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Dworkin e o Pragmatismo Jurídico

Thamy Pogrebinschi

Dworkin não é um pragmatista. Mas tampouco, sabe-se, sua abordagem pode ser
lida dentro de uma chave positivista. A concepção de direito como integridade e a idéia
de leitura moral da constituição por ele propostas o distanciam de ambos os paradigmas,
apesar de que um esforço intelectual de identificação com estas categorias possa
aparentar – e apenas aparentar – determinadas semelhanças conceituais e
metodológicas, seja no plano da aplicação do direito ou no de sua justificação.
Mas, curiosamente, a mesma característica que afasta Dworkin do positivismo o
afasta do pragmatismo: o papel que exercem a moral e a história em sua teoria. O
‘direito como integridade’ de Dworkin traz fortemente em si as marcas da moral e da
história. Neste sentido, ele não se encaixa na pretensão clássica de autonomia do direito
enquanto sistema distinto e não relacionado com outras disciplinas ou outros sistemas.
Mais do que isso, a idéia de integridade parece, de certa forma, depender da moral e da
história. 1
Conseqüencialista e instrumentalista, a marca determinante do pragmatismo é, ao
contrário, a marca da política. O contexto de suas decisões judiciais é sempre um
contexto político: os juízes pragmatistas não estão preocupados com a moral, e muito
menos com a história, no ato de julgar. Essa posição figura como inconcebível para
Dworkin, cuja coerência teórica se assenta justamente na permanência da história e da
moral em sua teoria do direito. De acordo com ele, mesmo as grandes questões
históricas julgadas pela Suprema Corte norte-americana são, necessariamente, questões
morais, e não questões políticas. O contexto de sua atividade adjudicativa é sempre um

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A noção de integridade que se vincula ao direito dworkiniano se manifesta de diferentes formas,
englobando tanto a produção do direito quanto a sua aplicação. Há, de um lado, a integridade legislativa
ou integridade na legislação, a qual circunscreve o que os legisladores devem apropriadamente fazer ao
expandir ou mudar os padrões públicos. E, de outro, a integridade adjudicativa ou integridade na
adjudicação, a qual requer que os juízes tratem o sistema de padrões públicos de forma a expressar e
respeitar um conjunto coerente de princípios e, com este fim, interpretem estes padrões com vistas a achar
padrões implícitos entre e através daqueles que são explícitos. Há ainda de se falar em dois tipos ou níveis
de integridade: a integridade inclusiva, que espera que o juiz considere as virtudes, construindo sua teoria
geral do direito de modo a refletir de forma combinada princípios coerentes de eqüidade, justiça e devido
processo legal. Este seria, segundo Dworkin, o direito que temos hoje, e que os juízes devem, portanto,
dar eficácia. Já a integridade pura convida o juiz a pensar no que o direito poderia vir a ser caso os juízes
simplesmente estivessem livres para buscar coerência nos princípios de justiça que se originam no seio
dos diferentes campos do direito.

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contexto moral, mesmo que essa moral seja retoricamente encarada como uma
‘moralidade política’.
A fonte da moralidade no direito dworkiniano reside em seu conceito de
princípios. Os famosos princípios do direito que são, sempre e necessariamente,
princípios morais. É aqui que a moral se encontra com a história para, em seguida,
subtrair a política. Os princípios aos quais alude Dworkin são supostamente tidos como
novos, embora tenham desde sempre existido de forma implícita no corpo do direito de
uma sociedade, em sua tradição. Esta é afinal a noção de consistência que se tem como
indissociável da atividade do Juiz Hércules, o juiz que aplica o direito como integridade
e que se encontra constrangido aparentemente por apenas dois limites: a história e a
própria integridade. A limitação imposta pela integridade se desdobra em três
dimensões:

1) As decisões judiciais devem consistir em questões de princípios, e não


compromisso, estratégia ou acomodação política;
2) A integridade vincula verticalmente: um juiz que afirma um determinado direito
deve mostrar que esta afirmação é consistente com o volume de precedentes e com
as principais estruturas do arranjo constitucional;
3) A integridade vincula horizontalmente: um juiz que adota um princípio no
julgamento de determinado caso precisa dar peso total ao mesmo no julgamento de
outros casos.

Assim, uma das maiores diferenças entre Dworkin e o pragmatismo jurídico é o


recurso ao passado, à história ou tradição. Dworkin constantemente refere-se ao
pragmatismo como sendo aquela teoria do direito que ignora a relevância das decisões
judiciais passadas. A referência ao passado parece ser uma obrigação para o direito
como integridade; parece, de fato, constituir a sua própria essência. O juiz de Dworkin,
confrontado com um caso que aparentemente não comporta recurso a precedentes, pode
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criar direito novo apelando para a sua própria moralidade. Já o juiz pragmatista deve
estar exclusivamente atento às demandas sociais de seu tempo, àquelas referentes ao
momento do seu julgamento, bem como às conseqüências futuras que sua decisão pode

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Dworkin trata da possibilidade de se criar direito novo, no âmbito do ‘direito como integridade’, quando
o juiz, confrontado com um hard case para o qual não há aparentemente direito ou precedente aplicável, o
decide empregando “suas próprias convicções morais ” E fará isto não obstante o que pense a legislatura
do momento presente e independentemente da concordância da ‘moralidade popular’.

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acarretar. Dworkin olha para trás e para baixo, enquanto os pragmatistas olham para
frente e para cima; Dworkin olha para o passado, os pragmatistas olham para o futuro.
O futuro só existe para Dworkin no contexto de um novo capítulo a ser escrito em
seu romance encadeado, a chain novel. Mas, trata-se de um ‘novo’ capítulo apenas na
medida em que é consistente com os capítulos anteriores. O juiz Hércules tem que
primeiro olhar para trás, para então poder olhar para frente. A inovação que ele traz é
uma inovação que conserva. Já o juiz pragmatista jamais olha para trás, a não ser como
estratégia para poder olhar ainda melhor para frente. O juiz Hércules pode inovar, pode
criar novo direito, mas apenas se, como etapa de seu método interpretativo, tiver antes
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olhado retrospectivamente para a história. Mesmo que nesta não encontre respaldo ou
repostas para a decisão a ser tomada, a qual pode ser nova, pode inovar, desde que seja
consistente com o que está para trás. A decisão de Hércules é um novo capítulo de uma
mesma história, mas jamais conta uma história nova. Ele até inova em suas decisões,
mas inova reinventando e reconstruindo o dado, o que já existe. Já o pragmatismo,
segundo o próprio Dworkin corretamente aponta, só vai prestar qualquer atenção ao
passado por uma questão de estratégia, de boa estratégia: ele rejeita, afinal, o papel dos
princípios e, particularmente, a idéia de consistência que a eles se atrela.
Observe-se então como, para Dworkin, a idéia de integridade se encontra
intimamente ligada a essa noção de consistência. O direito como integridade busca
constituir-se como uma comunidade de princípios, como uma teoria do direito que
apresenta uma consistência contínua entre precedentes judiciais, decisões políticas
legislativas passadas, história constitucional e estrutura interna da constituição. Por quê?
Porque isso permite que não se recaia em teorias céticas ou teorias substantivamente
vazias sobre o direito e os direitos; permite, afinal, que se evite o convencionalismo e o
pragmatismo jurídico.
Dworkin rejeita tanto o realismo jurídico quanto o pragmatismo. Ambos são para
ele teorias céticas. Para provar esse ponto ele estabelece uma nítida distinção entre os
dois. O primeiro, seria apenas uma teoria semântica do direito (do mesmo modo que o
positivismo) e não uma concepção interpretativa, como, pelo menos, seria o caso do
pragmatismo. Segundo Dworkin, os realistas não acreditavam nem mesmo na existência
do direito, o viam apenas como uma maneira de prever o que os juízes iam fazer, ou

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Dworkin afirma a possibilidade de se aduzir princípios que não estejam expressos em decisões judiciais
passadas, mas que seriam implícitos nas mesmas. Neste sentido, pode-se pensar que estes seriam novos
princípios.

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seja, meramente como um instrumento. Afirma ainda que, mais do que reivindicações
semânticas, as proposições realistas podem ser entendidas simplesmente como tomada
de posições políticas provocativas. Os pragmatistas, por sua vez, segundo Dworkin, são
aqueles que acreditam que as pessoas não têm direito a nada além de uma decisão
judicial que, apesar de interpretar o direito, desconsidera absolutamente o passado.
O pragmatismo seria assim, no entanto, um adversário poderoso, do qual Dworkin
esforça-se para se esquivar ao longo de toda a sua obra. Após ter tido seu livro Taking
Rights Seriously, de 1977, criticado por se enquadrar em uma chave consequencialista e,
portanto, próxima do pragmatismo, em Law’s Empire, seu livro seguinte, de 1986, já se
mostra bem preocupado em refutar o pragmatismo – apesar de reconhecê-lo como forte
oponente de sua própria teoria – e em distinguir o seu próprio conceito de direito, o
‘direito como integridade’. Posteriormente, em Freedom’s Law, de 1994, estas chaves
distintivas já estão consolidadas e o conceito de ‘leitura moral da constituição’ vem a
amarrar coerentemente todo o desenvolvimento lógico de seu pensamento e de sua
própria concepção de direito em oposição ao pragmatismo.
Já o neopragmatismo, movimento surgido nas duas últimas décadas do século
XX, e que pode ser distinguido tanto do realismo jurídico como do próprio
pragmatismo, seria, segundo Dworkin, “uma perda de tempo para a teoria do direito”.
Centrando sua crítica, em um primeiro momento, na figura de Richard Rorty, Dworkin
acusa os novos pragmatistas de distinguirem dois níveis: um primeiro nível (‘nível
interno’) no qual uma atividade prática tal como o direito é realizada e as pessoas
utilizam o vocabulário que é útil a elas ("isto é..."). E um segundo nível (‘nível
externo’), no qual os teóricos falam sobre estas atividades, mais do que participam
propriamente delas ("isto realmente é...."). De acordo com Dworkin, este segundo nível,
no qual neopragmatistas como Rorty se inserem, não existe. As proposições dos
neopragmatistas seriam, assim, falsas. Elas são fascinantes, diz Dworkin, mas apenas
até nos perguntarmos se elas realmente significam, em nossa linguagem ordinária, o que
parecem dizer. A metáfora seria assim a principal artilharia utilizada pelos
neopragmatistas contra um inimigo que eles mesmos criam e acreditam existir. Dworkin
desafia que os neopragmatistas mostrem qual é a diferença entre as proposições teóricas
que eles rejeitam e aquelas ordinárias que aceitam; isto é, os provoca a descrever
aquelas proposições que normalmente refutam aprioristicamente. Esse é um desafio que
ainda espera resposta.

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