Você está na página 1de 12

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM LETRAS/ ESTUDOS LITERÁRIOS

DISCIPLINA: HISTÓRIA DO LIVRO E DA LEITURA

PROFESSORA: VALÉRIA AUGUSTI

O queijo e os vermes: diálogos entre


leituras
Izabela Alves Jangoux
BELÉM/PA-2010

O queijo e os vermes: diálogos entre


leituras.
Izabela Alves
Jangoux

Resumo: Ao produzir o Queijo e os vermes, Carlo Ginzburg torna


público um processo inquisitorial da itália contra-reformista, o
chamariz desse processo está no fato de o réu, um moleiro de Friuli,
ter sido levado a julgamento por conta das interpretações
consideradas heréticas e sacrílegas das leituras que fazia de textos
sagrados. A proposta deste trabalho e examinar a postura como leitor
não só do protagonista desta micro-história como também do autor
Carlo Ginzburg.

Palavras chaves: Leitura, história, processos interpretativos.

1. INTRODUÇÃO

Deu em um jornal televisivo a notícia de que a história da


cidade de São Paulo está a salvo, isto é, não está mais ameaçada
pelas brocas famintas que habitam os arquivos públicos. Todos os
processos ocorridos na cidade estão passando por um processo de
restauração e digitalização, para que, desta forma, o público possa
ter acesso a tais documentos através da internet. O jornalista cujo
nome não me lembro, destacou alguns processos curiosos como o
de um escravo que assassinou um branco e teve como sentença,
além de bons anos de regime fechado, duzentas e tantas
chibatadas.

Registros escritos como estes instigam o interesse não só do


leitor comum como de inúmeros pesquisadores de diversas áreas,
afinal tais registros contam narrativas com personagens e tramas
reais. Na reportagem, por exemplo, foi entrevistado um

2
doutorando que estudava o andamento da justiça no século XIX.
Tal fato me recobrou o livro O queijo e os vermes do historiador
italiano Carlo Ginzburg, cuja notoriedade da obra se dá justamente
por sua pesquisa ser pautada na leitura detalhada de processos
inquisitoriais da Itália contra-reformista do final da Idade Média. No
entanto, a “popularidade” do trabalho de Ginzburg se dá
justamente pelo fato de ele transformar suas investigações
científicas em narrativas muito interessantes como a que constitui
o livro que citei acima.

Passei parte do verão de 1962 em Udine. O


Arquivo da Cúria Episcopal daquela cidade
preserva um acervo de documentos inquisitoriais
extremamente rico e, àquela época, ainda
inexplorados. Pesquisei os julgamentos de uma
estranha seita de Friuli, cujos membros os juízes
identificaram como bruxas e curandeiros (...). Ao
folhear um dos volumes manuscritos dos
julgamentos, deparei-me com uma sentença
extremamente longa. Uma das acusações feitas a
um réu era a de que ele sustentava que o mundo
tinha sua origem na putrefação. Essa frase atraiu
minha curiosidade no mesmo instante, mas eu
estava à procura de outras coisas: bruxas,
curandeiros (...) nos anos que seguiram, essa
anotação ressaltava periodicamente de meus
papéis e se fazia presente em minha memória.

(GINZBURG, 2006, p. 9)

O referido réu era Domenico Scandella, mais conhecido como


Menocchio. O mesmo interesse que esse relato despertou em
Ginzburg é despertado nos leitores de O queijo e os vermes,
porque uma coisa é conhecer através dos livros de História o que
fora o Tribunal da Santa Inquisição, a Contra-Reforma, a Idade
Média... Outra, mais interessante ainda, é ficar diante de uma
história real ocorrida na época, de um julgamento inquisitorial.

Menocchio fora levado ao severo julgamento da Igreja contra-


reformista por conta de idéias que difundia pela comunidade em
que vivia a respeito de questões dogmáticas para a Igreja.
Domenico, por exemplo, afirmava que a origem de tudo estava na

3
putrefação. Sobre um dos Sagrados Sacramentos, a Comunhão,
tinha suas próprias interpretações, no entanto, quando posto
diante dos inquisidores que presidiam seu julgamento não desdizia
nada, porém, reformulava suas proposições de forma que elas
ficassem “politicamente corretas” e coubessem nas expectativas
do discurso da Igreja Católica.

Quando procurou o vigário de polcenigo, num dia


de distribuição de hóstias, Menocchio exclamou:
“Pela Virgem Maria, são muito grandes essas
bestas!”. Numa outras vez, discutindo com o
padre Andrea Bionima, disse: “Naõ vejo ali nada
mais que um pedaço de massa. Como é que pode
ser Deus? E o que é esse tal Deus a não ser terra,
água e ar?”. Mas ao vigário geral explicou: “Eu
disse que aquela hóstia é um pedaço de massa,
mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela.
Eu realmente acredito nisso”.

GINZBURG, 2006, p. 43

Claro que ao fazer isso, Menocchio estava tentando livrar-se da


sentença mortal do julgamento ao qual estava sendo submetido,
todavia, os responsáveis por sua inquisição já conheciam as
convicções do moleiro e percebiam suas contradições nas
respostas dadas durante o processo.

Ginzburg (2006) observa que Menocchio era um homem


diferente na comunidade em que vivia, pois suas idéias, ao que
tudo indica, eram interpretações de leituras que fazia. O moleiro
era autodidata e sua prática de leitura chegava a um nível
avançado para um homem do povo na Idade Média, visto sua
capacidade de interpretar e reposicionar aquilo que lia. Eram essas
interpretações compreendidas como heréticas e sacrílegas que
levaram Menocchio ao tribunal da Santa inquisição.

Para Chartier (1992) é incorreto persistir na crença de que haja


uma diferença primordial e imutável nas práticas de leitura de um
erudito e de um popular, ou seja, é preciso “reconhecer a

4
circulação fluida e as práticas comuns que extrapolam as
fronteiras sociais”.

Existem inúmeros exemplos dos usos “populares”


de objetos, idéias e códigos que não eram
considerados como tais (pensemos, por exemplo,
nas leituras de Menocchio, o moleiro de Friuli);
inversamente, a rejeição por parte da cultura
dominante, das formas erradicadas na cultura
comum surgiu tarde.

(CHARTIER, 1992, p. 230)

Deste modo, a motivação deste trabalho se dá justamente em


analisar a postura de Carlo Ginzburg e de Menocchio como
leitores. Em que ponto a prática da leitura do autor (Ginzburg) e do
personagem (Menocchio) se cruzam? Como eles podem dialogar
durante a produção de O queijo e os vermes? Aliás, é possível este
diálogo, já que os dois habitam espaços, épocas e circunstâncias
muito diferentes?

2. As práticas de leitura de Ginzburg e Menocchio.

Muitas vezes, entre o texto e o leitor, se dá um envolvimento


muito grande que comporta não só a curiosidade e a busca pelo
conhecimento do que está escrito, mas também emoções,
sentimentos em relação ao que está escrito. A leitura é um ato de
recriação, reinvenção da produção do outro, é “uma prática
criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não
redutíveis às intenções dos autores dos textos...” (CHARTIER,
1992, p. 214).

Um texto nunca sai ileso de uma leitura, pois o ato de ler é uma
prática, muitas vezes, dialógica, já que não podemos considerar o
leitor como um papel “em branco”, vazio, mas como um indivíduo
possuidor de conhecimentos e experiências que dialogam com as

5
informações escritas no texto. O texto não se constitui sem o
leitor, pois é ele que, com suas interpretações e inferências
reordena e retira significado(s) dele (CERTEAU, apud CHATIER,
1994).

No final da Idade Média, as classes sociais estavam ficando


cada vez mais definidas, desta forma, as classes dominantes
procuravam fazer o possível para manter as classes menos
favorecidas sob seu domínio1. O fato de Menocchio ser um moleiro
e estar incluso em um grupo de profissionais economicamente
ativos, o torna uma interseção entre o conjunto dos que
dominavam e o conjunto dos que obedeciam.

Menocchio sabia ler e isso o tornava diferente dos demais


homens de sua época, haja vista que, segundo FISCHER (2006),
ainda era muito pequena a parcela de pessoas capazes de realizar
a leitura individual na Idade Média, até os próprios clérigos,
pertencentes ao grupo dos privilegiados socialmente, ainda
apresentavam alguma defasagem no ato de ler; o povo, de um
modo geral, “lia” através das figuras que ilustravam as igrejas e os
livros de orações. A prática da leitura deu a Menocchio uma certa
autoridade diante da comunidade em que vivia, pois o fato de ele
ter sido levado ao Tribunal da Santa inquisição tardiamente, pode
nos dar a entender que suas idéias poderiam convencer uma parte
das pessoas que conviviam com ele.

Mas essa é uma discussão vazia, pois, infelizmente, Ginzburg


não traça um panorama cultural da região e da comunidade onde
morava Menocchio, nem revela exatamente que leituras
especificamente ele fez, pois o que Ginzburg nos apresenta são as
idéias formuladas pelo moleiro a partir daquilo que leu. Desta
forma, para compreendermos as “recepções contraditórias ao
texto” de Domenico Scandella, devemos considerar as influencias

1
PASSETI, Gabriel. Um estudo de micro-história: Domenico Scandella nos processos da
inquisição. Disponível em http://www.klepsidra.net/klepsidra5/menocchio.html

6
da “multiplicidade de aptidões e expectativas” dos leitores e os
diferentes usos feitos de um determinado texto (ROJAS, apud
CHARTIER, 1992).

Ginzburg (2006) diz que Menocchio possui um “complicado


relacionamento com a cultura escrita, os livros (ou, mais
precisamente, alguns dos livros) que leu e o modo como os leu”
(GINZBURG, 2006, p. 10), pois foi essa leitura “desastrada” que
levou o moleiro a se tornar um réu da Santa Inquisição.

Nosso estudo se torna mais interessante quando investigamos


não só a postura de Menocchio como leitor, mas também a de
Carlo Ginzburg, afinal de contas, O queijo e os vermes, é, num
plano geral, uma culminância da leitura feita por Ginzburg do
registro escrito do processo inquisitorial que julgou o moleiro
friuliano.

Segundo Chartier (1994), não podemos definir a distância


entre o sentido atribuído ao texto pelo autor e aos sentidos
atribuídos pela interpretação dos leitores deste mesmo texto. A
postura de Carlo Ginzburg como leitor nos mostra um
envolvimento extremo com os textos que servem de fonte para
suas pesquisas, ou seja, os registros escritos dos processos
inquisitoriais italianos.

Quando entrei pela primeira vez na grande sala


cheia de armários em volta, onde estavam
conservados, em perfeita ordem, quase 2 mil
processos inquisitoriais, senti a emoção de um
garimpeiro que dá com uma rocha inexplorada.

GINZBURG, 2007, p. 282

Como disse Rojas (apud CHARTIER, 1992), cada leitor chega a


determinado texto impulsionado por um interesse singular. O que fez
os processos inquisitoriais parecerem interessantes aos olhos de
Ginzburg? Quais seus interesses na leitura desses documentos?

7
No ensaio O inquisidor como antropólogo, o autor de Os queijos
e os vermes faz comparações entre essas duas ocupações chegando
a dizer que “os atos processuais produzidos pelos tribunais laicos e
eclesiásticos poderiam ser comparados com o caderno de notas de
um antropólogo em que tenha sido registrado um trabalho de campo
feito séculos atrás” (GINZBURG, 2007, p. 280). Nesse mesmo texto, o
autor diz que os processos inquisitoriais configuram um vasto campo
de pesquisa para aqueles que procuram conhecer e entender o
comportamento e as atitudes das classes subalternas da Idade Média.
As dificuldades em trabalhar com as sociedades do passado são
muitas, principalmente quando o foco do trabalho está dirigido à
parcela menos privilegiada da população, afinal as poucas fontes que
se tem são pouco acessíveis, além de terem sido produzidas por
pessoas pertencentes às classes dominantes (GINZBURG, 2006).

Além disso, definir o que seria cultura popular de um povo que


não possui muitos testemunhos sobre seus comportamentos e
atitudes. (GINZBURG, 2006, p. 11) é uma tarefa que requer uma
leitura apurada do texto em sua forma material e das circunstâncias
que rodearam sua produção.

O popular não está por natureza vocacionado para


a análise quantitativa e externa dos cientistas
sociais e, como mostra C. Ginzburg, quando os
documentos o permitem é inteiramente lícito
apreender, à lupa, como um homem do povo pode
pensar e utilizar os elementos intelectuais
esparsos, que, através dos seus livros e das
leituras que deles faz, lhe advêm da cultura
letrada. (...) “ Por detrás dos livros revolvidos por
Menocchio tinhamos individualizado um código de
leitura; por detrás deste código, um sólido estrato
de cultura oral”.

CHARTIER, 1990, p. 57

Teorizando as leituras de Ginzburg sobre os processos


inquisitoriais, especificamente sobre o que deu origem ao livro O
queijo e os vermes, chegamos ao que Chartier (1994) resume como
sendo tarefa do historiador:

8
...reconstruir as variações que diferenciam os
espaços legíveis- isto é, os textos nas suas formas
discursivas e materiais- e as que governam as
circunstâncias de sua efetuação- ou seja, as
leituras compreendidas como práticas concretas e
como procedimentos de interpretação.

CHARTIER, 1994, p. 12

Assim, podemos compreender que, ao construir O queijo e os


vermes, Ginzburg nos traz não só a remontagem da vida de um
personagem que poderia ficar esquecido nos amontoados de
processos arquivados, como a possibilidade de mergulharmos no
pensamento, nos conflitos internos e no processo de interpretação de
um homem que viveu na Itália medieval. O queijo e os vermes é,
assim, a materialização da leitura que Ginzburg fez do processo de
Menocchio e, por que não dizer, das leituras dele. Para nós, ficou
reservada a tarefa de ler o que foi lido e inferir, segundo nossos
conhecimentos prévios.

3. CONCLUSÃO

As relações de poder presentes na micro-história de


Menocchio são indiscutíveis.

Os personagens que vemos se embaterem nesses


textos não se encontravam, é óbvio, no mesmo
plano (o mesmo poderia ser dito, se bem que num
sentido diferente, dos antropólogos e seus
informantes). Essa desigualdade no plano do
poder (real e simbólico) explica por que a pressão
exercida pelos inquisidores para arrancar dos réus
a verdade que procuravam era, em geral, coroada
de sucesso. Esses processos parecem-nos, além
de repetitivos, monológicos..., no sentido de que
geralmente as respostas dos réus apenas fazem
eco às perguntas dos inquisidores. No entanto, em
certos casos excepcionais encontramo-nos diante
de um verdadeiro diálogo: percebemos vozes bem
distintas, diferentes, opostas mesmo.

(GINZBURG, 2007, p. 286)

9
Todavia, é interessante para nós perceber que na composição
de O queijo e os vermes encontramos um material rico para que se
perceba que a relação entre texto e leitor pode acontecer
independentemente dos níveis culturais e sociais tanto de cima para
baixo como de baixo para cima. É como se fosse uma ciranda que,
mesmo em constante movimento, não deixa de receber novos
sujeitos para participar dela:

Porém, quando comparamos Carlo Ginzburg e Domenico


Scandella nos é possível aproximá-los como leitores. A prática de
leitura de Domenico está sujeita a um contexto dominador e
censurador que moraliza e não deixa aberturas para o exercício da
interpretação, no entanto, o moleiro extrapola tais limites e recria

10
suas leituras de maneira singular. Ginzburg não vive sob a mesma
censura de Menocchio, no entanto, é sabido que toda leitura cientifica
é norteada e delimitada por inúmeros critérios, entretanto, a leitura
do processo inquisitorial de Menocchio e as informações por ele
trazidas extrapolaram os limites da disciplina História e se espalham
por diversas outras áreas quando Ginzburg produz O queijo e os
vermes.

4. REFERENCIAL TEÓRICO:

• CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas


culturais. In: ________. A História Cultural. Rio de Janeiro:
Bertrand, 1990.

• CHARTIER, Roger. Comunidade de leitores. In: ________. A ordem


dos livros. Brasília: Ed. da UNB, 1994.

• ______________. Textos, impressão, leituras. in: HUNT, Lynn. A


nova história cultural. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992.

• FISCHER, Roger. A visão do Pergaminho. In: _______. História da


leitura. São Paulo: Ed. da UNESP, 2006.

• GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In:_________, O


fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício.São Paulo: Cia das
Letras, 2007.

11
• ______________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias
de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das
Letras, 2006.

12

Você também pode gostar