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PONTO DE VISTA

A cauda longa

SEM TÍTULO, 1998. MARIA VERÔNICA DOS SANTOS. ACRÍLICA S/ EUCATEX.

Na sociedade de massas, poucos produtos atraíam o


interesse de compra de milhares de consumidores.
Com o advento da Internet, porém, o mercado de
massas parece estar cedendo a um mercado de nicho
em que o consumo se diversifica e a receita total
de uma multidão de produtos com baixo volume
unitário de vendas se aproxima ou se iguala à re-
ceita total dos poucos grandes sucessos. Este artigo
analisa esse fenômeno, denominado na literatura de
“efeito cauda longa”.

por Julio Daio Borges DIGESTIVO CULTURAL

Começou com a indústria fonográfica. meados dos anos de 1990. Foi então as gravadoras foram reduzindo seus
Quando lançaram o CD, no final dos que a Internet comercial apareceu. custos e diminuindo seu cast, a ponto
anos de 1980, as gravadoras nunca O compartilhamento de faixas e, de, no Brasil, muitos medalhões da
venderam tanto. Relançaram catálogos simultaneamente, a pirataria da mídia MPB ficarem sem espaço nos grandes
inteiros, sem custo adicional de pro- CD foram minando as vendas. Como catálogos e migrarem, resignados,
dução, e bateram todos os recordes, reação – já que haviam tornado a tec- para os pequenos selos (Maria Bethâ-
também com novos lançamentos, até nologia anterior (do LP) obsoleta –, nia e Chico Buarque, sendo lançados

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pela Biscoito Fino, nos anos 2000, são
dois exemplos). Em uma distribuição de vendas, ao calcular-se o volume de
No mesmo universo da música,
mas em outro departamento, o da vendas dos itens mais vendidos e o volume de vendas dos
radiodifusão, assistiu-se igualmente à itens menos vendidos, é possível perceber que esta última
concentração de emissoras, à venda e à
descaracterização de outras tantas (caso
distribuição, tendendo a zero no infinito da distribuição, é
recente é o da 89 FM, ex-“rádio rock”, muito significativa no total geral das vendas.
flertando agora com a TV Bandeirantes
e com a marca de TV a cabo “Play”).
No cinema, o fenômeno dá si- Crise anunciada. Os exemplos “Esther”) e apelou para a cabala, mas
nais de estar apenas começando. O poderiam se estender por outros o fato é que, comercialmente falando,
noticiário falou, recentemente, da ramos da indústria cultural, mas a não é mais a mesma.
dispensa que o megastar Tom Cruise verdade, em todos os casos, seria uma No Brasil, poderíamos pensar em
sofreu da Paramount Pictures. E não só: estamos assistindo à crise dos blo- Roberto Carlos (que sofreu até “ponte
foi apenas por saltitar sobre o sofá da ckbusters. Ou, ao menos, ao fim da era de safena” – leia-se: teve de gravar um
apresentadora Oprah Winfrey, a Hebe de ouro dos blockbusters. Não é novi- álbum acústico); nos sertanejos, cujos
Camargo dos EUA, em uma declara- dade, claro, para alguém que observa descendentes estão saindo de circula-
ção de amor exacerbada e em cadeia o mercado com algum cuidado. ção (sem perpetuar a dinastia); e nas
nacional. Também não foi por causa Se há uma ou duas décadas trilhas sonoras de telenovela (que,
da Cientologia, credo ao qual Cruise (melhor, duas) o pop musical pare- segundo Nelson Motta, marcaram
aderiu e que vem professando indis- cia não conhecer limites para sua época – mas cujo cast não se renovou
cretamente em alto e bom som. expansão e os superastros andavam e, pior do que isso, adquiriu o péssimo
Tom Cruise foi dispensado, na como semideuses sobre a Terra, hoje hábito de morrer: vide, em uma mes-
realidade, porque seus filmes não isso não é mais tão verdade. Tudo ma semana, a morte de Gianfrancesco
pagam mais a conta do estúdio – não bem que, desde Elvis Presley, esse Guarnieri e de Raul Cortez).
faturam tanto a ponto de compensar “rojão” nunca foi fácil de “segurar”,
seu salário cada vez mais alto. Se mas observemos o que aconteceu Solução à vista? Em resumo,
antes parecia não haver limite para aos antes recordistas de vendas: Mi- desde que a digitalização e a Rede
o faturamento das megaproduções chael Jackson se enrolou com suas Mundial de Computadores se abriram
e para os salários exorbitantes das acusações de pedofilia, viu o poço como um abismo na frente da indús-
estrelas contratadas para brilhar ne- da inspiração secar e muitos dizem tria de entretenimento, como dizem
les, hoje a indústria cinematográfica que, como Mike Tyson, virtualmente nos Estados Unidos, e na frente da
parece que atingiu um teto em termos quebrou; Prince passou por uma mídia, o mercado passou pelo menos
de faturamento e os salários de seus crise de identidade, mudou de nome uma década, a década da Internet co-
contratados vão sofrer proporcional – já foi “Symbol”, já foi “Victor” –, mercial, atrás de uma solução. Uma
retração. A pirataria já chegou ao DVD produziu independente e freneti- solução que está, sorrateiramente,
a ponto de preocupar – uma vez que a camente, mas continuou, para o hit começando a aparecer.
bilheteria, nas salas de cinema, estag- parade do século XXI, anônimo; já No entanto, talvez não da forma
nou no mundo inteiro – e o DVD de Madonna foi mãe, como Madalena se como alguns possam imaginar: não é
alta definição, teoricamente à prova de arrependeu, incitou o feminismo nos a salvação da música, como pensaram
cópia, ainda não conseguiu empolgar anos de 1980, podou a filha nos 2000, que fosse o iTunes (a loja de faixas mu-
o mercado. mudou igualmente de nome (agora é sicais, pela Internet, da Apple). Não

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é, tampouco, a salvação do cinema, dos anos da Internet), que saiu em extremo, porém, algo chamou a aten-
como pensaram que fosse... o iTunes, livro em julho de 2006. ção de Chris Anderson. A curva seguia
de novo (que comercializa séries de em uma descendente, é claro, mas
TV e, se a conexão em banda larga A longa cauda. Em 2002, Chris continuava assim por muito tempo,
ajudar, vai se consolidar como uma Anderson, um editor que já passou sempre à direita, sem, praticamente,
fonte de longas-metragens). pelas revistas Nature e The Economist, encostar no zero.
É talvez, pura e simplesmente, começou a estudar a distribuição de Anderson então percebeu que,
uma interpretação nova para um vendas através da Internet. Anderson calculando o volume de vendas dos
fenômeno que começou a aparecer notou que, no lado esquerdo do seu itens que mais vendiam, dos block-
graças à Internet. Tem a ver, natural- gráfico de distribuição, os blockbus- busters, e calculando também o vo-
mente, com as sucessivas quedas de ters, embora afetados por todos esses lume de vendas dos itens que menos
audiência dos blockbusters, mas tem motivos que já sabemos, continuavam vendiam, os mais à direita, que essa
a ver, para surpresa geral, com sua lá, presentes. última distribuição, tendendo a zero lá
contrapartida. Mas, alguns poderiam Ou seja: a curva do e-commerce no infinito, era muito significativa no
se perguntar neste ponto: o que pode começava lá em cima, à esquerda, total geral das vendas. Algo que, fora
servir de contrapartida a um block- com poucos itens, e ia descendo para da Internet, nunca aconteceu assim.
buster (comercialmente falando)? A a direita, em direção aos produtos Como essa distribuição lembrava uma
resposta é, em inglês, The Long Tail. que vendiam menos. Até aí, nenhuma longa e quase infinita cauda, Anderson
Em português, “a cauda longa”. E de novidade – qualquer distribuição de chamou-a de The Long Tail.
que maneira? Uma teoria do jornalista vendas, na parte da curva mais à es- Saindo do gráfico e passando à
Chris Anderson, pai da Wired (a bíblia querda, se comporta assim. No outro realidade, Chris Anderson, em seu

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artigo profético de quatro anos atrás,
tomou o exemplo da Amazon.com.
Na era da Internet, todos seremos famosos para, pelo menos,
De acordo com sua curva de distri-
buição, os blockbusters editoriais, os 15 pessoas. The Long Tail, fenômeno proposto pelo britânico
best-sellers, continuavam vendendo Chris Anderson, é a ponta do iceberg de um fenômeno que
maciçamente mas, com o passar do
tempo, os livros que vendiam menos, estamos começando a entender.
ou mesmo os livros que vendiam
pouco, formavam uma massa à direita
que se tornava crescentemente repre- ele não compensava o custo de estar máximo, para o custo da taxa de
sentativa no volume total de vendas lá exposto – ele voltava para o estoque transferência (considerados todos os
da Amazon. (ou, no Brasil, para a editora). downloads e uploads). O fato é que,
Hoje, diz Anderson em seu livro A Amazon, ao contrário da B&N, no iTunes, a comercialização das
de 2006, a partir do centésimo milé- não tem uma rede de lojas físicas: a faixas de um CD antes fora de ca-
simo (o livro, digamos, de “número” Amazon pode arcar, portanto, com o tálogo (porque sua baixa vendagem
100.001), o volume somado de ven- custo de manter um livro que vende não compensava a prensagem e a
das corresponde, aproximadamente, menos de um exemplar por ano. E o distribuição), agora, compensa.
a um quarto do total das vendas da que The Long Tail, ou a cauda longa, Sem contar que, com o custo da
Amazon. Em outras palavras: os famo- de Chris Anderson está provando é armazenagem de dados em constante
sos best-sellers editoriais abocanham que esse livro, que antes não com- queda, a loja da Apple pode se dar
três quartos das vendas da Amazon, pensava estar à venda em uma livraria ao luxo de comercializar catálogos
enquanto todo o resto (a longa cauda de tijolo e cimento, agora compensa inteiros que uma loja física, por mais
à direita da distribuição) abocanha, estar à venda em uma livraria virtual – rentável que seja, jamais poderia. Nes-
em conjunto, um quarto do volume de modo que o volume de vendas se cenário, é simbólico o fechamento,
de vendas da mesma Amazon. Chris dos que usualmente vendiam pouco há alguns anos, da Tower Records, o
Anderson, já em 2002, percebeu que começa a aparecer e a contrabalançar templo do comércio de CDs nos anos
isso era muito significativo e, mais im- o volume de vendas dos que vendem de 1990; e é significativo o envelheci-
portante, percebeu que não acontecia muito e sempre. mento do público de megastores como,
assim, desse jeito, antes da Internet. Na música, o exemplo maior é na Europa, a Virgin.
o iTunes. Do mesmo jeito que um Um outro exemplo não tão
Mais exemplos. Outro exemplo é livro custa para ficar exposto em uma óbvio de The Long Tail, embora fora
a Barnes & Noble, a maior cadeia de estante ou vitrine (pense, mais drasti- da indústria cultural, é a rede de
livros dos EUA. Na B&N, como em camente, na loja de um shopping cen- afiliados que veiculam anúncios do
uma livraria física do Brasil, digamos ter), um CD ou um DVD custa tanto Google. Funciona assim: se você
assim, existia o custo de manter um quanto para ficar exposto – então tem tem um pequeno site, pode veicular,
livro na estante. Chris Anderson cal- de, obrigatoriamente, vender em um nele, anúncios que o próprio Goo-
culou que o custo de manter um livro período razoável de tempo. gle vende, distribui conforme o seu
na estante da B&N se pagava apenas se Em uma loja que comercializa conteúdo e te paga, no final de um
o mesmo livro vendesse, pelo menos, faixas virtuais de música, como a determinado período, de acordo com
um exemplar por ano. Logo, se um loja da Apple na Internet, esse custo o número de cliques.
título, ocupando espaço na estante de desaparece ou então se transfere, Pela abordagem em The Long Tail,
uma filial da B&N, não conseguisse digamos assim, para o custo da chegou-se à conclusão que dois terços
vender nem um exemplar por ano, manutenção dos servidores ou, no do faturamento do Google, com pu-

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ao desenvolvimento das cadeias de


distribuição, desde o correio até a
FedEx.
No Brasil, talvez um case a ser
estudado seja o do BuscaPé, que se
converteu em um portal, tendo suas
origens na comparação de preços e
que, hoje, aglutina dezenas de milha-
res de médios e pequenos vendedores
(os mesmos que não teriam volume de
vendas para estabelecer-se sozinhos
on-line), faturando quase 20 milhões
de reais por ano.
No reino da publicidade, come-
çam a aparecer agências, com modelos
de negócio importados, que tentam
congregar uma massa crítica de sites,
e até de blogs, para comercializar cam-
panhas com grandes clientes. Para as
agências tradicionais, a Internet conti-
nua não sendo convidativa (em termos
blicidade on-line, vem da sua própria poderá viabilizar produções antes de rendimentos), se comparada a uma
homepage (das buscas acopladas com consideradas de baixo retorno. Chris mídia como a televisão – fora que,
links patrocinados, por exemplo) –, Anderson acredita que dos hits, ou se não for por meio de um esquema
mas chegou-se à conclusão, também, “sucessos”, vamos passar aos “nichos” de filiação automatizado como o do
que um terço do faturamento do Google e teremos de trabalhar com audiências Google, os escritórios físicos dificil-
com publicidade na Internet não vem minúsculas ou, então, galvanizar uma mente ganharão em escala para chegar
de suas próprias páginas: vem de sua infinidade de minúsculos grupos de até aquele nicho mais recôndito.
longa lista de pequenos, médios e consumidores (como faz o Google Como diz Dave Winer, um dos
minúsculos afiliados que veiculam por meio de sua rede de afiliados em pais fundadores do conceito de blog,
seus anúncios, onde o próprio Google matéria de anúncios). Não que antes parafraseando Andy Warhol: na era
não consegue chegar diretamente. Um esse mercado não existisse: Anderson da Internet, todos seremos famosos
terço é muito significativo para o Goo- apenas reforça que, com as métricas da para, pelo menos, 15 pessoas. The
gle, a ponto de a empresa manter uma Internet e com a sondagem dos hábitos Long Tail, de Chris Anderson, é a
divisão inteira dedicada à otimização de desse consumidor ínfimo, passamos a ponta do iceberg de um fenômeno que
anúncios em sites afiliados (pequenos, enxergá-lo como nunca antes. estamos começando a entender. Será
médios e minúsculos). Anderson ainda reconhece que, que ainda sentiremos saudades dos
nos Estados Unidos, a pujança do antigos blockbusters?
Aplicações e perspectivas. As e-commerce de uma Amazon, natu-
aplicações de The Long Tail, a distri- ralmente, remonta às origens de uma
buição e a teoria estão apenas come- Sears, Roebuck and Co., ao costu-
Julio Daio Borges
çando. No curto prazo, na mesma me do norte-americano médio de Editor do Digestivo Cultural
indústria cultural, esse fenômeno consumir produtos por catálogo e E-mail: juliodaioborges@gmail.com

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