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Artigo de Pesquisa Oliveira DC, Vidal CRPM, Silveira LC, Silva LMS

Original Article
Artículo de Investigación

O PROCESSO DE TRABALHO E A CLÍNICA NA


ENFERMAGEM: PENSANDO NOVAS POSSIBILIDADES
WORK PROCESS AND CLINIC IN NURSING: CONSIDERING NEW POSSIBILITIES
PROCESO DE TRABAJO Y LA CLÍNICA EN LA ENFERMERÍA: PENSANDO
NUEVAS POSIBILIDADES

Deyse Cardoso OliveiraI


Cláudia Rejane Pinheiro Maciel VidalII
Lia Carneiro SilveiraIII
Lucilane Maria Sales da SilvaIV

RESUMO: Este estudo teórico objetiva refletir acerca da construção histórica do processo de trabalho em enferma-
gem e sua articulação com a clínica. Ao longo dos anos, o processo de trabalho em enfermagem assumiu vários
paradigmas permeados por transformações políticas, econômicas e tecnológicas. Essas transformações engendraram
diferentes concepções e ferramentas de intervenção. A construção do conceito de clínica em enfermagem se deu no
encontro com a medicina na institucionalização do dispositivo hospitalar inserindo a enfermagem num modelo de
clínica anatomo-patológica. Atualmente autores têm discutido a importância de considerar a autonomia do trabalha-
dor com relação ao seu modo de produção do trabalho, refletindo criticamente acerca de suas ferramentas de
intervenção. Neste estudo questionamos as possibilidades de reinvenção da clínica na enfermagem partindo da
contribuição de autores que pensam este fenômeno como uma ética da intervenção que valoriza a autonomia dos que
buscam nossa assistência.
Palavras-Chave: Enfermagem; pesquisa em enfermagem clínica; assistência centrada no paciente; enfermeiras clínicas.

ABSTRACT
ABSTRACT:: This theoretical study reflects on the historical construction of the nursing work process in its
interrelationship with the clinic. Over the years, the nursing work process has been framed by various paradigms
permeated by the influence of political, economic and technological changes. These changes have given rise to a
variety of concepts and tools for intervention. The construction of the concept of clinic in nursing derived from the
encounter with medicine during institutionalization of the hospital establishment, which brought nursing into an
anatomical-pathological model of clinic. Currently, authors have been discussing the importance of considering
workers’ autonomy as regards their way of producing their work and their reflecting critically on their tools for
intervention. This study inquires into the possibilities for reinventing the concept of clinic in nursing, based on the
contributions of authors who think of this phenomenon in terms of an ethics of intervention that values the autonomy
of those who seek our assistance.
Keywords: Nursing; clinical nursing research; patient-centered care; nurse clinicians.

RESUMEN: Estudio teórico tiene como objetivo reflexionar sobre la construcción histórica del proceso de trabajo en
enfermería y su articulación con la clínica. A lo largo de los años, el proceso de trabajo en enfermería asumió varios
paradigmas influenciados por transformaciones políticas, económicas y tecnológicas. Esas transformaciones fueron
engendrando diferentes concepciones y herramientas de intervención. La construcción del concepto de clínica en
enfermería se dio en el encuentro con la medicina en la institucionalización del dispositivo hospitalario insertando la
enfermería en un modelo de clínica anatomo-patológica. Actualmente los autores han discutido la importancia de
considerar la autonomía del trabajador en relación con su modo de producción del trabajo, reflexionando críticamente
sobre sus herramientas de intervención. En este estudio cuestionamos las posibilidades de reinvención de la clínica en
enfermería partiendo de la contribución de autores que piensan este fenómeno como una ética de la intervención que
valoriza la autonomía de aquellos que buscan nuestra asistencia.
Palabras Clave: Enfermería; investigación en enfermería clínica; atención dirigida al paciente; enfermeras clínicas.

INTRODUÇÃO
A enfermagem é uma das profissões da área da relação se dá é delineada a partir das linhas de forças
saúde que lidam diretamente com o ser humano, con- que atuam em cada contexto histórico, articulando
figurando-se como prática clínica. A forma como essa elementos do plano social, econômico e ideológico

I
Enfermeira. Mestre em Cuidados Clínicos em Saúde. Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: deysecard@yahoo.com.br.
II
Enfermeira. Mestre em Cuidados Clínicos em Saúde. Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Ceará. Maternidade-Escola Assis
Chateaubriand da Universidade Federal do Ceará e Hospital Distrital Governador Gonzaga Mota. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail:
claudiamaciel2006@yahoo.com.br.
III
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Centro de Ciências em Saúde e do Curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde
da Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: liasilveira@uol.com.br.
IV
Enfermeira. Doutora em Enfermagem, Professora do Centro de Ciências em Saúde e do Curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde
da Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: lucilanemaria@yahoo.com.br.

Recebido em: 28.05.2009 – Aprovado em: 12.08.2009 Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 out/dez; 17(4):521-6. • p.521
Trabalho e clínica na enfermagem Artigo de Pesquisa
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de cada época. Além disso, seu desenvolvimento não gem. Nesse ponto, tomamos como referencial a obra
se dá de forma linear e é marcado por construções e de Michel Foucault intitulada O nascimento da clíni-
desconstruções dentro dos diversos campos de cui- ca3. Nessa obra, o autor aponta como se deu o desen-
dado e da complexidade de sua inserção social, confi- volvimento da clínica moderna a partir do século
gurando, assim, processos de trabalho com caracte- XVIII, marcada pelos elementos daquilo que ele cha-
rísticas singulares. mou de clínica anatomo-patológica.
Percebemos, então, que prática clínica e processo Finalmente, nos propomo-nos a tomar a clinica
de trabalho implicam-se mutuamente, pois são as con- na enfermagem a partir de seu plano de composição.
dições concretas do processo de trabalho que irão preci- Esse conceito designa uma possibilidade de se abor-
sar as possibilidades de desenvolvimento da clínica, quer dar os fenômenos, não por sua essência (o que é a
ela assuma um caráter mais tecnocrático ou mais clínica na enfermagem), mas por suas potencialidades
humanístico. Por outro lado, refletir acerca do conceito (o que pode a clínica na enfermagem?)4.
de clínica, analisando suas contradições e suas poten-
cialidades, pode contribuir para um posicionamento RESULTADOS E DISCUSSÃO
mais crítico do profissional de enfermagem frente à sua
inserção no processo de trabalho. Processo de Trabalho em Enfermagem: cons-
Partindo dessas premissas, desenvolvemos este truções e desconstruções
texto com o objetivo de refletir acerca da construção
Iniciamos tomando como ponto de partida a en-
histórica do processo de trabalho em enfermagem,
fermagem desenvolvida como prática religiosa. Sabe-
percebendo como o conceito de clínica foi se deline-
mos que os valores que pautaram esta prática eram
ando ao longo dessa história. Pretendemos, ainda, fortemente marcados pelos princípios de solidarieda-
delinear algumas considerações acerca das possibili- de humana e altruísmo. O trabalho era basicamente
dades de construção de um conceito de clínica na desenvolvido por freiras e como objetivo o conforto
enfermagem que vá além daquele adotado no da alma do paciente. São marcantes nesse período da
referencial biomédico história da enfermagem as características do sistema
de organização feudal, fortemente atrelado ao poder
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO da Igreja. São seus dogmas que regem as possibilidades
de relação com o humano, o corpo é o corruptor da
Trata-se de um estudo de reflexão teórica acer- alma e é esta última que deve ser preservada.
ca da construção histórica do conceito de clínica em Entretanto, a consolidação da enfermagem
suas articulações com o processo de trabalho de en- como profissão só se deu a partir de sua desvinculação
fermagem. Sendo assim, delineamos a seguir as bases das práticas religiosas e consequente articulação
teórico-filosóficas que embasaram nossa reflexão. hierarquizada à prática médica. No comando dos es-
O conceito de processo de trabalho, conforme paços de cura, saem de cena as religiosas e entram os
adotado neste estudo, toma como base as reflexões de médicos, formados de acordo com o espírito científi-
Emerson Merhy acerca da micropolítica do trabalho co iluminista2. Essa transição se deu por volta do sé-
em saúde1. Nesta concepção argumenta-se que o pro- culo XVIII, período marcado pela institucionalização
cesso de trabalho em saúde se dá no momento do en- hospitalar como espaço de intervenção médica sobre
contro trabalhador-paciente, configurando-se, portan- a doença e com a organização anatomo-patológica da
to, como trabalho vivo em ato. Isto é, trata-se de um clínica3. Com a hegemonia do poder médico no hos-
encontro entre dois sujeitos que atuam um sobre o pital, a enfermagem vai paulatinamente deixando de
outro gerando todo um campo de intersubjetividade. ser desenvolvida pelas irmãs de caridade e passa a se
Além disso, o processo de trabalho em saúde envolve a tornar laica. O objetivo deixa de ser a salvação das
configuração de uma complexa rede na qual estão em almas e passa a centrar-se na organização do espaço
jogo elementos relativos aos sujeitos (necessidades, para que o médico possa intervir sobre a doença2,5.
desejos, interesses), às redes sociais (modo de produ- Uma das consequências dessas transformações
ção, mecanismos de modelação ideológica) e à própria foi a divisão técnica do trabalho de enfermagem, que
gestão dos serviços de saúde (políticas públicas, finan- passou a estruturar-se separando o trabalho intelec-
ciamento, estratégias de gestão). tual (desenvolvido pelas ladies nurses) das tarefas
É tomando o processo de trabalho a partir des- mecânicas (atribuídas às nurses). Às primeiras ficou
ses elementos que, na primeira parte deste artigo, nos reservado o direito de produzir o conhecimento para
debruçamos sobre a enfermagem2 para perceber como que as segundas o pusessem em prática. As caracte-
eles se configuram em cada recorte histórico. Em se- rísticas do processo de trabalho também mudam e
guida, dedicamo-nos a discutir o conceito de clínica, passam a se preocupar em garantir a padronização das
percebendo como se deu sua apreensão pela enferma- ações desenvolvidas para que estas pudessem ser se-

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guidas fielmente, garantindo a continuidade da exe- Falar em um modelo de atenção que contemple
cução das ações por trabalhadores de nível médio. estas diversas tecnologias implica realizar profundas
Entretanto, essa divisão do trabalho que a en- transformações nos processos de trabalho, trazendo
fermagem reproduziu no interior de sua categoria (até para a cena a possibilidade de processos cogestivos,
hoje presente na divisão entre enfermeiros, auxilia- flexibilizando poderes e saberes, visando à emergência
res e técnicos), era reflexo de uma cadeia maior que de processos de subjetivação singulares. Nesse contex-
situava a enfermagem no pólo executor e o médico to, os dispositivos de atuação precisam ser reinven-
como detentor do trabalho intelectual. Numa tenta- tados, entre eles o da clínica. É aí que nos pergunta-
tiva de resistência a essa posição, a enfermagem co- mos: qual a clínica possível para a enfermagem? Acre-
meça a se preocupar em delinear suas bases científi- ditamos que, ao refletir criticamente acerca de sua in-
cas e, a partir da década de 1950, iniciam-se as pri- serção no processo de trabalho, a enfermagem pode
meiras possibilidades de pensar a enfermagem como inventar novos dispositivos de atuação que reduzam a
depositária e consumidora de conhecimento. Surgem fragmentação do cuidar. Assim, entendemos que um
as primeiras teóricas de enfermagem, criam-se revis- conceito potencializador para a transformação da rea-
tas científicas e realizam-se congressos dedicados à lidade é o de clinica. Ao retomá-lo por um outro viés
área e surgem os primeiros programas de pós-gradua- que escapa à lógica biomédica, acreditamos que ele pode
ção com a preparação de um número significativo de nos permitir recuperar a raiz original do conceito kliné,
enfermeiros em mestrado e doutorado. apreendido na perspectiva de um cuidado que se faz na
presença do sujeito.
Nos anos 1970, percebemos que as aproxima-
ções da enfermagem com as ciências sociais e huma- O Conceito de Clínica na Modernidade e sua
nas e com diversas abordagens filosóficas provoca-
ram variações, levando a singularizações no seu pro- Apreensão pela Enfermagem
cesso de trabalho. Embora não tenham se tornado Pouco se discute na literatura brasileira acerca
hegemônicas, surgiram reflexões que romperam com do conceito de clínica em enfermagem. Quando se
o modelo causa e efeito do processo saúde-doença e aborda este fenômeno, geralmente se faz de forma
passou-se a entendê-lo relacionando-o à estrutura naturalizada como se clínica e abordagem da doença
econômica, política e ideológica da sociedade2. As- fossem sinônimos, como reza a prática médica. As-
sim, a enfermagem começou a ser perpassada por uma sim, é importante percebermos como se deu a cons-
linha de atuação que escapa à esfera reducionista do trução deste conceito, percebendo sua articulação
tecnicismo e se amplia para inserir o sujeito social com diferentes momentos do processo de trabalho
como objeto de cuidado. em enfermagem, pois, ao historicizá-lo, podemos abrir
Embora o modelo assistencial em saúde ainda seja espaço para a construção de outros sentidos. Nesse
predominantemente caracterizado pela prática aspecto, a obra de Foucault3, anteriormente citada,
hospitalocêntrica, nas décadas de 1980 e 1990, obser- pode ser um rico ponto de partida. Segundo o autor, a
vou-se uma mobilização da enfermagem na reorgani- clínica de espacialização do corpo e das doenças, con-
zação do setor saúde em várias regiões do mundo, e os forme conhecemos hoje, não é a única nem a primei-
enfermeiros se voltaram para a atenção primária, nos ra. Ela foi construída por meio de complexas relações
cuidados preventivos e na educação em saúde e preen- de poder e saber.
cheram espaços no cuidado domiciliar, ambulatorial e O século XVIII viu surgir uma forma inteiramen-
na comunidade, atuando também nas escolas2,6. te nova de espacialização da doença, centrada princi-
Mais recentemente, vimos despontar uma linha palmente na institucionalização3. O hospital ganhou
de pensamento que postula a autonomia do trabalha- espaço nesse novo diagrama como espaço de vigilância
dor em saúde nos modos de relação com as várias contínua. Lá, sob o olhar do médico, pode-se classificar
tecnologias em seu modo de produção do trabalho. de tal maneira os doentes que cada um encontra o que con-
Esse processo envolve a forma como os trabalhado- vém a seu estado, sem agravar, por sua vizinhança o mal de
res se relacionam com os equipamentos para trata- outro, sem difundir o contágio no hospital ou fora dele. A
mentos, exames e organização de informações ideia é a de que a doença precisa ser circunscrita para
(tecnologia dura); os saberes profissionais (tecnologia melhor expor a verdade de sua natureza.
leve-dura) ou ainda, do trabalho baseado nas rela- O olhar clínico do século XVIII valorizou sinto-
ções entre o profissional de saúde e seu cliente mas e signos. O primeiro tem lugar de destaque, pois é
(tecnologia leve). Neste último exemplo, o enfermeiro a própria forma como a doença se apresenta, é a pri-
faria um trabalho de escuta, de estabelecimento de meira transcrição da inacessível natureza da doença. Já
vínculos com seu cliente, de modo a se envolver de os signos são valorizados por sua capacidade de prog-
tal forma no problema que automaticamente ambos, nosticar o que vai se passar, fazer a anamnese do que se
profissional e cliente, assumiriam o compromisso em passou e diagnosticar o que ocorre no momento. A
resolvê-lo e enfrentá-lo7. tarefa clínica consistia exatamente em transformar o

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sintoma em elemento significante, desmascarando a ca?), mas, sim, acerca do que a compõe, como ela pode
natureza da doença por meio da observação clínica. afetar e ser afetada (o que pode a clínica?).
Nessa ação, o olhar é a ferramenta essencial3. É preciso considerá-la como atitude ética de in-
O desenvolvimento da anatomia patológica veio tervenção e como potência, numa experiência de liber-
favorecer cada vez mais esse olhar, já que abria tam- tação que parte de uma retomada de seu plano de compo-
bém a possibilidade da visão do interior do corpo. sição. O termo, oriundo da filosofia deleuziana, remete a
Somam-se à visão os sentidos da audição e do tato, uma consistência múltipla, composta de singularida-
por meio das técnicas de percussão, palpação e aus- des, reunindo elementos heterogêneos que se afetam,
culta, compondo aquilo que Foucault delineou como produzindo novos devires. Trata-se de questionar os
anatomo-clínica. Paralelo a esse desenvolvimento acontecimentos pelo seu viés micropolítico, observan-
das técnicas de cerceamento da doença, começou tam-
do as variações e multiplicidades que aí se passam4.
bém a desaparecer a ideia de um ser da doença. Ela não
podia mais ser vista como algo natural, mas, sempre, Se perguntarmos sobre como se dá esse plano de
como reação orgânica a algum agente irritante, composição na enfermagem, chegamos fatalmente à
inserida numa trama de determinações causais que sua relação com o cuidado. A clínica na enfermagem é
alteram os fenômenos anatômicos e fisiológicos3. um acontecimento que se dá numa relação de cuidado
Desenrolou-se aí uma clínica das reações patológicas entre o enfermeiro e aquele que busca seus serviços, ou
que permeou todo o século XIX e, guardadas as dife- seja, entre dois sujeitos. Examinemos, então, os termos
renças, também o século XX. que compõem essa premissa: cuidado e sujeito.
Foucault encaminhou sua exploração das linhas Pensar o cuidado como conceito fundamental
que perpassam a clínica até tocar de leve o século XX. da práxis da enfermagem é uma forma de romper com
Mas hoje, nós como atores e espectadores da aurora a visão tecnicista e objetivante que predomina na
do século XXI, podemos nos atrever a pinçar alguns ciência moderna. Apesar de reconhecer nessa ciência
aspectos que perpassam a clínica na atualidade. Po- tradicional a importância do conhecimento técnico, a
demos perceber, por exemplo, que a vertiginosa ex- enfermagem passou a apresentar a necessidade de ir
pansão dos instrumentais tecnológicos tem destituí- em busca de um referencial que valorizasse seu agir.
do cada vez mais o aparato criado na anatomo-clíni- Tomam consistência os estudos realizados na linha
ca em torno do olhar, do tato e da audição. Cada vez
do cuidar e é então que o cuidado humano passa a ser
menos estes sentidos são voltados para o paciente,
delimitado na literatura concernente como a essência
pois a tecnologia se propõe a substituí-los com exa-
mes mais sofisticados. A noção da doença e da morte da prática da enfermagem9.
como algo estranho à vida e causada por algum agente No entanto, entendemos que, se vamos nos
causal foi levada a seu extremo e é todo o comporta- apropriar desse conceito, é preciso que ele surja como
mento humano que se busca explicar pelas relações uma ferramenta para potencializar os sujeitos a quem
de causa e efeito. Além disso, descobrir a causa para prestamos o cuidado, e não como algo que ratifique
medicá-la é o objetivo, pois os fármacos acenam com uma relação de poder onde um (o enfermeiro) sabe o
a promessa de eliminar todo o sofrimento humano, que o outro (o paciente) precisa. Temos que estar aten-
da tristeza à impotência. A relação da humanidade con- tos para que este cuidar não se traduza por maternagem
sigo mesma vai ficando cada vez mais distante. ou assistencialismo, práticas historicamente relaci-
A enfermagem tem sido profundamente perpas- onadas a um altruísmo e espírito caritativo, supostamen-
sada por essas composições do plano da clínica na te inerente à profissão de enfermagem10.
medicina, sempre se ocupando de manter a organiza- O filósofo francês Jacques Gaulthier faz uso da
ção dos espaços e dos corpos para que o poder médico riqueza polissêmica da língua para nos ajudar a en-
possa agir. A prática baseada em evidências, a criação
tender essa distinção. Segundo ele, é preciso distin-
de protocolos e normas de atuação, a classificação
guir o souci do soin (dois termos utilizados na língua
dos diagnósticos, intervenções e resultados geralmen-
francesa para se referir ao cuidado), embora com
te têm se encaminhado no sentido da prática aborda-
da anteriormente. Mas, afinal, seria possível uma ou- acepções diferentes. Enquanto que o soin está relaci-
tra clínica para a enfermagem? onado a uma tentativa de minimizar o sofrimento e
maximizar o prazer, o souci aponta para algo menos
A Reinvenção da Clínica na Enfermagem: medicalizado. Remete àquilo que o sujeito pode fazer
quais as possibilidades? de si mesmo, à sua autonomia11.
Encontramos nas ideias de Passos e Barros8 al- Propomos um retorno à origem do termo cuidar
gumas ressonâncias nas questões que pautamos. Se- que é concebido pelos gregos como le souci de soi (o
gundo esses autores, a pergunta que devemos nos fa- cuidado de si). Na obra intitulada A hermenêutica do
zer não é sobre a essência da clínica (o que é a clíni- sujeito, Michel Foucault ressalta que, apesar de o oci-

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dente ter focado seu interesse no conhece-te a ti mesmo CONCLUSÃO


(remetendo a um domínio de si, muito valorizado
pelas terapias do eu), o cuidado de si é, ao contrário, Apesar de delinearmos aqui alguns conceitos
um princípio de agitação, de movimento, de perma- que podem subsidiar a construção do plano da clínica
nente inquietude no curso da existência. Trata-se de uma para a enfermagem, nossa proposta não pretende ser
questão das relações que se estabelecem entre o sujei- uma receita nem apontar caminhos prontos. Enten-
to e sua verdade12. É um conceito complexo, certa- demos que não existe um conhecimento já dado ou
mente articulado a características próprias da Grécia um fazer a priori. Pelo contrario, para que a clínica se
Antiga, mas que pode nos ajudar a pensar o desenvol- dê como um verdadeiro acontecimento, faz-se ne-
vimento de uma prática mais próxima de uma cessário que o enfermeiro se despoje de qualquer po-
potencialização dos sujeitos. sição de saber totalizador e se lance no intempestivo
O conceito de sujeito envolvido nesse cuidado de cada encontro, de cada intervenção.
também precisa ser re-situado. Sujeito não é tomado Nos caminhos que se abrem para a enfermagem,
aqui como sinônimo de individuo, uma entidade uni- vemos a opção pela ciência erguer-se como preposto.
tária, portadora de uma essência. Trata-se antes de Certamente deve-se considerar que essa trajetória já
um processo, uma produção de subjetividade, que arti- produziu muitas conquistas e que muitas outras ain-
cula, por sua vez, o plano do desejo ao plano social. da podem vir. No entanto, não podemos cair no peri-
Esse encontro envolve, portanto, elementos que po- go constante de esquecer que o foco do cuidado de
deriam parecer tão heterogêneos como um desejo in- enfermagem é um sujeito e não um objeto de conhe-
consciente de curar e uma fragilidade de vínculos tra- cimento científico.
balhistas (por parte do cuidador) e uma somatização Assim, por meio das mudanças nos paradigmas
e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde (do de cuidado clínico de enfermagem, devemos nos apro-
lado do paciente), por exemplo. priar de práticas que levem em consideração o saber
É preciso considerar, ainda, que o sujeito huma- do sujeito que busca nossas intervenções, associado
no é, antes de tudo, ser de linguagem. Esta, na sua ao nosso saber científico e, assim, poder oferecer ações
impossibilidade de simbolizar tudo, lança-o irreme- que venham aumentar sua potência e autonomia.
diavelmente numa divisão subjetiva e marca o des- Dessa forma, podemos pensar o enfermeiro, na pers-
conhecimento do homem de sua própria condição de pectiva do trabalho promotor de saúde, em um traba-
sofredor. Sendo assim, somos levados a reconhecer lho ampliado que vá além de orientações de medidas
que, na enfermagem, não lidamos apenas com neces- higiênicas e sanitárias.
sidades biofisiológicas, mas com a dimensão do dese- Para tanto, é preciso levar em consideração a
jo e no que ela implica de articulação com o outro13. história de vida de cada sujeito, abrindo espaço para
Nessa perspectiva, as intervenções de enferma- sua fala, muito mais do que para as prescrições padro-
gem extrapolam seu caráter instrumental e necessari- nizadas. E não apenas deixá-lo falar, mas escutá-lo,
amente vão ser perpassadas por uma articulação com valorizá-lo. Considerá-lo não apenas como uma do-
ferramentas de escuta, na qual a palavra é a principal ença a ser tratada, mas como um ser que estrutura sua
matéria-prima. Sendo assim, o objetivo central dessa vida e o modo de reagir ao processo saúde-doença de
clínica do sujeito se desloca do foco na cura, passando maneira bastante particular. Ou seja, o sujeito se arti-
para uma perspectiva de desconstrução/reconstrução cula no ato de cuidar não apenas como objeto dele,
de sentidos. Nesse encontro algo se passa, algo do novo mas como agente transformador do mesmo.
pode acontecer, desde que o espaço para o surgimento Desse modo, acreditamos que o processo de tra-
do sujeito seja cunhado. Entendemos que isso ocorre balho do enfermeiro será percebido dentro de uma
principalmente quando se abre espaço para a circula- ética da intervenção, no sentido de desenvolver uma
ção da palavra, pois é por meio da capacidade de sim- clínica voltada para o sujeito, em que a doença não
bolizar que o humano constrói novos caminhos. será esquecida ou desprezada, mas considerada como
Essa possibilidade de uma clínica centrada no parte das experiências que perpassam sua existência.
cuidado pode ser a abertura de um terreno fecundo
onde a enfermagem pode desenvolver seu potenci-
al. É possível pensar em um modelo de saúde que
REFERÊNCIAS
passe da forma intervencionista (que tem como ob- 1.Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produ-
jetivo principal curar) para uma outra, cujo objetivo ção da saúde uma discussão do modelo assistencial e da
primordial é o cuidar. Esta é entendida como uma intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In:
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