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RESUMO
Este artigo tem como objetivo explicar o argumento de que Deus é “Ex-Lex” conforme
apresentado na teodicéia calvinista do filósofo cristão Gordon H. Clark e apresentar uma defesa
contra recentes espantalhos e falácias, demonstrando sua base bíblica. Na primeira seção
discutiremos a relação entre a vontade e a essência divina na perspectiva do Dr. Clark. Na
segunda seção buscaremos esclarecer o contexto e a definição da expressão Deus é Ex-Lex. Na
terceira seção lidaremos brevemente com a crítica de John Frame. A quarta seção lida com a
definição de voluntarismo. E a última seção procura esclarecer a Teoria do Comando Divino
endossada pelo Dr. Clark.
Palavras-Chave: Teoria do Comando Divino Não-Voluntarista; Voluntarismo; Soberania Divina.
ABSTRACT
This article aims to explain the argument that God is "Ex-Lex" as presented in the Calvinist
theodicy of Christian philosopher Gordon H. Clark and present a defense against recent
scarecrows and fallacies, demonstrating their biblical basis. In the first section we will discuss
the relationship between the will and the divine essence in Dr. Clark's perspective. In the second
section we will seek to clarify the context and definition of the expression God is Ex-Lex. In the
third section we will deal briefly with John Frame's criticism. The fourth section deals with the
definition of voluntarism. And the last section seeks to clarify the Divine Command Theory
endorsed by Dr. Clark.
INTRODUÇÃO
1
Bacharel em Teologia Reformada pela Sociedade de Estudos Bíblicos Interdisciplinares - SEBI.
Villey, sob a influência de Aristóteles e do direito romano e para a prática verdadeira do direito,
teria restabelecido a necessária autonomia em relação à revelação” (BERTHOUD, 2018, p. 27-
28). Essa dissociação da lei divina como referência para alcançar a justiça e definir a ética e a
transferência de foco para o direito natural é um dos fatores, de acordo com Berthoud, que
contribui para a secularização do direito.
Quando Clark faz alusão ao locus da ética na filosofia ele não pretende dizer que o
assunto é meramente técnico. Desde que a cosmovisão é inevitável, mesmo aqueles que
enfatizam a prática em detrimento da teoria adotam a teoria de que a prática deve preceder a
teoria. Dessa forma, todos tem uma visão de mundo, uma filosofia, e é possível que a ética
esteja deslocada de seu locus adequado em sua filosofia.
Os principais exemplos que Clark usa para clarificar a questão vem de Platão e do
filósofo alemão Immanuel Kant.
No diálogo Eutífron Platão, utilizando-se de Sócrates como personagem, levanta uma
questão cuja importância não ficou restrita à filosofia, mas foi discutida amplamente na teologia.
Assim foi colocada a questão: “Dentro em breve, amigo, compreenderemos melhor; ora, pensa
nisto. Então, a piedade é amada pelos deuses porque é piedade, ou é piedade porque é amada
pelos deuses?”.
A conclusão de Platão é que a piedade é amada pelos deuses porque é piedade, mas não
é piedade porque a amam. A resposta de Platão está em consonância com a Teoria das Formas
ou com o Mundo das Ideias, como também é designada a teoria platônica.
Platão concebe um Mundo das Ideias que existe de forma independente. Ou, conforme a
expressão usada no diálogo Fédon, essas ideias ou essências são “existentes por si mesmas”
(PLATÃO, 2013, p. 143). Assim, a ideia de Bom, de Belo, de Justiça, de Amor, e assim por
diante, constituem um Mundo das Ideias autoexistente e independente. No Timeu, Platão
descreve a formação do mundo físico como o empreendimento de uma atividade mimética da
divindade (Demiurgo) cujo plano de operação depende do arquétipo autoexistente, isto é, um
modelo inteligível externo em relação à divindade: “Deste modo, o demiurgo põe os olhos no
que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria”
(PLATÃO, 2011, p. 94).
A implicação do dilema de Eutífron é resumida da seguinte maneira: “[...] segundo
Platão, deus, o artífice do céu e da terra, não é soberano; acima do demiurgo está um Mundo de
Ideias imutável ao qual até deus deve se submeter” (CLARK, 2018a, p. 141). E após explicar a
teoria dos mundos possíveis de Leibniz, na qual Deus “escolhe o melhor esquema no momento
da criação”, ele acrescenta: “Isso segue exatamente Platão, que em seu Eutífron afirma que o
bem não é bom porque Deus o aprova, mas Deus aprova o bem porque este é antecedente e
independentemente bom” (CLARK, 2018a, p. 141).
Para o Dr. Clark, se a aplicação do método indutivo utilizado por Platão no Eutífron
fosse consistente ele teria chegado a uma conclusão oposta. Seja como for, no esquema platônico
a divindade precisa se submeter a um padrão externo independente e autoexistente.
O próximo exemplo de deslocamento da ética de seu locus no sistema é proveniente do
formalismo lógico de Immanuel Kant. O Dr. Clark descreve sucintamente a visão de Kant: “Com
seu imperativo categórico, ele esperava distinguir entre um ato moral e um imoral por uma
análise puramente lógica da máxima do ato” (CLARK, 2012a). Assim Kant acreditava que a
teologia não pode “servir de base para a ética” (CLARK, 2012a).
Embora esse resumo de Kant não exponha os detalhes intrincados de sua ética, ele serve
para o presente propósito, isto é, apontar os exemplos utilizados por Clark para mostrar como o
locus da ética pode ser mal compreendido.
Além disso, a discussão precedente fornece um pano de fundo para a correta
compreensão da expressão “Deus é Ex Lex” inserida na teodicéia calvinista do Dr. Clark. Vale
ressaltar que o foco desse artigo é a explicação e a defesa dessa expressão e não propriamente
fornecer um estudo sobre a teodicéia do autor supracitado.2
2
Veja: ARAÚJO NETO, Felipe Sabino de. Teodiceia calvinista: a resposta de Gordon Clark ao problema do mal.
Brasília: [s.n.], 2015. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade de Brasília.
realidade, apenas o Deus cristão é autoexistente e independente. Tudo o mais depende Dele!
Em virtude disso, a vontade de Deus não é determinada por uma lei superior e
independente Dele mesmo. A vontade de Deus é autodeterminada. Além disso, o Ser de Deus
não é anterior a Sua própria vontade, como se Deus fosse composto por um Ser e uma vontade
consequente determinada por esse Ser. Vontade e Ser coincidem em Deus. É por isso que o Dr.
Clark alegou que Duns Scotus3 precisava abandonar a distinção formal entre intelecto e vontade
em Deus. Ele escreveu: “De fato, as características de infinidade, onipotência e liberdade que
Duns Scoto enfatizou, deveriam tê-lo levado a negar a distinção entre intelecto e vontade, em
Deus, e a se aproximar da posição de que Deus é vontade” (CLARK, 2012b, p. 243). Em outras
palavras, embora Clark utilize os termos vontade e intelecto, ele considera ambos
indistinguíveis: “O resultado disso é que o autoconhecimento e o autodesejo de Deus se tornam
indistinguíveis” (CLARK, 2012b, p. 244). Isso serve de alerta aos que, equivocadamente,
confundem o Dr. Clark com um voluntarista. Em seu artigo Faith and Reason, o Dr. Clark
declara que: “Intelecto e vontade não são duas ‘faculdades’ separadas; em vez disso, eles se
interpenetram em um único estado mental que é difícil e talvez impossível não apenas separá-los
no tempo, mas até mesmo em definição” (CLARK, 2015a). Ele aplica igualmente essa visão em
sua teoria da personalidade: “A Bíblia não sugere uma psicologia das faculdades. Embora
discussões como essas dificilmente possam evitar usar a palavra intelecto, deixemos claro que
não há nenhum ‘intelecto’; há atos intelectuais; não há ‘emoções’; há oscilações flutuantes de
temor, ira, tristeza e exaltação. Similarmente, não há nenhuma ‘vontade’, nenhum ‘id’, nenhum
‘superego’; mas uma pessoa unitária” (CLARK, 2018b).
Levando em consideração a tendência do ser humano para distorcer aquilo que não
compreende, esclarecemos que o Dr. Clark não nega a existência de atos volitivos e intelectivos
na mente. O que ele está contrapondo aqui é uma teoria das faculdades que compromete a
unidade da pessoa. E isso não é diferente em relação ao próprio Deus. Tendo em vista a
simplicidade do ser de Deus, quando falamos da vontade ou do intelecto divino isso não equivale
ao endosso de uma teoria das faculdades mentais. E é por rejeitar uma psicologia das faculdades
que o Dr. Clark não pode ser considerado um voluntarista, pois como foi visto, ele entende que o
autoconhecimento (intelecto) e o autodesejo (vontade) de Deus se tornam indistinguíveis. Deus
não deseja a si mesmo e conhece a si mesmo em atos distintos. O conhecimento de Deus não é
progressivo. Conforme o Dr. Clark expõe, “Seu conhecimento é eterno. Tal conhecimento
imediato e ininterrupto foi frequentemente designado como intuitivo. Deus vê todas as coisas de
3
Também é usualmente chamado de Duns Escoto ou Duns Scot. Utilizaremos Duns Scotus no corpo do texto,
exceto nas referências.
relance, por assim dizer. Ele não aprende. Ele nunca foi ignorante, e ele nunca pode vir a saber
mais” (CLARK, 2015b).
Assim também a vontade de Deus não é uma operação sucessiva subsequente ao
conhecimento de Deus, como se Deus fosse um ser temporal. Deus não conhece primeiro e só
então deseja; ou, contrariamente, Deus não deseja primeiro e só então conhece. Assim como Seu
conhecimento, Sua vontade é eterna.
Essa noção de que a vontade de Deus não pode ser dissociada da natureza de Deus foi
exposta pelo Dr. Clark em uma carta direcionada a J. Oliver Buswell. Ao escrever que, no ser
humano, a atividade do intelecto parece envolver volição e que isso parece confirmar que
intelecto e vontade se interpenetram, o Dr. Clark continua dizendo que:
No caso de Deus, a simplicidade de sua realidade deveria favorecer ainda
mais essa identificação, em vez de um desenvolvimento da psicologia da
faculdade divina. Se uma visão como essa puder ser trabalhada em detalhes, o
resultado pode ser que a natureza de Deus é sua vontade e a pergunta original,
se não for respondida, pode ser, até esse ponto, esclarecida. Seria então possível
falar da natureza da vontade de Deus, mas não mais de uma "natureza"
independente e distinta da vontade de Deus. Isso me atrai porque Deus é um
Deus vivo, não um axioma plotínico ou espinosista (CLARK, 2017, ênfase no
original).
Como pode ser observado nessa citação, o Dr. Clark acreditava que a doutrina da
simplicidade divina implica que não podemos conceber um Deus composto. E isso se aplica à
vontade divina de forma que não poderíamos mais falar de “uma ‘natureza’ independente e
distinta da vontade de Deus”. Em outras palavras, a vontade de Deus não poderia ser considerada
algo a parte da essência divina. A simplicidade divina também foi asseverada quando o Dr. Clark
se debruçou sobre a teologia de Anselmo, especificamente na questão dos atributos divinos:
Ele [Deus] é vivo, justo, sábio, poderoso e eterno. Ao mesmo tempo, Anselmo
foi cuidadoso em indicar que Deus não é sábio ou justo por causa da
participação em uma Ideia superior. O próprio Deus é justiça. Isso é o que ele é.
À medida que essa linha de raciocínio é aplicada a todos os atributos, por meio
deles, nós sabemos não apenas que tipo de ser Deus é, mas o que Deus é [...]
Uma vez que Deus é um, sem qualquer composição, Justiça é Vida, Poder é
Eternidade, e todos os atributos são os mesmos. Obviamente, se Justiça é da
essência de Deus, e se a essência de Deus é Poder, Justiça e Poder são atributos
idênticos. Cada atributo exaure cada um dos outros, “porque qualquer que seja a
essencialidade de Deus, isso é o que ele é” (CLARK, 2012b, p. 218).
Reforçamos, pois, que, de acordo com o Dr. Clark, a simplicidade do ser divino impede
que se postule que a vontade de Deus seja algo dissociado de sua natureza. E sendo esse o caso, a
vontade de Deus é indissociável de Sua Justiça, o que seria outra forma de dizer que a vontade
divina é indissociável de Sua natureza. Por outro lado, falar da vontade de Deus sendo
determinada antecipadamente por sua natureza é dissociar a natureza e a vontade de Deus, sendo,
nesse caso, a vontade divina antecipada pela natureza divina. E isso, por sua vez, resulta em uma
negação da simplicidade divina. Para colocar em outros termos, falar de algo anterior à vontade
divina é supor que a natureza de Deus consiste em partes, sendo sua natureza uma parte
antecedente e sua vontade uma parte consequente. Mas para enfatizar mais uma vez, o Dr. Clark
nega essa separação entre a vontade e a natureza divina.
O trecho acima descreve uma das regras da leitura analítica. Há outras regras para
desenvolver uma leitura nesse nível, mas essa regra é de suma importância. Se o autor fornece
um sentido a um termo e o leitor fornece outro sentido o processo de comunicação é rompido.
Dessa forma, temos diante de nós a tarefa de compreender a terminologia do Dr. Clark e não
simplesmente consultar o dicionário e fornecer um sentido aleatório ao seu vocabulário. Se
quisermos ir além da leitura elementar e desenvolver a leitura analítica, não poderemos ignorar
essa regra. Além disso, há regras de etiqueta intelectual. Para citar apenas uma: “Você tem de
dizer com razoável grau de certeza ‘eu entendo’ antes que possa dizer ‘concordo’ ou ‘discordo’
ou ‘suspendo o julgamento’” (ADLER e DOREN, 2010, p. 154). Esse é o terceiro estágio da
leitura analítica, de modo que para dizer com razoabilidade “eu entendo” é necessário cumprir
com os estágios anteriores da leitura em nível analítico. A regra acima é expressa de maneira
sintética como segue: “Não critique até que tenha completado o delineamento e a interpretação
do livro” (ADLER e DOREN, 2010, p. 174)
Pois bem, o que o Dr. Clark pretendia alegar com o uso da expressão Deus é “Ex-lex”?
Em primeiro lugar, o Dr. Clark pretende elucidar qual é a relação de Deus com sua própria lei.
Seria a relação de Deus para com a sua lei semelhante àquela relação da criatura para com ela?
Antes de responder a essa questão é preciso dar um passo atrás e analisar o que o autor
significa com o termo lei. As leis são, por assim dizer, requisitos de moralidade. Elas são a
expressão da vontade normativa de Deus. Outros autores denominam vontade preceptiva, como
será visto em momento apropriado. Em outras palavras, “ordenam aos homens que façam isso e
abstenham-se daquilo; declaram o que deve ser feito, mas não declaram nem causam o que é
feito” (CLARK, 2014, p. 57). Dessa forma, “denominem-se os requisitos de moralidade de
mandamentos, preceitos ou leis [...]” (CLARK, 2014, p. 57).
Tendo essa definição de lei em mente, retomemos a pergunta: qual é a relação de Deus
para com a lei? O Dr. Clark toma como eixo bíblico-teológico para responder a essa questão a
distinção Criador-criatura. Após afirmar “Deus é o criador; o homem é uma criatura” (CLARK,
2014, p. 82), ele prossegue então em direção à resposta: “[...] a relação de um homem com a lei é
igualmente diferente da relação de Deus com a lei. O que vale numa situação não vale na outra.
Deus tem direitos absolutos e ilimitados sobre todas as coisas criadas” (CLARK, 2014, p. 82).
Então, considerando que as leis são requisitos de moralidade direcionados aos seres humanos,
Deus é, nesse sentido, Ex-lex. Isto é, Deus está acima das leis que Ele mesmo concede às
criaturas. Assim, embora fosse pecaminoso para um homem planejar a morte de Cristo, não foi
algo pecaminoso que Deus assim o fizesse.
Para usar outro exemplo, se estiver em poder de um político decretar que uma pessoa
peque, tal político pratica algo pecaminoso. Mas Deus não peca ao decretar o pecado:
“Realizaram tudo o que, em teu poder e sabedoria, já havia predeterminado que aconteceria”
(Atos 4:28). Talvez seja instrutivo transcrever outra maneira que o Dr. Clark busca elucidar a
questão:
A ideia de que Deus está acima da lei pode ser explicada em outro particular. As
leis que Deus impõe aos homens não se aplicam à natureza divina. Elas são
aplicáveis somente a condições humanas. Por exemplo, Deus não pode roubar,
não somente porque tudo quanto ele faz é certo, mas também porque ele é o
dono de tudo: não há ninguém de quem roubar (CLARK, 2014, p. 82).
Aqui Zanchius ecoa o próprio Calvino ao alegar que a vontade de Deus é a única regra
de justiça:
[...] se refletirem sobre quão grande improbidade é meramente indagar as causas
da vontade divina, quando ela mesma é a causa de tudo quanto existe, e com
razão deve ser assim. Ora, se houvesse algo que fosse a causa da vontade de
Deus, seria preciso que fosse anterior e que estivesse atada a tal causa, o que
não é procedente imaginar-se. Pois a vontade de Deus é a tal ponto a suprema
regra de justiça, que tudo quanto queira, uma vez que o queira, tem de ser justo.
Quando, pois, se pergunta por que o Senhor agiu assim, há de responder-se:
Porque o quis. Porque, se prossigas além, indagando por que ele o quis, buscas
algo maior e mais elevado que a vontade de Deus, o que não se pode achar
(CALVINO, 2003, p. 411).
Logo, não é próprio da teologia cristã imaginar um padrão externo que sirva como causa
da vontade divina. E também é impróprio supor que a vontade de Deus é antecedida pela
essência divina. Ora, já foi afirmado que Deus não é um ser composto. Dessa forma, a vontade
de Deus não é algo a parte da essência divina. Querer postular que a essência divina é
antecedente à vontade divina é cair no erro de conceber composição em um ser simples. Assim,
dizer que a vontade de Deus é a suprema regra de justiça é reconhecer que a vontade divina é
indissociável de sua essência. Repita-se, portanto, que a ética não antecede à teologia. A teologia
é o fundamento da ética. Permite-se aqui fornecer uma citação mais extensa para mostrar que tal
é o posicionamento do Dr. Clark:
Deus não é somente o criador do universo físico, não é somente o governador e
juiz dos homens, é também o legislador moral. É a sua vontade que estabelece a
distinção entre o certo e o errado, entre a justiça e a injustiça; é a sua vontade
que prescreve as normas para a justa conduta [...] por alguma razão peculiar, as
pessoas hesitam em aplicar o mesmo princípio de soberania na esfera da ética
ordinária. Em vez de reconhecerem Deus como soberano na moral, elas
pretendem sujeitá-lo a alguma lei ética independente e superior, uma lei que
satisfaz as suas opiniões pecaminosas acerca do certo ou errado [...] Deus é
soberano. Tudo quanto ele faz é justo, exatamente por esta razão: porque ele o
faz [...] Calvino rejeitou a visão do universo que produz leis, de justiça ou de
evolução, em lugar de um Legislador supremo. Esse tipo de visão é semelhante
ao dualismo platônico, que postulava um mundo de ideias superior ao Artífice
divino. Num sistema desses, Deus é finito ou limitado, obrigado a seguir ou
obedecer o padrão independente. Mas aqueles que se apegam à soberania de
Deus determinam o que é justiça pela observação daquilo que Deus realmente
faz. Tudo quanto Deus faz é justo. Aquilo que ele ordena aos homens para que
façam, ou não façam, é semelhantemente justo ou injusto (CLARK, 2014, p. 70-
72).
3. RESPOSTA À CRÍTICA DE JOHN FRAME
Se a seção anterior for cuidadosamente lida poderá ser notado como o Dr. Clark
antecipou a maioria das críticas que poderiam ser levantadas contra o Ex-lex. Se a crítica é que o
Ex-lex faz de Deus um tirano que não segue qualquer padrão, a resposta é que Deus é o próprio
padrão e que sendo Deus quem Ele é, Deus não pode pecar. A crítica de John Frame é, no
máximo, irrelevante. Após descrever brevemente o argumento do Dr. Clark, Frame escreve: “Há
alguma verdade nessa aproximação [...] É verdadeiro também que Deus tem prerrogativas que
nos são proibidas, como a liberdade para tirar a vida humana” (FRAME, 2010, p. 129). E
termina escrevendo o seguinte: “Assim, não podemos concordar com a defesa ex Lex de Clark.
Ela simplesmente não é bíblica” (FRAME, 2010, p. 130). Mas além do reconhecimento inicial
de Frame de que “há alguma verdade” no Ex-lex, e que é verdadeiro que Deus tem prerrogativas
que a criatura não tem – o que confirma que o Ex-lex é bíblico – é preciso destacar que as razões
fornecidas pelo Frame não mostram que a defesa do Dr. Clark do Ex-lex “simplesmente não é
bíblica”.
Por exemplo, uma das razões apresentadas por Frame é: “Clark, porém, se esqueceu,
talvez negue a máxima bíblica e reformada de que a lei reflete o próprio caráter de Deus”
(FRAME, 2010, p. 129). A réplica é que Frame se esqueceu de fazer o dever de casa: “Você tem
de dizer com razoável grau de certeza ‘eu entendo’ antes que possa dizer ‘concordo’ ou
‘discordo’ ou ‘suspendo o julgamento’” (ADLER e DOREN, 2010, p. 154). Ora, se o Dr. Clark
diz que tudo quanto Deus faz é justo, e se uma das coisas que Deus faz é conceder a lei, segue-se
que a lei é justa, ou seja, reflete o caráter de Deus. Dizer que Deus não pode honrar pai e mãe –
pelo fato de que Deus não tem pai e mãe tal lei não se aplica a Ele – não é negar que a lei reflete
Seu caráter.
Além disso, Frame, ao afirmar que o Ex-lex nega a máxima bíblica e reformada, dá a
indicar que os próprios reformadores se distanciam do Ex-lex. Mas conforme as citações de
Calvino e de Zanchius na seção anterior indicam, esse é outro equívoco de Frame. Embora se
distanciasse da teoria do poder absoluto dos papistas, o próprio Calvino manteve o Ex-lex:
[...] pois embora Seu poder esteja acima de todas as leis, ainda assim, porque
Sua vontade é a mais certa regra de perfeita equidade, o que quer que Ele faça
deve ser perfeitamente certo; e, portanto, Ele está livre das leis, porque Ele é
uma lei para Si mesmo e para todos (CALVINO, p. 50).
Quando comentou o texto de 1 Timóteo 2:12 novamente Calvino reforçou esse ponto:
Paulo não está falando das mulheres em seu dever de instruir sua família; está
apenas excluindo-as do ofício do sacro magistério [a munere docendi], o qual
Deus confiou exclusivamente aos homens. Esse é um tema que já introduzimos
em relação a 1Corintios. Se porventura alguém desafiar esta disposição, citando
o caso de Débora [Jz 4.4] e de outras mulheres sobre quem lemos que Deus, em
determinado tempo, as designou para governar o povo, a resposta óbvia é que os
atos extraordinários de Deus não anulam as regras ordinárias, às quais ele quer
que nos sujeitemos. Por conseguinte, se em determinado tempo as mulheres
exerceram o ofício de profetisas e mestras, e foram levadas a agir assim pelo
Espírito de Deus, Aquele que está acima da lei pode proceder assim; sendo,
porém, um caso extraordinário, não se conflita com a norma constante e
costumeira (CALVINO, 2009, p. 70).
Embora Turretini (1623 -1687) defenda a sua própria maneira o Ex-lex, seu
posicionamento precisa de análise mais detalhada por conter um material excelente, porém
misturado com algumas incoerências. Turretini inicia a discussão de teologia propriamente dita
em seu terceiro tópico. As considerações acerca da vontade de Deus aparecem na pergunta XIV e
prosseguem até à pergunta XVIII. Na pergunta XV ele trata da distinção entre vontade decretiva
e vontade preceptiva, introduzindo a resposta com a seguinte observação:
Embora a vontade em Deus seja apenas uma e simplíssima, pela qual ele
compreende todas as coisas por um ato singular e simplíssimo, de modo que vê
e entende todas as coisas como num relance; visto que se ocupa de vários
objetos, em nossa concepção, pode ser apreendida como múltipla (não em si e
intrinsecamente da parte do ato de querer, mas extrínseca e objetivamente da
parte das coisas determinadas) (TURRETINI, 2011, p. 297-298).
Após essa admissão de que a multiplicidade da vontade divina se relaciona apenas com
a nossa apreensão, sendo que considerada em si mesma a vontade de Deus é una, Turretini
começa a tratar das várias distinções da vontade de Deus. A primeira distingue a vontade de
Deus entre decretiva e preceptiva. Enquanto a vontade decretiva é aquela que “determina a
concretização das coisas”, a vontade preceptiva é “aquela que prescreve ao homem seu dever”
(TURRETINI, 2011, p. 298). Em outras palavras, os preceitos divinos constituem a norma de
conduta dos homens, não de Deus. Pulando algumas páginas nos deparamos com a pergunta
XVIII e com a seguinte afirmação:
Deus não está sob nenhuma obrigação moral externa, porque ele não é devedor
a ninguém, e não existe nenhuma causa fora dele que possa pô-lo sob obrigação
[...] Deus não está obrigado à lei que ele impõe ao homem (ou seja,
formalmente, tomando a lei como lei), porém não está livre e isento de toda a
matéria da lei, como se pudesse ordenar ou ele mesmo fazer o que é oposto a ela
(por exemplo, crer que ele não é Deus e ordenar que outros creiam nisso – o que
soa horrível aos ouvidos piedosos) (TURRETINI, 2011, p. 314).
Então Turretini admite que Deus está formalmente desobrigado da lei, enquanto
materialmente Ele não está livre para praticar certos atos. Já vimos como o Dr. Clark está de
acordo com isso quando ele escreveu que “por definição, Deus não pode pecar”. Mas a lei
enquanto lei, isto é, formalmente, não obriga a Deus. Turretini também mantém que não há um
padrão externo a Deus, ao qual Ele deva se submeter:
Se a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, ela não pode ter nenhuma
causa. É tão certo que não pode haver nenhuma causa para a vontade de Deus
fora dele mesmo como é certo que nada pode ser anterior a ele. Pois, se a
vontade tem uma causa, existe algo que a precede. E assim ela seria uma causa
secundária, não primária; a coisa governada, não a coisa que governa
(TURRETINI, 2011, p. 311).
Sendo a vontade de Deus livre de qualquer causa externa, visto não haver nada anterior
e superior ao próprio Deus, segue que a vontade de Deus é a regra primária de justiça:
Assim é com respeito a nós porque a fonte da justiça não deve ser buscada em
nenhuma outra parte senão na vontade de Deus que, como é perfeitíssimamente
justa em si mesma, é, então, a norma de retidão e justiça, pois o primeiro, em
todo gênero, é a norma de todo o resto. Nesse sentido, os teólogos dizem que a
vontade de Deus é a suprema norma da justiça e, consequentemente, tudo
quanto Deus quer é justo e bom, porque ele quer (TURRETINI, 2011, p. 313).
Talvez por temor de cair no erro da teoria papista do poder absoluto, Turretini quis
vincular intrinsecamente a vontade e a essência divina. Ora, vimos na primeira seção como para
o Dr. Clark a vontade de Deus era indissociável da essência divina. Assim, o ideal de Turretini
não constitui nenhum problema. O problema é a maneira que ele propõe a solução. Ao afirmar
que “a vontade divina não pode ser determinada com base em si mesma” (TURRETINI, 2011, p.
314), ele comete o equívoco de conceber a essência divina como algo antecedente à vontade
divina. E isso, como já foi visto na seção anterior, compromete a simplicidade divina. Seja como
for, o material aqui citado deve ser suficiente como resposta à crítica de Frame.
Observe como o objetivo do Dr. Clark é ressaltar a soberania divina ao alegar que Deus
está livre de qualquer causa externa:
Os teólogos não se incomodam com a suposição de que Deus pudesse ter
exigido requisitos cerimoniais diferentes. Em vez de ter ordenado que os
sacerdotes transportassem a arca nos ombros, Deus poderia ter proibido isso e
ordenado que ela fosse colocada numa carroça puxada por bois. Mas, por
alguma razão peculiar, as pessoas hesitam em aplicar o mesmo princípio de
soberania na esfera da ética ordinária (CLARK, 2014, p. 71).
Dessa forma, fica claro que na esfera da ética a soberania divina não encontra limites
em um padrão externo e superior, tal como ocorre com o demiurgo de Platão. Se temos dez
mandamentos ao invés de mil isso se deve ao fato de que Deus quis que fosse assim:
“O Senhor faz tudo o que lhe apraz, no céu e na terra, no mar e nas profundezas
das águas” ~ Salmos 135:6.
“Nosso Deus está nos céus; ele faz tudo o que lhe apraz” ~ Salmos 115:3.
“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados,
conforme o propósito daquele que faz todas as coisas segundo o conselho da sua
vontade” ~ Efésios 1:11
Assim também ele deixou claro em outro ponto que sob o enfoque da imutabilidade
divina a moralidade é invariável:
A noção de uma moralidade variável pressupõe a crença em um deus variável e
levanta questões teológicas. Se, por outro lado, os homens aceitam os Dez
Mandamentos como obrigações permanentes, também devem aceitar o conceito
bíblico de um Deus imutável. A moralidade bíblica e a teologia bíblica são
inseparáveis (CLARK, 2018, p. 140).
A primeira citação do Dr. Clark nessa página mostra que ele não se apegaria ao fato de
que Deus pudesse mudar esse ou aquele mandamento, pois não é isso o que ele queria enfatizar.
O ponto dele é que a ética está fundamentada na vontade de Deus: “Contudo, se é assim, e se não
faz sentido supor que Deus poderia pensar de forma diferente, permanece o argumento de que a
moralidade, tanto quanto a física, é o que é porque Deus pensa assim” (CLARK, 2012). Mas
ainda que se afirme que a ética é inalterável sob o enfoque da imutabilidade divina, o fato de que
o Dr. Clark considere a ética fundada na vontade de Deus não faria dele um voluntarista?
Para responder a essa questão é preciso definir voluntarismo e comparar com o
posicionamento do Dr. Clark. Não basta, como já foi dito, observar a semelhança no vocabulário
e concluir que há uma semelhança substancial. Se esse fosse o caso, a Bíblia seria voluntarista,
pois afirma que Deus faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade!
O que é, pois, voluntarismo? A definição abaixo destaca os termos centrais:
As teses características do voluntarismo: a vontade é a causa determinante do
ato livre e a ela pertence, e não a razão, o ato do império [...] a vontade é livre
de toda determinação vinda de qualquer faculdade que não seja ela mesma,
incluindo o intelecto, a conclusão óbvia é que é autodeterminante e que o ato do
império é próprio da vontade e não da razão, porque a vontade compete mover a
si mesma a querer e, portanto, move todos os outros poderes, inclusive a
inteligência; dessa forma, ela se move, sem ter como base algo superior ou
inferior (WIDOW, 2001, p. 126-129).
Por explicação o Dr. Williams refere-se à causa. Nesse sentido, a primeira parte da
definição combinada com a segunda afirma que nem o intelecto divino, nem a natureza divina e
tampouco qualquer coisa externa em relação a Deus pode ser causa da vontade divina. Além
disso, essa definição reforça um ponto previamente mencionado, isto é, de que o voluntarismo
requer a distinção entre intelecto e vontade, não podendo, portanto, o intelecto divino ser
invocado como causa para a vontade divina.
Faz-se mister enfatizar que embora a Teoria do Comando Divino seja elaborada
geralmente em uma base voluntarista não é necessário que tal teoria receba suporte
exclusivamente nessa base. Assim, o objetivo dessa seção é deixar bastante claro que a
característica central do voluntarismo é a primazia da vontade, sendo pressuposto a distinção
entre vontade e intelecto em Deus. A definição do Dr. Williams supracitada realça com precisão
esse ponto. Mas para não haver dúvidas, vejamos mais uma citação: “[...] é impossível manter
uma leitura libertária radicalmente voluntarista de Scotus sem fazer uma separação bastante
gritante entre a vontade divina e o intelecto divino” (WILLIAMS, 2009). O Dr. Williams
confirma nesse último artigo que a essência divina também não foi tomada como causa da
vontade divina por Scotus. Dessa forma, começa a adquirir força o ponto de que para Scotus nem
o intelecto e nem a natureza divina determinam a vontade divina: “Essa afirmação do primado da
vontade sobre a inteligência já nos deixa prever uma concepção da liberdade mais voluntarista
do que intelectualista, e é de fato isso que encontramos no sistema de Duns Scotus” (GILSON,
1995, p. 747-748).
O teólogo holandês Herman Bavinck (1854-1921) também destaca a predominância da
vontade sobre o intelecto no pensamento de Duns Scotus. Após asseverar que, para Scotus, “o
caráter acidental do mundo [...] não pode ser devido ao intelecto de Deus”, Bavinck prossegue
asseverando que “Scotus, de fato, reconhece que o conhecimento de Deus é anterior à sua
vontade e que as ideias, em Deus, embora distintas de sua essência, existem antes de seu decreto.
No entanto, é a vontade que faz uma seleção de todas as ideias possíveis e determina qual delas
será realizada” (BAVINCK, 2012, p. 242).
A distinção entre intelecto e vontade em Deus pode ser claramente percebida no
comentário de Bavinck acerca de Scotus. Não apenas a distinção é desvelada como também é
enfatizada a prioridade da vontade em relação ao intelecto. Se vontade e intelecto forem
equivalentes, um não poderá ter preeminência sobre o outro. Assim, vejamos outra definição de
voluntarismo para comparar com o que foi dito até aqui:
O voluntarismo é uma tese na filosofia da ação segundo a qual um ato da
vontade nunca é determinado por qualquer objeto que o intelecto apresente a
ele. O voluntarismo é contrastado com o que às vezes é chamado de
intelectualismo, que é a tese de que um ato da vontade, sempre ou apenas em
alguns casos, é determinado por um objeto que o intelecto apresenta a ele
(WARD, 2015).
O que perpassa cada uma das citações acima é a tese de que para Scotus a vontade
divina é indeterminada, não encontrando causa nem no intelecto e nem na natureza divina
(COOLMAN, 2018). Agora como o Dr. Williams enfatizou em suas várias publicações acerca
do pensamento de Scotus, dizer que o intelecto não é causa da vontade não significa dizer que a
vontade é oposta à razão. Tampouco a ideia de que Deus poderia ordenar justamente o estupro,
uma vez que ele poderia ter ordenado algo diferente no que tange a segunda tábua da lei, faz
justiça ao pensamento de Scotus. A objeção, na realidade, é tão tola que só se pode concluir ser
fruto da ignorância quanto ao pensamento de Scotus. No entanto, não é nosso foco aqui defender
o voluntarismo de Scotus. O ponto é apenas alertar aos que seguem essa linha de objeção que
estão se expondo ao ridículo.
A questão em relação à segunda tábua da lei em Scotus flui diretamente de sua
contingência causal – distinção modal (BORLAND e HILLMAN, 2017). Para Scotus, uma
compreensão clara da estrutura da realidade não pode ser obtida sem uma compreensão clara dos
vários tipos de identidade e de distinção. Ele postula ao menos quatro tipos de distinção: 1)
distinção real; 2) distinção conceitual; 3) distinção formal; 4) distinção modal.
Retomando a questão da contingência causal, o próprio Scotus esclarece o que significa
com isso: “Algo é causado contingentemente; consequentemente, a causa primeira causa
contingentemente; consequentemente, causa querendo [...] não chamo aqui contingente ao que
não é necessário nem sempiterno, mas àquilo cujo oposto poderia ser causado ao ser ele
causado” (SCOT, 2015, p. 87-89).
Essa noção de contingência é conectada à vontade em Scotus (“causa querendo”) em
virtude de a liberdade ser fundada na própria vontade e não derivar do intelecto, pois a natureza
do intelecto divino é agir necessariamente e não contingentemente: “O intelecto do Primeiro
Princípio intelige atualmente, sempre, necessariamente e distintamente todo e qualquer
inteligível, antes, naturalmente, que este exista em si” (SCOT, 2015, p. 101).
Esse próprio ato de inteligir é, de acordo com Scotus, anterior à vontade:
Mas, anteriormente ao ato de querer algo por um fim, concebe-se o ato de
inteligi-lo; portanto, antes do primeiro momento em que se concebe a causa
como causando ou querendo A, ela é concebida necessariamente como
inteligindo-o, e sem esta intelecção ela não pode causar per se A nem os outros
efeitos (SCOT, 2015, p. 99).
Contudo, a anterioridade do ato de inteligir não age como causa da vontade, conforme já
foi asseverado: “[...] a vontade é idêntica à natureza primeira, porque o querer é um ato de
vontade; portanto, a vontade é incausável” (SCOT, 2015, p. 97). O intelecto, pois, conhece todas
as potências, mas cabe à vontade decidir qual atualizará:
Além disso, digo que, conquanto os entes outros que Deus sejam atualmente
contingentes com respeito ao ser atual, não o são, contudo, com respeito ao ser
potencial. Daí que os que se dizem contingentes com respeito à existência atual
sejam necessários com respeito à potencial, de sorte que, conquanto seja
contingente que o homem seja, que porém seja “possível ser” é necessário,
porque não inclui contradição ao ser; portanto, que algo seja “possível ser”,
outro que Deus, é necessário, porque o ente se divide em possível e em
necessário, e, assim como ao ente é necessário que a necessidade provenha de
sua habitudo ou quididade, assim também ao ente possível a possibilidade
provém de sua quididade (SCOT, 2017, p. 53).
A resposta a essas questões exigiria desviar o foco do presente artigo para questões
lógicas e metafísicas por demais intrincadas. O que, por ora, nos interessa é como tal potência
lógica serve de base para a distinção entre potência absoluta (potentia absoluta) e potência
ordenada (potentia ordinata): “De acordo com sua potência absoluta, a vontade de Deus se
relaciona com todo possível e tem seu limite somente no princípio da não-contradição [...]”
(HONNEFELDER, 2010, p. 173). O professor Möhle (2013, p. 401) corrobora essa ideia: “E a
única restrição sobre o poder absoluto de Deus é a exigência de ausência de contradição”.
Esse tema da potência absoluta ou poder absoluto também está presente no
voluntarismo de Guilherme de Ockham de tal forma que é possível dizer que ele estava
“interessado em exaltar a liberdade e a onipotência divinas e deduzir o que considerava ser as
consequências lógicas da onipotência divina” (COPLESTON, 2017, p. 135).
O ponto aqui não é tanto mostrar que Zeus é um deus limitado que pode ser iludido.
Antes, o intuito é chamar atenção para como o politeísmo da Grécia Antiga permite a noção de
desejos opostos ou conflitantes entre os deuses. Ora, como então a moralidade poderia estar
alicerçada na afeição dos deuses se os próprios deuses podem ter desejos conflitantes entre si?
Esse problema é colocado por Sócrates no decorrer do diálogo com Eutífron. A
investigação não é sobre quais atos são piedosos (ética normativa), mas o que faz de um ato algo
piedoso (metaética). Em outras palavras, a pergunta do diálogo pode ser claramente descrita
como segue: “O que é piedade?”. O problema surge porque Eutífron, que movia um processo
contra seu pai, estava sendo considerado ímpio em virtude de acusar o próprio pai de ter
cometido um crime. E Eutífron alega que os acusadores mal sabem o que vale para os deuses,
“relativamente ao que é piedoso e ao que é ímpio” (PLATÃO, 1993, p. 35). Tal alegação parece
indicar que Eutífron era versado acerca das coisas divinas. Isso desencadeia uma série de
questões por parte de Sócrates para saber que aspecto é esse presente em todos os atos piedosos
que os fazem tais: “Ensina-me”, diz Sócrates, “que aspecto é esse. Para que, olhando para ele e
usando-o como paradigma, eu possa declarar se qualquer acção conforme a este modelo,
praticada por ti ou por qualquer outro, é ou não piedosa” (6e). Eutífron responde dizendo que a
piedade é aquilo que é agradável aos deuses. Mas então Sócrates alega que não há um consenso
entre os deuses sobre o que é justo e o que é injusto. Assim, um determinado deus poderia
considerar justa uma ação que desagrada a outro deus:
De modo que, Êutifron, o que tu agora fazes, ao punires teu pai, não é de
espantar se, fazendo isto para ser, por um lado, querido por Zeus, por outro, te
fazes inimigo de Cronos e de Úrano; ou ainda, ao fazeres-te querido por
Hefesto, te fazes odiado por Hera. E, se algum dos outros deuses discorda de
outro acerca de ti, a discordância persiste sobre as mesmas coisas (9b).
Por esse raciocínio, pois, Platão discorda que a justiça ou piedade pode encontrar
fundamentação na afeição ou na vontade dos deuses. Outras tentativas são feitas por Eutífron
para definir piedade, mas podemos sintetizar o dilema da seguinte maneira: “Então, a piedade é
amada pelos deuses porque é piedade, ou é piedade porque é amada pelos deuses?”. No primeiro
caso, a piedade é um padrão superior e independente da vontade dos deuses. No segundo caso, a
piedade tem fundamento na vontade ou na afeição dos deuses. Enquanto o politeísmo constituiu
um problema para a definição de Eutífron, pois sua definição fazia da piedade algo dependente
da vontade conflitante de múltiplos deuses, o teísmo cristão permanece intacto em face desse
problema, porquanto não sustenta uma multiplicidade de vontades divinas conflitantes entre si.
Ao mesmo tempo, o dilema precisa ser modificado para o contexto da cosmovisão cristã. O
dilema modificado então assumiria a seguinte forma: “Deus ordena/quer algo porque é
moralmente bom ou algo é moralmente bom porque Deus ordena/quer?”.
A primeira opção, quando consideramos o sistema platônico, resulta em um padrão
externo a Deus independente dele ao qual ele deve se submeter. Nesse caso, o bem seria uma
Forma (ιδέα) abstrata e impessoal e as ações de Deus e dos homens deveriam ser julgadas a
partir desse modelo. A segunda opção implica que os valores, deveres e obrigações morais
dependem, em última análise, da vontade de Deus. De acordo com o Dr. Clark, não há um
padrão externo ao qual Deus deva se submeter. Antes, algo é moralmente bom porque Deus
quer/ordena. Já vimos na seção quatro como o Dr. Clark caracteriza essa alegação em uma esfera
ética.
A pergunta que surge é: o endosso à Teoria do Comando divino faz do Dr. Clark um
voluntarista? A pergunta foi levantada na seção anterior, mas era necessário esclarecer a
definição do termo antes de fornecer uma resposta. Como vimos, o voluntarismo pressupõe uma
distinção entre vontade e intelecto. Além disso, dissocia a vontade da essência divina. O primeiro
ponto a ser destacado, pois, é que o Dr. Clark se distanciou de uma psicologia das faculdades. De
acordo com ele, essa psicologia resulta em uma desintegração da pessoa humana. Ainda que
mantivesse a terminologia, ele esclarece, ao tratar sobre a atividade religiosa do ser humano, que
“emoção, vontade e intelecto não são três coisas, cada uma independente da outra, misteriosa e
acidentalmente habitando um corpo. Estes três são simplesmente três atividades de uma única
consciência que às vezes pensa, às vezes sente e às vezes deseja” (CLARK, 1943, p. 182). É
preciso enfatizar que a citação anterior é referente à atividade consciente do ser humano. Para o
Dr. Clark, não havia esse lapso temporal na atividade mental divina. Por outro lado, destacamos
que ele também rejeitou essa compartimentação no ser divino. Embora falasse do intelecto ou da
vontade divina, o Dr. Clark não adotava uma psicologia da faculdade. Ele considerava essa
rígida separação entre intelecto e vontade em Deus fruto de uma influência platônico-aristotélica
no cristianismo: “Embora essa separação tenha uma história antiga e honrosa, receio que seja um
dos remanescentes platônico-aristotélico de que o cristianismo deveria se livrar” (CLARK, 2017,
Locais do Kindle 1055-1057).
O segundo ponto, em íntima relação com o anterior, é que para o Dr. Clark a separação
entre vontade e intelecto parece inserir um lapso temporal na atividade divina e,
consequentemente, fazer de Deus um ser temporal. Esse foi outro motivo para que ele se
distanciasse dessa rígida separação entre intelecto e vontade em Deus. Postular que o
conhecimento divino antecede a vontade divina e que a vontade divina pode ter uma liberdade de
indiferença – tal como propôs Scotus – parecia fazer de Deus um ser que oscila entre um objeto e
outro. Tal oscilação do ser divino contraria o testemunho bíblico de que não há em Deus
variação ou sombra de mudança (Tg 1:17). Nas palavras do Dr. Clark: “Não pode haver sucessão
de idéias na mente divina. Portanto, Deus não é um ser temporal. A onisciência exige a
eternidade e a eternidade é atemporalidade” (CLARK, 2016, p. 11).
O terceiro ponto mantém íntima relação com os antecedentes, a saber, para o Dr. Clark
o título “Deus” não é um mero nome, signos sem conteúdo real. Antes, deve ser tomado de modo
analítico. Assim, quando o Dr. Clark diz que a ética está fundada na vontade de Deus tal vontade
não deve ser tomada como moralmente neutra. Para o Dr. Clark, a vontade de Deus não é um
tipo de compartimento separado do ser de Deus, uma faculdade distinta e separada do intelecto.
Como já foi dito, ele rejeitou falar de Deus em termos de uma psicologia da faculdade. Assim,
pois, a vontade de Deus é indissociável do seu ser. Não é como se o ser de Deus fosse uma coisa
anterior e independente da vontade de Deus que precisasse determiná-la para que ela se tornasse
boa. A vontade de Deus é, em si mesma, boa e perfeita (Rm 12:2). E isso devido ao fato de que
ela é indissociável do ser de Deus. E que tal era a visão do Dr. Clark foi amplamente discutido na
primeira seção.
Além disso, o próprio Dr. Clark era defensor da onipotência divina, mas não nos termos
de uma potência absoluta tal como defendida por Scotus e Ockham: “Talvez a ideia de poder
absoluto postulada por Occam não esteja certa, todavia Berkouwer admite que não há lei
superior a Deus e que, nesse sentido, Deus é de fato ‘Ex-lex’” (CLARK, 2014, p. 74-75). No que
diz respeito à relação entre necessidade e volição, o Dr. Clark novamente se distancia de Scotus.
Devido à imutabilidade divina, a ação voluntária de Deus não implica lidar com eventos incertos
e indeterminados ou com futuros contingentes. Embora o mundo criado não seja consubstancial
com a divindade, ele não pode ser considerado voluntário se “esse termo for usado para denotar
alguma liberdade não-necessária e irracional” (CLARK, 2010, Locais do Kindle 2138-2141).
Mas o Dr. Clark sustenta que o necessitarismo filosófico, entendido de modo lógico, não factual,
é compatível com as Escrituras e não exclui a ação voluntária racional por parte de Deus. Ele
mantém que a ação divina permanece voluntária, mas repudia toda noção de mundos possíveis:
“Qualquer outro mundo, nesta visão, pode ser imaginado apenas por falhar em ver que ele
contém uma contradição lógica ou impossibilidade [...] Como a mente de Deus é imutável, uma
vez que seu decreto é eterno, segue-se que nenhum outro mundo além desse é possível ou
imaginável” (CLARK, 2010, Locais do Kindle 2171-2187). Aqui vemos como o Dr. Clark
mantém a ação voluntária de Deus em íntima conexão com a essência divina.
O professor de filosofia Holmes, ao lidar com a questão metaética aqui levantada,
descreve o desafio platônico da seguinte forma: “Em seu livro Eutífron, Platão pergunta se os
deuses ordenam algo porque é certo, ou se algo é certo porque eles o ordenam. A filosofia de
Platão declara que os ideais morais, assim como outras formas, existem independentemente, os
quais dirigem tanto os homens como os deuses” (HOLMES, 2000, p. 89-90). Holmes também
propõe que a fundamentação da ética dever ser a vontade de Deus. Ele denomina isso de ética
teonômica. Mas ele, assim como o Dr. Clark, não achou necessário manter a Teoria do Comando
Divino em um alicerce voluntarista. Ele escreveu: “A vontade de Deus não pode ser separada de
sua natureza. Ele quer o que deseja, por ser o Deus que Ele é” (HOLMES, 2000, p. 90). Dessa
forma, fundamentar a ética na vontade divina envolve considerar tal vontade como indissociável
do ser de Deus. Em adição, rejeita subordinar o ser de Deus a um padrão externo impessoal: “Na
filosofia platônica, a realidade última é um ideal que existe independente de qualquer pessoa
humana ou divina. No cristianismo, a realidade última é um Deus pessoal. São pessoas e não
ideais que ordenam” (HOLMES, 2000, p. 82).
O Deus pessoal do cristianismo é a realidade última. Esse título, como foi dito, não é
um mero som. Para o Dr. Clark os signos podem ser denominativos da realidade. Em sua
filosofia da linguagem ele se aproxima da visão agostiniana ao sustentar que a linguagem pode
expressar a realidade: “[...] a linguagem foi concebida por Deus, isto é, Deus criou o homem
racional para o propósito de expressão teológica” (CLARK, 2016, Locais do Kindle 997-998).
Assim, ao falar que a ética tem seu alicerce na vontade de Deus, o título Deus deve expressar a
realidade revelada dessa denominação. Como asseverou Agostinho:
Quando eu digo “Deus” pronuncio uma palavra. Palavra breve é esta,
constituída apenas por quatro letras que formam duas sílabas. Mas Deus é
apenas isto? Quatro letras e duas sílabas resumem tudo o que Deus é? Ou o
pensamento traduzido por uma expressão é tanto mais sublime quanto menor
for o valor da mesma expressão? Que se passou no vosso coração quando
ouvistes dizer Deus? Que se passava no meu coração quando eu dizia Deus?
Pensamos a substância excelente, suma, que transcende toda a criatura mutável,
carnal e animal (AGOSTINHO, 2017, p. 19-20).
O desenvolvimento daquilo que foi expresso na citação acima pode ser encontrado na
conhecida obra de Agostinho, De Magistro (O Mestre). O ponto é aqui é destacar que ao
fundamentar a ética na vontade de Deus, o “nome” Deus significa para o Dr. Clark a
simplicidade da realidade divina. A ética permanece em um locus adequado, isto é, alicerçada na
teologia: “A moral de Israel não se fundamentava em análise da natureza humana, mas provinha
imediatamente da vontade de Javé” (AZPITARTE, 1995, p. 56). Não há um padrão externo ao
qual Deus deva se submeter: “no caso de Deus, não se pode imaginar uma lei que esteja acima
dele e à qual ele tenha de obedecer, pois sua vontade é a lei suprema” (BAVINCK, 2012, p.
233).
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