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ISSN: 1983-6597 (versão impressa); 2358-1425 (versão online). doi:10.20952/revtee.2016vl9iss17pp 111-120
Resumo
Abstract Resumen
No one doubts that the curriculum studies had the Si es cierto que los estudios curriculares tenían el poder,
power, from the critical analysis, to draw the attention a partir del análisis crítico, para llamar la atención sobre el
onto the knowledge conveyed by the curriculum, ac- conocimiento transmitido por el currículo, acusándolo de
cusing it of inducing social inequality. But it is also true inducir la desigualdad social, también es cierto que nos ha
that we were left, as curriculum specialists, somewhat dejado, como especialistas en currículo, un tanto paraliza-
paralyzed regarding school function, bringing to discus- dos con respecto a la función de la escuela, trayendo a la
sion the type of knowledge that it should value: either discusión del tipo de conocimiento que se debe valorar: un
an experiential common sense knowledge, restricted conocimiento de sentido común experiencial, restringido
to the worldviews of students, or a more academic and a las visiones del mundo de los estudiantes, o un cono-
expertise knowledge, even if labeled elitist. This issue is cimiento más académico, incluso si la etiqueta elitista. Este
particularly meaningful in a mass education context, since problema adquiere mayor importancia en un contexto de
the curriculum orthodoxy clashes with cultural diversity educación de masas, ya que la ortodoxia del currículo choca
and is therefore presented as castrating the construc- contra la diversidad cultural y por lo tanto se presenta como
tion of many other personal and social identities. But in castradora de la construcción de muchas otras identidades
an increasingly globalized and highly competitive world, personales y sociales. Pero en un mundo cada vez más glo-
of accelerated change at all levels, under the umbrella of balizado y altamente competitivo, de cambio acelerado en
information and communication technologies, cannot the todos los niveles bajo la batuta de tecnologías de la infor-
curriculum effectively be an instrument of emancipation? mación y comunicación, no puede el currículo ser efectiva-
mente un instrumento de emancipación?
Key-words: castrating curriculum; knowledge and com-
mon sense; emancipating curriculum Palabras clave: currículo castrador; conocimiento y sen-
tido común; currículo emancipador.
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Ao contrário do ideal iluminista que presidira à instau- Como diz Silva (2000), “As teorias tradicionais eram teo-
ração da escola pública – o de retirar o povo das trevas rias de aceitação, ajuste e adaptação. As teorias críticas
da ignorância – a reflexão trazida por Althusser (1970) são teorias da desconfiança, questionamento e transfor-
sobre essa mesma escola enquanto um dos aparelhos mação radical” (p. 27). Isto é, enquanto as teorias tradi-
ideológicos do Estado, em relação direta com a econo- cionais consagravam a ortodoxia, com o receituário di-
mia e a produção, bem como as análises sociológicas dático-pedagógico das regras de bem ensinar, as teorias
de Bourdieu e Passeron (1970), sobre La réproduction críticas, por serem transgressoras, provocaram a recon-
social através do habitus e da (dupla) violência sim- ceptualização do currículo, enquanto área de estudo e
bólica relativamente a determinado capital cultural, investigação que se encontrava ainda a dar os primeiros
exercida na École capitaliste en France (BAUDELOT; ES- passos como tal.
TABLET, 1971), e através da Schooling in capitalist Ame-
rica (BOWLES; GINTIS, 1976), obras estas publicadas Pinar (2010) explica bem como, quase por acaso, se deu
nos anos setenta do século que passou, trouxeram um esta viragem na I Conferência realizada na Universidade
novo olhar, já menos ingénuo, sobre aquilo que efetiva- de Rochester, em 1973, acabando por marcar o início do
mente se ensinava e se aprendia na escola, numa pers- movimento da Reconceptualização Curricular:
petiva de poder, na arena política entre dominantes e
dominados. “My PhD mentor, Paul R. Klohr, and I had plan-
ned the 1973 Rochester Conference as a “sta-
te-of-the field” meeting; we did not foresee
Não nos esqueçamos do ambiente fértil para a reflexão, that it would initiate a decade of dispute that
nomeadamente quando os estudos sociais em escolas e would result in the field mapped in Understan-
universidades passaram a ganhar uma dimensão mais ding Curriculum” (PINAR et alli, 1995) (PINAR,
afirmativa e de intervenção política, na senda dos mo- 2010: 528).
Esta narrativa (neo)marxista de manutenção das diferen- - As culturas das etnias minoritárias ou sem poder;
ciações de classe social e económica, através do currículo,
foi entretanto alargada para outro tipo de diferenciação - As culturas do mundo feminino;
social trazida pelo debate pós-moderno: a da raça, da cor
da pele, do género e da orientação sexual de cada um, - As culturas das sexualidades lésbica e homossexual;
quando confrontados com o conhecimento que a escola
pública veicula através de um currículo exclusivamente - As culturas da classe trabalhadora e das pessoas pobres;
desenhado a partir de uma única referência: o modelo
europeu de cultura e civilização, espartilhado em áreas - As culturas do mundo rural e ribeirinho;
autónomas e especializadas, fortemente denunciado
pelo movimento dos “estudos culturais”, sob a liderança - As culturas das pessoas portadoras de deficiências físi-
de Giroux e Simon (1989). cas e/ou psíquicas;
Sobre o currículo pende agora a crítica de um cada vez - As culturas da terceira idade;
maior desfasamento entre as tradições modernistas que
o enformam desde o nascimento da escola pública, en- - As culturas do Terceiro Mundo.
quanto agência de “governamentalização” da ordem
social, e as reais condições pós-modernas que vivemos São estas vozes heterogéneas que não são contempla-
atualmente. Temos assim um currículo ortodoxo, onde das pelo currículo, apesar de povoarem a escola pública
a questão da identidade cultural se joga no âmbito das e nela acentuarem cada vez mais as cores da diferença.
certezas e dos valores ocidentais do homem branco, de Por isso se diz que o currículo é castrador, quando as ig-
estatuto social elevado, saudável, heterossexual, com nora, subordinando-as aos ditames de uma história úni-
hábitos urbanos, e de um determinado Estado (SOUSA, ca e cultura estandardizada, num processo de “testing,
2015), como verdades universais, em confronto direto sorting and tracking”.
com um mundo pós-moderno de identidades híbridas,
práticas culturais locais e espaços públicos plurais, que O conhecimento como cerne do currículo
surgem como ameaçadores, como explicava Giroux em
1994, num dos seus artigos online: Como estamos a ver, o que move os estudos curriculares,
no momento atual, é a sua própria essência, aquilo que
“an epistemic arrogance and faith in certain- está no âmago do currículo, ou seja, o conhecimento. É
ty sanctions pedagogical practices and public
o conhecimento afinal que justifica a existência da esco-
spheres in which cultural differences are viewed
as threatening; knowledge becomes positioned la, da universidade ou de outra instituição educativa. Só
in the curricula as an object of mastery and con- que a abordagem ao conhecimento tem variado ao lon-
trol; the individual student is privileged as a uni- go da história da epistemologia: ou se considera que o
que source of agency irrespective of iniquitous conhecimento tem existência própria, estando apenas à
relations of power; the technology and culture
espera de ser descoberto; ou se considera que o conheci-
of the book is treated as the embodiment of
modernist high learning and the only legitima- mento é uma realidade construída pelo sujeito.
te object of pedagogy” (GIROUX, 1994).
Na primeira hipótese, cabe ao currículo propiciar o aces-
Torres Santomé (1998) elenca mesmo algumas “vozes so ao conhecimento, por uma via racional ou empírica.
ausentes na seleção da cultura escolar” (p. 131) que aca- Pela via racional, partindo do princípio de que o conhe-
bam por ficar esmagadas pela cultura hegemónica: cimento está dentro de cada um, sendo necessário ape-
nas desvelá-lo, através do raciocínio silogístico, das infe-
- As culturas infantis e juvenis; rências lógico-matemáticas, conduzidas pelo professor
116 REPENSAR O CURRÍCULO COMO EMANCIPADOR
socrático como parteiro das ideias do aprendiz, sendo tion postmoderne” (LYOTARD, 1979) que tudo relativiza,
a matemática e a lógica disciplinas fundamentais neste levando-nos a olhar para a própria ciência como criação
processo. Pela via empirista, através da observação e da subjetiva e por isso assente em areia movediça, segundo
experimentação com base nos sentidos, muitas vezes o princípio da falsificabilidade (POPPER, 1984). Lyotard
falíveis, é certo, recorrendo por isso à instrumentação considera a pós-modernidade como o fim das meta-
(microscópios ou telescópios enquanto extensões mais -narrativas (master narratives), das verdades absolutas,
refinadas dos sentidos humanos) para obviar às relativi- dos grandes esquemas explicativos do mundo, sejam
dades da percepção. eles ideologias ou sistemas de saber totalitários, como
passa a ser encarada a própria ciência. Se ela foi liber-
Quando se começa a falar de conhecimento científico, tadora, quando surgiu, trazendo a esperança para a re-
ele surge como resultado de múltiplas observações des- solução dos problemas que assolavam a humanidade,
comprometidas e sistemáticas; seria um conhecimento substituindo Deus, a visão anarquista da ciência, segun-
objetivo, sem qualquer interferência de valores humanos do Paul Feyerabend (1924-1994) acusa-a de nos impor
ou religiosos. À incerteza da razão entregue a si própria, a todos um único Método, universal, aprisionando-nos
opõe-se, como vemos, a certeza da experiência, ordena- numa ditadura presumidamente científica. Seguindo
da por etapas bem definidas: 1. Identificação do proble- este raciocínio, por que não aceitar as vias alternativas
ma; 2. Formulação de uma hipótese; 3. Recolha de da- da ciência, como as medicinas alternativas, a dança da
dos; 4. Interpretação dos dados recolhidos; 5. Extração chuva ou a astrologia?
de conclusões. 6. Confirmação, rejeição ou modificação
da hipótese. Entramos assim na segunda hipótese: a de que o co-
nhecimento é construído pelo sujeito. Uma coisa é o
E é no contexto do pensamento científico moderno que acesso à informação (e esta tem aumentado de forma
nasce a escola pública e, com ela, o currículo científico e exponencial com a explosão tecnológica); e outra coisa
tecnológico centrado na organização do acesso ao conhe- é a informação ganhar significado para o sujeito, quan-
cimento, um conhecimento que ninguém punha em ques- do é filtrado pelo seu contexto particular de vida, pas-
tão, por ser objetivo, factual, observável e mensurável. sando a conhecimento. Enquanto antes o sujeito devia
se abstrair da sua subjetividade, entendendo-se o “facto”
Mas é sobre esse conhecimento pressupostamente neu- como a própria realidade – ou seja, o conhecimento com
tro que as teorias críticas e pós-críticas do currículo ques- existência própria; agora o “facto” é modelado pelas per-
tionam, relacionando-o com o poder: Que conhecimen- cepções, concepções e representações do sujeito – isto
to faz parte do currículo? De um universo extremamente é, o conhecimento é construído pelo sujeito. A dissocia-
vasto, por que motivo determinado conhecimento é ção entre sujeito e objeto, formulada por Descartes, ego
considerado mais importante do que outro? Que conhe- cogitans e res extensa, dá assim lugar à ideia de sujeito
cimento é posto à parte? Quando se fala de conhecimen- enquanto elemento criador do objeto, aquele que con-
to socialmente válido, ele é válido para quem? Quem o fere significado ao objeto observado. Em última análise,
determina? De que classe social é o construtor do currí- dir-se-ia que não existe conhecimento se não houver o
culo? A quem serve essa seleção de conhecimento? sujeito que o apreende.
São as questões de desconfiança do “porquê” e “para É evidente que esta nova visão de conhecimento,
quê” do conhecimento do currículo, conhecimento esse enformada pela “condition post-moderne”, terá
corporificado em manual escolar de maneira a preser- necessariamente os seus reflexos no currículo. Já ninguém
var a sua ortodoxia, que levaram os estudos curriculares tem dúvidas de que, chamemos os nossos tempos de pós-
a encarar o seu objeto de estudo de outra forma, não modernidade, modernidade tardia (GIDDENS, 2000), mo-
podendo deixar de ter como pano de fundo, “La condi- dernidade líquida (BAUMAN, 2006) ou hipermodernidade
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mentos necessários de leitura e escrita, tendo em vista Considera, pelo contrário, que “é preciso salientar veemen-
a sua própria libertação, penso que é possível, também temente a desonestidade intelectual dos teorizadores do
a escola proporcionar um terreno fértil para uma praxis discurso das vozes e o dano potencial que podem causar
de construção de conhecimento, assumindo o currículo àqueles que se encontram nas situações mais vulneráveis”
uma dimensão emancipadora associada a um projeto de (Id. Ibid. p. 53), para rebater a tese que classifica o conheci-
formação de sujeitos capazes de, conscientemente, re- mento académico como elitista e ideológico, o que, na sua
fletir, produzir e transformar a sua existência e a do seu opinião, revela um profundo anti-intelectualismo. Mesmo
meio. Apesar de reconhecer que é difícil de conciliar a que organizado em disciplinas, reforça o autor, o conhe-
problematização sistemática em torno das ideias gera- cimento académico não é um dado adquirido, mas antes
doras, característica da alfabetização freireana, com o um produto social, pois também ele foi construído, só que
currículo que pela sua natureza é ortodoxo, estou con- neste caso pela comunidade de especialistas e pela pró-
vencida de que é possível propiciar a transgressão no pria ciência. Naturalmente que outras questões poderiam
âmbito da ortodoxia, desde que contemos com profis- aqui ser desencadeadas, trazendo o discurso das vozes à
sionais à altura, com um nível de conhecimento elevado discussão: E quem são os especialistas? Qual a sua visão
e que detenham ao mesmo tempo uma visão crítica e de mundo? Onde estão localizados os centros de investi-
situada no contexto global da pós-modernidade. gação? Quem apoia a ciência? Quais as revistas científicas?
Paga-se para nelas se publicar? Etc., etc.
Recorro também a Michael Young, um dos fundadores
do movimento da Nova Sociologia da Educação (NSE), Enfim, sem querer desvalorizar a importância de se ana-
que havia publicado, em 1971, um livro significativamen- lisar, de forma crítica, o currículo (prescritivo e ortodoxo)
te intitulado de “Knowledge and Control: New Directions e o conhecimento académico por ele veiculado nas suas
in the Sociology of Education”, constituído por capítulos relações com o poder instalado, penso que é importante,
escritos por si e por outros, como Bourdieu e Bernstein, também, encará-lo noutra perspetiva, como a sugerida
por exemplo, quando, num rebate de consciência faz o por Freire e Young: a do empoderamento dos aprendi-
seu mea culpa, raciocinando em torno precisamente de zes, precisamente daqueles oriundos dos grupos sociais
“Bringing Knowledge Back In” (2008), traduzido para Por- menos favorecidos. A não ser assim, que instrumentos de
tuguês, em 2010, como “Conhecimento e Currículo. Do promoção social e cultural estará a escola a propiciar a
socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da estes grupos, se os relegarmos aos seus saberes práticos
educação”. Apesar de reconhecer que o conhecimento vivenciados no seu dia-a-dia?
é socialmente produzido, Young acaba neste livro por
defender a sua independência relativamente às lutas de Considero que é importante dar voz às diversas mundivi-
poder e aos interesses sociais, distinguindo claramente dências que coabitam o palco escolar, mas precisamente
o conhecimento académico daquilo que é meramente para delas partir para a construção do conhecimento de
senso comum, oriundo das experiências do dia-a-dia. cada um, cabendo à escola pública a responsabilidade
Acusa também o relativismo das teorias críticas e pós- de estabelecer a ponte entre esse discurso popular, base-
-críticas, pelo facto de, ao promoverem o discurso das ado no imediato e no concreto, e proveniente das expe-
vozes referido no ponto nº 1 desta reflexão, nos terem riências quotidianas dos alunos, e o discurso académico.
conduzido a um beco sem saída, quando eleva o senso Sem renegar as origens populares, preservando-as antes
comum à categoria de conhecimento, na presunção de orgulhosamente dentro de si, o currículo tem a missão
que “todas as afirmações de conhecimento e de verda- de abrir horizontes aos alunos. Por isso, não pode deixar
de são equivalentes, quer derivem do senso comum, da que o senso comum se sobreponha ao conhecimento,
tradição popular, da investigação científica realizada em numa lógica de aceitação plural e democrática, pois sai-
laboratório ou do conhecimento disciplinar sistemático” rão prejudicados precisamente os mais vulneráveis, mes-
(YOUNG, 2010, p. 38) mo que a intenção tivesse sido a de os proteger.
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Em jeito de conclusão, direi que o currículo não pode FREIRE, Paulo. Education as the practice of freedom in edu-
abdicar de promover o crescimento global, e particular- cation for critical consciousness. New York: Continuum, 1973.
mente intelectual, para que cada aluno, independente- GAGNÉ, Robert W. Curriculum research and the promotion of
mente da sua cor, raça, classe social, género e orientação learning. In R. W. TYLER; R. M. GAGNÉ; M. SCRIVEN (Eds.). Pers-
pectives of curricular evaluation. Chicago: Rand McNally,
sexual, tenha a possibilidade de exercitar o pensamento
1967.
científico de forma a conseguir estar em pé de igualda-
de com os demais. Para compreender e intervir critica- GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Oeiras:
Celta Editora, 2000.
mente no mundo natural e social, é necessário, por isso,
um currículo, por natureza ortodoxo, exigente e, por via GIROUX, Henry. Slacking Off: Border Youth and Postmodern
Education. Journal of Advanced Composition 14:2 (Fall 1994),
dessa exigência, emancipador, que lhe permita, com ba-
1994, pp. 347-366,
ses sustentadas em conhecimento digno desse nome, a
GIROUX, Henry; SIMON, Roger. Popular culture, schooling,
transgressão consciente.
and everyday life. Granby, Mass.: Bergin & Garvey, 1989.