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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Bacharelado em Direito

Anna Carolina Pires Ferreira

Bruna Letissa Ferreira Machado

José da Conceição Júnior

Robson Silva Generoso

O ACOMPANHENTO PSICOLÓGICO DAS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL E


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: um estudo de caso no município de Santo Antônio
do Itambé/MG

Serro

2018
1. INTRODUÇÃO

Os estudos no âmbito das ciências sociais que discorrem sobre a


temática da violência doméstica e, especificamente, os que tratam do abuso
sexual de crianças e adolescentes, como a valiosa produção de Heleieth
Saffiotti, apontam reiteradamente para o fato de que esse tipo de violação
específica do direito à integridade física, moral e psicológica está circunscrita a
uma perspectiva de gênero. Nesse sentido, esse trabalho tem por objetivo
investigar no município de Santo Antônio do Itambé, cidade tipicamente
bucólica do interior mineiro com uma população de aproximadamente 5000
habitantes, as ocorrências de casos de abuso sexual e violência doméstica
contra crianças e adolescentes e atuação dos órgãos do poder público na
apuração e acompanhamento das denuncias, bem como, no acolhimento das
vítimas e de seus familiares. No encalço da temática aqui abordada, considera-
se a possibilidade de aperfeiçoamento da articulação intersetorial do Conselho
Tutelar e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)
na apuração das denuncias, de maneira que as mesmas possam ser relatadas
tendo como garantia a confidencialidade dos denunciantes com o rompimento
do paradigma cultural centralizado no discurso de culpabilização das vítimas
num contexto historicamente marcado pelo patriarcalismo.

Para a concretização dos objetivos elencados, buscamos, por meio de


entrevistas semiestruturadas com os profissionais dos setores públicos citados,
fazer um levantamento dos dados da realidade fática local no que diz respeito à
atuação desses mesmos órgãos. A fim de orientar teoricamente as
sustentações hipotéticas a serem confirmadas com os resultados aferidos nas
entrevistas, recorremos à obra de Heleieth Saffioti intitulada “Gênero,
patriarcado e violência” e sua arguta percepção da incidência predominante
desse tipo de violência sobre a mulher que, por estar em posição de maior
vulnerabilidade, encontra-se subjugada às normas e padrões societários
essencialmente discriminatórios. Procuramos, ainda, investigar em fontes
jurisprudenciais e na legislação pertinente que trate da proteção integral
conferida à criança e ao adolescente no que tange ao uso e direcionamento
dos instrumentos probatórios e relatórios diagnósticos produzidos pelos
psicólogos na formação e construção das decisões judiciais e sua relevância
no contexto específico dos casos de abuso sexual e violência doméstica.
2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Esclarecimentos conceituais sobre o abuso sexual e a violência


doméstica na perspectiva do gênero

O entendimento científico tradicional a respeito das práticas abusivas


que corrompem a integridade física, moral e/ou sexual do sujeito aponta para a
hipótese de que tais indivíduos apresentam uma maior probabilidade de
reproduzir o trauma do qual foram acometidos. Ainda de acordo com essa
perspectiva levantada por Saffioti (2015, p. 19), essas mesmas pessoas
manifestariam uma tendência, devido ao estado de vulnerabilidade em que se
encontram, a serem mais permissivas, colocando-se em posição de mera
passividade diante de investidas sexuais ou violência física ou psíquica de
outrem. Contra este argumento, a autora afirma que no processo de
elaboração do seu estudo sobre o histórico da violência contra as mulheres,
“nenhuma informante, que fora vítima de abuso sexual de qualquer espécie,
revelou tendência, seja de fazer outras vítimas, seja de maior vulnerabilidade a
tentativas de abuso contra si mesma”. Entretanto, considera-se não defensável
o posicionamento de que abusos sexuais sejam inócuos, não produzindo
repercussões prejudiciais no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Ao
contrário, em outra pesquisa realizada pela autora tendo como objeto
específico o abuso sexual do tipo incestuoso, não se encontrou nenhuma
vítima resiliente. Segundo as próprias considerações da autora quanto a esta
controvérsia:

Na mencionada pesquisa, assim como na vastíssima literatura


especializada internacional, o abuso sexual, sobretudo incestuoso,
deixa feridas na alma, que sangram, no início sem cessar, e,
posteriormente, sempre que uma situação ou fato lembre o abuso
sofrido. A magnitude do trauma não guarda proporcionalidade com
relação ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas com
êxito num grande número de casos. Feridas da alma podem,
igualmente, ser tratadas. Todavia, as probabilidades de sucesso, em
termos de cura, são muito reduzidas e, em grande parte dos casos,
não se obtém nenhum êxito. (SAFFIOTI, 2015, p. 19)
A análise de Saffioti ainda incide sobre questões sociais e suas
diferenciações quanto ao estrato a que cada vítima de abuso pertence.
Considerando que, durante a entrevista com o membro do Conselho Tutelar,
verificou-se a partir dos resultados colhidos que a maior parte dos casos
registrados e acompanhados se originam no âmbito de famílias social e
economicamente desfavorecidas, onde o agressor (geralmente o pai ou
padrasto, no caso dos abusos incestuosos) apresenta baixo grau de
escolaridade. Nesse contexto o abuso sexual ocorre pela via da violência, de
forma brutal.

O pai coloca um revólver, na mais fina das hipóteses, ou uma faca de


cozinha junto à cama ou sobre ela, joga a menina sobre o leito,
rasga-lhe as roupas e a estupra, ameaçando-a de morte, se gritar, ou
ameaçando matar toda sua família, se abrir a boca para contar o
sucedido a alguém. [...] No caso do pai pobre e de baixa
escolaridade, vai-se diretamente ao ato sexual, sem prolegômenos de
nenhuma espécie: não há carícias, não há um avançar paulatino. por
essas razões, é brutal. (SAFFIOTI, 2015, p. 22)
Em termos comparativos, a autora ressalta descritivamente a conduta
do agressor que ocupa uma posição social e econômica favorável e que, em
decorrência desse fator, apresenta um nível mais elevado de escolaridade,
geralmente possuindo formação superior. Nesse contexto, influenciado pelo
elemento educacional conformador de sua conduta, a violação se dá pela via
da sedução. Nesse sentido, pondera Saffioti (2015, p. 21):

“As técnicas [de sedução] são bastante sofisticadas, avançando


lentamente nas carícias, que passam da ternura à lascívia. Muitas
vezes e dependendo da idade da criança, esta nem sabe discernir
entre um e outro tipo de carícia, sendo incapaz de localizar o
momento da mudança. Como a sexualidade da mulher é difusa por
todo o corpo e a sexualidade infantil não é genitalizada, as carícias
percorrem toda a superfície de seu corpo, proporcionando prazer à
vítima.”
Em um primeiro momento, pode-se pensar, equivocadamente, que as
consequências do abuso sexual incestuoso para vítimas pertencentes a
camadas sociais contrastantes, atingem de maneira mais contundente e
gravosa àquela que pertence ao estrato social e econômico menos favorecido
no que diz respeito ao seu auto reconhecimento enquanto vítima imbuída ou
não pelo sentimento de culpa, bem como no tempo de recuperação e o esforço
despendido por ela no evento pós-traumático. Assim, poderíamos supor que
exista um vínculo de correspondência entre a brutalidade do pai na abordagem
da menina ou menino das camadas sociais menos favorecidas e a
profundidade do trauma causado em sua filha pelo estupro ou pela penetração
anal, no caso do garoto. Segundo a descrição minuciosa realizada pela autora
colocando-nos no lugar da vítima pertencente a uma família com escassez de
recursos de subsistência:

A menina pobre, sozinha em casa com seu pai, não tem a quem
apelar. A presença da arma branca ou de fogo reitera
permanentemente as ameaças verbais. Ela não tem escapatória.
Entrar em luta corporal com seu pai só piora as coisas. Primeiro, não
podendo medir forças com um homem adulto, poderia sair muito
ferida daquela situação. Segundo, e em última instância, poderia
perder a vida nesta brincadeira de mau gosto. A rigor, não havia
saída. Se não havia escapatória, ela é, indubitavelmente, vítima e
como tal se concebe e define. Logo, não há razões para sentir-se
culpada. [...] Ademais, salvou sua família da morte. Desta sorte, esta
menina não se vê como culpada; vê-se como vítima. (SAFFIOTI,
2015, p. 22)
Voltando-se ao termo de comparação estabelecido entre as vítimas de
abuso sexual pertencentes às famílias abastadas e as que integram núcleo
familiar que vive na margem da pobreza, teremos em um polo a menina
mimada, acariciada, pensando estar o pai apaixonado por ela e vendo na figura
materna a representação de uma rivalidade criando-se uma relação de
concorrência entre elas. Assim, “na medida em que sua mãe é considerada
rival, não pode se inteirar dos fatos”. A vítima que integra a família mais
abastada foi paulatinamente “introduzida nas artes do amor pelo seu próprio
pai, provedor também de prazer sexual. Trata-se, por conseguinte, de um pai
amado”. Dessa maneira, é possível aduzir que, embora ela não se reconheça
como vítima, o que de fato é, e seja destituída de qualquer responsabilidade
pelo ocorrido, a criança inserida neste contexto específico se vê como
copartícipe, do que, por sua vez, decorre uma profunda culpa, fazendo com
que se sinta inimiga de sua mãe. A conclusão chocante em que chega a
autora, ressalvando-se que nenhuma das abordagens é conveniente à criança,
é que, “em termos psíquicos e distúrbios sexuais posteriormente manifestados,
o abuso sexual via sedução é infinitamente pior que a brutalidade do pai menos
instruído e menos maneiroso”. (SAFFIOTI, 2015, p. 27)

As digressões que poderiam ser realizadas no âmbito teórico da


investigação a que se propõe este trabalho excedem seus objetivos. Portanto,
considerando as informações e esclarecimentos conceituais até aqui
apresentados de forma exemplificativa, limitaremos nossa análise aos
elementos empíricos fornecidos pelas entrevistas a fim de contrastarmos as
perspectivas aqui apresentadas.

2.2 Entrevista semiestruturada: resultados preliminares

De acordo com os esclarecimentos fornecidos em entrevista concedida


pelo membro integrante do Conselho Tutelar de Santo Antônio do Itambé
relacionados às funções deste órgão público de auxílio e acompanhamento de
crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e/ou outros tipos de violência
doméstica, constitui como competência funcional atender crianças e
adolescentes ameaçados ou que tiveram seus direitos violados e aplicar
medidas de proteção, bem como atender e aconselhar pais ou responsável,
levar ao conhecimento do Ministério Público fatos que o Estatuto da Criança e
do Adolescente (regulamentado e instituído pela lei nº: 8.069/90) tenha
configurado como infração administrativa ou penal, encaminhar a justiça os
casos que a ela são pertinentes; requisitar certidões de nascimento e óbito de
crianças e adolescentes, quando necessário, levar ao Ministério Público casos
que demandem ações judiciais de perda ou suspensão do pátrio poder. Como
o juiz e o promotor, o Conselho Tutelar pode, nos casos a que atende, fiscalizar
as entidades governamentais e não governamentais que executam programas
de proteção e socioeducativos. Ainda afirma o entrevistado existir a ocorrência
de denúncias de abuso sexual no município, tendo o membro do Conselho
participado ativamente do acompanhamento e apuração das mesmas.

Os denunciantes, como afirmado em entrevista, geralmente são


membros integram a unidade familiar, podendo ser também relatadas por
vizinhos e professores, sendo as vítimas crianças e adolescentes entre a faixa
etária de 11 a 17 anos, em sua maioria meninas. Segundo as considerações
feitas pelo entrevistado, a título de opinião leiga sobre o assunto e, portanto,
conforme sua percepção particular dos fatos, a classe social a que pertence a
vítima não exerceria influência no aspecto de profundidade do trauma a que
vítima é submetida, o que contraria os apontamentos dispostos no estudo de
Heileieth Saffioti, apresentados anteriormente.

Entretanto, confirmando a perspectiva elucidada e defendida pelo


estudo sociológico, os agressores são, de um modo geral, pessoas conhecidas
e próximas à criança ou ao adolescente, mantendo, em muitos casos, vínculos
de parentesco direto com eles. Assim, a ocorrência de casos de abuso sexual
do tipo incestuosos não é incomum. O Conselho Tutelar apresenta um
posicionamento prático de caráter preventivo ao promover, periodicamente,
ações que visam o combate e a prevenção do abuso sexual e da violência
doméstica. Dessa forma, como afirmado em entrevista, fazem-se palestras de
conscientização nas escolas, nas comunidades rurais e blitz educativa no dia
18 de maio que é o dia Nacional de Combate ao Abuso e á Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes.
O segundo ente público a que recorremos para a concretização das
finalidades desse trabalho foi o CREAS (Centro de Referência Especializada
de Assistência Social) que se vincula à Secretaria de Ação e Desenvolvimento
Social do município de Santo Antônio do Itambé. Entrevistamos o assistente
social responsável pela administração indireta da instituição e, com relação às
competências da mesma diante de casos de violência doméstica e aos
procedimentos preliminares a serem adotados frente a uma criança que tenha
sido vítima de abuso sexual no âmbito das relações intrafamiliares, obtivemos a
seguinte resposta:

“O CREAS, enquanto uma unidade de proteção social especial, vai


atuar diante de situações como essa tentando, a princípio, amenizar os danos
daquele risco a criança ou ao adolescente, e trabalhar estabelecendo um plano
de ação visando a reversão daquela situação. Por que muita das vezes o
abuso gera um rompimento de vínculos familiares, gera danos psicológicos na
vitima. Se a demanda chegar primeiro ao CREAS, a primeira iniciativa que
deve ser tomada é o acionamento do Conselho Tutelar, pois é ele quem tem
competência de ação imediata nos casos de abuso sexual contra crianças e
adolescentes. No artigo 136 §único do ECA está disposto que o único órgão
competente para ação imediata em casos de abuso sexual contra crianças e
adolescentes é o Conselho Tutelar. Quem pode tirar a criança de certas
situações se identificado o eminente perigo é o Conselho, que “é o soldado da
guerra”, ele que vai na frente, e após a situação ser resolvida de imediato, o
CREAS atuará no sentido de uma prestação serviço planejada, com plano de
ação, e, às vezes o caso requer uma medida imediata que deve ser
direcionada ao Conselho Tutelar.”

Ao ser questionado com relação ao número de registros de ocorrências


de denúncias de abuso sexual no município e, na hipótese interpretativa de
haver um número irrisório das mesmas, o entrevistado afirmou que, a partir do
ano de 2017 até os dias atuais, foram registradas apenas duas denúncias
desse teor. Dessas duas denúncias, ambas se fundamentavam sem suspeitas
por parte de vizinhos e familiares das vítimas e apenas uma delas veio a ser
confirmada posteriormente. De acordo com entendimento do assistente social
entrevistado, isso se deve ao fato de que as pessoas não conseguem
compreender o espectro de abrangência do que configuraria realmente um
abuso sexual, provindo do senso comum que o mesmo somente seria efetivado
com o ato da penetração, desconsiderando-se os outros meios para a
consecução da conduta infringente.

Ainda de acordo com as considerações feitas pelo assistente social, as


consequências traumáticas decorrentes do abuso sexual enseja ações que
objetivam amenizar seu sofrimento o que, por sua vez, torna-se muitas vezes
inviável visto que não existia um psicólogo disponível no Posto de Saúda da
cidade para a realização do acompanhamento da vítima, vindo este a ser
contratado muito recentemente. Os dois casos registrados no ano de 2017 não
tiveram esse acompanhamento. Conflitando essa informação com a que foi
concedida pelo membro do Conselho Tutelar, na ausência de um
profissional/psicólogo no município, as vítimas tinham esse acompanhamento
prolatado por decisão judicial na vara da infância de Diamantina, onde um
psicólogo era especificamente designado para cumprir tal atribuição.

Desse modo, a escuta das vítimas era realizada no sentido de se


fornecer aos seus responsáveis, e no atendimento prioritário da demanda e do
interesse daquelas, orientações legais para que se tenha acesso à
reivindicação de seus direitos de maneira facilitada pela integrada dos órgãos e
instituições públicas. Hoje em dia, diante das atuais condições, o tratamento
terapêutico é encaminhado para o profissional da saúde responsável a fim de
que a vítima verbalize ou manifeste de alguma forma a ocorrência do abuso.

2.3 A atuação do psicólogo no contexto jurídico e as considerações finais


das entrevistas semiestruturada

Chegamos nesse ponto à delimitação específica do escopo temático


deste trabalho onde investigaremos a importância da atuação do psicólogo no
acompanhamento e auxílio prestado às vítimas de abuso sexual. Entretanto,
antes de partirmos para as considerações dos profissionais que se dispuseram
a nos conceder as entrevistas, faz-se necessário uma pequena digressão para
que se possa melhor compreender a esfera de abrangência de atuação dos
psicólogos no que diz respeito à produção de possíveis elementos probatórios
nas demandas judiciais no que tange a formação do entendimento decisório.
Para o atendimento de tal finalidade utilizaremos como referência o estudo
desenvolvido por Cátula Pelisoli e Débora Dell’Aglio que investigaram, por meio
de entrevistas, as percepções de psicólogas judiciárias a respeito de seu papel
em situações de abuso sexual promovendo, dessa forma, uma ligação
interdisciplinar entre as esferas do domínio de conhecimento da Psicologia e do
Direito.

Partindo do pressuposto intrínseco de que o abuso sexual consiste em


um fenômeno complexo por afetar tanto o indivíduo sobre qual recai a conduta
criminosa em posição de passividade em relação ao crime, como também seus
familiares e toda a sociedade, infere-se sobre a necessidade de reflexões e
intervenções interdisciplinares por meio de um conjunto articulado de ações de
enfrentamento dessa realidade no encalço da observância do princípio da
proteção integral da criança e do adolescente preconizado pelo ECA. Nesse
sentido, a Psicologia desempenha o seu papel nos mais diversos âmbitos de
atuação e, mais especificamente no contexto jurídico, conforme apontam as
autoras do estudo em análise, “uma das atuações possíveis dos psicólogos é
no sentido de assessorar os magistrados ao fornecerem informações que
subsidiam suas decisões”. (PELISOLI; DELL’AGLIO, 2013, p. 176)

De acordo com o estudo, é possível perceber que a perícia psicológica,


enquanto um dos instrumentos de ação dos psicólogos que intervém no
conteúdo decisório, tem sido bastante requisitada pelos operadores jurídicos.
Dessa forma, a perícia psicológica, bem como o estudo psicossocial, são
considerados como meios de prova que são utilizados para aferição da
ocorrência de um fato objetivando “dar materialidade a um crime e/ou
comprovar a existência de um ato delituoso”. Portanto, através de técnicas e
instrumentos que incorporam os resultados das análises psicológicas, “a
perícia psíquica buscará contribuir para a comprovação ou não de um fato de
interesse da Justiça, com objetivo investigativo e diagnóstico, e servirá como
prova para subsidiar decisões”. (PELISOLI; DELL’AGLIO, 2013, p. 177)

Há, entretanto, que se estabelecer um desdobramento da avaliação


psicológica na perspectiva do estudo psicossocial que promove maior âmbito
de incidência pela inclusão da “escuta do outro”. Assim, de acordo com a
perspectiva do estudo psicossocial, que integra um grupo de profissionais
atuantes no enfrentamento do problema, o papel da Psicologia não se
restringiria à realização de perícias, pois constitui também um espaço de
escuta conectado com a atuação dos profissionais que atendem o caso em
momento posterior à avaliação forense. Nesse sentido ponderam as autoras:

O momento do estudo psicossocial também é uma oportunidade para


que a família encontre o sentido de seus conflitos e para que a Justiça possa
contribuir na ressignificação dos afetos e emoções desses personagens a partir
da construção de um espaço conversacional. A equipe interdisciplinar que
realiza o estudo psicossocial pode encaminhar os envolvidos para atendimento
a partir da percepção dessa necessidade. (PELISOLI; DELL’AGLIO, 2013, p.
177)

Decorridas as exposições conceituais e metodológicas a respeito da


atuação dos profissionais da Psicologia no contexto dos interesses jurídicos de
apuração de fato criminoso que configura o abuso sexual, passaremos a
analisar os resultados finais do processo de entrevistas dos profissionais que
integram o Conselho Tutelar e o CREAS de Santo Antônio do Itambé. Quando
perguntado sobre a disponibilidade de um psicólogo ao membro do Conselho
Tutelar, o mesmo afirmou que as vitimas são encaminhadas ao Hospital em
Diamantina para que possa ser feito o exame para comprovar o estupro.
Depois são encaminhadas ao CISAJE em Diamantina onde são assistidas por
uma equipe multiprofissional (Psicólogo, Assistente Social e Ginecologista) no
CEAE (Centro Estadual de Atenção Especializada). No primeiro momento e
posteriormente ao psicólogo do município. O assistente social entrevistado
reitera confirmando a imprescindibilidade da atuação conjunta do CREAS
juntamente com o psicólogo do Posto de Saúde no enfretamento da situação.
Ainda considerando a relevância da atuação do psicólogo para a identificação
dos traços traumáticos decorrentes do abuso sexual e para o acompanhamento
psicoterapêutico da vítima, assim ponderou o conselheiro tutelar:

“As vítimas de abuso sexual tem medo de se abrir, de falar do que


aconteceu. Muitas vezes nós temos a suspeita, que como falei, chega por
denúncias anônimas, ou de conhecidos, vizinhos, familiares e professores.
Essas pessoas podem ter visto alguma coisa, desconfiar de comportamentos.
Chegando a denúncia até nós, conversamos com a vítima, com os familiares,
mas na maioria das vezes elas não têm coragem de se abrir com a gente.
Encaminhamos ao psicólogo para que isso aconteça, para ele conversar,
orientar, passar uma confiança para o que se encontra em situação de
vulnerabilidade, para que possa tentar descobrir algo. Com isso ajuda na
identificação do abuso e também na superação”.
3. CONCLUSÃO

Diante do estudo realizado e partir das informações obtidas por meio


das entrevistas e da pesquisa bibliográfica a respeito do abuso sexual de
crianças e adolescentes e a atuação do profissional da Psicologia no contexto
da ação jurisdicional, podemos observar uma flagrante dissintonia entre as
políticas governamentais e sua aplicação na realidade prática das cidades
interioranas que, por sua vez, não possuem uma estrutura ainda
suficientemente eficaz que promova o diálogo interdisciplinar e intersetorial no
enfrentamento da situação problema aqui levantada.

Consideramos ainda que as entrevistas nos forneceram valiosos


elementos para refletir sobre a realidade local inseridos em uma perspectiva
dialógica entre os estudos provenientes das ciências sociais em confronto com
os dados concretos colhidos nos depoimentos dos entrevistados. Decorre disso
a imprescindibilidade da articulação das ações dos órgãos do poder público de
maneira integrada a fim de que se busque o aperfeiçoamento das práticas
institucionais no sentido de se erradicar as condutas lesivas aos direitos das
crianças e dos adolescentes enquanto conformados por sua vulnerabilidade
peculiar.
REFERÊNCIAS

PELISOLI, Cátula; DELL'AGLIO, Débora Dalbosco. Psicologia jurídica em


situações de abuso sexual: possibilidades e desafios. Bol. psicol, São
Paulo, v. 63, n. 139, p. 175-192, dez. 2013. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S00065943201300
200006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 04 maio 2018.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência. 2. ed. São Paulo:


Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

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