam
como a emergência de uma força que quebrava, à sua maneira, a compreensão dos
sujeitos políticos como sujeitos autônomos pertencentes a si mesmos. Est círculo de
ipseidade que parece assombrar as ações políticas nunca é sem trazer como
consequências uma política da purificação baseada na assunção efetiva de uma
soberania que se coloca como agindo para si e por si mesma.
O fim do estado
189 Idem, p. 60
190 MARX, Karl, A guerra civil na França, p. 108
Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se
serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários,
então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado
ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para
submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em
liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isto, nossa proposta seria
substituir por toda parte a palavra Estado por Gemeinwesen, uma boa e velha
palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês
commune191.
Ditadura do proletariado
Mas esta justiça inicial que consiste em liberar o trabalho da condição de produção de
valor porta ainda uma injustiça. Indivíduos desiguais, com talentos e capacidades
desiguais só podem ser medidos segundo um padrão igual quando observados apenas
por um aspecto determinado. Outros aspectos são desconsiderados: um trabalhador é
casado, outro não; um tem mais filhos, um supera outro física e mentalmente, etc. Por
isto, essas “medidas de urgência” ainda giram em torno do “estreito horizonte jurídico
burguês”. Só em uma situação social na qual o trabalho deixar de ser meio de vida e
se transformar em atividade que permite o desenvolvimento multifacetado dos
sujeitos, na qual a carência não ser mais o fantasma que assombra todo consumo, na
qual as condições materiais de produção forem propriedade coletiva dos próprios
trabalhadores, será possível estabelecer o princípio fundamental de justiça: “cada um
segundo suas capacidades, cada um segundo suas necessidades”.
Note-se um dado fundamental, a abolição do Estado está completamente
vinculada à abolição da sociedade do trabalho, ou seja, à abolição da submissão da
atividade humana ao processo de autovalorização do valor, base para a reprodução do
Capital. O Estado só pode ser abolido quando a sociedade consegue enfim realizar a
aquilo que já estava presente em A ideologia alemã:
195 Idem, p. 30
196 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
197 MARX, Karl; Resumo crítico de Estatismo e anarquismo, de Bakhunin, p. 111
. Ao falar da decomposição do Estado, Engels afirma, em O anti-Duhring, que
inicialmente o proletariado toma o poder de Estado e transforma os meios de
produção em propriedade do Estado. Desta forma, o proletariado suprimiria as
diferenças de classe a as oposições de classe. O Estado burguês daria assim lugar a
um Estado proletário que paulatinamente desapareceria.
Lenin compreenderá esta ditadura do proletariado como uma ditadura levada a
cabo pelo setor mais organizado do proletariado, ou seja, aquele que constitui o
partido comunista. Lenin, nas Teses de abril, indica em que deveria constituir esta
passagem. Ele fala do confisco de todas as terras que passariam às mãos de sovietes
compostos por camponeses pobres e deputados assalariados agrícolas. Ele indica
ainda a concentração de todos os banco em um só que estaria sob controle dos
sovietes. Trata-se de, inicialmente, mudar o controle da produção.
Faltam as duas últimas aulas sobre o suprematismo e o construtivismo soviético