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SANDRA JATAHY PESAVENTO

encontros e
Erico Verissimo:
desencontros
da ficção com
a história SANDRA JATAHY
PESAVENTO
é historiadora e professora
da UFRGS.

que falar de Erico que já não

O
tenha sido dito? Como não

se repetir em lugares-comuns

sobre um escritor consagrado?

À força de retomar a obra de

Erico Verissimo, mais uma

vez, só me resta discuti-lo à

luz dessa questão cada vez

mais presente entre nós e que aproxima e distancia a história da

literatura. Ou, em outras palavras, situar Erico nessa zona de fron-

teira que é a da ficção, quando nela se vê a história se escrevendo

ou – o que talvez choque mais – quando se admite que historiadores

lançam mão de recursos ficcionais.

Pensemos, pois, neste nosso Erico Verissimo, tão caro ao Rio

Grande do Sul, e na sua escrita, sobretudo se visto a partir de sua

obra máxima, O Tempo e o Vento. A literatura, bem o sabemos

desde Aristóteles na sua Poética, é narrativa que relata o que

poderia ter acontecido, cabendo ao discurso histórico o registro

daquilo que aconteceu. Entretanto, entre a res factae e a res fictae

entra a mediação do historiador, aquele a quem cabe a árdua tarefa


de dar a ler e dar a ver – por que não? – ao e intrigas, fornecendo respostas plausíveis,

leitor/ouvinte aquilo que se passou por fora possíveis, hipoteticamente comprováveis

da experiência do vivido. Dada a impossi- através do uso das fontes. Versões veros-

bilidade de reproduzir a ocorrência do que símeis, portanto, deixando a verdade do

se passou, diante da irreversibilidade do acontecido como uma meta ou vontade da

tempo físico escoado, o historiador constrói parte do historiador. Tudo, pois, convergindo

a sua narrativa, refigurando o passado no para o tempo verbal consagrado para o uso

presente através do tempo histórico, criado da literatura: tudo teria acontecido de tal e

ou inventado por ele. Nem passado nem tal forma…

presente, esse tempo sui generis, que se Cheguemos a Erico Verissimo, esse

coloca no lugar daquilo que se passou, só é escritor que traçou um exemplar romance

dado a ver pela força da imaginação. histórico sobre o Rio Grande, cometendo a

Por estas alturas, o leitor estará a inda- façanha de chegar a ser mais aceito na sua

gar: mas então, história e literatura são a versão ficcional do passado que os textos

mesma coisa, são atividades de pura ficção, dos historiadores tout court de sua época.

invenção? Tudo, a rigor, fica no domínio Por que tal recepção? Ora, um romance

de um poderia ter acontecido? Não, caro histórico, tal como o texto de história,

leitor, pois o historiador tem, como dever discorre sobre fatos e personagens de um

de ofício, in limine, certos pressupostos passado acontecido como processo. Ou seja,

para a sua atividade narrativa de represen- se os personagens são criação do autor e

tação da realidade passada: tudo precisa ter não existiram de fato, a trama se dá em um

acontecido (acontecimentos, personagens) tempo histórico do acontecido.

e ter deixado rastros (as fontes ou marcas No caso de Erico, trata-se da formação

de historicidade), sob o risco de esse his- do Rio Grande do Sul, em saga de cerca

toriador não ser considerado historiador e de 200 anos, a partir da conquista da terra,

sim… um escritor de literatura? Talvez, mas no século XVIII, até a queda de Getúlio

prossigamos neste raciocínio, para poder Vargas, no final do Estado Novo, em 1945.

introduzir Erico nesta discussão. Mas um romance histórico pressupõe não

A história é um romance verdadeiro, disse apenas ações transcorridas no passado

Paul Veyne na aurora dos anos 70 do século como verossimilhança na narrativa dos

XX, no sentido de que tudo que aconteceu um acontecimentos e no perfil e proceder dos

dia pode vir a ser contado de forma diferente, personagens. A liberdade ficcional do autor

mas precisando ter realmente acontecido. permite a criação de personagens, tal como

Logo, a história pressupõe versões múltiplas de fatos e peripécias, mas o enredo deve

com relação ao passado, cabendo ao historia- convencer o leitor, indo ao encontro daquilo

dor selecionar fontes e argumentos, propor que, consensualmente, se espera quanto a

questões e montar enredos, decifrar pistas um clima de época.


A escrita de Erico, no caso, faz uso implica atingir verdades do simbólico.
de marcas de historicidade, explícitas e Provavelmente Erico Verissimo lera a
implícitas. Tanto o autor mescla, em ação obra de Augusto Porto Alegre, publicada em
coerente, personagens históricas com fictí- 1906 – A Fundação de Porto Alegre –, na
cias, quanto obedece a uma datação precisa qual o autor, após discorrer sobre a popula-
no desenrolar da trama ao longo do tempo. ção primitiva que ocupava a área da capital
Igualmente, Erico usa o recurso de pôr o rio-grandense, pôs em cena a lenda da índia
leitor em contato com a leitura dos persona- Obirici, como uma espécie de atestado míti-
gens, a mostrar as verdades do acontecido, co desse tempo das origens. No capítulo “A
publicadas na imprensa da época. Esse re- Fonte d’O Continente”, primeira parte da
curso é de tal forma perfeito que funciona trilogia de O Tempo e o Vento, Erico faz da
quase como uma nota de rodapé ou citação experiência missioneira um mito fundador,
do texto histórico: recurso de autoridade e justapondo lenda e história.
erudição, o autor como que desafia o leitor Os personagens são, a rigor, buscados
a refazer o seu caminho de pesquisa nos no acontecido e no fantástico: o histórico
arquivos para certificar-se e concordar com e mítico Sepé Tiaraju está presente na tra-
ele… Nessa medida, o texto tem um sabor ma do acontecido literário, no decorrer da
de real, e as situações e personagens, foros guerra guaranítica como também nas visões
de veracidade. do indiozinho Pedro. Não por acaso, esse
Sem dúvida, Erico Verissimo leu os his- menino criado pelo padre Alonso é filho de
toriadores de sua época e também os mais uma índia estuprada por um bandeirante,
antigos. Não é preciso citá-los, pois seu no bojo de uma guerra inaugural, que traça
texto é um romance, propõe-se como uma um fio condutor na história do Rio Grande.
ficção histórica, que dispensa a pesquisa de A rigor, poderá pensar o leitor, quantos es-
arquivo. Mas as marcas de historicidade lá tupros não teriam ocorrido nesses tempos
estão, e vê-se pelo encadeamento processual recuados e brutais, onde os bandeirantes
da trama no tempo que houve uma consulta teriam aprisionado os índios e violentado
certa, e um leitor mais avisado poderá mesmo suas mulheres? Tudo, pois, convincente,
reconhecer alguns desses autores lidos por quase histórico, em termos de um provável
Erico Verissimo nas páginas do romance. acontecido.
Mas, atenção: a literatura não se faz para Pedro Missioneiro, já adulto, comporá
confirmar a história! Se Erico se instrumen- com Ana Terra, a calada moça filha de
talizou das informações do conhecimento vicentinos descidos para a conquista do
histórico sobre o Rio Grande, foi para sul, o casal ancestral e fundador de uma
dizer além, através da sua narrativa de um estirpe. Pedro Missioneiro chama Ana de
poderia ter sido. Erico Verissimo incorpora Rosa mística, selando uma união sagrada
no texto também o que se dizia, o que se e profana ao mesmo tempo. Deixará em
ouvia contar. Toda uma tradição oral e um Ana a marca de seus olhos oblíquos, traço
anedotário político se revela na narrativa, herdado pela descendência dos Terra, essa
permitindo que o leitor encontre no texto o estirpe de gente calada, de pouca fala, gestos
que já sabia e que lhe contava o pai, a avó, bruscos e desconfiada. Não é assim que os
o vizinho… Talvez nem todos os leitores índios são visualizados? Tudo é verossímil,
reconhecessem nos versos declamados no tudo tem um sabor de verídico, de já sabido
galpão pelo personagem Fandango – “Índio desde sempre, mas que é agora estetizado
velho sem governo, minha lei é o coração…” na narrativa romanesca.
– a poesia popular muito antiga, cantada e No início foi a guerra, muita guerra, a
recontada através das gerações, mas prova- violência e a dureza da vida difícil, em um
velmente muitos já os teriam escutado em tempo cíclico, eclesiástico, a repetir-se. A
algum momento da vida. Essa capacidade linhagem se completa no segundo par que
de fazer o leitor reconhecer-se no narrado, se forma, no também emblemático casal
de identificar, no texto, coisas que são suas, Bibiana Terra–Capitão Rodrigo Cambará.

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Este advindo não se sabe bem de onde, filho historiadores da cultura de nossa passa-
da guerra e do vento, mas descendente de gem de século e de milênio perseguem:
um aventureiro que, levando na garupa uma a enargheia, impressão de vida, marca
moça açoriana, de olhos verdes, decidiu do espírito, de um tempo passado. Erico
assentar-se na vida, criar raízes e chamar-se, apresentou uma versão que talvez tenha se
tal como a árvore, Cambará. Tudo plausível, aproximado desses homens misteriosos do
possível, histórico e ficcional, poético e cru, passado. Os olhos de Erico, por exemplo,
ao mesmo tempo. Será esse o Rio Grande enxergaram misérias, fraquezas de caráter
que precisava ser dito, que os leitores de e degenerescência de valores nos protago-
história e literatura esperavam? nistas centrais da trama. Afinal, a linhagem
Uma literatura que se faz história, que é masculina dos Terra-Cambará é, majorita-
recebida e percebida como tal pelos leitores. riamente, fraca. E isso, sem dúvida, é ver
Um romancista que se aventura a dizer como um avesso da história. Os mais famosos da
poderia ter sido, em versão que é aceita linhagem Cambará – Capitão Rodrigo e o
como tendo sido. Pois, mesmo sabendo Doutor Rodrigo – são mulherengos, débeis
que a trama romanesca não aconteceu, é ela de caráter, egoístas, traem seus valores de
que se fixa na memória dos leitores, como juventude. São simpáticos, bem o sabemos.
representação emblemática. Praticam atos condenáveis, mas não são
Mas o que se dizia do Rio Grande no maus de todo. São até bons, mas pertencem
tempo de Erico? Histórias de glórias, de a uma linhagem que, quanto mais se avança
guerras e heróis, da Revolução Farroupilha, no tempo, mais se vê corroída. Há um fio
carro-chefe do passado, do gaúcho, senti- condutor que aponta para a degenerescência
nela da liberdade, monarca das coxilhas, e para a morte.
centauro dos pampas. De um Rio Grande Mas Erico, contudo, viu mais nessa tra-
sempre de pé, pelo Brasil, que não falhava jetória ficcional sobre o Rio Grande: viu as
ao seu destino heróico, como conclamava mulheres, personagens fio-terra, a assegurar
o mote da Revolução de 30. Por vezes, a permanência. Suas mulheres são terra, são
essa visão ufanista transparece na história duras e são firmes e teimosas, seus homens
contada por Erico Verissimo. Mas não como são vento. Ana, Bibiana, Maria Valéria,
verdade, antes como farsa ou tragédia. quem de fato garante tudo, controla a vida,
Para muitos, o romance histórico de garante a linhagem. Forte é também a trágica
Erico se converteu na possibilidade de re- Luzia, Melpômene dos olhos verdes, Teinia-
conhecer-se, apontando para uma maneira guá a encantar os homens e Erico ainda viu
de ser do Rio Grande e de ser gaúcho, de mais além: viu os pobres, a linhagem – ou
ter uma história empolgante, contada de contralinhagem, a bem dizer – dos Caré.
forma sedutora, convincente, agradável. Aqueles que na guerra eram homens, na
Mais cativante, sem dúvida, que os textos paz eram bichos. Tais personagens, bem o
de historiadores, por ser mais solta, mais sabemos, nunca existiram. Mas nas tensões
livre, por incorporar na trama aquilo que se que se dão no tempo – na história, diríamos
sabia, que se queria ler, que sempre se dis- – há realidades referenciais do mundo que
sera, mas nunca se escrevera. Um horizonte muitas vezes só podem ser representadas
de expectativas encontrava sua obra. Para de forma metafórica.
outros tantos, Erico disse mais além, disse Em lugar do acontecido, um dizer como,
outras coisas, que a história não contava. um ver assim, um poderia ter sido. Na ficção
Nesse sentido, com a sua ficção, Erico de Erico Verissimo, eu veria a história acon-
Verissimo foi ao encontro daquilo que tecendo, capturando a impressão da vida.

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