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REPRESENTAÇÕES
REPRESENTAÇÕES
DA IDENTIDADE E ETNICID
IDENTIDADE ADE
ETNICIDADE
DO ANTIGO ISRAEL
O estudo histórico das origens do povo de Israel está marcado por uma
bipolaridade: há os que negam a possibilidade de qualquer conhecimen-
to historicamente legítimo sobre Israel anteriormente à sua constituição
como estados monárquicos (os chamados minimalistas) e os que afir-
mam a possibilidade de uma reconstrução plena das origens de Israel,
desde o período dos chamados patriarcas até a constituição tribal de
Israel em Canaã. Neste ensaio, coloco-me fora dessas duas posições po-
lares e pergunto sobre o testemunho que o próprio Israel deu de suas
origens, a partir de um texto bíblico que é considerado um dos mais
antigos testemunhos escritos do povo israelita, o assim chamado Cântico
de Débora, em Juízes 5. Minha preocupação, entretanto, não é com o
evento narrado na poesia – uma guerra entre tribos israelitas e um rei
cananeu –, mas com as representações da identidade étnica de Israel
presentes no cântico. Neste sentido, a datação exata do cântico – um
tema ainda em discussão – não é tão importante, satisfazendo-me com
uma datação aproximada. Os critérios lingüístico-literários aplicáveis à
questão da data do cântico sugerem, de fato, uma data antiga para o
mesmo. Não vejo, porém, evidências suficientes para datá-lo no XIII
século a. C., como querem alguns – considerando o cântico como tendo
sido produzido logo após a batalha nele narrada. As evidências sugerem,
penso eu, uma datação entre a última década do século XII a. C. e o
século X a.C.1.
A importância deste cântico para a compreensão da identidade de Israel
no período anterior à constituição do Estado não pode ser negli-
genciada. Não só por ser uma das fontes mais antigas das memórias
do povo israelita, mas também por evidenciar pequena presença
dos conceitos teológicos posteriores que forjaram a identidade do
Israel estatal. Conquanto faça parte da chamada Obra Histórica
Deuteronomista, cada vez mais se reconhece que o livro de Juízes
oferece um quadro muito mais realista da vida pré-estatal de Israel
do que o livro de Josué. Do ponto de vista da pergunta sobre a
identidade, o livro todo e o cântico de Débora, em particular, for-
necem aos pesquisadores um excelente material de trabalho.
ASPECTOS TEÓRICOS
A estas três formas propostas por Castells acrescento uma quarta, a identi-
dade emancipatória, a saber, aquela forma de identidade que é fruto
bem-sucedido de um projeto de transformação social – de uma iden-
tidade de projeto – e, conquanto possa passar a ser a identidade pre-
dominante de um povo ou nação, não se configura como uma forma
de garantir e racionalizar a dominação social4.
No caso da história do Israel pré-estatal, por exemplo, poder-se-ia pergun-
tar se a identidade construída nas origens tribais se deveria entender
como uma identidade emancipatória e qual a sua relação com os pro-
jetos identitários anteriores, a saber, o auto-denominado Israel de-
senvolveu uma identidade de projeto ou de resistência? que elementos
da memória coletiva e do mito fundante estão subjacentes ao cântico?
como se deu a fusão desses distintos projetos identitários na forma-
ção do Israel tribal?
Valendo-me de perguntas como essas, proponho também um segundo eixo
tipológico para a identidade, centrado nas fontes de legitimidade da
construção identitária: identidade policêntrica, em que diversos cen-
tros legítimos de construção de identidade são admitidos e convivem
de forma relativamente harmoniosa, ou seja, coexistem em relações e
estruturas simétricas de poder – cruzando com a tipologia de Castells,
diria que a identidade policêntrica se coaduna com a identidade de
projeto e com a emancipatória; identidade monocêntrica, em que
apenas um centro legítimo de construção identitária é reconhecido
na estrutura social, e mantém relações de dominação com outros centros
de construção identitária, obviamente considerados ilegítimos – nes-
te caso, fica evidente que estamos lidando com relações e estruturas
assimétricas de poder. No cruzamento com a tipologia de Castells, a
identidade monocêntrica se aproxima mais da legitimadora.
O Cântico de Débora
(2)
v. 6 Nos dias de Samgar, filho de Anate;
nos dias de Jael, cessaram
as caravanas e os viajantes
que viajam por caminhos tortuosos
v. 7 Cessaram os habitantes das vilas
Em Israel cessaram.
Até que tu te levantaste, Débora;
Até que tu te levantaste, mãe em Israel.
v.8 Foram escolhidos deuses novos
Então, guerrearam nos portões.
Nem escudo, nem lança se viu
entre os quarenta contingentes em Israel.
(1)
v. 9 Meu coração, com os comandantes de Israel
os que se apresentaram voluntariamente com os combatentes. Bendizei
a Javé!
v. 10 Vós, que montais jumentas amareladas;
vós, que sentais nos lugares de juízo;
e vós, que trafegais pelo caminho:
v. 11 Atentai à voz dos carregadores de água entre os bebedouros
Lá se cantam as justas vitórias12 de Javé
as justas vitórias dos habitantes das vilas em Israel.
Então desceram para os portões os combatentes de Javé .
(2)
v. 12 Desperta, desperta Débora
(1)
v. 14 De Efraim, aqueles cujas raízes estão em Amaleque,
atrás de ti, Benjamim, com tuas tropas.
De Maquir desceram comandantes,
de Zebulom, condutores com cetro de comando.
v. 15 Os capitães de Issacar estavam com Débora, Issacar, fiel a Baraque,
desceu ao vale sob seu comando.
(2)
Nas divisões de Rubem, grandes ponderações.
v. 16 Por que ficaste agachado entre as fogueiras,
ouvindo os sons da flauta dos pastores?
Para as divisões de Rubem, grandes ponderações.
v. 17 Gileade permaneceu do outro lado do Jordão.
Por que Dã peregrina entre os navios?
Aser se plantou junto às praias,
juntos aos portos permaneceu.
(1)
v. 19 Vieram reis, lutaram.
Então lutaram os reis de Canaã.
Em Tanaque, junto às correntes de Meguido
despojo de prata não tomaram!
(2)
v. 23 Amaldiçoai Meroz! Diz o mensageiro de Javé.
Amaldiçoai duramente seus governantes.
Porque eles não vieram em socorro de Javé,
em socorro de Javé com os fortes.
(2)
v. 28 Da janela olhou e lamentou
a mãe de Sísera, da janela com grades.
Por que tarda a chegada de seu carro?
Por que demoram os sons de seus carros?
v. 29 A mais sábia de suas aias lhe responde,
CONCLUSÃO
Notas
1
Não cabe, aqui, a argumentação necessária para o estabelecimento da data pro-
posta. Conculte-se, para tanto, a bibliografia específica, dentre as referências bi-
bliográficas elencadas no final deste artigo.
2
“Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de
poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído. [...]
Somos constrangidos, entretanto, não apenas pela gama de possibilidades que a
cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também
pelas relações sociais. [...] ‘A identidade marca o encontro de nosso passado com
as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora [...] a identida-
de é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políti-
cas de subordinação e dominação’ (Rutherford, 1990, p. 19-20)” (WOODWARD,
2000, p. 18ss).
3
“A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato [...] a identidade não
é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogê-
nea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental [...] podemos dizer que a identida-
de é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,
inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identida-
de está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com
relações de poder” (SILVA, 2000, p. 96ss).
4
Castells opera com um conceito totalmente negativo de poder, enquanto prefiro
uma conceituação mais abrangente do poder, que inclua formas emancipatórias do
mesmo, conforme na teoria de Hanna Arendt, por exemplo: “O poder serve para
preservar a práxis, da qual se originou. Consolida-se em poder político, através de
instituições que asseguram formas de vida baseadas na fala recíproca. O poder ma-
nifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade política; b) na resistência
contra as forças que ameaçam a liberdade política, tanto exterior como interiormen-
te; c) naqueles atos revolucionários que fundam as novas instituições da liberdade:
‘o que investe de poder as instituições e as leis de um país, é o apoio do povo, que
por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e
as leis [...] Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do
poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a força viva do povo
deixa de apoiá-las” (HABERMAS, 1980, p. 103).
Referências
Abstract: this article deals with the representations of the ethnic identity of
Early Israel, according to the so-called Song of Deborah, Judges 5, written
by the second half of xii th century BCE. Its methodology is based on the
theory of Roger Chartier and it adopts a post-metaphysical notion of
identity.