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FRANCISCANA
40
Editorial Franciscana
BRAGA - 2011
1
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
2
Índice
I — Estudos
II — Documentos
Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral da OFM
Carta Circular no Oitavo Centenário da Fundação
da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara ...................................... 65
3
I — Estudos
5
O LIVRO QUE DÁ FORMA À VIDA CLAUSTRAL
‒ A REGRA DE SANTA CLARA ‒
Prólogo*
Santa Clara, como fundadora das Irmãs Pobres deu-nos uma Regra. A
primeira e única regra, escrita por uma mulher, que a Igreja aprovou. É breve,
tem doze capítulos e segue de perto a Regra bulada de S. Francisco2. Clara teve
de lutar com firmeza para conseguir a aprovação (1252) e a Bula do Papa
Inocêncio IV (1253), nas vésperas de morrer. O Papa define-a como “Regra da
—————
* Agradecemos à irmã Maria Victoria Trivño, osc, este trabalho que preparou para um
Simpósio que se realizou em setembro na Universidade da Rainha Cristina do Escorial
e que nos confiou ainda antes de o ter apresenta.
1
Citaremos ao longo do artigo como RCl. As citações são feitas de acordo com as
Fontes Franciscanas I e II (FFI-FFII) da Editorial Franciscana, Braga, 2005 e 1996.
2
“A forma de vida da Ordem das irmãs Pobres, que São Francisco institui é esta:
observar o santo Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem
próprio e em castidade” (RCl I, 1).
6
altíssima pobreza e da santa unidade”. O pergaminho original conserva-se no
protomosteiro de Santa Clara, em Assis.
A Regra guarda a sabedoria das coisas breves, a estrutura jurídica que dá
estabilidade, e a chama profética da inspiração, que informa a vida e permite
regenerar-se para atravessar as crises da história.
—————
3
Código de D.C. 1983, Cânon 613 e 614.
4
RCl I, 3; Constituições Gerais 1988, n. 121.
5
Ao inicio deu-se a santa Clara a Regra de São Bento e umas Constituições de
inspiração cisterciense. Esta legislação não transmitia a sua forma de vida. Por isso
elaborou e fez aprovar a sua própria rega.
7
Nos institutos de vida consagrada faz-se profissão de votos simples
perpétuos, que tornam ilegítimos os atos contrários. Nas ordens de vida
claustral faz-se profissão pública de votos solenes, isto é, que anulam os atos
contrários.
A profissão religiosa é um ato de liberdade que nos coloca num estado
de vida diferente. Na Idade Média significava um precedente do uso da
liberdade e uma tensão para a vida futura. “A própria forma do voto,
compromisso assumido num momento da vida e que obriga para o resto dos
dias, manifesta a realização de uma nova forma de liberdade. A entrega não
decide só o destino social – como ocorria com quem sendo livre se vendia na
escravatura –, antes faz depender de seu cumprimento o destino eterno e
pessoal. É a forma de realização mais excelente a que pode aspirar um homem
cristão e medieval. Os votos são a forma com que o cristão medieval
proclamava que os sujeitos têm uma origem mais radical que a sua genealogia
física ou cultural. E que a liberdade – como regresso à origem, que é progresso
em direção ao fim ou à sua posse –, não tem a sua forma mais radical quando a
origem que se possui ao transmiti-la é física (mediante o exercício da
sexualidade), nem é sociocultural (mediante a transmissão da propriedade no
seu sentido mais amplio), mas uma origem imperecível, inédita, cuja sede é a
“pessoa”6.
—————
6
Cf. MARÍN, H. A invención de lo humano. La géneses socio-histórica del individuo.
Madrid 2007, p. 146
8
A RCl não assinala tempos de oração. “Atendam antes a que sobre todas
as coisas devem desejar ter o Espírito do Senhor e a sua santa obra, orar sempre
a Deus com um coração puro …” (RCl X, 9). Este é o critério: “Orar
continuamente”. Sempre! É a palavra do Evangelho (Cf. Lc 21,36). Deixa
também uma margem de liberdade para se dedicar a este exercício.
O exemplo de santa Clara orante, dia e noite7, com a margem de liberdade
que a Regra dá, multiplicou dom da vigília entre as suas filhas. São muitíssimas
as clarissas que, até aos nossos dias, se entregaram à oração durante as horas do
dia, e durante as noites.
Esta aplicação conduz à evolução mística pela contemplação do Mistério
de Cristo “Espelho da eternidade”,“… para que contemplando-O te
transformes inteiramente na imagem da sua divindade”8.
Muitas vezes, querendo informações sobre a nossa vida, nos perguntam
pelo horário. Dizê-lo é inútil, dizê-lo é nada dizer. O ser para Deus não se mede
por horas, é viver na sua Presença. Para Francisco, a alma é como um ermitão
que vive sempre atenta a Deus na ermida do corpo: “a alma é o eremita que
mora lá dentro para orar e contemplar o Senhor. Se a alma não consegue
descobrir o silêncio e recolhimento interior da sua cela, de pouco aproveita ao
religioso a outra cela, construída pela mão dos homens”9.
Cada um leva dentro de si a Vida de Deus, e reflete-se na comunidade.
Clara afirma-o desta maneira:
“Creio firmemente que, pela graça de Deus, a alma fiel se torna a
mais digna de todas as criaturas, mesmo maior que o Céu. Só a alma
crente se transforma em sua mansão e seu trono pela caridade de que
estão privados os ímpios. É a Verdade que o testemunha: Quem me ama
será amado por meu Pai, Eu o amarei e viremos a Ele e faremos n’Ele a
nossa morada” (Jo 14, 21. 23). Tal como a Virgem das virgens O trouxe
materialmente no seu seio, assim também tu O podes trazer, sem dúvida
alguma de maneira espiritual, no teu corpo casto e virginal, seguindo as
suas pegadas, sobretudo a sua humildade e pobreza”10.
9
fraternidade, ao trabalho e ao descanso. Eis o que Clara diz sobre a forma de
trabalhar sem deixar de orar sempre:
“As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel
e devotamente, depois da hora de tércia, num trabalho honesto e de
utilidade comum. Façam-no de tal maneira que evitem a ociosidade,
inimiga da alma, mas não apaguem o espírito da santa oração (1 Tes 5,
19) e devoção ao qual todas as demais coisas temporais devem servir”
(RCl 7,1-2)
—————
11
S. PEDRO DE ALCÁNTARA. Tratado de la oración y meditación. Barcelona 1791,
p. 215ss.
12
Testamento de S. Francisco (T) 3.
13
3CCl 14.
10
Proíbe terminantemente as possessões e rendas.
“E tal como eu e minhas irmãs sempre nos empenhámos em guardar
a santa pobreza que prometemos ao Senhor Deus e ao bem-aventurado
Francisco, assim também as abadessas que me sucederem no ofício e
todas as irmãs se sintam obrigadas a observá-la inviolavelmente até ao
fim. Por isso, não possuam nem recebam por si ou por interposta pessoa,
algum domínio ou propriedade ou alguma coisa que razoavelmente possa
ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção de terra que
honestamente se achar necessário para o decoro e isolamento do
mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta, para
satisfazer as necessidades da comunidade” (RCl VI, 10-14).
Estas três colunas são o âmago da RCl. Enquanto se guardar esta forma
de viver os votos, a vida mantém-se firme. Se vacilam, o edifício cai em ruínas.
No que diz respeito à espiritualidade, a Regra não perde atualidade. Mas
há pontos disciplinares que se devem interpretar a partir da cultura que os
inspirou, porque se trata de costumes ou instituições desaparecidas.
—————
14
TCL 59.
11
II. REGRAS PROPOSTAS À II ORDEM, DEPOIS DE SANTA CLARA
12
necessário o trabalho de um século. No princípio foi determinante a ação do
Cardeal Hugolino de Ostia; mais incisiva foi depois da sua eleição para
pontífice com o nome de Gregório IX… e na mesma linha Inocêncio e
Alexandre, até Urbano IV. As intervenções dos pontífices determinaram uma
mudança substancial… mas até à metade do século, estava em S. Damião de
Assis a força não só exemplar, mas também a força institucional de Clara e sua
comunidade a contrariar esta evolução, evitando que se aplicasse a todos os
mosteiros de forma coerente e linear”18.
As três Regras
Regra de Santa Clara (RCl) dada à Ordem das Irmãs Pobres, aprovada por
Inocêncio IV no ano de 1252 com bula do mesmo, em 1253.
Regra Urbaniana (RU) para a Ordem de Santa Clara, composta pelo Cardeal
Gaetano Orseni e S. Boaventura, aprovada por Urbano IV em 1263.
13
opção entre o ideal evangélico da fundadora, ou o da vida monástica clássica,
que assegura a economia com a possessão em comum.
RCl RU
Prescreve três votos solenes Introduz o 4º voto de clausura
Não permite o dote Impõe o dote
Aceita aspirantes de qualquer
condição social
União jurídica com a OFM Governo do Cardeal Protetor
Silêncio de Completas a Tércia Silêncio sempre
Proíbe propriedades e rendas Supõe propriedades e rendas
Administradas por um síndico
Vestidos: túnica, véu e manto Introduz: Escapulário e touca
Dormir vestidas
14
Atitude das clarissas em relação à RU
15
rendas era privilégio de poucos mosteiros. Os problemas surgiam ao equiparar-
se as ordens mendicantes ao monaquismo tradicional. E não se chegou a um
acordo porque a diferença está em dois pontos: um de inspiração evangélica, e
outro social.
16
Reino. Depois, fizeram-se servas da Igreja com a sua intercessão e exemplo,
transcendendo o temporal, fazendo do temporal um vínculo de caridade e
simplicidade. A sua subsistência dependia do trabalho e da esmola. Pedir
esmola não era um gesto ascético mas um intercâmbio, um gesto de pertença ao
ambiente social.
Isto significa um salto de liberdade muito além do tradicional, um
benefício permitido aos varões mas muito difícil de conseguir por uma mulher.
“… por paradoxal que pareça, os votos são na Idade Media a forma consumada
de liberdade, o sinal da liberdade possível ao homem. Além disso, quando a
ordem religiosa abandona a segurança do dote patrimonial que o constituía
numa linhagem, configura-se ‒ ao menos concetualmente ‒ na primeira unidade
social no sentido nitidamente protomoderno… que depende inteiramente da sua
pertença social para subsistir. A esmola é na Idade Média o reconhecimento de
dita pertença, mas é também a manifestação social da prevalência do fim…”24
Clara deixou-se arrebatar por esta opção evangélica clara e diferente. Não retém
o dote patrimonial, nem o brilho da sua estirpe, antes se despoja como Jesus
pobre e desnudo na cruz.
—————
24
MARÍN, Higinio. La invención de lo humano… p. 148.
17
Reformas impostas de fora
Reforma de Eugénio IV, século XV. Promulgou 100 estatutos para as clarissas
que obrigavam sob pecado grave. “Eugénio IV (1431-1447) encarregou o Geral
Guilherme de Casale da reforma das clarissas. Este tentou uniformizar a ordem
—————
25
AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de la Provincia… p 245.
26
Sobre a reforma: AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de as carisas en
Cataluña en tiempo de los Reys Católicos. Collectanea Franciscana 27 (1957);
Reforma de a Provincia Franciscana de la Corona de Aragón en tiempo de los Reys
Católicos”. Estudios Franciscanos 71 (1970); GARCÍA ORO, J. El Cardenal
Cisneros. Vida y empresas. Vol II. BAC. Madrid 1998.
27
GARCÍA ORO, José. El Cardenal Cisneros…, p. 199.
18
na sua vida e denominações. Mas a variedade radical existente na constituição
da Ordem nunca pode ser superada”28. Os 100 preceitos serviram mais para
criar escrúpulos que para ajudar à santidade. Não tem nada a ver com o espírito
de Clara que põe toda a força no essencial e deixa largueza em todo o resto.
19
em não se intrometer nos assuntos temporais das clarissas. Até 1674, o ministro
provincial era visitador das religiosas de sua província.
A história das clarissas, sobretudo nos séculos XIV-XVII, revela o
heroísmo de muitas mulheres valorosas, que sofrerem grandes humilhações e
dificuldades para permanecer fiéis à RCl. Umas suportaram pressões régias,
outras das autoridades locais, e muitas de alguns frades.
20
desde o interior os meios para renovar com a força do primado de Deus,
alcançando dimensões místicas, resgatando a forma de nossa pobreza, e a santa
unidade.
À sombra de novas fundações, sob sua influência, renovaram-se outros
conventos já existentes. Houve mais focos importantes, como a Congregação de
Tordesilhas32, e as que seguiram a reforma villacruciana, alcantarina, etc.
Reforma coletina. Foi iniciada por santa Coleta de Corbié no ano de 1408 em
Besançon terminando com a profissão da RCl e das suas próprias constituições.
Fiel à mãe santa Clara, Coleta proíbe possessões e rendas, e não permite
receber dotes. Acentua a santa unidade, quer que as irmãs se relacionem com
naturalidade, não aceita diferença de classes, considera os cargos como ofícios
de serviço. Impõe a clausura. Estreita relação com os frades menores que
conquista para a sua reforma. Cada convento deve ter quatro frades Menores ao
seu serviço, segundo Breve de Martinho IV (1417)
Sobretudo, impulsionou a formação e promoção intelectual das irmãs,
prescrevendo a leitura de bons livros e a criação de uma bela biblioteca em cada
convento. Com estas medidas as coletinas renovam o primado de Deus,
restauram a altíssima pobreza e edificam a santa unidade. É de notar que
suprimiram a diferença de classes criada pelas Constituições de Bento XII
(1436)
A reforma coletina estendeu-se rapidamente. Entrou em Espanha pela
Coroa de Aragão, Perpinhão e Gandia (1458). De Gandia saíram 33
fundações33. Foi uma renovação admirável.
—————
32
Cf. OMAECHEVERRÍA, I. Las clarisas a través…, p 107ss; GARCÍA ORO, J, O
Cardemal Cisneros… p 204s. 216ss
33
VIZUETE, Carlos. As clarisas nazaremas. Na “A imagem devocional barroca.
Cuemca, 2010, p. 59ss., Tábua 1, Traz as fundações da reforma coletina. Na Tábua 2,
as fundações das descalças.
34
Córdoba 1491;Sevila 1520; Estepa 1599; Marchema em Santa Isabel, em Granada
1624; Ángel Custodio em Granada 1626; Jerez de la Frontera 1635;Ronda 1664;
Cocentaina 1625; Sisante 1714.
21
A novidade das descalças era professar RCl sem as constituições
coletinas, nem os 100 estatutos promulgados pelo Geral Guilherme de Casale a
pedido de Santa Coleta. Dos “preceitos da regra que, segundo Eugénio IV,
obrigavam sob pecado grave”, reteve somente os votos e o modo de eleger a
abadessa no capítulo. Num tempo em que as normas se multiplicavam em
excesso, a redução ao essencial prova a prudência da Irmã Marina.
Estavam sob a obediência do Vigário ultramontano da Observância e dos
Visitadores que ele nomeava. Gozavam dos indultos e privilégios da Ordem,
excepto aqueles que podiam induzir ao relaxamento. Tinham faculdade para
receber as clarissas urbanistas que quisessem professar a RCl.
Cantavam matinas à meia-noite, vestiam o hábito azul-cinza de tecido
grosseiro, toucas e véu de linho sem adornos, não podiam sair à roda sem
licença nem deixar-se ver por estranhos. Perante as visitas cobriam o rosto com
um véu espesso35. Eram medidas tidas como necessárias para evitar abusos. São
detalhes que se generalizam e é bom conhecer quando, onde e por que nascem.
Respirava-se um ambiente espiritual especial no convento de Santa Maria de
Jesus de Sevilha.
O movimento espanhol das descalças estendeu a sua força renovadora,
sobretudo, em Andaluzia. Este espírito perene de renovação encarnou-se numa
dezena de mulheres singulares. Podemos destacar M. Jerónimo da Assunção, de
Santa Isabel dos Reis de Toledo, fundadora nas Filipinas. As suas companheiras
chegaram à China.
22
cartas. Com o que se conservou e as biografias escritas por suas irmãs e
confessores, hoje formamos a nossa “Biblioteca familiar”36.
Se na reforma imposta se estreitava a clausura para impedir o trato
abusivo com os seculares, as autênticas reformadoras acentuavam-na para
restaurar o primado de Deus, fomentando a experiência de Deus na oração de
recolhimento.
A reforma imposta queria obrigá-las a viver de rendas. As verdadeiras
reformadoras viveram com austeridade e simplicidade, defenderam com
humilde e valentia a pobreza em particular e em comum como imitação e
abraço a Cristo pobre.
A reforma imposta retinha a obrigação do dote e permitia a presença de
empregadas e leigas para o serviço. As verdadeiras reformadoras, em pobreza e
humildade, corrigiam as desigualdades e, sem acepção de pessoas, tornavam
verdadeira a santa unidade em fraternidade.
No século XVIII continuou a expansão das clarissas em Espanha e na
América. Mas os escritos dos finais de século vão perdendo criatividade
mística, afectados pelo barroco.
23
Tendo presente o elenco, se aprecia a preferência das clarissas espanholas
pela profissão da RCl, num sentido de fidelidade ao espírito da fundadora. Nos
finais do século XX era esta a situação:
CONCLUSÃO
24
essência. O conhecimento da história passada é muito útil para distinguir o
essencial.
No terceiro milénio assistimos a uma crise que nos apanha numa rede e
afeta todas as instituições, a família, a economia, a política, a Igreja, etc. Os
seus efeitos pesam também sobre a vida claustral. Tudo foi anunciado há muito
tempo: Que a vida contemplativa perdurará. O trabalho, uma vez mais, é
atualizá-la atendendo aos sinais do tempo presente, e procurando pôr em dia as
três colunas da Regra. Creio firmemente que também agora suscitará mestras
que, com o espírito de Clara de Assis, iluminarão a renovação que o terceiro
milénio está pedindo.
BIBLIOGRAFIA
DOCUMENTOS
ESTUDOS
25
TRIVIÑO, Mª. Victoria. Escritoras clarisas españolas. Antología. BAC, Madrid 1992.
- La Orden de Santa Clara em Cataluña. Em: “800 anes de franciscanisme”. “Qüestions
Teològiques” 9. Facultat de Teología de Catalunea, Barcelona 2010Clarisas y
Franciscanos catalanes hasta 1567. Em “Los Franciscanos Conventuales em España” II
Congresso Internacional sobre Franciscanismo en la Península Ibérica (Barcelona 2005)
Madrid 2006, pp 61-84.
VIZUETE, Carlos. Las clarisas nazarenas. Em “L imagen devocional barroca”. Ed. de a
Universidad de Castilla-La Mancha. Cuenca 2010, pp 45-62.
26
A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES:
DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE
Giovanna Cremaschi OSC1
—————
1
O texto corresponde a uma conferência pronunciada no Primeiro Congresso de
Presidentes das Federações das Irmãs Clarissas, Assis, 2008.
27
A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES:
DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE
—————
2
O termo formação deriva do latim: forma, que designa a imagem integral de um ser
que chegou à perfeição e maturidade segundo a sua própria espécie, cf. G. POLICIA, G.
ROCCA (ao cuidado), Dizionario degli istituti di perfezione IV, Paoline, Roma 1977,
121. O verbo informare, usado por Clara, que voltamos a encontrar no PC 1, 14, tem o
sentido de dar forma, palavra muito querida a Clara, no sentido de modelo em quem se
deve conformar, que em definitivo é Jesus Cristo. Por isso fala de forma de vida (RCL
1,1) e nunca de Regra, da forma da nossa pobreza (RCL 2, 14). Nesta linha de
exemplaridade cada irmã está chamada a ser forma para as outras. TCL 19).
3
Na nossa sociedade que se expressa por imagens, são os exemplos de vida que podem
convencer, e não as belas instruções. Isso não significa que não tenhamos de transmitir
os fundamentos da nossa vida.
28
A MESTRA
29
compreensão dos Salmos, não tanto através de um estudo sistemático, mas de
um aprofundamento sério e meditado, com o fim de os integrar na vida. Os
Salmos apresentam a Deus todos os sentimentos humanos e ensinam as diversas
formas de oração: arrependimento, súplica, ação de graças, sede de Deus,
louvor… Por outro lado, manifestam a relação com Deus como uma aliança,
um pacto de amor entre Deus e seu povo, entre o Deus e a mulher que O busca.
Assim se pode compreender o sentido da esponsalidade tão acentuada nas
Cartas de santa Clara: o pacto de amor com Jesus Cristo pobre e crucificado,
onde o seguimento se torna comunhão mística7. O Saltério ensina a
espiritualidade dos pobres que confiam sem reservas no Senhor. Orando, somos
introduzidos no seguimento do Pobre.
30
espontaneamente a irmã, pois o nosso teor de vida (sancta converseo) se
constitui ao mesmo tempo que a relação fraterna, o trabalho e todos os gestos
quotidianos onde se aprende o estilo de vida pobre e nos ajuda ser cada vez
mais irmãs10.
“Se alguma, por inspiração divina, vier ter connosco (…) (RCL 2, 1).”
Perante aquela que quer partilhar nossa vida, Clara salienta de imediato o
elemento essencial: a inspiração, que vem do Espírito Santo, primeiro artífice
do chamamento à vida segundo o Evangelho “no estado de perfeição a que te
chamou o Espírito do Senhor”(2CCL 14). Na Segunda Carta, descobrimos que
a perfeição é o seguimento de Cristo pobre até à nudez da cruz (2CCL 18-20;
TCL 45); esse é o princípio (2CCL 11; TCL 78) sobre o qual se fundamenta
uma vida como a nossa. Isto não quer dizer que a jovem que bata à porta do
nosso mosteiro, tenha alcançado essa consciência. Efectivamente, o caminho de
—————
10
É a tríplice relação na qual se articula o caminho de formação: conversão a Deus;
autenticidade da própria realidade de mulher; amar as irmãs com ternura de mãe
(“Amai sempre a Deus, as vossas almas e as vossas irmãs” BCL 14); indica uma
maturidade autêntica, sobretudo na dimensão fraterna. Se não se cresceu na aceitação
de si mesmo e na relação com Deus que conduz à gratuidade e liberdade gozosa de
filhos, as relações interpessoais estão enfermas. Para nós que vivemos sempre juntas,
este ponto é particularmente crucial, até ao ponto de condicionar o caminho de uma
fraternidade: reza-se juntas, mas os corações estão desunidos, surgem rivalidades e
rancores e falta de diálogo… Cf. RCL 10, 6-7; CCGG Art. 150; VC 42.
31
discernimento (através dos encontros no locutório o seguindo outros modos
adotados, como períodos de experiência no mosteiro11) cujo finalização não se
deve apressar, além da observação da maturidade humana da jovem, da sua
alegria de viver e de ser mulher, deve conduzir à verificação de um encontro
autêntico com a pessoa de Jesus Cristo e às possibilidades de um crescimento
nessa direção.
32
progressiva de um compromisso para a vida, de uma fidelidade que se
fundamenta na fidelidade a Deus, exige um passo sério de conversão. São estas
as premissas que levarão a viver o testemunho cristão, que em si conduz ao
martírio no âmbito da fraternidade.
ETAPAS DA FORMAÇÃO
33
irmãs que o Senhor me tinha dado, logo depois da minha conversão” (TCL 24-
26). Com uma consciência que alcançou no final da sua vida, Clara ensina-nos
as etapas fundamentais da resposta ao chamamento de Deus.
34
evolução rumo à instituição tinha transformado a simplicidade das origens,
tendo gerado uma estrutura diferente tanto para os irmãos como para as irmãs.
Insiste em acentuar a unidade do carisma, que deve ser visível na formação19.
Tendo em conta estes elementos essenciais, continuamos com os critérios
da forma de vida.
35
algo que vai além da castidade. Trata-se de viver o próprio corpo com a
consciência de uma beleza recebida para se transformar em dom de amor. É um
caminho através do qual a mulher, em comunhão com Cristo, faz seu o dom
integral ao Pai e aos irmãos, no caráter específico de ser mulher. O corpo
também é o templo do Espírito, por isso é chamado a escutar as suas
inspirações para que “… com o auxílio do Senhor, Lhe devolvamos,
multiplicado, o talento que nos confiou” (TCL 18). Clara fala “… do empenho
que devemos pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus”
(TCL 18). Recordando a sua experiência entre os leprosos, Francisco afirma:
“… o que me parecia amargo tornou-se para mim em doçura de alma e de
corpo” (T 3).
Não se exige à irmã pobre de hoje as penitências corporais excessivas de
Clara. Mas está sempre chamada a saber controlar os gostos. Por exemplo, deve
ter uma relação sadia com os alimentos (RCL 3, 8). Uma mulher pobre por
amor, deve encontrar o sentido da sobriedade e da ação de graças pelo pão de
cada dia. Estes não são componentes marginais da nossa pobreza, porque a sua
autenticidade verifica-se no quotidiano, no qual a alimentação é um dos
aspetos. Se tomarmos a sério a nossa forma vida, damo-nos conta de que Clara,
assim como Francisco, escolheu a forma de vida que os identificava com os
últimos da sociedade do seu tempo23.
—————
pobreza (13), ainda mais, para pertencer sem reservas a Deus em Jesus Cristo. Se
introduzimos a virgindade na formação, mostrando o seu sentido mais profundo, ela
pode também ser compreendida por uma jovem de hoje. Cf. CCGG Art 26.
23
Estamos chamadas a interpelarmo-nos sobre como vivemos esta dimensão e que
mensagem transmitimos às irmãs em formação, à Igreja e à sociedade.
36
Clara acrescenta: “A partir deste momento não lhe é permitido deixar o
mosteiro a não ser por motivo evidente, útil, razoável e aceitável” (RCL 2, 13).
A frase deve ser lida comparando com a regra dos irmãos (“E de modo algum
lhes será lícito depois, sair desta religião… (2R 2, 12”), pelo que podemos
deduzir que o primeiro significado é a exigência da perseverança. Efetivamente,
inclui também uma vida centrada na comunhão mística com Cristo e, por isso,
adopta um género de vida estável, num determinado lugar, de onde se deduz a
clausura desejada pela Igreja. A opção de uma vida contemplativa, onde tudo se
orienta para a busca, a escuta, o louvor, a contemplação de um Deus trinitário
em Jesus com a operação do Espírito Santo, implica também para nós a
clausura, embora a vida contemplativa não se esgote nesta última. Por isso, é
necessário evitar dois riscos opostos:
—————
24
CCGG Art. 125.
25
Algumas limitações na clausura durante o noviciado podem ser formativas, com a
condição de que estejam realmente fundamentadas e assumidas como um meio
crescimento na vida centrada unicamente em Deus. As formadoras devem ter muito
presente que o viver encerradas pode causar regressão na jovem, caso a clausura se
converta em dependência em relação a tudo, sem espaço de responsabilidade pessoal,
sem confrontação com os problemas concretos das pessoas.
37
O noviciado é a iniciação à vida fraterna, mais especificamente à vida
segundo a forma vivendi26, dada por Francisco. O noviciado deve conduzir a
sentir-se cada vez mais filhas de Deus Pai que nos ama com ternura de mãe,
para se abandonar cada vez mais à sua Providência, que nasce também da
escuta e das mediações humanas, na alegria de sentir-se amadas tal como
somos, mesmo naquilo que em nós não é tão amável. Ao mesmo tempo, o
noviciado deve conduzir à experiência da pertença total das escravas: como
Maria, deve deixar-se converter cada dia pela Palavra, para a encarnar e aderir à
vontade do Pai. O sermos esposas do Espírito Santo, leva-nos de novo a Maria.
Francisco afirma que nos fizemos como Maria; Por isso, na vida quotidiana
devemos crescer na docilidade ao Espírito, tal como Maria. Na formação deve
dar-se muito espaço “… a que sobre todas as coisas devem desejar ter o
Espírito do Senhor e a sua santa operação” (RCL 10,9). O Espírito é o artífice
da comunhão mística com Cristo, que nos converte em ouvintes da Palavra,
acolhe o Corpo e Sangue do Senhor, e dá-nos a capacidade de ver o bem que
Deus realiza em nós, nas irmãs, na Igreja e no mundo. A sua santa operação
purifica de tudo o que nos afasta de Deus, ilumina para conhecer a Deus, isto é,
para fazer a experiência d’Ele, para viver a nossa realidade de filhas amadas e
ingratas, para ver os sinais da sua presença na vida quotidiana; faz-nos arder no
fogo do amor, capacita-nos para seguir as pegadas de Jesus Cristo e introduz-
nos na comunhão trinitária27. É o espírito quem nos chama a viver a perfeição
do Santo Evangelho, que é Jesus Cristo28.
38
abraça todas as dimensões da vida, sem descuidar a pobreza efetiva, sem a qual
não se propõe, nem se vive um caminho espiritual, mas algo abstrato e
artificial29. Este caminho de sabedoria harmoniza-se muito bem com um
programa de crescimento humano, que conhece a luta para se libertar de si
mesmo, a concentração narcisista sobre si mesmo, a desconfiança, o sentimento
de culpa pelo pecado pessoal, etc. O processo formativo deve ser acompanhado
por um aprofundamento dos Evangelhos, dos Profetas e do Êxodo30. Uma vez
que a Páscoa é o coração da nossa espiritualidade, a formação deve orientar-se
para o Crucificado ressuscitado, o Cristo pobre de Clara, descobrindo cada vez
mais como a celebração eucarística, ao introduzir-nos no mistério, nos capacita
para “oferecermo-nos como hóstia santa e agradável a Deus” (Ro 10, 7)31. É na
passagem da celebração à vida que se concretiza diariamente o seguimento de
Cristo.
É aqui que se introduz a iniciação à vida fraterna (RCL 10. 6), vivendo
nos pequemos gestos o sim e a gratidão da celebração eucarística. Por essa
razão, o noviciado de uma só noviça é muito problemático, porque não existe
confrontação com as colegas. Faltam as condições concretas para vivenciar um
amor que não seja só de palavras e faça ver como é necessário sair do centro de
si mesma, para se dar conta das suas reações e da falta de liberdade que a
motiva, para aprender a colaborar em atividades realizadas em comum, para
descobrir que a capacidade de diálogo é muito diferente das muitas palavras se
poderiam dizer.
—————
29
Clara fala da pobreza e da humildade: aquele que é pobre não é presunçoso, pois
sabe que tudo recebeu como dom do dador de todos os bens, e é consciente da sua
própria pequenez (que não é o mesmo que falta de autoestima), cf. CCGG Art.36), que
se manifesta na relação fraterna, onde não se teme o juízo e se acolhe a outra como
dom na relação concreta. Todo o processo de kénosis de Cristo é vivido por Clara em
clave de pobreza (TCL 45-47).
30
CC GG Art. 75.
31
Cf. 2CCL 10; CC GG Art.12; VC 95.
39
ou de outra irmã com quem trabalha, unindo-se assim à obediência de Jesus32.
A alegria de viver também deve manifestar-se no cansaço do caminho.
40
atenção esta resposta, que deve dar a partir da sua maturidade como
mulher. Não esqueçamos, a este respeito, as exigências da forma de
vida: “E as que não sabem letras não cuidem de as a prender” (RCL 10,
8), que nos remete para o primado do Espírito Santo. Trata-se de
aprender com a vida, aprofundando a Escritura, a teologia, a patrística,
orientadas a conhecer melhor a tradição em que Francisco e Clara se
inseriram e descobri a nossa história para compreender como chegamos
ao presente. No geral os nossos mosteiros ainda se ressentem da
espiritualidade do século XIX: renascidos depois da extinção da vida
religiosa, assumiram um estilo de vida observante, devocional e
centrada na clausura. Considero muito importante o conhecimento das
nossas santas, das místicas trinitárias centradas em Jesus Cristo que no
seu tempo encarnaram a vivência do Evangelho. Seus escritos
espirituais ajudam-nos no crescimento interior, muito mais que o
recurso a outras espiritualidades.
—————
34
CO 9.
41
PAPA BENTO XVI
43
SANTA VERÓNICA JULIANI
44
um arco de trinta e quatro anos de vida claustral. A escrita flui espontânea e
contínua, não há cancelamentos ou correcções, nem sinais de pontuação ou
distribuição da matéria em capítulos ou partes, segundo um desígnio
previamente estabelecido. Verónica não queria compor uma obra literária; aliás,
foi obrigada a escrever as suas experiências pelo Padre Girolamo Bastianelli,
religioso dos Filippini, de acordo com o Bispo diocesano Antonio Eustachi.
Santa Verónica tem uma espiritualidade acentuadamente cristológico-
esponsal: é a experiência de ser amada por Cristo, esposo fiel e sincero, e
querer corresponder com um amor cada vez mais comprometido e apaixonado.
Nela, tudo é interpretado em clave de amor, e isto infunde-lhe uma profunda
serenidade. Tudo é vivido em união com Cristo, por amor a Ele, e com a alegria
de poder demonstrar-lhe todo o amor de que a criatura é capaz.
O Cristo ao qual Verónica está profundamente unida é aquele que sofre
na paixão, morte e ressurreição; é Jesus no gesto de se imolar ao Pai para nos
salvar. É desta experiência que deriva também o amor intenso e sofredor pela
Igreja, na dúplice forma da oração e da oferenda. A Santa vive nesta
perspectiva: reza, sofre e procura a «santa pobreza» como «expropriação»,
perda de si (cf. ibid., III, 523), precisamente para ser como Cristo, que se
entregou inteiramente a si mesmo.
Em cada página dos seus escritos, Verónica recomenda alguém ao
Senhor, corroborando as suas preces de intercessão com a oferta de si em cada
sofrimento. O seu amor dilata-se a todas «as necessidades da Santa Igreja»,
vivendo com ansiedade o desejo da salvação de «todo o universo» (Ibid., III-IV,
passim). Verónica clama: «Ó pecadores, ó pecadoras... todos e todas, ide ao
Coração de Jesus; ide à lavanda do seu preciosíssimo Sangue... Ele espera-vos
com os braços abertos para vos abraçar» (Ibid., II, 16-17). Animada por uma
caridade fervorosa, ela presta atenção, compreensão e perdão às irmãs do
mosteiro; oferece as suas orações e os seus sacrifícios pelo Papa, pelo seu
bispo, pelos sacerdotes e por todas as pessoas necessitadas, inclusive pelas
almas do purgatório. Resume a sua missão contemplativa com estas palavras:
«Não podemos ir pregando pelo mundo, para converter as almas, mas somos
obrigadas a rezar incessantemente por todas aquelas almas que ofendem a
Deus... de modo particular com os nossos sofrimentos, ou seja, com um
princípio de vida crucificada» (Ibid., IV, 877). A nossa Santa concebe esta
missão como um «estar no meio», entre os homens e Deus, entre os pecadores e
Cristo crucificado.
Verónica vive de modo profundo a participação no amor sofredor de
Jesus, convicta de que o «sofrer com alegria» é a «chave do amor» (cf. ibid., I,
45
299.417; III, 330.303.871; IV, 192). Ela evidencia que Jesus padece pelos
pecados dos homens, mas também pelos sofrimentos que os seus servos fiéis
tiveram que suportar ao longo dos séculos, no tempo da Igreja, precisamente
mediante a sua fé sólida e coerente. Ela escreve: «O seu Pai eterno fez-lhe ver e
sentir, nessa altura, todos os padecimentos que deviam suportar os seus eleitos,
as suas almas mais amadas, ou seja, aquelas que teriam beneficiado do seu
Sangue e de todos os seus sofrimentos» (Ibid., II, 170). Como diz de si o
Apóstolo Paulo: «Agora alegro-me nos sofrimentos suportados por vós. O que
falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, pelo seu corpo que é a
Igreja» (Cl 1, 24). Verónica chega a pedir a Jesus para ser crucificada com Ele:
«Num instante — escreve — vi sair das suas santíssimas chagas cinco raios
resplandecentes; e todos vieram ao meu redor. E eu via estes raios tornar-se
como que pequenas chamas. Em quatro delas havia os pregos; e numa a lança,
como que de ouro, inteiramente abrasada: e trespassou-me o coração, de um
lado para o outro... e os pregos trespassaram-me as mãos e os pés. Senti uma
grande dor; mas, na mesma dor, eu via-me a mim mesma, sentia-me
inteiramente transformada em Deus» (Diário, I, 897).
A Santa está convencida de participar antecipadamente no Reino de Deus
mas, ao mesmo tempo, invoca todos os Santos da Pátria bem-aventurada para
que venham em sua ajuda no caminho terreno da sua doação, à espera da bem-
aventurança eterna; esta é a aspiração constante da sua vida (cf. ibid., II, 909;
V, 246). Em relação à pregação dessa época, centrada não raro na «salvação da
própria alma» em termos individuais, Verónica mostra um forte sentido
«solidário», de comunhão com todos os irmãos e irmãs, caminho rumo ao Céu,
e vive, reza e sofre por todos. As realidades penúltimas, terrenas, ao contrário,
embora sejam apreciadas em sentido franciscano como um dom do Criador, são
sempre relativas, inteiramente subordinadas ao «gosto» de Deus e sob o sinal de
uma pobreza radical. Na communio sanctorum, ela esclarece a sua doação
eclesial, assim como a relação entre a Igreja peregrina e a Igreja celeste. «Todos
os Santos — escreve — estão lá em cima mediante os méritos e a paixão de
Jesus; mas para tudo quanto nosso Senhor realizou, eles cooperaram, de tal
modo que a sua vida foi inteiramente ordenada, regulada pelas (suas) mesmas
obras» (Ibid., III, 203).
Nos escritos de Verónica encontramos muitas citações bíblicas, às vezes
de modo indirecto, mas sempre claras: ela revela familiaridade com o Texto
sagrado, do qual se nutre a sua experiência espiritual. Além disso, há que
revelar que os momentos fortes da experiência mística de Verónica nunca estão
separados dos acontecimentos salvíficos, celebrados na liturgia, onde ocupam
um lugar particular a proclamação e a escuta da Palavra de Deus. Portanto, a
46
Sagrada Escritura ilumina, purifica e confirma a experiência de Verónica,
tornando-a eclesial. Mas por outro lado, precisamente a sua experiência,
alicerçada na Sagrada Escritura com uma intensidade excepcional, guia a uma
leitura mais profunda e «espiritual» do mesmo Texto, entra na profundidade
escondida do texto. Ela não só se exprime com as palavras da Sagrada
Escritura, mas também vive realmente destas palavras, que nela se tornam
vivas.
Por exemplo, a nossa Santa cita com frequência a expressão do Apóstolo
Paulo: «Se Deus é por nós, quem será contra nós?» (Rm 8, 31; cf. Diário, I,
714; II, 116.1021; III, 48). Nela, a assimilação deste texto paulino, esta sua
grande confiança e profunda alegria tornam-se um acontecimento completo na
sua própria pessoa: «A minha alma — escreve — foi unida à vontade divina, e
eu estabeleci-me verdadeiramente e fixei-me para sempre na vontade de Deus.
Parecia que nunca mais me iria afastar desta vontade de Deus, e voltei a mim
com estas palavras específicas: nada me poderá separar da vontade de Deus,
nem angústias, nem penas, nem dificuldades, nem desprezos, nem tentações,
nem criaturas, nem demónios, nem obscuridades, nem sequer a própria morte,
porque na vida e na morte, desejo inteiramente, e em tudo, a vontade de Deus»
(Diário, IV, 272). Assim, temos também a certeza de que a morte não é a
última palavra, estamos fixos na vontade de Deus e assim, realmente, na vida
para sempre.
Verónica revela-se, em particular, uma testemunha corajosa da beleza e
do poder do Amor divino, que a atrai, permeia e inflama. É o Amor crucificado
que se imprimiu na sua carne, como na de São Francisco de Assis, com os
estigmas de Jesus. «Minha esposa — sussurrava-me Cristo crucificado — são-
me preciosas as penitências que fazes por aqueles que estão em desgraça diante
de mim ... Depois, tirando um braço da cruz, fez-me sinal que me aproximasse
do seu lado ... E encontrei-me nos braços do Crucificado. Não posso descrever
aquilo que senti naquele momento: queria estar sempre no santíssimo lado»
(Ibid., I, 37). É também uma imagem do seu caminho espiritual, da sua vida
interior: estar no abraço do Crucificado e assim permanecer no amor de Cristo
pelos outros. Também com a Virgem Maria, Verónica vive uma relação de
profunda intimidade, testemunhada pelas palavras que um dia ouve Nossa
Senhora dizer, e que ela cita no seu Diário: «Fiz-te repousar no meu seio,
recebeste a união à minha alma e por ela, como que em voo, foste levada diante
de Deus» (IV, 901).
Santa Verónica Juliani convida-nos a fazer crescer, na nossa vida cristã, a
união com o Senhor no ser pelos outros, abandonando-nos à sua vontade com
47
confiança completa e total, e a união com a Igreja, Esposa de Cristo; convida-
nos a participar no amor sofredor de Jesus crucificado pela salvação de todos os
pecadores; convida-nos a manter o olhar fixo no Paraíso, meta do nosso
caminho terreno, onde viveremos juntamente com muitos irmãos e irmãs a
alegria da plena comunhão com Deus; convida-nos a nutrir-nos quotidia—
namente da Palavra de Deus para aquecer o nosso coração e orientar a nossa
vida. As últimas palavras da Santa podem considerar-se a síntese da sua
apaixonada experiência mística: «Encontrei o Amor, o Amor deixou-se ver!».
Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010
48
SANTA CATARINA DE BOLONHA
49
Não conhecemos o caminho espiritual de Catarina antes desta escolha.
Falando em terceira pessoa, ela afirma que entrou ao serviço de Deus
«iluminada pela graça divina (...) com consciência recta e grande fervor»,
solícita noite e dia à santa oração, comprometendo-se em conquistar todas as
virtudes que via nos outros, «não por inveja, mas para agradar mais a Deus, em
quem tinha posto todo o seu amor» (Le sette armi spirituali, VII, 8, Bolonha
1998, p. 12). São notáveis os seus progressos espirituais nesta nova fase da
vida, mas são também grandes e terríveis as provas, os sofrimentos interiores,
sobretudo as tentações do demónio. Atravessa uma profunda crise espiritual, até
ao limitar do desespero (cf. ibid., VII, pp. 12-29). Vive na noite do espírito,
provada também pela tentação da incredulidade em relação à Eucaristia. Depois
de sofrer muito, o Senhor consola-a: numa visão, concede-lhe um conheci-
mento claro da presença eucarística real, um conhecimento tão luminoso que
Catarina não consegue expressar com palavras (cf. ibid., VIII, 2, pp. 42-46). No
mesmo período, uma prova dolorosa abate-se sobre a comunidade: surgem
tensões entre quem quer seguir a espiritualidade agostiniana e quem está mais
orientado para a espiritualidade franciscana.
Entre 1429 e 1430 a responsável do grupo, Lucia Mascheroni, decide
fundar um mosteiro agostiniano. Catarina, ao contrário, com outras escolhe
vincular-se à regra de santa Clara de Assis. É um dom da Providência, porque a
comunidade habita perto da igreja do Espírito Santo, anexa ao convento dos
Frades Menores que aderiram ao movimento da Observância. Assim, Catarina e
as companheiras podem participar regularmente nas celebrações litúrgicas e
receber uma assistência espiritual adequada. Têm também a alegria de ouvir a
pregação de São Bernardino de Sena (cf. ibid., VII, 62, p. 26). Catarina narra
que, em 1429 — terceiro ano da sua conversão — vai confessar-se a um dos
Frades Menores que ela estimava, realiza uma boa confissão e pede intensa-
mente ao Senhor que lhe conceda o perdão de todos os pecados e da pena a eles
ligada. Deus revela-lhe em visão que lhe perdoou tudo. É uma experiência
muito forte da misericórdia divina, que a marca para sempre, dando-lhe novo
impulso para responder com generosidade ao imenso amor de Deus (cf. ibid.,
IX, 2, pp. 46-48).
Em 1431 tem uma visão do juízo final. A cena assustadora dos
condenados impele-a a intensificar orações e penitências para a salvação dos
pecadores. O demónio continua a atacá-la e ela confia-se de modo cada vez
mais total ao Senhor e à Virgem Maria (cf. ibid., X, 3, pp. 53-54). Nos escritos,
Catarina deixa-nos algumas notas essenciais deste combate misterioso, do qual
sai vitoriosa com a graça de Deus. Fá-lo para instruir as suas irmãs de hábito e
aquelas que tencionam percorrer o caminho da perfeição: quer alertar contra as
50
tentações do demónio, que muitas vezes se esconde sob aparências
enganadoras, para depois insinuar dúvidas de fé, incertezas vocacionais e
sensualidades.
No tratado autobiográfico e didascálico As sete armas espirituais,
Catarina oferece a este propósito ensinamentos de grande sabedoria e de
profundo discernimento. Fala em terceira pessoa, citando as graças extraor-
dinárias que o Senhor lhe concede, e em primeira pessoa para confessar os
próprios pecados. Do seu escrito transparece a pureza da sua fé em Deus, a
profunda humildade, a simplicidade de coração, o ardor missionário e a paixão
pela salvação das almas. Delineia sete armas de luta contra o mal, contra o
demónio:
1. ter o cuidado e a solicitude de realizar sempre o bem;
2. acreditar que sozinhos nunca poderemos fazer algo verdadeiramente
bom;
3. confiar em Deus e, por amor a Ele, jamais ter medo da batalha contra o
mal, quer no mundo, quer em nós mesmos;
4. meditar com frequência sobre os acontecimentos e as palavras da vida
de Jesus, sobretudo a sua paixão e morte;
5. recordar-se que devemos morrer;
6. ter fixa na mente a memória dos bens do Paraíso;
7. ter familiaridade com a Sagrada Escritura, trazendo-a sempre no
coração para que oriente todos os pensamentos e toda as obras.
Um bonito programa de vida espiritual, também hoje, para cada um de
nós!
No convento, não obstante fosse habituada à corte de Ferrara, Catarina
desempenha funções de lavadeira, costureira, padeira e encarregada de cuidar
dos animais. Faz tudo, até os serviços mais humildes, com amor e pronta
obediência, oferecendo às irmãs de hábito um testemunho luminoso. Com
efeito, ela vê na desobediência aquele orgulho espiritual que destrói todas as
outras virtudes. Por obediência aceita o cargo de mestra das noviças, não
obstante se considere incapaz de desempenhar tal função, e Deus continua a
animá-la com a sua presença e os seus dons: com efeito, é uma mestra sábia e
apreciada.
Em seguida confiam-lhe o serviço do locutório. Custa-lhe muito
interromper com frequência a oração para responder às pessoas que se
apresentam à grade do mosteiro, mas também desta vez o Senhor não deixa de a
visitar e de lhe estar próximo. Com ela, o mosteiro é cada vez mais um lugar de
oração, de oferta, de silêncio, de cansaço e de alegria. Quando faleceu a
abadessa, os superiores pensam imediatamente nela, mas Catarina impele-as a
51
dirigir-se às Clarissas de Mântua, mais instruídas nas constituições e nas
observâncias religiosas. Contudo, poucos anos depois, em 1456, pede-se ao seu
mosteiro que crie uma nova fundação em Bolonha. Catarina preferiria terminar
os seus dias em Ferrara, mas o Senhor aparece-lhe e exorta-a a cumprir a
vontade de Deus e ir a Bolonha como abadessa. Prepara-se para o novo
compromisso com jejuns, disciplinas e penitências. Parte para Bolonha com
dezoito irmãs de hábito. Como superiora é a primeira na oração e no serviço;
vive em profunda humildade e pobreza. Quando termina o mandato do triénio
de abadessa, é feliz por ser substituída, mas depois de um ano deve retomar as
suas funções, porque a nova eleita ficou cega. Apesar do sofrimento e das
graves enfermidades que a atormentam, ela desempenha o seu serviço com
generosidade e dedicação.
Ainda por um ano exorta as irmãs de hábito à vida evangélica, à paciência
e à constância nas provas, ao amor fraterno, à união com o Esposo divino,
Jesus, para preparar deste modo o seu dote para as bodas eternas. Um dote que
Catarina vê no saber compartilhar os sofrimentos de Cristo, enfrentando com
serenidade as dificuldades, angústias, desprezos e incompreensões (cf. Le sette
armi spirituali, X, 20, pp. 57-58). No início de 1463 as enfermidades agravam-
se; reúne as irmãs de hábito pela última vez no Capítulo, para lhes anunciar a
sua morte e recomendar a observância da regra. Por volta do fim de Fevereiro é
provada por fortes sofrimentos que já não a deixarão, mas é ela que conforta as
irmãs na dor, assegurando-lhes a sua ajuda inclusive do Céu. Depois de ter
recebido os últimos Sacramentos, entrega ao confessor o escrito As sete armas
espirituais e entra em agonia; o seu rosto faz-se bonito e luminoso; olha ainda
com amor para quantas a circundam e expira docemente, pronunciando três
vezes o nome de Jesus: é o dia 9 de Março de 1463 (cf. I. Bembo, Specchio di
illuminazione. Vita di S. Caterina a Bologna, Florença 2001, cap. III). Catarina
será canonizada pelo Papa Clemente XI no dia 22 de Maio de 1712. A cidade
de Bolonha, na capela do mosteiro do Corpus Domini, conserva o seu corpo
incorrupto.
Caros amigos, santa Catarina de Bolonha, com as suas palavras e com a
sua vida, é um forte convite a deixar-nos guiar sempre por Deus, a cumprir
quotidianamente a sua vontade, embora muitas vezes não corresponda aos
nossos desígnios, a confiar na sua Providência que jamais nos deixa sozinhos.
Nesta perspectiva, santa Catarina fala connosco; à distância de muitos séculos,
ainda é muito moderna e fala à nossa vida. Como nós, ela sofre a tentação,
padece as tentações da incredulidade, da sensualidade, de um difícil combate
espiritual. Sente-se abandonada por Deus, encontra-se na obscuridade da fé.
Mas em todas estas situações apoia-se sempre na mão do Senhor, não O deixa,
52
não O abandona. E caminhando de mãos dadas com o Senhor, percorre a via
recta e encontra o caminho da luz. Assim, diz-nos também a nós: coragem,
também na noite da fé, mesmo em muitas dúvidas que possam existir, não deixa
a mão do Senhor, caminha de mãos dadas com Ele, crê na bondade de Deus;
assim é caminhar pela vida recta! E gostaria de ressaltar outro aspecto, o da sua
grande humildade: é uma pessoa que não quer ser alguém ou algo; não deseja
aparecer; não quer governar. Deseja servir, cumprir a vontade de Deus, estar ao
serviço dos outros. E precisamente por isso, Catarina era credível na autoridade,
porque se podia ver que para ela a autoridade era precisamente servir o
próximo. Peçamos a Deus, por intercessão da nossa santa, o dom de realizar o
programa que Ele tem para nós, com coragem e generosidade, para que
somente Ele seja a rocha sólida sobre a qual se edifica a nossa vida.
Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010
53
SANTA CATARINA DE GÉNOVA
Hoje gostaria de vos falar de outra santa que tem o nome de Catarina,
depois de Catarina de Sena e Catarina de Bolonha; falo de Catarina de Génova,
conhecida sobretudo pela sua visão sobre o purgatório. O texto que descreve a
sua vida e o seu pensamento foi publicado na cidade da Ligúria em 1551; ele é
dividido em três parte: a Vida propriamente dita, a Demonstração e declaração
do purgatório — mais conhecida como Tratado — e o Diálogo entre a alma e
o corpo (cf. Livro da Vida admirável e da doutrina santa, da beata Catarina de
Génova, que contém uma útil e católica demonstração e declaração do
purgatório, Génova, 1551). O redactor final foi o confessor de Catarina, o
sacerdote Cattaneo Marabotto.
Catarina nasceu em Génova, em 1447; última de cinco filhos, ficou órfã
do pai, Giacomo Fieschi, ainda em tenra idade. A mãe, Francesca di Negro,
dispensou-lhe uma válida educação cristã, a tal ponto que a maior das duas
filhas se tornou religiosa. Com 16 anos, Catarina foi concedida como esposa a
Giuliano Adorno, um homem que, depois de várias experiências comerciais e
militares no Médio Oriente, tinha regressado a Génova para casar. A vida
matrimonial não foi fácil, também devido à índole do marido, apaixonado pelo
jogo de azar. Inicialmente, a própria Catarina foi induzida a levar um tipo de
vida mundana em que, contudo, não conseguia encontrar a serenidade. Depois
de dez anos, no seu coração havia um profundo sentido de vazio e de amargura.
A conversão teve início a 20 de Março de 1473, graças a uma experiência
singular. Tendo ido à igreja de são Bento e ao mosteiro de Nossa Senhora das
Graças para se confessar, ajoelhou-se diante do sacerdote e «recebeu — como
ela mesma escreve — uma chaga no coração, de um imenso amor de Deus»,
com uma visão tão clarividente das suas misérias e dos seus defeitos e, ao
mesmo tempo, da bondade de Deus, que quase desmaiou. Foi tocada no coração
por este conhecimento de si mesma, da vida vazia que ela levava e da bondade
de Deus. Desta experiência derivou a decisão que orientou toda a sua vida,
expressa com estas palavras: «Basta com o mundo e com os pecados» (cf. Vida
admirável, 3rv). Então Catarina fugiu, suspendendo a Confissão. Voltou para
casa, entrou no quarto mais escondido e chorou prolongadamente. Naquele
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momento, foi instruída interiormente sobre a oração e adquiriu a consciência do
imenso amor de Deus por ela, pecadora, uma experiência espiritual que não
conseguia expressar com palavras (cf. Vida admirável, 4r). Foi nessa ocasião
que lhe apareceu Jesus sofredor que carregava a cruz, como é frequentemente
representado na iconografia da santa. Poucos dias depois, foi ter com o
sacerdote para finalmente realizar uma boa confissão. Aqui teve início aquela
«vida de purificação» que, durante muito tempo, lhe fez sentir uma dor
constante pelos pecados cometidos e que a impeliu a impor-se penitências e
sacrifícios para demonstrar o seu amor a Deus.
Neste caminho, Catarina foi-se aproximando cada vez mais do Senhor,
até entrar naquela que é denominada «vida unitiva», ou seja, uma relação de
profunda união com Deus. Na Vida está escrito que a sua alma era orientada e
ensinada interiormente só pelo dócil amor de Deus, que lhe concedia tudo
aquilo que ela precisava. Catarina abandonou-se de modo tão total nas mãos do
Senhor que chegou a viver, durante cerca de vinte e cinco anos — como ela
escreve — «sem o intermédio de qualquer criatura, instruída e orientada
unicamente por Deus» (Vida, 117r-118r), alimentada sobretudo pela oração
constante e pela Sagrada Comunhão recebida todos os dias, o que não era
comum na sua época. Só muitos anos mais tarde o Senhor lhe concedeu um
sacerdote que cuidasse da sua alma.
Catarina hesitava sempre em confiar e manifestar a sua experiência de
comunhão mística com Deus, sobretudo pela profunda humildade que sentia
diante das graças do Senhor. Foi só a perspectiva de dar glória a Ele e de poder
favorecer o caminho espiritual de outros que a levou a narrar aquilo que se
verificava nela, a partir do momento da sua conversão, que é a sua experiência
originária e fundamental. O lugar da sua ascensão aos vértices místicos foi o
hospital de Pammatone, a maior estrutura hospitalar genovesa, da qual foi
directora e animadora. Portanto, não obstante esta profundidade da sua vida
interior, Catarina vive uma existência totalmente activa. Em Pammatone foi-se
formando ao seu redor um grupo de seguidores, discípulos e colaboradores,
fascinados pela sua vida de fé e pela sua caridade. O próprio marido, Giuliano
Adorno, foi conquistado por ela, a ponto de abandonar a sua vida desregrada,
de se tornar terciário franciscano e de se transferir para o hospital, para oferecer
a sua ajuda à esposa. O compromisso de Catarina no cuidado dos doentes
continuou até ao fim do seu caminho terreno, a 15 de Setembro de 1510. Desde
a conversão até à morte, não houve acontecimentos extraordinários, mas dois
elementos caracterizaram toda a sua existência: por um lado a experiência
mística, ou seja, a profunda união com Deus, sentida como uma união esponsal
e, por outro, a assistência aos enfermos, a organização do hospital e o serviço
55
ao próximo, especialmente aos mais necessitados e abandonados. Estes dois
pólos — Deus e o próximo — preencheram totalmente a sua vida, transcorrida
praticamente entre as paredes do hospital.
Estimados amigos, nunca devemos esquecer que quanto mais amarmos a
Deus e formos constantes na oração, tanto mais conseguiremos amar
verdadeiramente quantos estão à nossa volta, quem está perto de nós, porque
seremos capazes de ver em cada pessoa o Rosto do Senhor, que ama sem
limites nem distinções. A mística não cria distâncias em relação ao outro, não
cria uma vida abstracta, mas sobretudo aproxima do outro, porque se começa a
ver e a agir com os olhos, com o Coração de Deus.
O pensamento de Catarina sobre o purgatório, pelo qual ela é
particularmente conhecida, está condensado nas últimas duas partes do livro
citado no início: o Tratado sobre o purgatório e o Diálogo entre a alma e o
corpo. É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais
tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a
purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento
central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua
época. O primeiro traço original diz respeito ao «lugar» da purificação das
almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a
imagens ligadas ao espaço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o
purgatório. Em Catarina, ao contrário, o purgatório não é apresentado como um
elemento da paisagem do interior da terra: é um fogo não exterior, mas interior.
Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da
alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de
profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (cf.
Vida admirável, 171v). Ouvimos sobre o momento da conversão, quando
Catarina sente repentinamente a bondade de Deus, a distância infinita da
própria vida desta bondade e um fogo ardente no interior de si mesma. E este é
o fogo que purifica, é o fogo interior do purgatório. Também aqui há um traço
original em relação ao pensamento do tempo. Com efeito, não se começa a
partir do além para narrar os tormentos do purgatório — como era habitual
naquela época e talvez ainda hoje — e depois indicar o caminho para a
purificação ou a conversão, mas a nossa santa começa a partir da própria
experiência interior da sua vida a caminho da eternidade. A alma — diz
Catarina — apresenta-se a Deus ainda vinculada aos desejos e à pena que
derivam do pecado, e isto torna-lhe impossível regozijar com a visão beatífica
de Deus. Catarina afirma que Deus é tão puro e santo que a alma com as
manchas do pecado não pode encontrar-se na presença da majestade divina (cf.
Vida admirável, 177r). E também nós sentimos como estamos distantes, como
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estamos repletos de tantas coisas, a ponto de não podermos ver Deus. A alma
está consciente do imenso amor e da justiça perfeita de Deus e, por conseguinte,
sofre por não ter correspondido de modo correcto e perfeito a tal amor, e
precisamente o amor a Deus torna-se chama, é o próprio amor que a purifica
das suas escórias de pecado.
Em Catarina entrevê-se a presença de fontes teológicas e místicas das
quais era normal haurir na sua época. Em particular, encontra-se uma imagem
típica de Dionísio, o Areopagita, ou seja, aquela do fio de ouro que liga o
coração humano ao próprio Deus. Quando Deus purifica o homem, liga-o com
um fio de ouro extremamente fino, que é o seu mor, e atrai-o a si com um
afecto tão forte, que o homem permanece como que «superado, vencido e
totalmente fora de si». Assim, o coração do homem é invadido pelo amor de
Deus, que se torna o único guia, o único motor da sua existência (cf. Vida
admirável, 246rv). Esta situação de elevação a Deus e de abandono à sua
vontade, expressa na imagem do fio, é utilizada por Catarina para manifestar a
obra da luz divina nas almas do purgatório, luz que as purifica e eleva aos
esplendores dos raios fúlgidos de Deus (cf. Vida admirável, 179r).
Queridos amigos, na sua experiência de união com Deus os santos
alcançam um «saber» tão profundo dos mistérios divinos, no qual o amor e o
conhecimento se compenetram, a ponto de ajudarem os próprios teólogos no
seu compromisso de estudo, de intelligentia fidei, de intelligentia dos mistérios
da fé, de aprofundamento real dos mistérios, por exemplo daquilo que é o
purgatório.
Com a sua vida, santa Catarina ensina-nos que quanto mais amamos a
Deus e entramos em intimidade com Ele na oração, tanto mais Ele se faz
conhecer e acende o nosso coração com o seu amor. Escrevendo acerca do
purgatório, a santa recorda-nos uma verdade fundamental da fé, que se torna
para nós um convite a rezar pelos defuntos, a fim de que eles possam chegar à
visão beatífica de Deus na comunhão dos santos (cf. Catecismo da Igreja
Católica, n. 1032). Além disso, o serviço humilde, fiel e generoso, que a santa
prestou durante toda a sua vida no hospital de Pammatone, é um exemplo
luminoso de caridade para todos e um encorajamento especialmente para as
mulheres que oferecem uma contribuição fundamental para a sociedade e a
Igreja com a sua obra preciosa, enriquecida pela sua sensibilidade e pela
atenção aos mais pobres e necessitados.
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011
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Documentos
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DOIS NOMES, DOIS FENÓMENOS, DUAS LEGENDAS:
FRANCISCO E CLARA
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de seus Escritos, e iluminada pelas luzes trémulas das tochas, assim como pela
prolongada permanência diante da Porciúncula, onde a “Mãe das misericórdias”
gerou a Ordem dos Irmãos Menores e a das Irmãs Pobres (cf. LSC 8).
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esquecida, porque estava marcada pela benevolência do Criador (cf. BC 4-5;
3In 8; PC 7. 12).
Propor de novo a espiritualidade de Clara. Na mensagem às Irmãs
Pobres, na conclusão do I Congresso Internacional das Presidentas das Fede-
rações OSC, se fazia a proposta de três anos de preparação para estas celebra-
ções com aprofundamento dos seguintes temas: vocação (2009), contemplação
(2010), pobreza (2011). Sim, escolhestes um modo sério para preparar-vos para
a celebração do VIII Centenário. Indicastes um caminho preciso para reapro-
priar-vos da espiritualidade que sustenta a vossa vida e para repropor de novo a
todos a “alma” de Clara. De minha parte, como vosso irmão e servo, tentei
ajudar-vos neste caminho de aprofundamento com as cartas que vos escrevi em
2008, 2009 e 2010 por ocasião da festa de nossa Irmã Clara.
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25° aniversário do espírito de Assis
Conclusão
Fomos gerados pelo mesmo Espírito que inspirou Francisco e Clara como
viver o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Sim, segundo uma feliz
expressão de João Paulo II em 1982, não é possível “separar estes dois nomes:
Francisco e Clara. Estes dois fenómenos: Francisco e Clara. Estas duas lendas:
Francisco e Clara”. De fato, ambos manifestaram o primitivo ideal franciscano,
na complementaridade entre o ir de Francisco e de seus Irmãos e o estar de
Clara e das Irmãs.
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“PERMANECEI NO MEU AMOR” (Jn 15, 9)
Paz e Bem
Chegados ao final de este ano jubilar, a nossa alma está possuída por um
sentimento de nostalgia semelhante ao que experimentamos no dia de santa
Beatriz, quando a hora da tarde apaga nos claustros os ecos da festa. Os dias
têm o seu ocaso, mas o amor não tem ocaso. Os jubileus têm o seu fim, mas
permanece o espírito que os justificou.
Nesta hora de nostalgia por um jubileu que termina, quero fixar o olhar
sobre o essencial da vossa vida, o que vem de longe, porque é de sempre e está
chamado a permanecer.
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Perseveravam no ensino dos apóstolos
A tua busca é expressão de teu amor: “No meu leito, durante a noite,
buscava o amor da minha alma; buscava e não o encontrava. Levantar-me-ei e
rondarei pela cidade, pelas ruas e pelas praças, buscarei o amor de minha
alma” (Cant 3, 1-2).
Perseveravam na comunhão
Contempla, e verás brotar com força ali donde nós tínhamos posto só
divisão, pecado, violência, morte. Contempla Cristo crucificado. Ele diz: “Pai,
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perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), e ali mesmo, um
criminoso injustiçado acolhe-se a uma graça que não conhece e, antes de entrar
no paraíso que se lhe promete, entra em comunhão de verdade com quem lho
promete. Ali mesmo, um centurião, “ao ver o ocorrido, dava a Deus, dizendo:
«Realmente, este homem era justo»” (Lc 23, 47). Sem o Crucificado não é
possível esta comunhão. Sem aquela entrega não é possível esta reconciliação.
Sem aquele amor não é possível esta graça (cf. CCGG OIC, 95).
“Aquela eterna fonte está escondida neste vivo pão que nos dá vida
embora seja noite.
Aqui se está chamando as criaturas, e desta água sacia, mesmo às
escuras, porque é de noite.
Aquela viva fonte que desejo, neste pão de vida eu a vejo, mesmo sendo
noite” (João da Cruz).
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Pela Eucaristia entramos na vida da Trindade Santa, na divina comunhão,
para ser filhos de Deus no Filho único de Deus.
Aquele foi um dia de experiência mística. “João estava com dois dos seus
discípulos e, fixando-se em Jesus que passava, disse: «Este é Cordeiro de
Deus». Os dois discípulos ouviram suas palavras e seguiram Jesus. Jesus
voltou-se e, ao ver que o seguiam, perguntou-lhes: «Que buscais?». Eles
responderam-lhe: «Rabi, onde vives?». Ele disse-lhes: «Vinde e vede». Então
foram, viram onde vivia e ficaram com ele aquele dia” (Jn 1, 35-39).
Conclusão
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