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A Joia dos Desejos

Estudo 16i

Dito de forma mais futebolística, se eu torcer pelo time do "eu sozinho", minha chance é
mínima. Que chance temos ao torcer por nós mesmos? Se vincularmos nossa estabilidade
a vitórias pessoais, nossa chance é mínima. Mas nossa natureza não está presa a nossos
autointeresses. Nossa natureza é originalmente ampla. Quando manifestamos essa
natureza ampla, fazemos exatamente o que o Buda fez nas quatro décadas finais de sua
vida. Ele se dedicou incessantemente a produzir benefícios para os seres. Enquanto fazia
isso, o Buda nunca precisou de um palácio, nem mesmo uma cozinha. Nunca precisou de
proteção militar. Ele organizou a vida da Sanga de forma muito simples, e os seres ao
redor ficavam felizes em poder ajudar.
Chegamos no último capítulo. E aqui, o Lama retoma o ponto
fundamental como um conselho direto para os praticantes: a motivação. Ele
evidencia que a nossa perda de serenidade na prática sempre está ligada a
algum aspecto que estamos tomando como denso, sólido, real. Por não
conseguirmos encontrar paz na meditação, achamos que é outro tipo de
meditação, outro tipo de ensinamento que irá nos trazer paz. Desconhecemos,
na verdade, que é o nosso dispositivo que está arranhado, é o nosso jogo que
está muito bem delimitado. E dentro disso, é natural que os obstáculos surjam
na nossa prática e terminemos responsabilizando a própria prática. Ainda não
fomos fundo o suficiente na compreensão de que a menor instrução do Darma
é suficiente para provocar o nosso reconhecimento.
A perda de serenidade não se mostra apenas no cotidiano. Mesmo
que sentemos para meditar, nossa mente irá girar.
Experimentaremos aflição ainda que sentados na postura formal e
em silêncio. Sem a serenidade, imagens surgem em nossa mente,
temos impulsos de ação, surgem muitos pensamentos e prioridades
diferentes.

Apenas a exposição contínua a uma simples frase pode provocar


alterações profundas na nossa percepção. Mas geralmente estamos nos
debatendo, justificando nossos impulsos e movimentações com diversas
distrações, de forma que terminemos congelando nosso movimento na
dispersão, desistência ou na insensibilidade.
Portanto, mais uma vez, retornamos aos ensinamentos da Roda da
Vida. Percebemos que estamos, direta ou indiretamente, trazendo o javali – a
identidade – para dentro da nossa prática e da nossa visão do Darma (e do
mundo). As camadas sutis que nos vinculam as expectativas externas se
revelam naturalmente na nossa prática de silêncio e dos obstáculos que
surgem.
Operando segundo fixações, o javali se estrutura como guardião das
nossas atividades cotidianas. Devido às fixações surgem ganhos e
perdas potenciais.Então criamos como que servos, guardas e
assessores em nossa mente, partes de nós mesmos que colocamos
a vigiar nossas atividades e fixações. Nossa mente permanece
operando sob condições específicas e fornecendo impulsos de ação,
acionando campainhas de alarma quando ocorrem certos eventos ou
desequílibrios. Quando eventos ameaçadores são localizados, é
como se existisse uma autorização prévia para esses assessores
invadirem nosso silêncio e nos fornecerem relatórios constantes.
(p.119)
Retornar a compreensão e a vivência do refúgio é a forma direta de
superarmos os obstáculos insistentes que surgem das entranhadas da nossa
identidade. Se a nossa identidade estiver entrelaçada com as consequências –
positivas ou negativas – da busca externa, vamos ter a oscilação como base da
nossa experiência. Por isso, a pergunta feita aqui pelo Lama sempre é: “qual é
o seu verdadeiro refúgio?”. Ele nos responde: O verdadeiro refúgio não surge
externamente separado da nossa natureza última. (...) Se nos fixarmos a
fatores transitórios, inevitavelmente oscilaremos em meio a condições
flutuantes. (p.120-121). É a realização completa da motivação que irá nos
impulsionar na não realização das ações negativas e no engajamento em
ações positivas. Compreendendo o que realmente importa, não desejaremos
mais perder tempo.
Cada vez mais entenderemos, como diz mestre Dogen: “quando
sentamos em meditação, praticamos inseperáveis de todos os seres.”
Praticamos com eles porque eles compartilham conosco a Natureza de Buda.
Por isos, nossa prática é sempre um fluxo: sempre estivemos diante do templo
de Buda, nosso corpo e nossas atividades sempre pertenceram a Natureza
Última. Por isso é que cada vez mais vamos perceber a não dualidade entre
nós e os outros, entre o que fazemos na sala de meditação ou fora da sala de
meditação. Devemos entender que antes, durante e depois da prática de
meditação nossa mente é inseperável de todos os seres. Enfim, não há
diferença entre os estados de meditação formal e os estados mentais de
lucidez da vida cotidiana. (p.123)
Ao nos percebermos como parte do todo criativo da Natureza última,
realizamos a compreensão da sabedoria e encontramos resposta para todas as
dificuldades: o javali precisa morrer, o autointeresse precisará ser abandonado
para que possamos sentir liberdade novamente. Encontramos assim refúgio
em uma mente criativa, muito além da autoproteção, que inclusive nos faz fluir
com mais facilidade em meio as aparências do cotidiano.
Pessoas que praticam generosidade, que são capazes de ir além do
autocentramento, não ficam na miséria. Tendo superado o
autocentramento, elas sempre têm condições de ajudar os outros de
alguma forma. Assim, não ficam como pobres coitadas aguardando
milagres, têm a sensibilidade e reconhecer o que beneficia os oturos
e não caem no isolamento. (p.124)
A liberação do praticante que se dedica a confiar no caminho do Darma é a sua
tigela que é o desdobramento das suas qualidades em oferecimento no mundo

Ao mendigar, o Buda não estava pedindo; na verdade, estava


oferecendo um benefício às pessoas. (...) Quando o Buda oferecia a
tigela, sua mera presença retirava as pessoas dos reinos de
sofrimento em que estavam. Seres imersos no reino dos fantasmas
famintos, por exemplo, eram imediatamente deslocados para um
reino superior ou para a liberação. No momento em que o Buda
surgia, o coração dos fantasmas famintos se abria, e eles se
tornavam generosos.(p.126)

O convite à ação no mundo é então a continuidade do treinamento. Vemo-nos


como doadores ou como demandantes? Desejamos uma lei que obrigue as
pessoas a se transformarem ou entendemos, com paciência, o tempo e a
história de cada um/a ? Não importa o que estamos fazendo, podemos vincular
essa ação a uma visão verdadeira de generosidae. Esse é o aprendizado das
mandalas, tão enfatizado pelo Lama.
Cada um de nós sempre tem algo a oferecer aos outros. Quando
entendemos as necessidades dos outros e oferecemos o que está ao
nosso alcance, nos comunicamos num nível sutil por meio da
generosidade. Essa atitude geral estabelece as bases de
sustentação para a pessoa, seja qual for a sua atividade. (p.127)

Naturalmente, com a motivação clara, a concentração surge. Tendo a


visão compreendido o que realmente importa, surgem destemor e confiança e
dispomos de muito mais estabilidade para realizar as práticas de foco. Isso
significa que abertura da visão nos possibilita entrar em contato conosco de
forma muito mais direta e paciente. Assim será, portanto, com os outros seres.
Devolveremos para ele a paciência e as instruções que realizamos conosco.
Caso contrário, que práticas estamos fazendo?
Esquecidos da compaixão, temos nossos afazeres urgentes e
prioridades inadiáveis. E o tempo passa. Quando os ciclos da vida se
completam, tudo desaba, tudo perde o sentido, e o que fica de bom
tem um único sabor: a generosidade, o amor e a compaixão que
dedicamos a outros seres. Aquilo que fizemos autocentradamente
acaba. O que fizemos carinhosamente para um outro, mesmo que
pareça não mais existir no plano material, curiosamente segue
presente em uma dimensão de satistação sutil. (p.129)

Portanto, conectamos nossa prática com o benefício de todos os seres e é por isso
que nos dedicamos as práticas profundas: para poder amar mais, compreender mais e
ajudar cada vez mais os seres a se liberar do sofrimento. Todas as estruturas de fato
estão fadadas a desmoronar. Mas o nosso refúgio segue, por detrás de todas as
crises, capaz de apontar o que realmente importa.

Exercício

Mais uma vez, se conecte com sua família e com todos os seres e deseje
ardentemente que todos e todas, sem exceção se liberem do sofrimento.

i
Estudo correspondente ao capítulo 12 “Superação de obstáculos na vida de meditante” do livro Joia
dos Desejos, do Lama Padma Samten(2013).

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