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Seguindo algumas dessas pistas nos dois volumes de seus Saggi [4] , observa-se que
o Calvino crítico se ocupa de Dante a partir da década de 60, justamente no período de sua
mudança para Paris. Alfonso Berardinelli ressalta: “(...) Calvino, por volta da metade dos anos
60, deixa a Itália e se transfere a Paris (...) Aos olhos de Calvino, a atmosfera cultural e política
italiana devia parecer, na época, sempre mais trabalhosa, confusa e sobretudo literariamente
pouco atraente. O idílio tinha acabado: Calvino narrador fantástico e militante, fábula iluminista
e curiosidade pela vida social italiana eram polaridades que não se encontravam mais em feliz
equilíbrio” [5] .
Resumidamente, a obra literária de Calvino pode ser dividida numa primeira fase, onde
os problemas da Itália do pós-guerra eram tratados de forma análoga ao do chamado
neorealismo, e a militância comunista tinha um papel preponderante; em seguida, a fase
fabulista e das narrativas alegóricas, e finalmente o que se pode chamar de fase experimental,
cibernética, onde o escritor tenta reunir suas experiências a partir de uma visão da literatura
enquanto conhecimento no sentido mais amplo do termo, ancorado nos debates científicos e
artísticos franceses. Tais fases não se encontram separadas cronologicamente, como atesta a
“Cronologia” de Mario Barenghi e Bruno Falcetto [6] : por exemplo, enquanto se empenhava na
escritura de um romance que se denominaria I giovanni del Po, seguindo a tendência
“realística-social”, Calvino escreve O visconde partido ao meio, primeiro volume do veio
fabulista.
Se o século XIX foi marcado pela regularidade dos discursos, pela observação das
continuidades ( históricas, no caso de Hegel, e biológicas, em Darwin), para Calvino, no século
XX a tendência é a divisibilidade dos elementos em unidades que depois são combinadas pelo
estudioso. O escritor deve acompanhar tais desenvolvimentos; o autor compara a máquina de
tercetos construída por Dante na Comédia, e os jogos de palavras dos trovadores provençais,
com as tentativas dos autores cibernéticos soviéticos de dissolver a literatura nos seus
elementos mais simples.
Na abertura para a coletânea de ensaios sobre os clássicos [9] , Calvino define o que é
uma obra clássica, com premissas claras e concisas. Para o escritor, clássico é um livro que
sustenta leituras e releituras múltiplas, em todas as fases da vida, e o que fornece parâmetros
que se tornam memória, parte do inconsciente. Os clássicos, segundo Calvino, são portas
abertas para infinitas descobertas: “A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa
em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura
direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários,
interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro
que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se
acredite no contrário” [10] .
Dante foi um dos autores que contribuiu para a construção do legado literatura, no
mundo ocidental; mas seria teleológico tratar sua obra como produto de um artista que se
colocava como um literato gênio; essa concepção, surgida no Romantismo, torna estreito o
projeto cognitivo dantesco.
Calvino causou polêmica ao afirmar que Galileu Galilei seria o maior escritor italiano de
prosa de todos os tempos [16] . Explicando essa afirmação em “Due entreviste su scienza e
letteratura”, o escritor afirma que Galileu levou adiante uma tradição, iniciada por Dante, que se
estabelecerá na cultura literária italiana: a idéia de que a obra pode ser especulumm mundi,
uma representação verbal ( e no caso de Galileu, também matemática) do que se vê e se sente
a partir do que se vê.
Mas é nas chamadas Lições americanas, publicadas postumamente sob o título Seis
propostas para o próximo milênio [17] , que a figura de Dante aparece, no Calvino crítico,
com toda a força de sugestão, direta e indiretamente. Na primeira lição, “Leveza”, Calvino
invoca Guido Cavalcanti, poeta florentino do círculo de Dante e herói de uma interessante
peripércia no Decameron de Boccaccio, para expressar seu ideal de flexibilidade estóica frente
a tragédia do mundo. Em oposição a Cavalcanti, Calvino apresenta Dante, o poeta do peso do
mundo, da concretude da existência; termina a explanação contemporizando os dois pólos,
associando a contemplação da linguagem leve com a da dotada de peso, mas é inegável que
Calvino não foge do fato de Dante, no “Inferno”, retomar os tópicos da tragédia antiga, a arena
jurídica que gregos e romanos reservavam para a discussão de aspectos da vida que,
Berardinelli avisa com propriedade, Calvino não pretende tratar em sua obra literária.
Esse desacerto com Dante passa a ser resolvido de duas formas: em “Rapidez”,
Calvino elogia Borges por sua linguagem sucinta e precisa ( algo que o escritor argentino, de
alguma forma, resgata de Dante, dentre outras fontes) e em “Visibilidade”, a Comédia é tomada
como uma fonte inesgotável de quadros, inauguradora de uma linha narrativa que o Calvino
escritor tenta desenvolver em Cosmicômicas.
Borges, que o próprio Calvino reconhece como grande comentador de Dante, discorre
sobre o momento culminante da Comédia: o último olhar de Beatriz ao poeta, no “Paraíso”. Na
interpretação de Borges, “Suspeito de que Dante edificou a melhor obra de toda a literatura
para intercalar alguns encontros com a irrecuperável Beatriz. Ou, melhor, os círculos do castigo
e o Purgatório austral e os nove círculos concêntricos e Francesca e a sereia e o Grifo e
Bertrand de Born são intercalações; um sorriso e uma voz, que ele sabe perdidos, são o
essencial” [18] .
BIBLIOGRAFIA
BERARDINELLI, Alfonso. “Calvino moralista”, in Novos Estudos Cebrap, no 54, julho de 1999
BORGES, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos. Lisboa: Editorial Presença, 1984
CALVINO, Ítalo. “Due entreviste su scienza e letteratura”, in Saggi ( org. BARENGHI, Mario).
Milão: Arnoldo Mondadori Editore, 1995, tomo primo
____________. “Hemingway berbero benefico, Dante qualunquista, Omero antimilitarista”,
Scritti di Politica e Costume, in Saggi ( org. BARENGHI, Mario). Milão: Arnoldo Mondadori
Editore, 1995, tomo secondo
____________.Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
2001
[1] Doutoranda em Teoria e História Literária, IEL/Unicamp, bolsista FAPESP. Trabalho final
para a disciplina LT061-Grande Autor em Língua Estrangeira I, ministrada pela profa. Dra.
Maria Bethânia Amoroso no primeiro semestre de 2003.
[2] Para uma introdução às leituras realizadas no século XX da obra de Dante, consultar
BLOOM, Harold “Introduction”, in ALIGHIERI, Dante. The Divine Comedy. New York: Chelsea
House, 1987
[3] E Alfonso Berardinelli comenta: “Difícil imaginar um destino literário mais bem realizado e
feliz do que o de Ítalo Calvino. Com certeza o autor mais amado pelos italianos de todas as
idades, lido nas escolas das primeiras às últimas séries, estudado na universidade,
atentamente analisado e admirado, sem reservas, pela crítica, Calvino nos acompanha da
infância à velhice. Sua obra constitui um dos breviários estéticos mais usados e citados da
língua italiana contemporânea.”, BERARDINELLI, Alfonso. “Calvino moralista, ou como
permanecer sãos depois do fim do mundo”, in Novos Estudos Cebrap, no 54, julho de 1999,
pg.97
[4] CALVINO, Ítalo. Saggi ( org. BARENGHI, Mario). Milão: Arnoldo Mondadori Editore, 1995
[6] BARENGHI, Mario, e FALCETTO, Bruno ( org.) “Cronologia”, in CALVINO, Ítalo. Romanzi e
Racconti. Milão: Arnoldo Mondadori Editore, 1995, volume primo
[7] CALVINO, Ítalo. “Cibernética e fantasmas. Apontamentos sobre a narrativa como processo
combinatório”, tradução de MORAES, Eugênio Vinci de. Mimeo, 1998
[9] CALVINO, Ítalo. “Porque ler os clássicos”, in Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998
[12] Dante considera, na Comédia, que a Terra é um globo, fixo e imóvel no espaço. O
hemisfério superior compreendia as terras conhecidas ( Europa, Ásia e norte da África) e o
inferior era um imenso oceano, no meio do qual, na direção radialmente oposta a de
Jerusalém, encontrava-se a montanha do Purgatório, que culmina no Paraíso Terrestre, como
aponta sucinta e oportunamente Ítalo Mauro, o último tradutor do poema no Brasil. Quando
Dante e Virgílio mudam de hemisfério, vêem, no céu noturno, “quatro sacras estrelas”
( Purgatório, Canto I), não vistas antes por pessoas vivas. Vespuccio identificou no Cruzeiro do
Sul essas estrelas, depois que a armada de Colombro cruzou o Equador. Consultar ALIGHIERI,
Dante. Purgatório, tradução de MAURO, Ìtalo. São Paulo: Editora 34, 1998, e VESPUCCIO,
Americo. El Nuevo Mundo – viajes e documenos completos. Madrid: Ediciones Akal, s/d
[13] A sugestão está em HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo:
Brasiliense e Publifolha, 2000, pg.20
[14] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992
[16] “Due entreviste su scienza e letteratura”, in Saggi ( org. BARENGHI, Mario). Milão: Arnoldo
Mondadori Editore, 1995, tomo primo
[17] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
2001
[18] BORGES, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos. Lisboa: Editorial Presença, 1984, pg.90