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EPOCA
O MÉTODO ATINI
MAIS UMA DA ONG
FLAMENGO
E FALLET
O APRENDIZ
BOECHAT
18.02.19

DA MINISTRA DAMARES UMA CRÔNICA NOTAS SOBRE EPOCA.GLOBO.COM


por Vinicius Sassine SOBRE DUAS UM JORNALISMO Nº 1076

e Natália Portinari TRAGÉDIAS CARIOCAS QUE NÃO CARGA TRIBUTÁRIA FEDERAL


APROXIMADAMENTE 4,65%

por Rafael Soares EXISTE MAIS EXEMPLAR DO ASSINANTE


VENDA PROIBIDA
e Bernardo Mello por Elio Gaspari

A HISTÓRIA
DE ADÉLIO
OS NOVOS RUMOS
DA INVESTIGAÇÃO SOBRE
O HOMEM QUE TENTOU
MATAR BOLSONARO
por Bruno Abbud
O TIGGO 5X E O AUDI Q3 TÊM
A DIFERENÇA É QUE O TIGGO 5X CUSTA MUITO
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a Campanha Tabela Fipe para o seu veículo usado nas concessionárias D21motors, os quais devem obrigatoriamente também reunir as seguintes condições cumulativas: 1a-Garantia de fábrica ativa. 2a-Registro de revisões realizadas dentro do prazo estipulado pela montadora e
vistoria indicado pelo concessionário D21motors. 4a-Chave reserva em perfeitas condições de uso, manual do proprietário, certificado de garantia com as revisões realizadas dentro do prazo determinado pela montadora nos termos do manual do proprietário. 5a-O veículo deve
tabela de preço das revendas D21motors. Os carros elegíveis nesta campanha devem ter ar-condicionado, vidros e travas elétricas e direção hidráulica/elétrica. 4. Seguro Completo Caoa Chery Total no valor de R$ 2.899,00 (pagamento em 8 parcelas iguais no valor de R$ 362,37)
será contratado através do sistema Kit Web da Alfa Seguradora, através do qual todo o processo deverá ser realizado pelo corretor de seguros indicado pela concessionária. A apólice de seguro será emitida no ato da entrega do veículo. Após a emissão da apólice será observada
produto. As coberturas dos produtos e serviços estão especificadas nas respectivas cláusulas contratuais. Todos os veículos Tiggo5X segurados obrigatoriamente necessitarão de instalação de rastreadores. A instalação será feita pela rede de concessionários Caoa Chery, a
Pasep com alíquota de 0,65% (zero vírgula sessenta e cinco por cento) e a Cofins com alíquota de 4% (quatro por cento). Campanha válida somente na troca dos modelos em estoque da concessionária. Consulte outras versões, outras cores e outros itens nas concessionárias
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86.990 No seu usado R$
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estiverem com o seu documento único de transferência – DUT – no nome do comprador do veículo 0km ou em nome de parentes de 1° grau (pais, filhos e cônjuges), desde que comprovado o parentesco por meio de documentação oficial. Consulte a lista de veículos elegíveis para
com quilometragem limitada a 15.000 km por ano sem registro de sinistro, queixa de roubo e furto, e/ou avarias de grande monta. 3a-Enquadramento do veículo nas condições acima por laudo de vistoria cautelar pericial, com aprovação do veículo sem restrição, em empresa de
estar em perfeitas condições de uso, sem a necessidade de reparo e troca de peças. Caso haja a necessidade de pequenos reparos como pequenos riscos, amassados, trinca no para-brisa, substituição de pneus etc., a avaliação estará sujeita ao desconto do serviço conforme
válido para modelo Tiggo5X 1.5T T (NAC), 0km, ano/ modelo 2018/2019. 4.1 Seguro Completo Caoa Chery Total no valor de R$ 3.199,00 (pagamento em 8 parcelas iguais no valor de R$ 399,87) válido para o modelo Tiggo5X 1.5 TXS (NAC), 0km, ano/modelo 2018/2019. O seguro
a classe de bônus a que o segurado tem direito. Qualquer alteração desejada pelo segurado somente será processada após a emissão da apólice de seguro, segundo as condições tarifárias vigentes na data do cálculo. As disposições aqui referidas são uma breve descrição do
título de cortesia. Processo Susep 15414.100446/2004-81. O registro deste plano na Susep não implica, por parte da autarquia, incentivo ou recomendação à sua comercialização. O segurado está ciente, conforme Lei n. 12.741/2012, que incide sobre os prêmios de seguro, o PIS/
autorizadas da marca Caoa Chery -D21 Motors. As promoções constantes deste anúncio não são cumulativas entre si nem com nenhuma outra promoção que vier a ser veiculada no mesmo período. Condições válidas até 19/02/2019 ou enquanto durarem os estoques.
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dos editores

SOBRE CRIMES, TRAGÉDIAS


E IRRESPONSABILIDADES
M al se vão 45 dias de 2019, e o ano que se
anunciava novo já está carcomido de
crimes, tragédias e irresponsabilidades. No
tuíram o embate por uma ou outra favela por
disputas mais amplas e ambiciosas, pelo tráfico
de drogas no atacado, com ganhos econômicos
Brasil, tudo está em construção e já é ruína, de escala e reflexos perversos na paz social.
como atestou um compositor popular. A gestão do crime não respeita fronteiras.
São exemplos o crime ambiental em Bruma- As facções se comunicam, criam parcerias,
dinho, o incêndio não menos criminoso — por buscam expandir sua influência e suas rotas.
incúria — no centro de treinamento de jovens Tais movimentos provocam disputas por terri-
atletas do Flamengo e a violência em escalada do tórios — no Brasil e em países fronteiriços —,
Ceará ao Rio de Janeiro, irrefreável mesmo nos espalhando um rastro de desordem e terror.
grotões do país, aos quais a urbanização chega Na contramão dos fatos, autoridades ainda
com sua perna mais ágil, a criminalidade. Tudo discutem ações fragmentadas, nem sequer de ca-
conspira contra o ambiente de renovação políti- ráter estadual. Muitas vezes são operações restri-
ca, econômica e social que os brasileiros pare- tas a áreas específicas, em geral respostas com
cem ansiar. Entre o cansaço e a descrença, mui- muito atraso à desfaçatez da criminalidade. É ur-
tos se perdem na letargia causada pela certeza de gente a elaboração de uma política nacional de
que nada pode mudar — exceto para pior. segurança pública. Nenhum estado tem condi-
Facções criminosas espraiam-se, fortale- ções de dar conta desse controle sozinho. As me-
cem-se e desafiam as instituições do estado de didas propostas pelo ministro Sergio Moro po-
direito — vide o terror com que desmoraliza- dem responder a algumas demandas, mas têm
ram as autoridades cearenses. As diversas bri- fragilidades gritantes. Falta, sobretudo, um plano
gas de facções no Rio de Janeiro elevaram os já de ação ágil, coordenado e imediato.
recordistas índices de criminalidade do estado, Com a falência da política de pacificação e
com a agravante de a política estadual de segu- o aumento da criminalidade, a doutrina policial
rança parecer resumida à regra de atirar para que preconiza o confronto armado é a opção
matar. Na última semana, a polícia matou 15 preferencial do statu quo. Desde a última dé-
acusados de tráfico de drogas, em ação com ca- cada, o número de homicídios decorrentes de
racterísticas fortes de assassinato em série, ba- oposição à intervenção policial aumenta em
tendo um recorde que permanecia incólume velocidade exponencial.
por dez anos. A semana se encerrou com a A gravidade da situação e a debilidade das
transferência de líderes de facção criminosa respostas policiais aparecem em estudos como o
paulista para presídios federais, depois da des- que aponta terem sido registrados no ano passa-
coberta de um plano maciço de fuga no estado, do, em 200 dias de aulas, mais de 300 tiroteios
que, entre os párias, é o que tem obtido melho- perto de escolas e creches da Região Metropoli-
res resultados no combate ao crime. tana do Rio. Duas centenas de escolas tiveram de
A falta de uma política nacional de segurança suspender aulas em razão da violência. Se nem o
fortaleceu o surgimento e engrandecimento de ambiente escolar pode ser preservado, ninguém
organizações criminosas país afora. Elas substi- poderá mesmo sentir-se seguro.
150
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Vem aí a 5ª edição 2019
da pesquisa que revelará Modelos
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do leitor
escreva para
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ÉPOCA 1075
Fica cada vez mais evidente a necessi- PERSONAGEM DA SEMANA
dade da reforma da Previdência com a O sítio de Atibaia gerou mais uma
unificação dos servidores públicos ci- condenação ao ex-presidente Lula
vis, os trabalhadores da iniciativa priva- Assim como na condenação do caso do
da e a adoção do modelo de capitaliza- tríplex, a juíza não conseguiu estabele-
ção. Não podemos ter gastos orçamen- cer o vínculo entre os contratos de em-
tários só com asfalto e favela. Além dis- presas com a Petrobras, a suposta lava-
so, existe o perigo da multiplicação dos gem de dinheiro e corrupção passiva.
fundos previdenciários dos servidores Claudio Zarate, via Facebook
públicos. São mais de 5 mil municípios.
Lorde Keynes não subirá o morro. São Morar em um tríplex no Guarujá e
as medidas do ministro Paulo Guedes, passar o fim de semana em um sítio de
nosso lorde Oliver Cromwell, que de- Atibaia, curtindo os filhos, netos e
mocratizarão a economia. amigos — se não fosse condenado pela
A VIDA DE CADA UM José Marques Vieira Filho, Rio de Janeiro, RJ Lava Jato — seria um destino muito
ÉPOCA apresentou os simplório para um ex-presidente que
principais pontos da reforma Antes de falar em reforma da Previ- permitiu o enriquecimento bilionário
da Previdência e mostrou dência, deveriam cobrar os R$ 450 bi- de amigos, políticos e empresários, no
como isso mudará lhões que as grandes empresas devem comando do maior esquema de desvio
a vida dos brasileiros à Previdência, acabar com as desvin- de dinheiro público da história do país.
Ainda que minha avó tenha conse- culações de receitas que retiram até Abel Pires Rodrigues, Rio de Janeiro, RJ
guido se aposentar por idade, teve de 30% dos recursos da Previdência para
recorrer a advogado e demorou para outras áreas e acabar com as desone- FLASHES DA UTI
sair. E quanto a mim? Tenho certeza rações dadas a grandes empresas e ao O Hospital Albert Einstein
de que não estarei viva para contar. agronegócio exportador. Depois dis- ganhou destaque ao receber
Aline Ferreira, via Facebook so, que primeiro façam a reforma na o presidente Jair Bolsonaro
Previdência dos congressistas e das Meu sonho era que todo hospital
Bolsonaro está reformado desde os Forças Armadas, em que se concen- grande do Brasil fosse como o Sírio-
32 anos e recebe sem nunca ter con- tra o maior déficit proporcional. Libanês ou o Albert Einstein. En-
tribuído. Alguns defendem o méri- Lauro Júnior Júnior, via Facebook quanto político tiver o direito de usar
to disso, mas é difícil entender isso hospital particular de excelência, na-
como mérito. Outros alegam que A reforma da Previdência, segundo da mudará na rede pública.
militar não fica aposentado, pois o se depreende das informações sobre Davi Gonçalves, via Facebook
país pode entrar em guerra de uma o posicionamento de áreas econômi-
hora para outra. Mas de qual guerra cas do governo, tem como objetivo CONCORDAMOS EM DISCORDAR
o Brasil participou nestes últimos maior enfrentar o déficit elevado. E O deputado Capitão Augusto
anos? Reformado tão novo, não de- dá destaque aos 30 milhões de apo- e o pesquisador Sérgio Adorno
veria receber salário integral. Se sentados e pensionistas da iniciativa têm visões distintas sobre
não se mudar a Previdência dos mi- privada. Como fica, no entanto, o dé- o projeto anticrime apresentado
litares, a reforma não adiantará. ficit dos vários setores da área públi- por Sergio Moro
Também não vale criar pensão para ca? A Previdência tem de destacar es- Capitão Augusto está mais próximo da
os militares e, logo depois, dar um sencialmente a área social, e não inte- realidade. Adorno tem um discurso
aumento salarial. resses de fundos de pensão privados. bonito, que seria ideal para a base da
Rogério Barbosa, via Facebook Uriel Villas Boas, Santos, SP educação em segurança e para impri-
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mir em nossos jovens, que futuramen- QUE SENADO! expoentes do novo Senado. Parabéns
te serão os policiais e os profissionais li- O apresentador Jorge Kajuru ao povo de Goiás.
gados à segurança. Até que essa base (PSB-GO) estreou no Senado Romisson Santos, via Facebook
esteja literalmente efetivada e pronta colecionando polêmicas
para agir, precisamos combater a vio- É preciso trabalhar, e muito. Mas pa- QUE ASSEMBLEIA!
lência que assola nosso Brasil de Norte rece que os novos empossados estão Parlamentar que tomou
a Sul. E, para isso, precisamos de medi- preocupados o tempo todo em man- posse com a mulher sentada
das mais firmes contra os bandidos e ter o tom de campanha. A legislatura em seu colo espancou
medidas mais justas para as polícias. começou. Vamos trabalhar e fazer o a filha quando era prefeito
Mônica Delfraro David, Campinas, SP Brasil caminhar. de Piracanjuba
Carlos Silva, via Facebook Filho não é propriedade dos pais.
Tenho muito medo de que o pacote an- Educar e corrigir é, sim, uma obriga-
ticrime de Moro não passe no Congres- Ele tem a humildade de pedir a orien- ção, mas deve-se guardar o respeito
so. Muitos parlamentares têm receio de tação de Pedro Simon, Heloísa Hele- pela pessoa humana. O caráter do de-
facilitar as ações contra si mesmos. Os na e Cristóvão Buarque, políticos putado não é o de alguém capaz de
ajustes podem ser relaxados, mas a so- com carreira limpa, que nunca parti- dar o bom exemplo, fator preponde-
ciedade é quem paga por esses retroces- ciparam de conchavos, armações. Ka- rante para conduzir uma família.
sos. O pacote anticorrupção já foi por juru tem meu respeito. Nancy Souto, via Twitter
água abaixo, mesmo com o apoio maci- Marcus Aurelius, via Facebook
ço de toda a população. Ainda assim, es- Esse deputado é a cara do brasileiro:
peramos que o ministro não esmoreça, Engana-se quem pensa que Kajuru é adora fazer circo para os palhaços fi-
negociando “o que for possível” para o apenas uma figura folclórica. Pode carem aplaudido. Foi péssimo pre-
atual quadro político brasileiro. até ser, mas é bem-intencionado, tem feito em sua cidade. Vaidoso, faz de
João Coelho Vítola, Brasília, DF muito conteúdo e é um dos principais tudo para estar na mídia, e ainda
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aparece um monte de gente para


aplaudir. Quem te conhece não te
compra, deputado.
Wender de Oliveira, via Facebook DIRETOR-GERAL Frederic Zoghaib Kachar
DIRETORA DE MERCADO ANUNCIANTE Virginia Any
DIRETOR DE AUDIÊNCIA Christiano Nygaard

O MASSACRE DO HERDEIRO
No primeiro dia do ano,
o filho de Fernandinho Beira-Mar DIRETORA DE REDAÇÃO Daniela Pinheiro
epocadir@edglobo.com.br
deixou um rastro de violência
EDITOR-CHEFE Plínio Fraga
em Duque de Caxias Fernanda Delmas (coordenadora),
EDITORES EXECUTIVOS Maria
Ana Clara Costa, Eduardo Salgado, Flávia Barbosa,
Se estivesse preso como deveria, a se Letícia Sorg e Pedro Dias Leite
EDITOR Marcelo Giannini Coppola

olharem os crimes anteriores, nada dis- COLUNISTAS Conrado Hübner Mendes, Guilherme Amado, Helio Gurovitz e Monica de Bolle
so teria acontecido. A lentidão da Justi- COLABORADOR Ariel Palacios
ÉPOCA ON-LINE Liuca Yonaha (editora), Daniel Salgado

ça e infindáveis recursos dão nisso. WEB DESIGNER Giovana Tarakdjian; ESTAGIÁRIOS Larissa Infante e Matheus Rocha Silva

EDITOR DE ARTE Mateus Valadares


Eliana de Abreu, via Facebook DESIGNERS Daniel Vides Veras e Gustavo Amaral
COLABORADORES Claudia Warrak (supervisão de arte e projeto gráfico) e Raul Loureiro (projeto gráfico)
SECRETARIA EDITORIAL Marco Antonio Rangel
FOTOGRAFIA | EDITOR André Sarmento

MONICA DE BOLLE REVISÃO Araci dos Reis Galvão de França (coordenadora)


REVISORAS Júlia Barreto e Mariana Rimoli Dumans (colaboradora)
A colunista comenta CARTAS À REDAÇÃO | EPOCA@EDGLOBO.COM.BR
ASSISTENTE EXECUTIVA Jaqueline Damasceno
a influência positiva
REDAÇÃO | RIO DE JANEIRO | EPOCA@EDGLOBO.COM.BR
dos generais no governo Rua Marquês de Pombal, 25, 3º andar, Cidade Nova, CEP 20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ
SUCURSAIS | BRASÍLIA | EPOCASUC_BSB@EDGLOBO.COM.BR
Bolsonaro DIRETOR Paulo Celso Pereira
SCN, Quadra 5 – Bloco A, nº 50, s. 301, Brasília Shopping and Towers, CEP 70.715-900 – Brasília – DF
Esse governo que está aí, para o bem e SÃO PAULO | SUCURSALSP@EDGLOBO.COM.BR
DIRETORA Letícia Sander

para o mal, foi o resultado do processo Avenida Nove de Julho, 5229, 9º andar, CEP 01407-907, Itaim Bibi – São Paulo – SP

de desgaste da classe política que con- MERCADO ANUNCIANTE | SEGMENTOS — MONTADORAS, MOBILIDADE, SERVIÇOS PÚBLICOS E SOCIAIS, GOVERNO SP,
AGRONEGÓCIOS, COMPANHIA AÉREA, INDÚSTRIA | DIRETOR DE NEGÓCIOS MULTIPLATAFORMA Renato Augusto Cassis
Siniscalco | EXECUTIVOS MULTIPLATAFORMA Cristiane Soares Nogueira, Diego Fabiano, João Carlos
duziu o país a uma crise sem preceden- Meyer, Priscila Ferreira da Silva | SEGMENTOS — MERCADO FINANCEIRO, SEGUROS,
EDUCAÇÃO, IMOBILIÁRIO, CONSULTORIAS | DIRETOR DE NEGÓCIOS MULTIPLATAFORMA Emiliano Morad Hansenn |
tes. Existem pontos positivos, como EXECUTIVOS MULTIPLATAFORMA José Carlos Brandão, Milton Luiz Abrantes,
Selma Teixeira da Costa | SEGMENTOS — VAREJO, TELECOM, ELETROELETRÔNICOS, TI, TURISMO, ESPORTE,
aqueles que se referem à economia e à LAZER, CULTURA, ENTRETENIMENTO, MÍDIA | DIRETOR DE NEGÓCIOS MULTIPLATAFORMA Ciro Horta Hashimoto |
EXECUTIVOS MULTIPLATAFORMA Christian Lopes Hamburg, Roberto Loz Junior |

Justiça. Há outros frágeis, como a in- SEGMENTOS — MODA, DECORAÇÃO, SAÚDE, BELEZA, HIGIENE PESSOAL E DOMÉSTICA E TURISMO |
DIRETORA DE NEGÓCIOS MULTIPLATAFORMA Sandra Regina de Melo Pepe |

fluência maligna de um péssimo pro- EXECUTIVAS MULTIPLATAFORMA Eliana Lima Fagundes, Fátima Regina Ottaviani,
Caio Caprioli, Jessica de Carvalho Dias, Lilian Marche Noffs e Rodrigo Girodo |
ESCRITÓRIOS REGIONAIS | GERENTE MULTIPLATAFORMA Larissa Ortiz |
feta, que vive no exterior. Nesta altura UNIDADES DE NEGÓCIO — RIO DE JANEIRO — EXECUTIVOS MULTIPLATAFORMA Daniela Nunes Lopes Chahim |
OPEC ON-LINE Danilo Panzarini | OPEC OFF-LINE Carlos Roberto de Sá, Douglas Costa |
do campeonato, o papel dos generais é EGCN — CONSULTORA DE MARCAS Olivia Cipolla Bolonha |
DESENVOLVIMENTO COMERCIAL E DIGITAL | DIRETOR Tiago Joaquim Afonso |
fundamental e benfazejo como ponto G.LAB Edward Pimenta | PROJETOS ESPECIAIS/EVENTOS Carlos Raices; ESTRATÉGIA DIGITAL — Santiago
Carrilho | DESENVOLVEDORES Fabio Marciano, Fernando Raatz, Marden Pasinato, Matheus
de equilíbrio, em virtude de uma vida Domingos, Raphael Rappoli | ESTRATÉGIA DE CONTEÚDO DIGITAL Silvia Balieiro |
AUDIÊNCIA — DIRETOR DE PLANEJAMENTO DE VENDAS Ricardo Tarrazo Perez

profissional e de estudos dedicada à


pátria. Com certeza, eles terão a sabe-
doria de coibir eventuais excessos. ÉPOCA É UMA PUBLICAÇÃO SEMANAL DA EDITORA GLOBO S.A. Avenida 9 de Julho, 5229 01407-907 São Paulo SP
Dirceu Luiz Natal, Rio de Janeiro, RJ Distribuidor exclusivo para todo o Brasil Dinap — Distribuidora Nacional de Publicações GRÁFICA Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhoa Rodrigues, 700 06543-001 Tamboré, São Paulo, SP

O Bureau Veritas Certification, com base nos processos e procedimentos descritos no seu Relatório de Verificação,

O nível de conhecimento e educação adotando um nível de confiança razoável, declara que o Inventário de Gases de Efeito Estufa — no 2012, da Editora Globo
S.A., é preciso, confiável e livre de erro ou distorção e é uma representação equitativa dos dados e informações de GEE
sobre o período de referência, para o escopo definido; foi elaborado em conformidade com a NBR ISO 14064-1:2007 e

de Mourão é de uma distância enor- Especificações do Programa Brasileiro GHG Protocol.

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me em relação ao de Bolsonaro. E PARCERIAS
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Na edição 1075, na reportagem “A vida BRASÍLIA
com.br As cartas devem ser
encaminhadas com
de selecioná-las e resumi-las
para publicação.
(61) 3410-8953 assinatura, endereço e Só podem ser incluídas na
de cada um”, o nome do general Eduardo NA INTERNET
telefone do remetente.
ÉPOCA reserva-se o direito
edição da mesma semana
as cartas que chegarem
www.assineglobo.com. de selecioná-las e resumi-las à Redação até as 12 horas
José Barbosa foi grafado incorretamente br/sac
4003-9393
para publicação. Só podem
ser incluídas na edição da
da quarta-feira.

mesma semana as cartas


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4003-9393
que chegarem à Redação até
as 12 horas da quarta-feira.
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APRESENTADO POR PRODUZIDO POR

FOTOS: DIVULGAÇÃO
Portugal tem imóveis de alto
padrão que harmonizam
passado e presente

O Brasil descobre a onda retrofit


Com apoio da Athena Advisers, edifícios modernos, que preservam a
arquitetura original, atraem os compradores de imóveis em Lisboa e Paris

A prática de preservar edi-


fícios de valor histórico é
muito recente: na Europa e nos
os brasileiros que compram
imóveis no exterior.
Se até há alguns anos eles
caíram no gosto dos clien-
tes brasileiros da Athena em
Portugal. Um deles é um antigo
espaçosos. “As pessoas procu-
ram por imóveis que lembram
o espírito de Paris”, explica
Estados Unidos, onde surgiu, preferiam imóveis recém- cinema da década de 1920, Vincent Vermignon, consultor
ela só começou no século 19. -construídos, agora uma par- perto da Avenida da Liberdade. da Athena na capital francesa.
Até então, demolir o antigo cela significativa dá valor ao O local está sendo convertido “O Marais é um bairro muito
para dar lugar ao novo era a retrofit. O caso de Portugal em residências premium – o conhecido, charmoso, com uma
regra. Mas, no século 21, o é exemplar: o país tem um antigo palco, com seu frontão vista fantástica para o Sena.”
hábito de manter o patrimô- dos mercados imobiliários de 24 metros de altura, será
nio centenário levou o merca- mais dinâmicos da Europa e transformado em restaurante.
do imobiliário a um impasse: oferece uma série de opções de Os compradores brasileiros
como preservar o passado e alto padrão que harmonizam também têm procurado uma
garantir a qualidade de vida do passado e presente. antiga fábrica de café, com
presente? Foi então que surgiu “Os clientes brasileiros vista para o rio Tejo, no bairro
a onda retrofit. querem viver em um legí- Príncipe Real, no centro histó-
O retrofit consiste em re- timo prédio português, sem rico da capital portuguesa.
formar edifícios de valor his- abrir mão dos benefícios da A busca por edifícios retro-
tórico, mantendo suas princi- modernidade”, afirma Carlota fit chegou a Paris, mais espe-
pais características, sem deixar Pelikan, consultora da Athena cificamente em uma antiga
de atualizar a estrutura, com Advisers em Lisboa. “Os edifí- mansão no coração do bairro
reforma na fiação e no enca- cios retrofitados oferecem de Marais. O edifício está
namento e construção de gara- todo o conforto que esses passando por uma transforma-
gens e elevadores. A tendência clientes teriam no Brasil, com ção que preserva seus elemen-
se disseminou pelo mundo nos o charme histórico e a arquite- tos históricos, em especial os
últimos anos e mudou o perfil tura única de Portugal.” pés-direitos altos, e dá lugar Carlota Pelikan, consultora da
de consumo – por exemplo, Dois projetos, em especial, a apartamentos modernos e Athena Advisers em Lisboa
guia no
Coloque o
bolso e vá direto ao
coração da cidade

GUIAS De BOLSO DA
LONELY PLANET
30. LAÇOS DE FAMÍLIA
O MÉTODO DAMARES
Outra índia tirada
da família, outra polêmica

38. O NOVATO
TRANQUILÃO
Deputado de primeiro
mandato falta mais
do que trabalha no começo
do processo legislativo

14. PERSONAGEM DA SEMANA


42.
COMO NASCE
NA SALA DE JUSTIÇA

RICARDO SALLES UMA SENTENÇA


A ignorância do ministro Os métodos e as
do Meio Ambiente a peculiaridades no trabalho
respeito de um líder da
preservação das florestas
das Excelências do Supremo
Tribunal Federal sumário 18.02.19
GUILHERME LEITE/PARCEIRO/AGÊNCIA O GLOBO DANIEL MARENCO/AGÊNCIA O GLOBO

18.
ADÉLIO,
CRIMINOLOGIA

UMA HISTÓRIA
O que a Polícia Federal sabe
sobre o homem que tentou
matar Bolsonaro
COLUNISTAS
28. GUILHERME
AMADO
O primeiro “não”
do PT a Lula

63. MONICA DE BOLLE


Miolo mole

71. HELIO GUROVITZ


É possível prevenir
novas tragédias?

75. VENES CAITANO

82. CONRADO
HÜBNER MENDES
Febejapá new age
THIAGO FREITAS/AGÊNCIA O GLOBO

48. 68.
LEONARDO AVERSA / AGÊNCIA O GLOBO

VIDAS 60. VELHA MÍDIA A VIDA


INTERROMPIDAS TUDO VERMELHO QUE ELE LEVOU
COMO OS JOVENS A morte e a morte RICARDO BOECHAT
MORREM do L’Humanité, jornal (1952-2019)
Tragédias associadas pela comunista de passar As lições de jornalismo
data: adolescentes mortos recibo aprendidas com
em favela e em centro de o “Turco anafabelo”
treinamento do Flamengo 64. 9 PERGUNTAS PARA...
CHRISTOPHE GUILLUY 72. VIVI PARA CONTAR
56. CONCORDAMOS O geógrafo francês ELA AGIU, EM VEZ DE
EM DISCORDAR diz que a insurreição FOTOGRAFAR
SILVA × dos “coletes amarelos” A mulher que salvou o
MARTINS é contra a burguesia motorista do caminhão
Um sindicalista e um auditor intelectual insensível que se chocou com o
da Receita Federal à pobreza helicóptero, enquanto
divergem sobre outras testemunhas
formas e poderes apenas filmavam
da investigação fiscal
76. A SAGA CONTINUA
A ORIGEM DAS
GRACINHAS
A série que conta como
nasceu a linguagem dos
tempos modernos em
capítulo eletrizante

capa: reprodução
PERSONAGEM DA SEMANA
por Claudio Angelo

RICARDO A IGNORÂNCIA
DO MINISTRO DO MEIO
AMBIENTE SOBRE
O MAIOR ÍCONE
DA PRESERVAÇÃO
DAS FLORESTAS
PERSONAGEM DA SEMANA 15

SALLES O ministro do Meio Ambiente, Ricardo


Salles, incendiou as redes sociais ao ad-
Em um mês e meio à frente do ministério,
ele também já declarou que mudanças climá-
mitir no programa Roda viva, da TV Cultu- ticas são um tema “acadêmico” e uma preocu-
ra, na segunda-feira 11, que nunca tinha visi- pação “para daqui a 500 anos”; defendeu
tado a Amazônia nem conhecia Chico Men- plantações de soja transgênica em terras indí-
des, mas ouvira de gente “do agro” que o genas e a redução dos controles sobre agrotó-
maior herói ambiental amazônico era um xicos; disse que a culpa pelo aumento do des-
aproveitador que “usava os seringueiros”. matamento na Amazônia é da “pirotecnia” da
Tentando se livrar da polêmica causada pela fiscalização ambiental; insinuou que conferên-
resposta, afundou nela um pouquinho mais: cias do clima só servem para bancar férias de
“O fato é que é irrelevante. Que diferença luxo de funcionários públicos na Europa; e
faz quem é Chico Mendes neste momento?”. que ONGs fazem “terrorismo para vender pa-
Essa não foi a primeira fala chocante do lestra” — embora ele mesmo seja fundador de
ministro, um advogado paulistano de 43 anos uma, a Endireita Brasil, que criou o Dia da Li-
que entrou para o folclore político ao ser en- berdade de Impostos e que tem, entre seus obje-
quadrado pelo próprio partido, o Novo, por tivos, combater “a demonização da direita”.
sua campanha para deputado, que comparava Em resumo, Salles é o ministro do Meio
seu número (3.006) ao calibre de balas de fu- Ambiente perfeito para Bolsonaro, que se
zil “contra a praga do javali” e “contra a es- elegeu sob a promessa de “tirar o Estado do
querda e o MST”. Último a ser nomeado no cangote de quem produz”. Sua nomeação,
gabinete de Jair Bolsonaro, Salles tem se nota- por indicação da ministra da Agricultura,
bilizado por posições francamente contrárias Tereza Cristina, e de outros ruralistas, foi a
à agenda do ministério que pilota e por exibir maneira que o presidente encontrou de neu-
uma ignorância orgulhosa do setor ambiental. tralizar o Ministério do Meio Ambiente sem
Em sua primeira semana no cargo, causou ter de passar pelo desgaste de extinguir a
a exoneração antecipada da presidente do Iba- pasta, como aventara fazer, com risco de re-
ma, Suely Araújo, depois de questionar o va- percussão negativa entre compradores de
lor do contrato de locação de veículos do ór- commodities brasileiras.
gão — só para descobrir na sequência que o
contrato na verdade economizara dinheiro
público. Depois, tretou com os ambientalistas,
ao editar um ofício determinando a suspensão
O ministro é um hábil encantador de ser-
pentes. Raramente dá entrevistas em
ambientes que não controla — escolhe co-
por 90 dias de todos os convênios com ONGs, mo interlocutores preferenciais jornalistas
medida ilegal da qual teve de recuar no dia se- com pouco conhecimento da área ambien-
O ministro Ricardo guinte. Na mesma semana, tomou um elegan- tal. Quando questionado, responde de forma
Salles se mostra te sabão do Instituto Nacional de Pesquisas muito articulada, mas sem sentido técnico.
despreocupado com
o aquecimento global, Espaciais (Inpe) ao prometer para a imprensa Frequentemente insere premissas falsas no
um tema “acadêmico” comprar “um satélite” de R$ 100 milhões para meio de um argumento verdadeiro, de modo
que, em sua visão, produzir dados que orientassem a fiscalização a deixar seu inquisidor sem resposta. No Ro-
será um problema
real apenas daqui do desmatamento. O Inpe explicou que faz isso da viva, por exemplo, quando defendeu a fle-
a 500 anos em parceria com o Ibama desde 2004. xibilização do licenciamento ambiental para
ANA PAULA PAIVA/VALOR
16 PERSONAGEM DA SEMANA

JORGE WILLIAM/AGÊNCIA O GLOBO


“questões de baixo impacto”, foi questiona-
do sobre os critérios para definir o que é
baixo impacto e respondeu: “Está tudo na
lista”. Ocorre que a tal lista não existe na es-
fera federal. Mentiu também sobre o acordo
do clima de Paris permitir aos países revisar
suas metas para baixo. E exagerou o número
de autos de infração cancelados por erro do
Ibama — a quantidade é marginal.
Da mesma forma tem defletido perguntas
incômodas sobre a maior ameaça a seu man-
dato até agora: sua condenação por improbi-
dade administrativa pela Justiça de São Paulo,
que levou o Ministério Público a pedir ao Su-
premo Tribunal Federal (STF) sua exonera-
ção. Em 2017, quando era secretário do Meio
Ambiente no governo de Geraldo Alckmin
(PSDB), foi denunciado por ter alterado a pe-
dido da Fiesp o plano de manejo da Área de
Proteção Ambiental (APA) da Várzea do Tie-
tê, numa decisão que favoreceria minerado- autolicenciem. Há dois problemas nesse racio- Homenagem
ras. Sua defesa pública é o argumento de que cínio. O primeiro é de lógica: se não há fiscais de estudantes cariocas
ao líder ambientalista
os mapas do zoneamento ambiental da área em número suficiente, como esperar que os Chico Mendes,
protegida, alterados pela secretaria a seu pe- empreendimentos autolicenciados sejam fisca- assassinado em Xapuri,
dido, baseavam-se em informações antigas e lizados? O segundo é conceitual: quem define no Acre, em dezembro
de 1988
demandavam correção. Mas, como atestou o o que é alto impacto e o que não é? O Projeto
Ministério Público, as alterações não se limi- de Lei de licenciamento que tramita hoje em
taram a mapas: dezenas de pontos do plano regime de urgência na Câmara, costurado pela
de manejo da APA foram modificados, de bancada ruralista e pela Confederação Nacio-
modo a permitir a expansão de atividades in- nal da Indústria (CNI), deixa essas definições a
dustriais, a instalação de condomínios e o cargo de estados e municípios — justamente
uso de agrotóxicos em locais onde tudo isso as instâncias mais mal equipadas e mais sujei-
deveria ser proibido. As mudanças nunca fo- tas a lobby, como demonstra o caso de Minas
ram justificadas e, diz o Ministério Público, Gerais. Além disso, concede uma série de isen-
foram omitidas até do governador. ções de licença, inclusive para asfaltar estradas
O desastre de Brumadinho aumentou o na Amazônia e ampliar barragens de rejeitos.
escrutínio sobre o jovem ministro, ao deixar Uma proposta do então ministro Sarney Filho
claro que o setor privado precisa de mais (PV) de definir o rigor do licenciamento de
Estado no cangote, e não menos. A reação acordo com a localização, o porte e o potencial
inicial de Salles contrariou a etiqueta gover- poluidor foi descartada pelos ruralistas.
namental para casos de catástrofe: em vez de Salles ainda não esclareceu o que o go-
sair pedindo punição exemplar para os cul- verno vai fazer a respeito da lei, mas indicou
pados e de turbinar a fiscalização, o chefe do no Roda viva que a Câmara terá liberdade
Meio Ambiente prometeu afrouxar ainda para propor. A discussão será animada. Se o
mais a legislação ambiental. Alegando inefi- governo e seus aliados no Congresso usarem
ciência do sistema de licenciamento, o mi- Brumadinho como oportunidade de empla-
nistro quer que algumas atividades econô- car o licenciamento “flex”, um tsunami de
micas possam licenciar a si próprias, juran- ações judiciais certamente sobrevirá. Desco-
do sobre a Bíblia que farão tudo certo e su- nhecer Chico Mendes, então, será o menor
jeitando-se a fiscalização caso não façam. dos problemas do ministro.
O argumento de Salles é que o Estado não
tem aparato fiscalizador que chegue, então é Claudio Angelo é coordenador de Comunicação
do Observatório do Clima. É autor de A espiral da morte
preciso focar o rigor nos empreendimentos de — Como a humanidade alterou a máquina do clima
médio e alto impacto e deixar que os outros se (Companhia das Letras, 2016), vencedor do Prêmio Jabuti
18 CRIMINOLOGIA

O QUE A POLÍCIA FEDERAL


SABE ATÉ AGORA SOBRE
O HOMEM QUE TENTOU MATAR
BOLSONARO
por Bruno Abbud, de Juiz de Fora e Montes Claros

ADÉLIO,
UMA
HISTÓRIA
O presidente Jair Bolsonaro elencou, se-
manas atrás, uma série de suspeitas que
a poucos metros de distância, com este por-
tando uma faca enrolada em um jornal.
mantém em relação a Adélio Bispo de Oli- O presidente citou ainda que, dois meses
veira, o agressor que tentou assassiná-lo com antes do atentado, Bispo gastou “centenas de
uma facada há cinco meses, durante um ato reais em dinheiro vivo” na prática de tiro
da campanha eleitoral em Juiz de Fora, Mi- em clube frequentado por seus filhos —
nas Gerais. São oito tópicos que o presidente Carlos e Eduardo — em Florianópolis.
considera que não foram explicados sobre o Questionou como um desempregado com
ataque que sofreu ou que indicam a possibi- residência em Montes Claros, na data do
lidade de ação política no crime. crime, estava havia duas semanas em Juiz de
Nos dois primeiros, ele relembrou que Fora, a 700 quilômetros de distância, tendo
Bispo foi filiado ao PSOL até 2014 e que, pago a estadia em uma pensão antecipada-
nessa condição, em 6 de agosto de 2013, es- mente e em espécie. Estranhou que possuís-
teve no anexo 4 da Câmara dos Deputados, se quatro celulares e um computador portá-
como ficou registrado no sistema. No mes- til, tendo trabalhado com frequência como
mo dia do atentado, em 6 de setembro de servente de pedreiro. Lançou também dúvi-
2018, alguém registrou a entrada dele na Câ- das sobre a causa da morte de duas pessoas
mara a 1.000 quilômetros de distância da ci- que conviveram com ele na pensão em Juiz
dade em que de fato estava: “Álibi perfeito de Fora, nos dias subsequentes ao atentado.
caso fugisse do local do crime”, resumiu o Na primeira entrevista que concedeu co-
presidente. Ele relacionou também vídeo mo presidente, Bolsonaro mencionou Bis-
que mostra que um de seus filhos, desavisa- po: “No mesmo dia do crime, quatro advo-
damente, conseguiu desviar-se do criminoso gados se apresentaram para defendê-lo.
CRIMINOLOGIA 19
20 CRIMINOLOGIA

Usaram inclusive um jatinho particular. Então comprovam “o comportamento obsessivo”


está na cara que gente com dinheiro e preocu- com que Adélio Bispo buscou realizar o ata-
pada com que ele não abrisse a boca foi em que, “deixando evidenciar a premeditação”.
seu socorro.” Tais argumentos embasam a in- A investigação comprovou que ele fotogra-
dagação que o presidente e seus filhos repetem fou previamente locais onde Bolsonaro estaria
com frequência: “Quem mandou matar Jair na cidade. Em imagens encontradas em seu ce-
Bolsonaro?”. lular estão as provas de que acompanhou o en-
A pergunta atormenta o delegado da Polícia tão candidato o dia todo do crime, tendo acesso
Federal (PF) Rodrigo Morais Fernandes, mi- até ao hotel em que Bolsonaro almoçaria com
neiro, há 15 anos na corporação. É um homem empresários mineiros. A PF informou que as
com tom de voz inalterável, que tem enfrenta- quebras de sigilo bancário dele não indicaram
do desconfianças dos bolsonaristas por ter ser- movimentações suspeitas de dinheiro. De acor-
vido ao governo do Estado de Minas Gerais, do com o relatório, análises de celulares e chips
quando gerido pelo petista Fernando Pimentel. trouxeram informações irrelevantes, reforçando
os indícios de que o agressor agiu sozinho.

N o relatório do primeiro inquérito enviado à


Justiça Federal, Fernandes descartou “a par-
ticipação direta de terceiros em coautoria com
Ainda assim, a Polícia Federal abriu em
setembro um segundo inquérito, exclusiva-
mente para buscar eventuais conexões de
Adélio Bispo no dia e no momento da prática Adélio Bispo com cúmplices ou mandantes.
do atentado, seja emprestando apoio moral ou O material sobre o qual os agentes da PF es- Bispo participou
material”. Afirmou que a PF analisou 4 mil ho- tão debruçados envolve mais de 6 mil conver- de igreja evangélica,
e sua pastora
ras de imagens de celulares e do circuito de câ- sas de Bispo no celular, dados telefônicos dos era tratada como
meras de lojas e bancos no local da facada, que últimos cinco anos e mais de 1.000 e-mails. mãe adotiva

REPRODUÇÃO
CRIMINOLOGIA 21

REPRODUÇÃO
Foram examinadas conexões por meio de da- Para familiares, Bispo
dos de antenas telefônicas, lista de contatos era uma inspiração por ter
estudado, viajado e
nos quatro celulares apreendidos com Bispo perseguido seus objetivos
(dois inutilizados), e-mails e Facebook. O in-
quérito 503/2018, o segundo que apura o caso,
já conta com 800 páginas, ante 567 do primeiro.
“O objetivo é esgotar as possibilidades no intui-
to de identificar um terceiro que possa ter in-
fluenciado no crime”, disse Fernandes.
A resposta a uma das questões levanta-
das pelo presidente Bolsonaro aguarda o re-
sultado de perícia no sistema que registrou
o nome de Bispo na lista dos que tiveram
acesso à Câmara dos Deputados no dia do
atentado. O relatório do Instituto Nacional
de Criminalística de Brasília responderá se
foi realmente um engano, conforme versão
de uma sindicância feita na Casa, o nome do
agressor ter aparecido ali.
Outra suspeita do presidente, a relação de
Bispo com a morte de duas pessoas na mesma
pensão onde ele estava hospedado em Juiz de
Fora, a PF considera esclarecida. A primeira
morte foi a da mulher do dono do imóvel, que
estava internada havia meses em razão de um
câncer terminal. A segunda morte foi do hós- do advogado ao qual recorrera e guardou os
pede Rogério Ignácio Villas, um viciado em R$ 4.200 remanescentes.
drogas. O operador de telemarketing Wesley Bispo chegara a Florianópolis com a aju-
Rodrigues, que vive na pensão até hoje e con- da dos familiares de Montes Claros, que pa-
viveu com Villas, contou: “O Rogério reclama- garam as passagens de R$ 340, com baldea-
va dos problemas cardíacos que tinha. Era ção em São Paulo. Além da construtora, tra-
uma pessoa que exagerava bastante na bebida. balhou numa temakeria no bairro Coquei-
A morte dele foi mais por causa dos exageros ros, entre março e junho de 2018.
dele. Andava com os usuários de crack da ci- “O resultado da quebra de sigilo bancá-
dade e dormia na rua com eles”. rio não trouxe nada digno de nota”, disse o
A PF também esmiuçou o dinheiro de que procurador Marcelo Medina. “São contas
Bispo dispunha nos dias que antecederam o para recebimento de salário, de alguém que
atentado. Parte viera de um acordo trabalhista tem muitos empregos junto a empregadores
com a construtora Gamm Empreendimentos, distintos, e acabou sendo natural que tivesse
de Balneário Camboriú, em Santa Catarina. muitas contas e cartões. Mas não houve po-
Por dez meses, entre janeiro e outubro de 2016, der aquisitivo incompatível. A movimenta-
Bispo foi servente de pedreiro na construção ção bancária dele era normal.”
de dois edifícios residenciais no município ca- O alistamento num curso de tiro em Flo-
tarinense. Ganhava R$ 1.200 por mês e dormia rianópolis nasceu dos sentimentos de ho-
em um quarto alugado. A locadora descre- mem melindrado pelas perseguições que en-
veu-o como um homem quieto e sem amigos. xergava a seu redor, segundo disse ele em
depoimento à Justiça. Foi ao Clube e Escola

A o demitirem Bispo, os gerentes da cons-


trutora disseram que não pagariam a
rescisão trabalhista e que, se ele quisesse re-
de Tiro .38, do ex-policial Tony Eduardo,
amigo de Carlos Bolsonaro. O agressor atri-
buiu a uma coincidência o fato de que, um
ceber, teria de procurar a Justiça. Depois dia depois de sua passagem, o filho de Bol-
que Bispo entrou com o processo, os pre- sonaro tenha estado presente no mesmo
postos da empresa ofereceram R$ 6 mil em clube para um curso com o americano Troy
acordo. Ele aceitou, quitou os honorários Fullbright, policial da SWAT de Oklahoma.
22 CRIMINOLOGIA

Do Sul, Bispo pegou um ônibus até São


Paulo, e de lá seguiu em outro para Juiz de
Fora, à procura de emprego. Ao chegar, viu
C inco meses depois do atentado que ainda
abala a saúde do presidente da República,
Adélio Bispo está preso numa ala do presídio
imagens de Jair Bolsonaro em um outdoor e federal de Campo Grande, Mato Grosso do
nos jornais locais, anunciando a visita do Sul, onde tem direito a seis refeições por dia, a
candidato ao município nos dias próximos. duas horas diárias de sol e onde passa o resto
Ao preparar o crime, ele imaginava que não do tempo lendo, com predileção pela Bíblia.
sairia vivo do meio da multidão de um comício Um laudo psiquiátrico sobre sua saúde men-
do então candidato a presidente. No dia do tal permanece em sigilo e outro, com a análi-
atentado, foi a uma loja que oferece acesso à in- se psicológica de seu comportamento, está
ternet e leu o noticiário político. Dali, seguiu ao em elaboração. Além de médicos e servidores
Hotel Trade, vizinho daquele em que Bolsona- do presídio, Bispo só falou com seus advoga-
ro estava hospedado. Na Rua Halfeld, no cen- dos, as únicas visitas que recebeu até agora.
tro de Juiz de Fora, em meio a milhares de Ninguém da família o procurou.
bolsonaristas, circulou com uma faca de cozi- No último contato que manteve com seu
nha medindo 32 centímetros, escondida no advogado — 11 dias depois do crime —, quis
bolso da jaqueta e enrolada em um jornal. saber de Zanone de Oliveira se Bolsonaro
Comprara a arma ainda em Florianópolis e seria o vencedor das eleições que se aproxi-
a levara no bagageiro do ônibus. Ao aproximar- mavam. Com o resultado recém-divulgado
se o suficiente de Bolsonaro, esfaqueou-o uma da pesquisa após a facada, Oliveira infor-
única vez, atingindo os intestinos delgado e mou que as chances de Bolsonaro haviam
grosso do agora presidente. As lesões levaram a crescido. Bispo levou as mãos à cabeça e
três cirurgias e duas passagens em unidades de pronunciou um palavrão.
terapia intensiva. Bispo foi imediatamente preso Nos últimos dois meses, ÉPOCA entrevis-
por agentes da PF e voluntários que atuavam tou 22 pessoas ligadas ao episódio e teve acesso
como seguranças. Eles impediram que Bispo a detalhes do segundo inquérito que investiga o
sofresse ataques por parte de bolsonaristas re-
voltados. Logo após a prisão, a PF foi até a pen- BRUNO ABBUD
são onde Bispo estava hospedado, numa ladeira À esquerda, a casa
bucólica perto do centro de Juiz de Fora. Pelo simples em que Bispo
foi criado. À direita,
quarto, o agressor pagara R$ 430, conforme a pastora Aurora
comprova o recibo que levava no bolso. Rodrigues, que
Cinco horas após a prisão de Bispo, o ad- acompanhou crises
paranoicas do
vogado Pedro Possa já estava de prontidão na ex-servente
delegacia da Polícia Federal em Juiz de Fora.
Após receber mensagem de origem mal expli-
cada — “não sei se por e-mail ou WhatsApp”
—, o advogado Zanone Manuel de Oliveira
mobilizou Possa, ao lembrar que era natural
de Barbacena, cidade a 60 quilômetros de
Juiz de Fora. “Liguei para ele e o mandei ir lá
blindar Adélio”, contou Oliveira, que disse ter
aceitado o caso após uma proposta de um
contratante misterioso ligado à Igreja do
Evangelho Quadrangular de Montes Claros.
No dia seguinte ao atentado, os advoga-
dos Zanone de Oliveira e Fernando Maga-
lhães partiram de Belo Horizonte para Juiz
de Fora, no avião particular pertencente ao
primeiro — um modelo Van’s Aircraft, para
duas pessoas, que custa cerca de R$ 650 mil.
“Meu avião é um mosquito à hélice!”, exage-
rou Oliveira. Aterrissaram na cidade para
acompanhar a audiência de custódia.
CRIMINOLOGIA 23

uma folha de caderno contábil com uma rela-


ção de linhas preenchidas com canetas de vá-
rias cores —, lê-se uma anotação: “Caso Adé-
lio”, seguida por “R$ 25.000”.
A PF quebrou o sigilo telefônico de Olivei-
ra e identificou que o advogado teve contato
com três pessoas entre os dias 6 e 8 de setem-
bro do ano passado, antes e depois da facada.
Duas advogadas e um comerciante. Nada sus-
peito foi encontrado. Agora, os policiais
aguardam a perícia no telefone adquirido pelo
advogado um mês depois do crime, supondo
que mensagens antigas possam estar armaze-
nadas em nuvem (a manutenção de dados em
servidores distantes por conexão sem fio).

N a versão de Oliveira, “um homem mal-


vestido, com calça de prega e camisa de
pastor”, foi ao hotel do advogado na manhã
seguinte ao atentado. Queria pagar pela defesa
de Bispo. Tomando café da manhã, Oliveira
disse a ele que o serviço custaria R$ 300 mil se
durasse até o último recurso ao Supremo Tri-
bunal Federal (STF), R$ 150 mil se fosse até
sair a primeira sentença ou R$ 25 mil para
BRONO ABBUD
simplesmente dar início à defesa. O advogado
disse ter concordado em receber R$ 5 mil em
dinheiro do cliente, de quem nem sequer re-
caso. Um ponto em especial tem concentrado a gistrou o nome. Os outros quatro pagamentos
atenção do delegado Rodrigo Fernandes: quem nunca chegaram. Oliveira não se importou.
está por atrás do quinteto de advogados — lide- “Há uma fila de advogados querendo me
rado por Zanone Manuel de Oliveira — que ajudar neste caso sem cobrar um tostão”, disse
defende Adélio Bispo? Na semana passada, o o advogado. “É o sonho de todo advogado e
delegado aguardava o resultado da perícia no de todo promotor.” Apreendido pela PF no
telefone de Zanone de Oliveira, apreendido três dia da operação policial, o sistema de captação
dias antes do último Natal. Foi uma operação de imagens do hotel, cujo armazenamento re-
com excepcional demonstração de força, envol- nova-se a cada 18 dias, não gravou o encontro.
vendo 24 policiais do Comando de Operações A PF não abandonou a possibilidade de
Táticas da PF — que exibiam fuzis leves e farda Oliveira ter abraçado a causa de Bispo para ga-
camuflada —, na casa, num hotel e numa loca- nhar visibilidade, numa sacada de marketing.
dora de veículos pertencentes ao advogado. O advogado chegou a arrolar como testemu-
Citando a prerrogativa de inviolabilidade nhas de defesa o ex-presidente Lula e a cantora
dos advogados, a Justiça recusara o pedido da Preta Gil, visando comprovar a influência que
PF para a concessão de mandado de busca e o discurso de ódio de Bolsonaro pode ter tido
apreensão no escritório de Oliveira, no mes- sobre o homem que o esfaqueou.
mo quarteirão dos demais endereços visita- No fim de dezembro, logo depois de o te-
dos. O delegado surpreendeu-se quando Za- lefone de Oliveira ter sido apreendido pela
none de Oliveira liberou o acesso dos agentes PF, o Conselho Federal da OAB e a OAB de
da PF ao interior do escritório, um conjunto Minas Gerais impetraram um mandado de
de quatro salas e uma recepção de gosto de- segurança no Tribunal Regional Federal da 1ª
corativo inusual, com detalhes em roxo e pre- Região, em Brasília, para assegurar a inviola-
to. Sem ser provocado, ele ofereceu aos poli- bilidade do escritório do advogado e desobri-
ciais seu livro-caixa como prova de que, sim, gar Oliveira de informar quem o contratou
alguém o havia contratado. No documento — para atuar na defesa de Bispo. Na cartilha da
24 CRIMINOLOGIA

REPRODUÇÃO
OAB que lista as prerrogativas do advogado,
o sigilo do cliente é um direito absoluto.

M as é com a hipótese mais bombástica


surgida até agora que a PF gasta boa
parte do tempo. A nova linha de investigação
é sussurrada em corredores do Palácio do
Planalto e do Ministério da Justiça. Os agen-
tes procuram provas de que a defesa de Bispo
possa ter sido paga por integrantes mineiros
da facção criminosa Primeiro Comando da
Capital (PCC), associação de presidiários que,
de São Paulo, tem se expandido país afora.
Para o assistente de acusação, Antônio Pi-
tombo, advogado de Bolsonaro, Bispo pode
ter agido por encomenda ou ter sido influen-
ciado por terceiros. Os advogados seriam o
elo. “Estranho ter advogados que chegam tão
rápido”, disse o criminalista, relembrando
que momentos depois do atentado e da pri-
são já havia um advogado à disposição de
Bispo. “Acredito que vamos ter um desfecho
que surpreenderá as pessoas que acreditavam
que estávamos tratando de um mero crime
promovido por um doente mental.”
A suspeita surgiu no final do dia 7 de se-
tembro, quando Bispo foi transferido para o
Centro de Remanejamento do Sistema Prisi-
onal (Ceresp), em Juiz de Fora. Ao entrar
nos corredores do presídio, ele foi aplaudido
pelos internos. “Ele foi recebido como he-
rói”, disse um policial, reproduzindo infor-
mação do diretor do presídio. “A participa-
ção da facção pode não ter sido de envolvi-
mento direto no crime, mas sim uma espécie
de apadrinhamento depois das facadas”, es- presos um bom conceito como advogado”. Acima, livro de
peculou. É como se o PCC tivesse se apro- Em seu depoimento, Oliveira nega ter atual- contabilidade de
escritório de advocacia
priado do crime cometido pelo lobo solitá- mente clientes ligados à facção criminosa. com o registro do
rio. O Ceresp fica no alto de uma montanha, A PF elaborou um relatório que concentra pagamento por defesa de
aos pés de um paredão de pedra, na periferia mensagens de áudio trocadas entre integrantes Bispo por pastor que
nunca reapareceu
de Juiz de Fora. Um servidor resumiu aquele da cúpula do PCC em grupos de WhatsApp. O
dia: “Adélio foi recebido como um mártir”. documento foi produzido a partir da apreensão
Em Minas Gerais, existem 2.240 integran- do telefone de um líder da facção, cuja identi-
tes da facção cadastrados pela PF — 1.915 pre- dade não é revelada. Nos diálogos, registrados
sos e 325 em liberdade, espalhados por 12 mu- antes das eleições, os criminosos incentivavam mu-
nicípios mineiros. Entre eles há clientes de Za- lheres e parentes a votar em Fernando Haddad,
none de Oliveira e Fernando da Costa Maga- candidato do PT, alegando que Jair Bolsonaro
lhães, parceiros no caso de Adélio Bispo. A contrariava os interesses do crime. Incitavam
polícia localizou procurações assinadas por os interlocutores a não receber visitas no do-
criminosos do PCC em favor da dupla. Al- mingo de eleição, para que todos os familiares
guns receberam a visita dos advogados na pri- fossem votar. Tais áudios, ressaltam investiga-
são. Em seu depoimento, ao qual ÉPOCA teve dores, não podem ser relacionados a um even-
acesso, Magalhães confirma ter defendido tual apoio da facção criminosa ao atentado.
membros do PCC, por ter “alcançado entre os De todo modo, os agentes ficaram alertas
CRIMINOLOGIA 25

para possíveis conexões de Bispo com o PCC. fluência de terceiros”, reafirmou o delegado.
Um dos elos investigados foi Klayton Ramos “Apesar de todas as diligências, não consegui-
de Souza, seu sobrinho. Ele foi preso pela ter- mos identificar alguma vinculação dele com
ceira vez quatro dias depois do atentado con- grupos políticos ou facções criminosas. Prova,
tra Bolsonaro, capturado ao tentar roubar um para fins de processo, não existe”, deixou claro.
carro em Campinas. Em janeiro de 2015, Sou- O procurador Marcelo Medina, do Minis-
za e seu irmão, Gleyson, haviam sido presos, tério Público Federal de Minas Gerais, refor-
enquadrados por receptação. Sete meses de- çou: “Não há nada de concreto neste mo-
pois, Souza foi preso novamente, desta vez mento para apontar que alguém ligado a gru-
sob acusação de roubo e tráfico. po político radical ou facção tenha efetiva-
Ao examinar o Facebook de Souza, agentes mente participado”. O segundo inquérito tra-
da PF encontraram entre os contatos um suspei- mita sob sigilo e deve ser concluído em abril.
to de pertencer ao PCC. Lucas Silva aparece nu- A defesa afirma que Bispo agiu sozinho,
ma foto segurando um maço de dinheiro com o incentivado pela agressividade das palavras
braço que exibe a tatuagem de um palhaço — de Bolsonaro, conforme contou em depoi-
um código do crime para matadores de policiais. mento. “A linha da defesa é comprovar que
Em novembro passado, Souza foi chama- o discurso de ódio do candidato influenciou
do a depor. No depoimento, ao qual ÉPOCA Adélio”, disse Zanone de Oliveira. Ele espera
teve acesso, nega ter vínculos com qualquer que seu cliente fique preso por seis a oito
facção, diz que só soube do atentado contra anos. Considera que Bispo estaria seguro pa-
Bolsonaro por meio da TV e informa desco- ra viver em liberdade só daqui a dois manda-
nhecer Lucas Silva, embora fossem amigos tos presidenciais. “Hoje, o lugar mais seguro
no Facebook. Afirma que não ouviu “qual- para ele é a penitenciária.”
quer informação de colegas ou ex-colegas do
sistema prisional que possam ter agido em
conjunto com Adélio” no atentado.
O delegado Rodrigo Fernandes ouviu Adé-
A 1.400 quilômetros dali, em Montes Cla-
ros, Maria das Graças Ramos, de 44
anos, irmã de Bispo, ainda se mostra perple-
lio Bispo em três depoimentos — dois em Juiz xa com o crime. “O porquê ninguém conse-
O momento em que de Fora e o último em Campo Grande. Onze gue compreender”, disse. “É um enigma.”
Bispo perfura o intestino dias depois do crime, ouviu Bispo creditar a Reproduziu o último diálogo que teve com
de Bolsonaro. Deus e “a vozes” que ouvia a ordem para a fa- ele: “Ô, Tuca, procure um psicólogo, meu fi-
O criminoso não
esperava sair vivo do cada. Está para ouvi-lo pela quarta vez. “Por lho. Você não está bem”, contou, usando o
centro de Juiz de Fora ora não há nenhum indício de que houve in- apelido dado ao irmão durante a infância.
“Ele respondeu: ‘Não estou doido, quem tá
doido aqui são vocês.” E foi embora.
Maria das Graças se recordou do caçula
com lágrimas nos olhos. No dia em que recu-
sou a ajuda de um psicólogo, como em outras
ocasiões, Bispo havia se irritado com o cocô da
cachorra da família — Neguinha — bem à
frente da porta do banheiro. Disse que mataria
a cachorra a pau. “Ele às vezes ficava exaltado
por causa de nada”, contou seu sobrinho, J.,
que preferiu não se identificar por segurança.
No dia seguinte, Bispo abandonou o emprego
que tinha de servente de pedreiro, pegou um
ônibus e partiu para Santa Catarina, em mais
uma viagem não planejada, como costumava
fazer desde a adolescência. Os familiares só vol-
taram a vê-lo na televisão, em meio ao
noticiário sobre o crime que cometera.
Em 6 de setembro, a irmã acordou com o
telefonema de uma vizinha, que lhe pediu para
RICARDO MORAES/REUTERS
ligar o aparelho de TV da casa de três quartos,
26 CRIMINOLOGIA

com tijolos expostos e telhas de zinco na


periferia da cidade mineira de 338 mil ha-
bitantes. A primeira imagem que surgiu na
tela foi uma foto de Bispo. Em seguida, ela
começou a receber xingamentos por
WhatsApp. Em pouco tempo, foi obrigada
a trocar de número de telefone.
A notícia veio pela mesma TV que vez por
outra também irritava seu irmão. “Quando a
gente ligava a televisão, ele já pedia para desli-
gar: ‘O quê, Tuca? Estou vendo a novela’, eu
dizia a ele. E ele: ‘Desliga essa TV, você acha
que não tem gente lá de fora te vendo, não?’”,
contou Maria das Graças. Se o telefone tocava,
Bispo impedia que fosse atendido, porque, se-
gundo ele, o aparelho estava grampeado. Du-
rante a noite, dentro do quarto, conversava so-
zinho e “sapateava”, nas palavras da irmã, ba- RICARDO MORAES/REUTERS
tendo com força os pés no chão. “Foi aí que a
gente veio a entender que estava ficando mais
sério o problema dele e começamos a chamá- do pai, ele fugiu. Passou três dias isolado em Agentes da Polícia
lo para fazer tratamento.” Ele não quis. uma mata de Uberaba, onde morava. Federal escoltam Adélio
Bispo de Oliveira,
Bispo entrou para a igreja evangélica durante sua transferência

D os sete irmãos — um homem, Aldeir, e


cinco mulheres, todas chamadas Maria
(Das Graças, Aparecida, Da Conceição, Do
adolescente. Depois de ter acesso à Bíblia, to-
mou gosto por leitura. Aos 17 anos, disse pa-
ra a irmã Maria das Graças que iria embora
de Juiz de Fora para
a Penitenciária Federal
de Campo Grande, dois
dias depois do crime
Carmo e Helena) —, ninguém tem dinheiro de Montes Claros, que desejava “caçar servi-
para visitá-lo na Penitenciária Federal de ço” em outro lugar e terminar o ensino mé-
Campo Grande. Nem os quatro cunhados, dio. “Foi o único da família que teve estudo e
nem os 19 sobrinhos. Bispo nasceu em uma chegou a se formar”, disse ela, com uma
família pobre que vivia numa barraca de lo- ponta de orgulho. “Da família, foi a pessoa
na na primeira favela da cidade, onde o chão que peguei como espelho”, contou o sobri-
era de terra e todos dormiam juntos sobre nho. “É e sempre será, independentemente
um colchonete fino. Mais tarde, a família re- da atitude que teve, um exemplo para a fa-
cebeu da prefeitura a casa onde Maria das mília inteira. Sempre foi um cara que correu
Graças Ramos vive até hoje. atrás de seus sonhos, um cara que foi além
Ainda criança, ele começou a trabalhar co- do que as pessoas julgavam que seria capaz
mo flanelinha, vigiando carros na praça da ci- de ir. Sempre tentou incentivar os demais a
dade. Depois, passou a descarregar caminhões estudar. Não concordo com a atitude que ele
no centro de abastecimento do município. teve de forma nenhuma, só queria entender
A mãe de Adélio Bispo, Maria Bispo Ramos o que o levou a fazer isso”, disse J.
de Oliveira, trabalhou como gari, catou ferro- Bispo se filiou ao Partido Socialismo e Li-
velho para vender, lavou roupa para fora e não berdade (PSOL) em 6 de maio de 2007, dia
resistiu ao terceiro acidente vascular cerebral. de seu aniversário de 29 anos, em Uberaba.
Morreu quando o garoto tinha 12 anos. O pai Desfiliou-se sete anos depois, a seu pedido,
também “varria rua”, contou a irmã do agres- em 29 de dezembro de 2014 — quase quatro
sor. Tornou-se alcoólatra depois de 28 anos tra- anos antes do atentado. Ele identificava-se
balhando como gari e morreu de infarto. com a esquerda. No notebook apreendido na
Surgiram então os primeiros sinais de que pensão onde estava hospedado em Juiz de
o caçula estava mentalmente desequilibrado. Fora, a PF achou acessos a sites do PSOL, do
“Ele começou com esses problemas depois da PSTU, do PCO, do PV. Ele navegou também
morte de meu pai. Não veio para o enterro. pelo site do pastor Silas Malafaia — voz des-
Não queria nem viver. Ele se isolou”, disse tacada do conservadorismo e apoiador do
uma das irmãs. Ao receber a notícia da morte presidente Bolsonaro.
CRIMINOLOGIA 27

Nos arquivos, os peritos encontraram currí- o quintal e costumava contar histórias sobre
culos, orçamentos de brinquedos infantis, apos- o que vivera na estrada. Certo dia, apareceu
tilas de inglês, preços de aparelhos de ginástica, para o café da tarde na casa de Rodrigues.
um curso preparatório para ingresso na polícia Repentinamente, levantou-se da mesa e an-
de Nova York, a localização das academias ao ar dou até o quintal, gesticulando e falando so-
livre de Uberaba e uma investigação sobre os zinho. Depois voltou e se sentou, como se
custos das obras do Departamento Nacional de nada tivesse acontecido. Em outra ocasião,
Infraestrutura de Transportes (DNIT). encanou com os celulares. “A gente estava
Aos 40 anos, Bispo optou por uma vida de conversando, batendo papo, e ele veio e dis-
nômade. Rodou pelo Brasil sozinho, chegou a se: ‘Desliga o celular e remove a bateria por-
ficar noivo de uma policial — a única notícia que a gente está sendo monitorado e tem
que se tem de um relacionamento seu —, estu- pessoas na escuta’”, contou Rodrigues. “Ele
dou inglês e teatro. Entre 1999 e 2018, segundo estava com mania de perseguição.”
apurou a PF, teve 39 empregos. Trabalhou co- Ao comentar com Bispo suas paranoias, Jo-
mo servente de pedreiro, balconista de farmá- siane ficou assustada. “Ele disse que estava sen-
cia, auxiliar de cozinha, operador de tele- do monitorado por causa da maçonaria e que a
marketing, garçom, numa fábrica de xampu e maçonaria o perseguia. Contava que era moni-
num navio de cruzeiro. Tinha o sonho de atra- torado todo o tempo e que nos locais aonde ia
vessar um oceano e de ter uma filha. “Ele sem- as pessoas que estavam com ele também eram
pre deu os pulos dele, nunca quis depender de monitoradas. Mania de perseguição, mesmo.”
ninguém”, afirmou Maria das Graças. O conta- Bispo pesquisava muito na internet sobre
to com a família, escasso, era retomado quan- maçonaria. Acusava o ex-presidente Michel
do aparecia de surpresa, batendo no portão. Temer, a quem atribuía título de grão-mes-
“De sete anos para cá, os sintomas de persegui- tre, de lhe ter roubado a ideia da criação do
ção foram se agravando”, disse o sobrinho. Ministério da Segurança Pública e do Con-
“Ele começou a falar que o telefone dele anda- selho Nacional de Segurança Pública, um ar-
va sempre grampeado, que pessoas o estavam remedo de Projeto de Lei que rascunhou em
escutando, que estava sendo perseguido”. 2014. A polícia encontrou vários projetos do
tipo na mala de mão que guardava na pen-

D escrito por quase todas as pessoas com


quem conviveu como um sujeito calado,
introspectivo e tímido, ele se sentia mais à
são. De plano para um auxílio-moradia até a
ideia de uma loteria global.
Bispo estava revoltado com o suposto “rou-
vontade quando estava na igreja. Deu seus pri- bo” de suas ideias. Edson, o ex-marido da pas-
meiros passos como cristão, até tornar-se pas- tora Rodrigues, lembra-se de quando ele inter-
tor e missionário, na 9ª Igreja do Evangelho rompeu uma conversa subitamente, na mesa
Quadrangular, em Montes Claros. Lá conhe- da igreja em Montes Claros, e seguiu gesticu-
ceu a pastora Aurora Nunes Rodrigues. “Ela lando sozinho na direção do quintal: “Eles me
foi praticamente uma segunda mãe para meu pagam, eles me pagam, copiaram meu proje-
tio”, disse o sobrinho J. “Ele tinha mais conta- to”, reproduziu Edson, tentando imitá-lo, o
to com ela do que com a própria família.” queixo inclinado junto ao peito, encarando o
Rodrigues segue pregando em cultos na chão e balançando os braços abertos. “Era ma-
Igreja Missionária Resplendor da Glória de nia de perseguição, mesmo. Como se alguém
Deus, que funciona no segundo andar da ca- estivesse o tempo todo monitorando ele”, con-
sa onde mora, em Montes Claros, e da qual tou Josiane. O sobrinho J. disse que o quadro
Bispo também fez parte. “Para pregar a pala- se agravou: “Ele começou a ouvir vozes”.
vra de Deus, ele não era tímido, não”, con- Familiares e amigos de Bispo estranharam
tou Rodrigues, numa tarde quente mineira, a aparição de advogados tarimbados de Mi-
sentada em sua sala. “Era muito bom prega- nas Gerais na manhã seguinte a sua prisão.
dor. Sempre que vinha, pregava, e pregava “Aqui ficou todo mundo surpreso, Adélio não
muito bem, todo mundo gostava dele.” tem condições”, disse Maria das Graças. “Se
Ao lado da filha adotiva, Josiane, Rodri- juntasse a família toda, ninguém teria como
gues se lembra de quando ele aparecia para arcar”, afirmou J. “Diante do Deus de Israel,
churrascos de fim de ano e nos acampamen- eu não minto: não tenho nem ideia de quem
tos da igreja, ajudava a botar a mesa e a lavar pagou”, disse a pastora Rodrigues.
G.A.
28

guiamado@edglobo.com.br

GUILHERME AMADO O PRIMEIRO “NÃO”


É JORNALISTA
DO PT A LULA

“Q uero a Gleisi.” Foi assim, com a mesma objetividade e


sem-cerimônia com que comanda os petistas há 39
anos, que Lula encarou Jaques Wagner e Humberto Costa,
ro. Ou ainda que, sem conseguir andar pelas ruas de Curi-
tiba diante do risco de vaias, se mudou de vez para Brasília
com os filhos e vive em isolamento em casa. A impopulari-
em sua cela em Curitiba, na quinta-feira passada, e anunciou dade de Gleisi Hoffmann chegou ao ponto de impedi-la,
que Gleisi Hoffmann é seu nome para presidir o PT até 2021. quando tem de ir ao Paraná, de cruzar o aeroporto Afonso
Wagner e Costa estavam havia quase uma hora com o ex- Pena. Como fazem alguns ministros do Supremo Tribunal
presidente, que havia sido condenado um dia antes por cor- Federal, ela desce por uma escala lateral, diretamente do
rupção no caso do sítio de Atibaia. Os dois ouviram calados. avião para a pista. Quando reconhecida, acelera o passo.
Não concordaram, mudaram de assunto e tentaram animá- “Lula não tem como avaliar, de dentro da prisão, a gra-
lo. Lula não estava choroso nem reclamou da sentença. Disse vidade do cenário. A Gleisi é inviável”, sentenciou um in-
saber que a juíza Gabriela Hardt o condenaria. Nas duas ho- tegrante do diretório nacional que tenta convencer cole-
ras em que ficou com os amigos, não fez nenhuma de suas gas a peitar Lula e lançar uma candidatura alternativa à de
brincadeiras habituais nem interagiu com os dois agentes da Hoffmann, no segundo semestre deste ano. “Do jeito que
Polícia Federal que guardavam a entrada, como gosta de fa- está, o PT está preso na mesma cela que Lula”, completou.
zer. “Precisamos animar a tropa. É hora de ficarmos unidos. Como confrontar um ex-presidente de 73 anos, preso
A Gleisi é a pessoa certa para isso”, repetiu, tentando obter de há 300 dias e sem perspectiva de sair da prisão? Contrariar
Wagner e Costa um sinal de concordância. Que nunca veio. Lula pareceria um abandono — o maior medo do ex-presi-
E que nem deve vir. Nem Wagner, nem Costa, nem boa dente. Segui-lo cegamente, entretanto, significaria manter
parte dos petistas que colocaram o rosto na urna e tiveram Hoffmann e o foco absoluto no “Lula livre”. “Temos de ter
de passar pelo crivo do “Confirma” em outubro quer na uma saída pelo meio. Não abandonaremos Lula, mas o
presidência do PT alguém que, sem avisar o partido, em- partido tem de ser mais do que isso”, analisou outro petis-
barca para Caracas para bater palmas para Nicolás Madu- ta, também do diretório nacional.

SERGIO LIMA/AFP
A presidente
do PT, Gleisi Hoffman
(ao centro), é vista
como uma das razões
do isolamento do partido
até por membros
da própria direção
Ciro Gomes já repete
como bordão o ataque:
“Lula está preso, babaca”
MATHEUS ALVES/CUCA DA UNE/TWITTER

A opção preferida de nove entre dez petistas que se


opõem a Hoffmann é Fernando Haddad, que, embo-
ra evite confrontar Lula e afirme não querer presidir o
Entre os outros partidos de oposição, Hoffmann é apon-
tada como uma das razões do fosso em que o PT se meteu. Há
quem ache que as feridas abertas com Ciro Gomes em 2018
partido, engrossa o coro contra a reeleição. Não só por- não cicatrizarão, da mesma maneira que as de Marina Silva
que comunga da tese de que Hoffmann dificulta a sobre- em 2014 ainda estão abertas. Com outras palavras, Carlos
vivência do PT, mas porque as rusgas entre os dois, surgi- Lupi, presidente do PDT, reforça o “Lula está preso, babaca”
das antes da campanha, continuam fortes. dos irmãos Gomes. “O PDT cansou de ser bucha de canhão.
Nada que se compare ao clima dos últimos dias do segundo O ‘Lula livre’ resolve alguma coisa? Se o PT continuar insis-
turno, em que quase romperam, com Hoffmann trombetean- tindo que só eles levam a Deus, vamos continuar sendo peca-
do o “Lula livre”, enquanto Haddad havia acordado com Lula dores. Antes sós que mal acompanhados”, provocou Lupi.
que não faria mais o beija-mão semanal na cela presidencial. O partido tenta se adequar à realidade no Congresso.
De lá para cá, Haddad e Hoffmann mal se falam. Ela não Na Câmara, embora tenha a maior bancada, não partici-
tem participado do planejamento das caravanas do partido, pou da vitória de Rodrigo Maia e embarcou, ao menos
que recomeçam neste mês, por Fortaleza e Teresina, lideradas oficialmente, na candidatura de Marcelo Freixo (PSOL)
por Haddad. Também está fora da formulação do pacote de para a presidência da Câmara. Acossados no Senado, on-
propostas para a segurança pública e o combate ao crime orga- de chegaram a ser 13, os seis remanescentes do partido
nizado que Haddad está preparando, com petistas e advogados dependem da boa vontade de Davi Alcolumbre para pre-
paulistas, num contraponto ao de Sergio Moro. Longe disso. sidir alguma comissão. Para estancar a sangria de cargos
Na segunda-feira, quando esse grupo se reuniu com Haddad e perdidos, tiveram de formar um bloco com o PROS de
Rui Falcão, no apartamento do advogado Pedro Serrano, na Fernando Collor. Nas duas Casas, perderam a liderança da
região dos Jardins, em São Paulo, a orelha de Hoffmann ardeu. oposição, que, na Câmara, ficou com Jandira Feghali, do
Não que a oposição a Gleisi Hoffmann seja unanimi- PCdoB, e, no Senado, com Randolfe Rodrigues, da Rede.
dade. Com a burocracia do partido, por exemplo, sem Distante de Brasília, Fernando Haddad continua sen-
voto e obediente na hora de vestir a casaca de primeiro do a única solução à vista do partido. “Seu destino não
soldado na fileira de defesa do ex-presidente, Hoffmann pertence mais a você, Fernando”, ouviu Haddad de um
é campeã. Com um ou outro parlamentar que encarne o senador petista, em novembro, dias depois da derrota
mesmo papel, também. Mas não vai muito longe. com 47 milhões de votos no segundo turno. Embora rea-
José Dirceu a despreza. Na segunda-feira, enquanto firme que não quer presidir o PT, Haddad de certa manei-
Haddad e outros petistas debatiam o tal pacote de con- ra ouviu o chamamento. Na semana que vem, Cristiano
traponto a Moro, Dirceu era a estrela do aniversário de Zanin, o advogado de Lula, entrará com a papelada para
39 anos do partido, no Teatro dos Bancários, em Brasília. incluir Haddad como advogado da execução penal do ex-
Pregou, a exemplo de Lula, a união da esquerda. Mas foi presidente, o que lhe garantirá a autorização para visitar
severo na crítica sobre os rumos do partido. “Ficamos Lula a qualquer hora. A peregrinação de visitas vai reco-
longe do povo. Perdemos esse espaço para igrejas evan- meçar. E, numa delas, como nunca antes na história deste
gélicas. A culpa não é das igrejas, é nossa. Os dirigentes país, Lula ouvirá o primeiro “não” do PT.
do PT se afastaram do povo.” COM EDUARDO BARRETTO
30 LAÇOS DE FAMÍLIA

O
MÉTODO
DAMARES
LAÇOS DE FAMÍLIA 31

O Ministério Público investiga a retirada


de bebê dos cuidados de uma jovem índia,
novo caso envolvendo ONG da ministra
por Vinicius Sassine e Natália Portinari

E m 2010, a vida de Arã, uma jovem indíge-


na sateré-mawé, mudou radicalmente.
Nascida em uma aldeia acessível apenas por
suposto passado de violência levaria inclusi-
ve a risco de morte — tratado em vários ca-
sos como infanticídio —, o que justificaria o
vias fluviais, no coração da floresta amazôni- “resgate” feito pela ONG.
ca, ela foi parar na chácara de uma ONG reli- Chamadas a prestar esclarecimentos na
giosa em Brasília, acompanhada de seus pais Justiça, pessoas ligadas à entidade adotaram
adotivos. Lá, a menina, então com 14 anos, essa fórmula para justificar a saída da adoles-
buscaria tratamento para problemas mentais, cente sateré-mawé da aldeia e a posterior to-
mas acabou engravidando de um jovem de mada de seu bebê. Segundo a Atini, Arã foi
outra etnia que também havia ido parar ali. rejeitada pelos pais no nascimento, por apre-
Arã queria que sua filha se chamasse Mariana, sentar problemas mentais. Em sua aldeia, na
mas não teve a oportunidade de dar o nome à Amazônia, a jovem cresceu sob os cuidados
criança. Quatro dias após o parto, o bebê foi de um casal de índios, sofreu maus-tratos e
retirado de seus braços e entregue ao irmão e acabou sendo vítima de algo ainda pior. Na
à cunhada de uma das dirigentes da ONG. história contada pela ONG, Arã, ainda uma
Narrada em um relatório sigiloso do Mi- criança, foi vítima de constantes rituais de
nistério Público Federal (MPF) a que ÉPOCA estupro coletivo em sua tribo, sofrendo abu-
teve acesso, a história de Arã está no centro so por 32 índios, incluindo seu pai biológico.
de uma longa disputa judicial que envolve a Os dirigentes da ONG citam o calvário da
organização Atini — a ONG em questão —, índia para justificar problemas psicológicos
criada pela atual ministra da Mulher, da Fa- que a teriam feito rejeitar o próprio bebê.
mília e dos Direitos Humanos, Damares Al- O relatório do Ministério Público repro-
ves. Oficialmente, a entidade destinava-se a duz o relato de integrantes da entidade. “Sou-
auxiliar comunidades indígenas. A ONG es- beram que a adolescente havia sido rejeitada
tá sendo processada por separar o bebê da pelos pais por apresentar problemas mentais.
mãe e de sua família indígena e entregá-lo Foi criada por outro casal indígena, mas era
irregularmente a pessoas sem vínculo com a maltratada com frequência e usada sexual-
cultura sateré-mawé. mente por vários membros da tribo. Antes de
O caso, ainda em tramitação na Justiça ‘E’ (inicial do nome do bebê, dado pelos pais
do Rio de Janeiro, reproduz o que parece ser adotivos), já havia tido outros filhos, mas não
um método da Atini para separar crianças sabem o que ocorreu com eles. O infanticídio
indígenas de seus povos. A própria entidade era cometido quando a criança nascia com
afirma já ter abrigado 51 crianças em sua se- algum problema de saúde, era filho ilegítimo
Damares Alves, ministra de, em Brasília. Ela é alvo de uma série de (como no caso da adolescente) ou outras ca-
da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, ações judiciais pela retirada de índios de al- racterísticas malvistas pela tribo. A gravidez
afirma que sua ONG deias. O roteiro é quase sempre o mesmo: foi descoberta quando os pais adotivos de
foi criada para resgatar uma criança indígena, rejeitada no nasci- Arã solicitaram ajuda à ONG para tratamen-
crianças indígenas
em situações mento e criada por outros índios, que sofre to das convulsões (...) Arã refletiu a cultura
de risco de morte maus-tratos, acaba acolhida pela entidade. O de sua tribo e rejeitou sua filha.”
DANIEL MARENCO/AGÊNCIA O GLOBO
32 LAÇOS DE FAMÍLIA

Essa versão é completamente desconstru- “Qual é, afinal, a fonte ou o fundamento


ída no relatório do Ministério Público. O de tantas afirmações peremptórias sobre a
analista em antropologia Walter Coutinho jovem, seus familiares e o povo indígena ao
Jr., que assina o documento, chega a desta- qual pertencem?”, questiona o perito Walter
car que “impressiona o exacerbado precon- Coutinho Júnior, para, na sequência, ele
ceito” demonstrado pelos integrantes da mesmo responder: “O testemunho de inte-
ONG ao narrar a história da índia Arã, de grantes da Atini!”. Um relato de um mem-
sua família e do próprio povo sateré-mawé. bro da ONG conta, por exemplo, que Arã
Em um laudo citado pelo MPF, um médico foi rejeitada pelos pais adotivos e entregue
afirma “em letras garrafais” que Arã não aos cuidados dos missionários por estar grá-
possui nenhum transtorno mental. Para o vida. O MPF refuta a afirmação: “A adoles-
MPF, “inexiste qualquer comprovação de cente não foi rejeitada e entregue aos cuida-
que a adolescente (Arã) tenha sido rejeitada dos da ONG por estar grávida, e sim preser-
pelos pais por apresentar problemas men- vada por eles da viagem a uma região remo-
tais”. Essa afirmação, segundo o MPF, “care- ta (de volta à aldeia), quando já havia engra-
ce de qualquer comprovação etnográfica co- vidado na chácara da entidade”.
nhecida”, assim como o suposto infanticídio
cometido pelos saterés-mawés “quando a
criança nasce com algum problema de saúde
ou ‘outras características malvistas pela tri-
Q uestionado pelo Ministério Público, o
roteiro de “distorções” da Atini sobre a
cultura dos índios saterés-mawés foi utiliza-
bo’ não possui respaldo etnológico”. Segue o do recentemente pela ministra Damares Al-
Abaixo, foto postada pela
relatório: “A afirmativa de que Arã seria ves para justificar a adoção irregular da jo- ministra Damares Alves
‘maltratada com frequência e usada sexual- vem Kajutiti Lulu, de 20 anos, tirada de nas redes sociais
mente por vários membros da tribo’ não ex- uma aldeia kamayurá, no Parque do Xingu, com os supostos pais
adotivos da índia Kajutiti
plicita quem era o autor dos maus-tratos”. quando tinha 6 anos de idade. Segundo as Lulu, que ela criou.
No curso da elaboração do relatório, o MPF alegações da Atini, Lulu teria sido rejeitada Na página ao lado,
foi até a aldeia de Arã, acompanhou sua ro- por seus pais biológicos e salva de ser enter- documento do Ministério
Público assinado pelo
tina com a família e também atestou a nor- rada viva, num ato tribal de infanticídio. analista em antropologia
malidade das relações dela com os parentes. Assim como Arã, Lulu foi levada para a ci- Walter Coutinho Jr.

REPRODUÇÃO
LAÇOS DE FAMÍLIA 33

REPRODUÇÃO
entraram na terça-feira com ação popular
na Justiça Federal para pedir o afastamento
imediato da ministra do cargo.
No caso da ministra, a relação com Lulu
atravessou os anos no anonimato e na infor-
malidade. No caso da índia Arã, a situação é
ainda mais grave, porque houve tentativa
formal de adoção de sua filha, o que com-
provaria a intenção da Atini de não devolver
a menina a seu povo. Tanto no caso de Lulu
quanto no caso do bebê retirado da mãe, a
dirigente da Atini, Márcia Suzuki, é perso-
nagem central da trama. Depois de levar Lu-
lu do Xingu, Márcia levou o bebê de Arã a
seu próprio irmão, Marcos dos Santos, e a
sua cunhada, Angélica, que prontamente
entraram na Justiça com um processo for-
mal de adoção. O casal, mesmo sabendo que
a menina recém-nascida tinha mãe, tratou
logo de batizá-la com outro nome. Foi ao
saber da adoção envolta em questões suspei-
tas que a Justiça do Rio de Janeiro abriu
uma investigação para apurar os motivos
que levaram a criança indígena a ser afasta-
da da família e do povo sateré-mawé.

dade para um tratamento de saúde. Acabou


sendo criada irregularmente como filha por
O afastamento do bebê de sua mãe ocor-
reu em setembro de 2011. Depois de se
recuperar do parto, a adolescente acabou le-
Damares Alves, como contou ÉPOCA no vada pelos integrantes da Atini para um sítio
início deste mês. Apesar das acusações da no município de Duque de Caxias, no Rio,
ministra de que a menina sofria maus-tra- pertencente a outra ONG com atuação entre
tos entre seus familiares, a própria Damares os indígenas, a Jovens com uma Missão (Jo-
posou recentemente em uma foto com os cum), também ligada a Márcia e à Atini. O
pais adotivos de Lulu, de quem se disse MPF registra que foi apenas meses após o
amiga, sem fazer qualquer menção ao pas- nascimento da criança, já em 2012 — depois
sado supostamente cruel de Lulu no Xingu. de Arã fugir do sítio da Jocum e ser encon-
Segundo os habitantes da aldeia ouvidos trada na rua com “marcas de maus-tratos
pela reportagem, Lulu foi levada para a ci- pelo corpo” —, que autoridades tomaram
dade por Márcia Suzuki, dirigente da Atini conhecimento do desejo da jovem de man-
e braço direito de Damares Alves, para fazer ter a filha consigo e de retornar a sua aldeia
um tratamento dentário e nunca mais vol- no Amazonas. Ela foi encaminhada pela
tou. Em entrevista ao UOL após a publica- Justiça a um abrigo, também em Duque de
ção da reportagem, a própria Lulu confir- Caxias. Em 2013, uma perita do MPF a visi-
mou que saiu de casa para cuidar dos den- tou e constatou “a certeza de que a menor
tes em Brasília. Depois de ÉPOCA revelar o deseja muito voltar para sua comunidade”.
caráter irregular da suposta adoção de Lulu, a O relatório da visita conta a seguinte
ministra disse que era apenas “cuidadora” da história: “Ao ser informada que tinha di-
menina e reconheceu que nunca formalizou reito a ficar com a sua filha, (Arã) excla-
a adoção, como pede o Estatuto da Criança e mou ‘Eu quero, eu quero! Eu tenho direi-
do Adolescente (ECA). Por causa das reve- to? Então eu quero minha filha!’. (Uma
lações de ÉPOCA e por outros atos contro- profissional) mostrou-lhe fotos da filha e
versos de Damares, dois advogados de ela ficou muito emocionada. Explicamos a
Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, manifestação do Ministério Público para
34 LAÇOS DE FAMÍLIA

Em documento do Ministério Público, o perito


Walter Coutinho Jr. desconstrói a tese
da entidade e diz ter ficado impressionado com
o“exacerbado preconceito” da Atini em relação
à história da índia Arã e ao povo sateré-mawé

que a filha retorne para a genitora e do Além de atuar em casos em que é acusa- QUEM SÃO AS
possível adiamento em razão da espera da da de subtrair indígenas de suas aldeias, a CRIANÇAS LEVADAS
PARA A ONG ATINI
bebê e avaliação para que seja autorizado o Atini atende até hoje crianças doentes acom-
seu eventual retorno com a bebê para sua panhadas por seus pais em tratamentos na HARANI
comunidade indígena de origem”. O retor- cidade. Em respostas enviadas à reportagem Retirada da área
suruwahá em novembro
no foi autorizado em 2013, mas a Justiça no início do mês, a Atini afirmou que todas de 2002, entrou em um
não determinou a reunião com a filha, já as crianças indígenas em sua propriedade processo de adoção
há dois anos com o irmão de Márcia e sua em Brasília estão acompanhadas de familia- por um casal não
indígena na cidade
esposa. A essa altura, os tios maternos de res. Isso não impede, porém, que quem mo-
Arã já haviam retornado à aldeia e enviado ra nas aldeias peça o retorno das crianças, LULU
um ofício, por meio da Funai, pedindo o como ocorreu no caso de índios kamayurás, Foi levada da aldeia
kamayurá, no Parque
retorno da jovem também. saterés-mawés e suruwahás. Nos dois últi- do Xingu, Mato Grosso,
mos casos, houve registros e investigação. para a cidade aos 6

P ara além das histórias de Arã e Lulu, a No caso de Lulu, a ministra se amparou anos. A justificativa era
fazer um tratamento
própria ministra Damares Alves já deu em outros parentes da menina índia, dentário. Não retornou
declarações que indicam a existência de ou- incluindo Piracumã e Kamaiulá, considera- em definitivo e foi criada
por Damares
tras crianças tiradas de aldeias nas mesmas dos seus pais adotivos, para negar que te-
condições. Em 2017, Damares contou a his- nha cortado os contatos com a família. ARÃ
tória da criação da Atini em um discurso “Lulu não foi arrancada dos braços dos fa- Jovem sateré-mawé,
foi levada para a cidade
na Câmara dos Deputados. “Os índios co- miliares. Ela saiu com total anuência de to- aos 14 anos, com a
meçaram a ouvir que havia um movimento dos e acompanhada de tios, primos e ir- justificativa de cuidar
nesta casa falando sobre avançar neste tema mãos para tratamento ortodôntico, de pro- de sua saúde mental.
Engravidou de um jovem
e começaram a bater à porta dos gabinetes, cesso de desnutrição e desidratação. Tam- na chácara e sua filha foi
pedindo socorro. Foi assim que eu me tor- bém veio a Brasília estudar.” entregue a outro casal
nei mãe de uma menina, aqui nesta casa, Damares Alves intermediou também a
XAGANI
uma menina kamayurá que corria risco em adoção de outra criança xavante por um Filho de um líder político
sua aldeia”, disse. “Foi assim que o deputa- pastor em São Carlos, São Paulo. Procurado, do grupo Suruwahá, saiu
do Henrique Afonso, do PT do Acre, se tor- tanto o pastor quanto o deputado Henrique da aldeia e acompanhou
uma viagem de crianças
nou pai de um menino xavante”, conti- Afonso afirmaram que regularizaram na e adolescentes de sua
nuou. “Foi à porta do gabinete dele que foi Justiça a guarda definitiva dos xavantes que etnia para tratamento em
pedido socorro. E foi assim que eu me tor- adotaram, mas não passaram por um pro- São Paulo, patrocinada
pela Atini. O MPF se
nei mãe de uma segunda menina, também cesso de adoção, já que as crianças mantêm queixa de que a Funasa
xavante. Quando bateram à porta do gabi- seus vínculos com a aldeia Xavante, em Ma- não providenciou
nete, pedindo socorro.” to Grosso. “Assim o movimento Atini cres- seu retorno
ÉPOCA questionou Damares nesta se- ceu e se transformou na instituição Atini,
mana sobre quem é essa segunda filha e a porque não havia onde colocar as crianças.
circunstância de sua adoção. Por sua asses- A instituição nasceu para acolher as crian-
soria, a ministra disse que teve a guarda ças”, contou Damares no discurso de 2017.
provisória da criança enquanto ela fazia um
tratamento e que depois a menina foi enca-
minhada para outra família na cidade, que a
adotou formalmente. “A menina visita a al-
E m 2006, Márcia Suzuki e Edson Suzuki,
seu marido, que ainda atuavam na ONG
Jocum, foram contratados pela Fundação
deia com frequência, e sua mãe biológica Nacional de Saúde (Funasa) para atuar co-
faz visitas regulares a seu lar adotivo.” mo intérpretes da língua suruwahá no aten-
LAÇOS DE FAMÍLIA 35

Integrantes da ONG
Atini rezam agradecendo
a aprovação do Projeto
da Lei Muwaji
na CCJ da Câmara
dos Deputados, texto
que prevê a punição
a agentes de saúde que
se omitam em casos
de infanticídio em aldeias

JORGE WILLIAM/AGÊNCIA O GLOBO

HAKANI
Levada em 2001 para
tratamento médico no
Hospital das Clínicas de
Ribeirão Preto, São
Paulo, é uma das
indígenas que a Atini
alega ter salvado de ser
enterrada viva. Foi
adotada por Edson
e Márcia Suzuki

ANUHARI E INIKIRU
Foram levados da aldeia
suruwahá aos 12 e 9
anos, respectivamente.
Em 2009, quando o MPF
investigava a retirada das
crianças da aldeia,
foram encontrados na
chácara da Atini

SUMAWANI
Criança levada ao
hospital em abril de 2003,
foi retirada da aldeia
Suruwahá. Passou
por uma cirurgia

AMALÉ
Segundo Márcia Suzuki,
é um menino que foi dimento a uma criança chamada Iganani, dade posteriormente: Ahuhari, de 12 anos, e
salvo de ser enterrado diagnosticada com retardo de crescimento e Inikiru, de 9. Os parentes das crianças exigi-
vivo da aldeia kamayurá
e recebia apoio
de desenvolvimento neuropsicomotor. A ram o retorno delas à tribo, e em 2008 o MPF
da entidade partir daí, teria ocorrido a retirada de um foi informado da situação. Em 2009, todos
grupo de indígenas da comunidade. eles foram encontrados na chácara da Atini.
Dois extensos relatórios da Funai, ela- Por mais de uma vez, os relatórios da Funai
borados em 2011, registram o que ocorreu. citam que a comunidade não se conformou
Para a Funai, houve uma “subtração” dos com a ausência das crianças e que não houve
índios. Deixaram a tribo a menina Iganani e consentimento para a saída do grupo.
sua mãe, Muwaji Suruwahá. Segundo a Atini, A Funai concluiu naquele ano de 2011 ser
Iganani fora condenada à morte por enve- necessário pedir uma “busca e apreensão de
nenamento por causa de uma paralisia cere- incapazes”, de forma que a guarda fosse de-
bral. Muwaji, então, teria procurado os mis- volvida à aldeia. Em 2013, o delegado da Po-
sionários para “enfrentar” a própria tribo. lícia Federal Manoel Vieira da Paz Filho
Mãe e filha foram levadas para São Paulo concluiu que não foram confirmadas as in-
para tratamento médico. formações sobre retiradas de indígenas de
Os relatórios da Funai apontam que ou- suas tribos sem o conhecimento de servido-
tras duas crianças foram retiradas da comuni- res da Funai e dos líderes das tribos.
36 LAÇOS DE FAMÍLIA

P ara entender a relação entre a causa do


infanticídio indígena e a atuação da Ati-
ni, é preciso remeter à origem da ONG.
dio em aldeias, foi proposto em 2007 na Câ-
mara dos Deputados. Seu nome, segundo a
descrição, é “em homenagem a uma mãe da
Márcia e seu marido, Edson, eram, já na tribo dos suruwahás que se rebelou contra a
década de 80, membros da Jocum, organi- tradição de sua tribo e salvou a vida da filha,
zação então recém-chegada ao Brasil. Fize- que seria morta por ter nascido deficiente”. O
ram parte de um grupo de missionários autor é o deputado Henrique Afonso — à
que testou o método de evangelização na época, do PT do Acre —, um dos muitos par-
comunidade isolada dos suruwahás, no lamentares que empregaram a pastora Dama-
Oeste Amazônico. Em duas décadas de atua- res Alves como assessora em seu gabinete e o
ção entre os indígenas, aprenderam a falar mesmo que adotou a criança xavante.
sua língua, traduziram a Bíblia, se envolve- O Projeto de Lei abre uma brecha para a
ram para impedir a prática do suicídio, re- atuação de entidades como a Jocum, porque
corrente na aldeia, e retiraram crianças de não trata apenas de punição. “Qualquer pes-
lá. Tudo culminou em uma investigação do soa que tenha conhecimento de casos em que
MPF no início dos anos 2000. haja suspeita ou confirmação de gravidez
Por trás da discussão cultural, estava um considerada de risco (...), de crianças corren-
vácuo legislativo, segundo um documento pro- do risco de morte (...) serão obrigatoriamente
duzido pela Procuradoria-Geral da República comunicados (...) à Funasa, à Funai, ao Con-
(PGR) na época. Antes da Constituição de selho Tutelar da respectiva localidade ou, na
1988, índios eram considerados inimputáveis. falta deste, à autoridade judiciária e policial,
Portanto, não podiam ser culpados por crimes sem prejuízo de outras providências legais”,
como o infanticídio. Isso mudou, sem que fi- diz a proposta. A recomendação é que as crian-
casse claro como eles seriam integrados à lei ças correndo “risco” sejam retiradas e entre-
brasileira. “O ordenamento jurídico brasileiro gues a organizações governamentais ou não
não criou ainda, apesar do que dispõe a Consti- governamentais, devidamente credenciadas.
tuição, normas concretas que permitam o reco- Atini significa “voz” na língua suruwahá.
nhecimento efetivo das regras de conduta inter-
na dos diferentes povos indígenas no país”, dis-
corre texto incluído em laudo do MPF sobre os
suruwahás. Era preciso, argumentou o perito
E m 2013, em um culto evangélico publicado
no YouTube, Damares vocifera contra o
infanticídio. “Descobrimos, irmãos, que te-
Walter Coutinho Jr. — o mesmo antropólogo mos em torno de 120 etnias indígenas no Bra-
que trabalhou na análise do caso de Arã, em sil e entre 30 e 40 matam seus filhos. Na ver-
2013 —, criar soluções legislativas. dade, só tivemos prova disso em 2004, e em
Em dezembro de 2005, foi firmado um 2006 começamos a fazer o enfrentamento”,
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) en- disse. “Nós temos um estudo, que ainda não é
tre MPF, Funai, Funasa e Jocum para que os oficial, que, por ano, 450 crianças indígenas
missionários abandonassem a terra suruwahá. no Brasil estão sendo enterradas vivas.”
Meses depois, foi oficializada a criação da Ati- Não há base documental para as alega-
ni, com a bandeira da criminalização do “in- ções da pastora. Duas notas técnicas produ-
fanticídio indígena”. Mesmo que autoridades zidas em 2015 e em 2016 pela Secretaria Es-
afirmem que a prática se reduz a algumas etnias, pecial de Saúde Indígena, do Ministério da
nos anos seguintes os membros da ONG, in- Saúde, detalham a extensão da prática do in-
cluindo Damares Alves, percorreram o Brasil fanticídio — que a pasta prefere chamar de
divulgando o problema no meio evangélico co- neonaticídio — no Brasil, por etnia. O pri-
mo algo generalizado entre índios. Os mem- meiro documento afirma terem ocorrido 40
bros da Jocum só abandonaram em definitivo mortes em 2014, assim distribuídas: 32 nos
o território suruwahá por volta de 2009, após ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xi-
insistentes tentativas do MPF. rianas, registradas pelo distrito existente nos
Os missionários seguiram outra recomen- ianomâmis; duas nos kaingangs, registradas
dação do Ministério Público, porém: buscar no distrito Interior Sul; duas nos kaiowás,
uma lei para resolver o impasse. O Projeto da em Mato Grosso do Sul; uma nos barés, re-
Lei Muwaji, que quer punir agentes de saúde gistradas no distrito de Manaus; e uma nos
por omissão de socorro em casos de infanticí- guajajaras, no Maranhão.
LAÇOS DE FAMÍLIA 37

Sem qualquer evidência conhecida, a ministra 2013, segundo os documentos produzidos


Damares vociferou num culto realizado em pelo MPF, havia “ao menos 23 autos em cur-
so no MPF (judiciais e/ou extrajudiciais),
2013: “Temos em torno de 120 etnias indígenas que têm por objeto a investigação de supos-
no Brasil. Entre 30 e 40 matam seus filhos” tas irregularidades concernentes à atuação
das missões evangélicas Jocum e Atini em
VINICIUS SASSINI
terras indígenas no Brasil”.
A Funai, no desenho do novo governo
Bolsonaro, foi esvaziada de sua principal
função, a demarcação de terras, hoje sob o
Ministério da Agricultura. Sob protestos de
servidores e defensores da causa indígena,
o órgão ficou abrigado no Ministério da
Família, da Mulher e dos Direitos Huma-
nos, comandado por Damares Alves. A jor-
nalista Sandra Terena, amiga de Alves e mi-
litante contra o infanticídio indígena, hoje
é secretária nacional de Políticas de Promo-
ção da Igualdade Racial.

A Atini afirmou, por meio de sua advoga-


da, que “somente foi citada e é parte em
três processos promovidos pelo MPF, dos
quais só houve sentença em um deles”. A
sentença condenatória se refere ao docu-
mentário Hakani, que retrata a história de
uma índia suruwahá e foi barrado sob a acu-
sação de encenar o ritual do infanticídio em
uma aldeia em que ele não existe, difamando
os indígenas. A entidade está recorrendo.
Indígenas na ONG Atini, Ainda assim, a Atini seguiu como uma “A Atini entende que vem sofrendo per-
a entidade fundada organização cujo único objetivo declarado é seguições em virtude de sua postura intran-
pela ministra Damares
Alves em 2006 com impedir o infanticídio. Na prática, separou sigente na defesa dos direitos humanos uni-
o objetivo de combater jovens indígenas de suas comunidades. O ca- versais, não admitindo quaisquer tentativas
o infanticídio cique Kotok Kamayurá, ouvido por ÉPOCA de relativização de tais direitos”, afirmou a
a respeito do caso de Lulu Kamayurá, defen- nota. “A postura relativista dos direitos hu-
deu que a organização seja fechada. “Não é manos, condicionando sua titularidade e
assim, não (essa história de infanticídio), é o abrangência, tem sido defendida por parte
contrário. Tem de fechar a Atini. Porque é do MPF, contrariando os tratados internacio-
para lá que vão esses índios que estão saindo nais de Direitos Humanos dos quais o Bra-
daqui.” Em 2009, líderes dos yawalapitis, de sil é signatário, os quais obrigam o Estado
Mato Grosso, e kayapós, do Pará, denuncia- brasileiro a combater as práticas tradicio-
ram à Comissão de Direitos Humanos da nais nocivas, tais como o infanticídio indí-
Câmara dos Deputados a adoção ilegal de gena e o estupro coletivo, protegendo as ví-
crianças indígenas pela Jocum e pela Atini. timas e dando voz a elas.”
Segundo a página da entidade na inter- ÉPOCA procurou Marcos e Angélica, o
net, hoje “a Atini assiste crianças das etnias casal que adotou a filha de Arã, por mensa-
kamayurá, kajabi, suruwahá, kuikuro, ik- gem e por telefone. Angélica atendeu e afir-
peng”. Não há registros oficiais de infanticí- mou que não tinha nada a dizer à reporta-
dios recentes nessas populações compilados gem. Segundo amigos, Márcia Suzuki emi-
pelo Ministério da Saúde. No Parque do grou para os Estados Unidos com seu mari-
Xingu, em Mato Grosso, visitado por ÉPO- do, Edson. A jovem Arã, segundo o último
CA, indígenas de diversas etnias negam a registro do processo, seguia em sua aldeia
perpetuação da prática nos dias de hoje. Em no Amazonas — sem sua filha.
“ESTAVA
ESPERANDO
UMA
CHATICE”
NOVOS TEMPOS 39

OS PRIMEIROS DIAS POUCO


INSPIRADORES DO PAGODEIRO
BAIANO IGOR KANNÁRIO COMO
DEPUTADO FEDERAL PELO PHS
por Daniel Gullino

E les roubando de terno e gravata./E a gente o que passa na perife-


ria?/Covardia, covardia, covardia, covardia, diz a letra de “Covar-
dia”, hit do pagodeiro baiano Anderson Machado de Jesus, mais
conhecido como Igor Kannário, lançado em 2013. Cinco anos de-
pois, o “príncipe do Gueto”, como o cantor se autointitula, virou
político, passou pela Câmara dos Vereadores de Salvador e chegou
à Câmara dos Deputados — de terno e gravata, tal como aqueles
que censurava no palco.
Entoando o discurso da moda, de que vai representar o povo e
fazer coisas em que “nunca ninguém pensou”, Kannário, aos 34
anos, teve um início de mandato, digamos, dentro do “padrão” vi-
gente em Brasília. Após a cerimônia de posse, em 1º de fevereiro,
faltou à primeira semana de exercício da função e só voltou a pisar
no Salão Verde na terça-feira 12, quando os trabalhos já estavam en-
grenados. Já na posse, chegou uma hora atrasado. De terno azul, sa-
pato branco e gravata de ponta reta, seu primeiro ato como deputa-
do foi atender a um pedido do colega Giacobo (PR-PR) para posar
para uma foto com seus filhos — o primeiro dos muitos retratos
daquela manhã. Ao tentar aprender como mexer no painel da ban-
cada, não ouviu seu nome ser chamado para proferir o juramento
de posse — e perdeu a vez. Saiu do plenário sem se preocupar com
a gafe, procurando um lugar para fumar.
Ao chegar a um anexo do Salão Negro, onde pitar é liberado, foi
novamente abordado para fotos. Dessa vez, um bombeiro que traba-
lhava na segurança do local se aproximou. “Estou felizão. Você repre-
senta muito. Melhor te ver do que ver esses outros caras aí”, disse,
exibindo um largo sorriso, antes do clique com o ídolo. Durante a
profusão de pedidos de selfies, Kannário estava acompanhado da
mulher, Laíza. Em seguida, postou uma foto com ela em uma rede
social, com a seguinte legenda: “Deixa Deus conduzir as paradas,
O deputado e pagodeiro meu amor. O céu e o limite pra nós”. Mas nem todos conheciam o
Igor Kannário (PHS-BA) jovem parlamentar. Quando Kannário deixou o local, um segurança
estreou na Câmara depois perguntou a ÉPOCA quem era ele. Pouco antes, o deputado se diver-
de uma campanha a favor
da legalização das drogas tira ao contar que acabara de reencontrar um funcionário da Casa
e de críticas à polícia que, na véspera, durante uma visita à Câmara, resistiu a acreditar que
FOTO: JORGE WILLIAM/AGÊNCIA O GLOBO
40 NOVOS TEMPOS

Kannário passou o dia


tirando fotos com fãs na
Câmara. No dia da
posse, perdeu a chamada
(à esq.), posou com a
mulher (no centro), Laíza,
e postou: “O céu é o
limite para nós”. Nos
shows (à dir.),
enlouquece fãs com
tatuagens e letras
provocativas
FOTOS: REPRODUÇÃO

se tratava de um parlamentar eleito — se- lo registrado — Anderson foi uma escolha do


gundo ele, por sua roupa: calça jeans e cami- pai. Já o apelido Kannário foi dado pelo can-
sa social. “Está bom para o senhor?”, per- tor Belo, em referência à afinação do colega.
guntou, ao rever, na posse, o servidor incré-
dulo. É Kannário vivendo seus versos na pe-
le: Se meu traje te incomoda/Lá no gueto es-
tou na moda ou Quando essa gente vai enten-
O hoje deputado começou a se apresentar
aos 9 anos, em uma banda infantil. Pas-
sou por diversos grupos de samba “lado B”,
der que minha roupa não muda meu jeito de como Patrulha do Samba, Swing do P e A
ser?. Ele, de fato, não se preocupa com for- Bronkka, até iniciar carreira solo em 2012.
malismos na indumentária: no primeiro en- Hoje, no Carnaval de Salvador, comanda
contro com ÉPOCA, no hotel em que estava uma das maiores pipocas — como são cha-
hospedado na véspera da posse, o parlamen- mados os trios que circulam na cidade e que
tar novato recebeu a reportagem sem cami- não requerem abadá. Mas nem só de samba
sa, revelando as tatuagens que cobrem a e pagode é feita a trajetória de Kannário. Foi
maior parte do tronco e dos braços. preso duas vezes, em 2015, por posse ilegal
Em seu gabinete ainda carente de decora- de maconha — e milita pela legalização do
ção, já no dia 1º, leu mensagens de seguidores uso a ponto de tatuar no corpo uma imagem
nas redes sociais e destacou uma: “Não se da erva. Apesar dos percalços, Kannário dis-
corrompe. Seu povo e Deus estarão sempre se ter amadurecido. “Mudar, a gente não
contigo”. Kannário disse ter uma “missão” a muda. A gente melhora. Existiu um amadu-
cumprir. “Senão, vão ser milhões de pessoas recimento muito grande, por conta de eu ter
decepcionadas e tristes. Não é permitido. É aprendido tomando na cara”, afirmou.
como se fosse uma traição”, afirmou, para lo- Nas duas eleições das quais participou,
go depois mostrar com empolgação fotos do não apresentou declaração de bens à Justiça
novo ônibus de sua banda. Natural do bairro Eleitoral, apesar de dispôr de um salário ra-
da Liberdade, na periferia de Salvador, o de- zoável — de R$ 18.732 — como vereador, fo-
putado adotou o nome Igor em homenagem ra o que ganha fazendo shows. Kannário
à mãe, já que era assim que ela gostaria de tê- atribuiu a escassez patrimonial a problemas
NOVOS TEMPOS 41

KANNÁRIO DISSE TER UMA “MISSÃO”


A CUMPRIR. “SENÃO, VÃO SER MILHÕES
DE PESSOAS DECEPCIONADAS E TRISTES.
NÃO É PERMITIDO. É COMO SE FOSSE
UMA TRAIÇÃO”

com a gravadora. “Minha vida, independen- sobrevive à cláusula de barreira, pelo DEM,
temente da carreira de sucesso, sempre foi sigla do presidente da Câmara, Rodrigo
difícil, por conta de ser popular, mas fazer Maia, e do prefeito de Salvador, ACM Neto.
poucos shows, ser preso a uma produtora, Kannário está satisfeito com o que viu
com um contrato draconiano, onde toda a em Brasília nos três dias em que exerceu a
verba que eu fazia com meu talento não vi- função — o dia da posse e os dias 12 e 13
nha para minha mão”, disse. de fevereiro. “Estava preparado para uma
Questionado sobre como vai empregar chatice. Mas achei do meu naipe, adrenali-
seu talento no serviço público, Kannário na o dia inteiro.” Questionado sobre o pa-
afirmou não ter ainda um plano concreto. radoxo de ter gostado tanto do novo tra-
Também revelou temer que sua genialidade balho e, mesmo assim, ter faltado a maior
inspire adversários políticos. “Claro que eu parte dos dias, atribuiu a ausência aos
não vou dizer quais são minhas ideias agora. compromissos como músico. “Não foi
Mas que tem, tem. Você sabe que, se eu di- obrigatória minha presença. Todo mundo
vulgar coisas que eu venha a fazer futura- sabe que tenho minha carreira artística.
mente, nego pode roubar minha ideia. De- Tenho de me virar nos trinta para poder
pois que estiver concreto, tudo organizado, atender as duas demandas. No verão, as
falo. O que tenho certeza é que o que nós te- demandas de micareta fora de época na
mos na mente são coisas que ninguém aqui Bahia são muitas”, disse, antes de garantir
pensou”, prometeu o deputado, que está em que não terá dificuldades em conciliar
vias de trocar seu partido, o PHS, que não agendas. “Organizando, dá tudo certo.”
COMO
NASCE
UMA
SENTENÇA
NA SALA DA JUSTIÇA 43

Os bastidores do processo
decisório de cada ministro do STF
— e por que isso é fundamental
para compreender o Judiciário
por Carolina Brígido

E a uma quarta-feira de janeiro quando o


ministro Luiz Fux trabalhava em uma
decisão que estremeceria o recesso do Su-
“Não existe ato mais individual do que
julgar um processo”, resumiu o assessor de
um gabinete da Corte. O ministro Ricardo
premo Tribunal Federal (STF). No dia se- Lewandowski concordou: “A decisão política,
guinte, ele assinou a ordem para suspender no sentido amplo da palavra, é sempre do mi-
as investigações sobre movimentações fi- nistro. É dele a decisão final de conceder ou
nanceiras suspeitas de Fabrício Queiroz, ex- não uma liminar. O assessor apenas auxilia
assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL- com pesquisas”. Lewandowski foi alvo de ata-
RJ). Pouco depois, o ministro se transfor- ques no ano passado, quando concedeu um
mou em alvo de ataques nas redes sociais e habeas corpus coletivo para transferir para pri-
de críticas da imprensa. “Eu não imaginei. são domiciliar presas grávidas e mães de crian-
Minha família foi afetada pela repercussão ças de até 12 anos ou com filhos deficientes. As
na mídia. Eu nunca tinha sofrido isso”, disse exceções ficaram para crimes cometidos com
Fux, que, nos tempos do mensalão, não se violência. Mesmo com as críticas, o ministro
chateava ao ser elogiado quando caminhava tem convicção de que agiu certo. “O habeas
na praia, sempre que voltava ao Rio de Ja- corpus foi um avanço civilizatório dirigido
neiro nos fins de semana. “Mas isso não po- muito mais às crianças do que às mulheres.
de abalar a independência que os juízes de- Disseram que eu estava botando criminosos
vem ter”, ponderou. Em sua defesa, afirmou na rua, ninguém compreendeu”, disse o mi-
que só suspendeu as investigações por duas nistro, que foi seguido pelos colegas Gilmar
semanas. Depois disso, terminaria o recesso, Mendes, Dias Toffoli e Celso de Mello.
e o relator, o ministro Marco Aurélio Mello, Fux deu detalhes de como converte uma
poderia definir o destino final do caso. Mas ideia em decisão. Primeiro, pensa em uma so-
a decisão repercutiu muito mal. Dito e feito: lução que considere “justa” para o caso a ser
no dia 1º de fevereiro, uma canetada do rela- julgado. Depois, busca uma “roupagem jurí-
tor liberou a retomada das investigações por dica” — ou seja, uma lei ou norma que res-
parte do Ministério Público do Rio — e Fux palde seu sentimento de justiça. Antes de to-
voltou a ter paz. Por trás de cada decisão mar a decisão, no entanto, ele tem o hábito de
dos 11 ministros do STF, ou de cada voto se reunir com assessores em uma grande mesa
proferido em plenário, revela-se um modo no gabinete. Luís Roberto Barroso, em alguns
de trabalho peculiar. Ainda que a opinião processos, também parte de uma tese. Em se-
pública frequentemente enxergue a Corte guida, pede uma pesquisa sobre o assunto,
como uma unidade, cada ministro tem um debruça-se sobre a legislação vigente e a juris-
Para Luís Roberto
Barroso, expoente estilo próprio de decidir. Há somente um prudência. Se concluir que a tese é inviável, re-
do “ativismo judicial”, ponto de intersecção: por mais que conte cua. “Às vezes, quando vem a pesquisa,
o resultado prático com a ajuda de assessores e pesquisas, é o constato que minha posição inicial não deve
de uma sentença
prevalece sobre os ministro — e só ele — quem assume o ônus prevalecer”, disse. “Vejo uma solução possí-
formalismos jurídicos da decisão final. Seja o aplauso ou o ataque. vel, mas depois verifico se ela se sustenta.”
FOTO: DANIEL MARENCO/
AGÊNCIA O GLOBO
44 NA SALA DA JUSTIÇA

Esse comportamento é conhecido como ati-


vismo judicial. Magistrados que atuam dessa
forma dão mais importância ao resultado
prático da decisão do que aos formalismos
jurídicos — e Barroso é o principal expoente
dessa escola. O ministro não vê problemas
em reconhecer que, diante da omissão dos
demais Poderes, o Judiciário deve “empurrar
a história” — ou seja, eventualmente tomar
decisões que caberiam, em tese, ao Legislativo
ou ao Executivo. Para ele, o tribunal deve ter
um papel “iluminista”. Barroso costuma citar
como exemplo desse tipo de conduta a deci-
são da Suprema Corte dos Estados Unidos
sobre o fim da segregação racial nas escolas
públicas e o reconhecimento da união homo-
afetiva no Brasil. “A abolição da escravatura
ou a proteção de mulheres, judeus, negros,
homossexuais, deficientes e minorias em ge- JORGE WILLIAM/AGÊNCIA O GLOBO
ral foram conquistas que nem sempre pude-
ram ser feitas pelo processo político majoritá-
rio. É preciso que um órgão não eletivo ajude
a dar o salto histórico necessário”, escreveu o
ministro em artigo publicado no jornal Folha
D o outro lado da trincheira jurídica estão
os chamados “legalistas”, jargão que des-
creve juízes que priorizam o rigor da lei em
De perfil discreto,
avessa a entrevistas,
Rosa Weber (acima) está
entre os ministros
de S.Paulo, em 2018. No ano passado tam- detrimento de suas convicções. Compõem es- “legalistas”, que
bém, quando Barroso recebeu o processo que se time os ministros Celso de Mello, Alexan- privilegiam a leitura
estrita da lei em
pedia que eleitores que perderam o prazo do dre de Moraes e Rosa Weber. A ministra, por detrimento de suas
cadastramento biométrico pudessem votar, sinal, é elogiada por colegas pela previsibilida- convicções pessoais
teve o ímpeto inicial de decidir a favor. de de suas decisões — sempre coerentes com e do clamor público

“Quanto mais gente apta a votar, melhor”, o histórico do colegiado. Ela costuma ser fiel O ministro Marco
pensou. Depois de analisar mais os fatos, às decisões tomadas pela Corte no passado e Aurélio Mello (à dir.)
ponderou que os 3,4 milhões de títulos cance- também a seus votos dados em processos se- é o único a decidir sem
a ajuda de juízes
lados não necessariamente seriam de eleito- melhantes. Weber tem, ainda, uma caracterís- auxiliares e a gravar o
res. Havia títulos duplicados e de pessoas fa- tica ímpar entre ministros do STF: não é voto para ser transcrito
lecidas. Por fim, decidiu posicionar-se contra. adepta de declarações públicas, palestras ou por sua assessora de
gabinete, Cláudia
Quando o processo é muito relevante, Bar- entrevistas à imprensa. A introspecção tam- Almeida
roso escreve a decisão à mão, em um papel bém prevalece em seu gabinete. Assessores da
pautado amarelo. Antes, usava caneta bico de ministra costumam reclamar que ela não con-
pena com cartucho de tinta. Recentemente, versa muito com a equipe antes de elaborar
decidiu trocá-la por canetas de gel, que dão uma decisão. Pede apenas uma pesquisa de
mais agilidade à escrita. Já redigiu livros dessa decisões passadas e nunca revela como vai vo-
forma. Depois, ele mesmo transcreve para o tar. Há servidores em seu gabinete que jamais
computador. Sua paixão por canetas é notória. despacharam com ela. Weber só costuma dar
Na mesa de trabalho, ele tem uma coleção. ouvidos aos três juízes auxiliares que atuam
Nos bolsos internos e externos do paletó, car- em sua equipe. Durante o julgamento do
rega sempre uma lapiseira, duas canetas mar- mensalão, o hoje ministro da Justiça e Segu-
ca-texto — uma amarela e uma azul — e três rança Pública Sergio Moro era um deles.
canetas para escrita — uma azul, uma preta e Os demais seis ministros do STF não se
uma vermelha. Cada uma tem um bolso certo encaixam em um grupo específico. O com-
para se alojar, metodicamente, todos os dias. portamento deles varia a depender do tipo
DANIEL MARENCO/AGÊNCIA O GLOBO

de processo. Ricardo Lewandowski e Gilmar tão formuladas, liga o gravador e pronuncia


Mendes são considerados garantistas quan- em voz alta toda a decisão. O ritual é feito,
do o processo é penal. Ambos defendem o na maioria das vezes, em seu escritório parti-
direito dos réus de responder a processos cular na casa onde vive, no Lago Sul, bairro
em liberdade, ou em prisão domiciliar, en- nobre de Brasília. Gosta de trabalhar de mo-
quanto não for julgado o último recurso ju- letom e, entre uma sentença e outra, alimen-
dicial. Já nos outros ramos do Direito se ta os pássaros que cria em liberdade no jar-
aproximam do grupo legalista. dim. O ministro também cultiva o peculiar
hobby de criar uma vaca. Com a decisão

M arco Aurélio Mello é um ponto fora da


curva. Em plenário, certa vez, um dos
colegas alertou sobre o fato de que, em um
pronta, envia o gravador ao STF e uma as-
sessora se encarrega da transcrição. Ele deci-
de dessa forma desde 1976, quando ainda era
processo semelhante, ele mesmo tinha vota- integrante do Ministério Público do Traba-
do de maneira oposta. Marco Aurélio res- lho. No STF, encontrou há 12 anos na asses-
pondeu: “Ora, não me exija coerência”. Na sora Cláudia Borges de Almeida a fidelidade
maior parte das vezes, tal como os ativistas, para a transcrição de suas falas. “A Cláudia é
o magistrado define qual seria a solução a pessoa que mais me ouve no mundo. Ela é
mais justa para o caso e, depois, verifica se muito fiel na transcrição”, disse. “Algumas
existe norma para respaldar a decisão. Deci- frases são típicas. Às vezes eu até já sei o que
de de acordo com sua “ciência e consciên- ele vai dizer”, contou Almeida, que passa o
cia”, como costuma explicar. Mas, se não há dia usando fone de ouvido em frente a um
na legislação algo que respalde suas convic- computador. Nas segundas-feiras, ela recebe
ções, recua e segue o texto da lei. O mesmo cerca de 20 decisões para transcrever, frutos
ministro também gosta de reproduzir o bor- do trabalho do ministro durante o fim de se-
dão “Processo não tem capa”. Significa que a mana. Nos outros dias, o fluxo é de duas a
decisão não pode oscilar ao sabor do nome cinco decisões. Marco Aurélio adotou o gra-
do réu. Marco Aurélio costuma pedir infor- vador porque, antes, datilografava em uma
mações sobre o assunto a ser julgado a um máquina de escrever barulhenta. Um médi-
assessor do gabinete. Quando suas ideias es- co recomendou que parasse porque estava
46 NA SALA DA JUSTIÇA

perdendo a audição. Outra vantagem do estamos aqui só para sermos aplaudidos”,


método é a agilidade. Como não precisa re- afirmou. Além da vaca no jardim e da deci-
digir, consegue produzir mais. são oral, Marco Aurélio tem outra peculiari-
Depois de tomar uma decisão polêmica dade: não há juízes auxiliares em seu gabi-
— e ele é mestre nisso —, Marco Aurélio diz nete. Por isso, tem um dos maiores estoques
que não se importa com ataques. Eles vie- de processos da Corte: 6.747 aguardando
ram em larga escala em 19 de dezembro, julgamento. O acervo total do tribunal é de
quando decidiu soltar todos os presos con- 40.620 ações. Edson Fachin, por ser relator
denados por tribunais de segunda instância da Lava Jato e ter um extenso estoque de
que ainda tivessem o direito de recorrer da processos penais no gabinete, tem quatro
sentença — canetada que poderia beneficiar juízes assessores. Celso de Mello, o mais an-
o ex-presidente Lula. Horas depois, o presi- tigo, não tinha nenhum. No ano passado,
dente da Corte, Dias Toffoli, derrubou a de- quando assumiu o papel de revisor da Lava
cisão. Entretanto, ele lembrou que, quando Jato, deu o braço a torcer e pediu a ajuda de
liberou o Ministério Público do Rio de Ja- dois juízes. Os demais ministros contam
neiro para retomar as investigações contra com a ajuda de três magistrados.
Flávio Bolsonaro, virou herói nas redes No STF, a partir do momento em que um
sociais. “Há crítica quando a decisão não ministro recebe um processo, ele começa a
atende ao anseio da população. Mas há elo- decidir. Uma das possibilidades é, inclusive,
gio quando atende. É a democracia. Nós não não decidir naquele momento porque exis-

Além de manter uma vaca no jardim de sua


casa e preferir a decisão oral à escrita,
Marco Aurélio Mello tem outra peculiaridade:
não há juízes auxiliares em seu gabinete
DANIEL MARENCO/AGÊNCIA O GLOBO
NA SALA DA JUSTIÇA 47

tem outras prioridades. Celso de Mello gosta fessores. Claro, não levo nenhum caso con-
de examinar os processos sozinho. Ele é um creto. É bom para eu sentir o termômetro
dos ministros que mais levam tempo para da comunidade jurídico-acadêmica.”
tomar decisões. Costumava virar madruga-
das no tribunal ao som de música clássica,
regadas a litros de café forte. Agora, por re-
comendação médica, tem deixado o tribunal
Q uando recebe um processo importante,
Gilmar Mendes age diferente: chama
toda a equipe para sua sala e faz um
um pouco mais cedo. “Alguns temas se repe- “brainstorming”, na definição de um asses-
tem, então já há uma jurisprudência consoli- sor. “Ele escuta dos estagiários ao juiz, ou-
dada, sedimentada. Mas há temas novos, en- ve todo mundo. Pode ser a maior bobagem
tão é preciso refletir sobre eles. É preciso dita, ele ouve.” Quando os processos são
analisar, ver se aquela posição é compatível de grande impacto, Mendes também pede
com a maneira que cada um tem de ver o à equipe pesquisas com decisões tomadas
mundo. Eu gosto de elaborar os textos”, con- em outros países. Ele ouve, ainda, especia-
tou no ano passado a ÉPOCA. listas sobre temas mais áridos, como os
Cármen Lúcia também gosta de elaborar processos tributários. Quando o processo é
sozinha suas decisões quando o caso é de constitucional, o ministro decide de forma
muita relevância. Em processos triviais, ela mais solitária. Autor de livros que são refe-
passa a recomendação para um assessor, que rência no ramo do Direito, ele é tido como
elabora um texto-base. Depois, ela revisa. “A um dos maiores juristas do país. Dias Tof-
decisão final é sempre dela”, contou um dos foli, atual presidente do Tribunal, também
funcionários do gabinete. Fachin tem muitos gosta de conversar com os assessores, mas
processos no gabinete em decorrência da La- não com todos juntos. Normalmente, cada
va Jato. Professor de Direito Civil, ele foi sor- um fica responsável por um tipo de pro-
teado relator dos processos sobre desvios da cesso, sob a orientação do ministro. Quan-
Petrobras em fevereiro de 2017, no mês se- do um processo é trivial, seus assessores redi-
guinte à morte de Teori Zavascki. Como não gem o voto, e cabe a Dias Toffoli apenas revi-
era especialista em Direito Penal, foi um sar o texto. Quando o assunto é muito im-
grande desafio. Por isso, ele solicitou a ajuda pactante, escreve tudo sozinho. “Quem deci-
de juízes que já haviam auxiliado Zavascki. O de é ele, mas ele sempre pergunta: ‘O que você
processo decisório de Fachin é típico de um acha? Assim está legal? Tem alguma outra su-
acadêmico. Primeiro, ele determina como se- gestão?’. Ele tem esse debate com os assesso-
rá a decisão. Costuma escolher uma solução res”, contou um integrante da equipe. Quan-
que já defendeu em causas anteriores. De- do Toffoli não é o relator do processo, leva
pois, pede à equipe uma pesquisa com de- para o plenário anotações para votar na hora,
cisões no sentido contrário, para se certificar de improviso. Quando um processo de sua
de que sua opção é mesmo juridicamente viá- relatoria é levado ao plenário, o ministro tem
vel e que está apto para rebater o argumento por hábito antecipar o voto para os colegas,
de colegas que votem no sentido oposto. para facilitar na hora do julgamento.
Magistrado desde 1990, Lewandowski Antecipar o voto é um símbolo de defe-
revelou que usa a intuição. “Um juiz expe- rência ao colegiado que perdeu força nos
riente é como um médico experiente. O últimos tempos, à medida que o individua-
profissional antigo tem suas impressões e lismo da Corte passou a prevalecer. Enten-
experiências gravadas no subconsciente”, der como os ministros decidem ajuda a
disse. A depender do assunto, o ministro já compreender que o Judiciário, mais do que
tem suas convicções, vindas de decisões an- um Poder, é um organismo pulsante, resul-
teriores. Em caso de dúvida, consulta asses- tado não de uma ação coordenada, mas de
sores e pede pesquisas sobre decisões pas- métodos, convicções e rituais solitários de
sadas. Ele também conta com uma ajuda cada magistrado. Há espaço também para o
Assim que toma
uma posição sobre privilegiada: como dá aula de Direito na voluntarismo, nem sempre salutar ao
o caso a ser julgado, Universidade de São Paulo (USP) toda se- ambiente democrático. Em outra perspectiva,
o ministro Luiz Fux gunda-feira, eventualmente ouve os colegas ao se conhecerem os meandros do processo
(à esq., de pé) se reúne
com assessores sobre um assunto mais espinhoso. “Discuto decisório, fica claro que o STF, sob constante
para discutir seu voto com eles questões em tese na sala dos pro- ataque, não é terra sem lei.
48 VIDAS INTERROMPIDAS

COMO
OS
JOVENS
MORREM
VIDAS INTERROMPIDAS 49

No mesmo dia, as mortes


brutais de adolescentes cariocas
em ação policial na favela e em
alojamento do Flamengo
por Rafael Soares e Bernardo Mello

S
empre que Enzo de Souza Carvalho, de 18 anos, subia a
ladeira rumo ao Morro do Fallet, no Rio Comprido, re-
gião central do Rio de Janeiro, sua mãe ficava desespe-
rada. A mulher, uma funcionária de uma empresa de
planos de saúde de 42 anos, ia atrás do adolescente e o
tirava de lá aos gritos e tapas. Não queria o filho an-
dando com “más companhias”. No último dia 8, entretanto, Enzo
estava na favela. Foi morto dentro de uma casa na entrada da comu-
nidade, junto a outros oito jovens, por policiais do Batalhão de
Choque. A operação, que terminou com 15 mortos em duas favelas
da região, foi considerada um sucesso pela PM do Rio.
O jovem e a mãe moravam juntos num apartamento no bairro do
Rio Comprido, colado ao Fallet. Enzo teve uma infância da classe mé-
dia baixa carioca: tinha um quarto só para ele, fazia aulas de teatro e
frequentava a piscina de clubes no bairro vizinho da Tijuca, comemo-
rava seus aniversários com festas temáticas, tinha uma cadelinha de
estimação. Em fotos publicadas nas redes sociais por seus parentes, é
possível ver o menino, ainda criança, brincando num pula-pula no pá-
tio de uma universidade carioca, onde sua avó trabalha até hoje.
Parentes afirmam que o menino passou a frequentar o Fallet
mais assiduamente após a morte do pai, por afogamento, há dois
anos. Uma parte de sua família paterna vivia no morro, e Enzo tinha
muitos amigos na favela, pois sempre estudou em escolas públicas
Enzo (no alto) e Christian no entorno da comunidade. Na época, o adolescente também come-
(acima). Mortes trágicas, çou a namorar uma moradora do morro, onde era conhecido como
o primeiro na favela, o
segundo no Centro de “olho de piscina”, por causa da íris verde, herança de uma bisavó.
Treinamento do Flamengo Perto de completar 18 anos, Enzo começou a deixar de lado os es-
tudos. Até o nono ano do ensino fundamental, teve uma trajetória
exemplar na escola. A partir daí, tornou-se relapso e passou a repetir
de ano com frequência. Angustiada, sua mãe o matriculou em aulas
noturnas na rede pública para que recuperasse o tempo perdido. De
dia, o jovem trabalhava como jovem aprendiz na universidade onde
sua avó trabalha. Precisava de dinheiro para comprar roupas e tênis.
Quando completou 18 anos, em maio do ano passado, Enzo deci-
diu: iria morar no Fallet, perto dos amigos e da namorada. Abando-
nou os estudos e o trabalho. Nos últimos dez meses, o jovem peram-
bulou por casas de parentes e amigos na favela, sem endereço certo.
FOTOS: ENZO DE SOUZA CARVALHO/ARQUIVO PESSOAL | CHRISTIAN ESMÉRIO CÂNDIDO: REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
50

THAIGO FREITAS/AGÊNCIA O GLOBO

Enterro dos jovens A ÉPOCA, a mãe contou que tentou, de to- vizinho Morro da Coroa e expulsaram trafi-
mortos durante operação das as maneiras, impedir que o filho saísse de cantes de uma quadrilha rival.
policial nos morros do
Fallet, do Fogueteiro e casa. “Ele se encantou com aquele mundo do O Batalhão de Choque ficou responsável
dos Prazeres, no morro. Sempre tentei mostrar que o mundo por conter a disputa no Fallet. A versão da
cemitério São João era muito maior do que aquilo lá. Sempre PM descreve um confronto com respostas
Batista, em Botafogo.
A dor silenciosa não foi que podia, eu tentava tirá-lo de lá. Chama- proporcionais da tropa. Os policiais afir-
transmitida pela televisão va-o para sair, para ir ao cinema, para viajar. mam ter recebido uma denúncia anônima
Mas ele vivia naquela fantasia. Antes de fa- de que havia traficantes escondidos dentro
zer 18 anos, eu brigava, trancava ele em casa. de uma casa na Rua Eliseu Visconti, princi-
Mas, depois, não pude fazer mais nada”, con- pal via de acesso à favela do Rio Comprido.
tou ela, que pediu para não ser identificada A casa foi cercada e iniciou-se o confronto.
por medo de represálias. Ao todo, nove homens — todos jovens de
Duas semanas antes de Enzo ser morto, 15 a 22 anos — foram feridos e, em seguida,
ela tentou convencê-lo a ir com a família e a socorridos pelos próprios PMs e levados ao
namorada para a praia em Itaipuaçu, em Hospital Souza Aguiar. No local, foram
Maricá, na Região Metropolitana do Rio, on- apreendidos dois fuzis, dez pistolas, quatro
de eles costumavam passar férias na infância granadas. Outras 11 pessoas foram presas, in-
do menino. Uma chuva torrencial impediu a cluindo Gilmar Douglas Quintanilha Braz,
viagem. A mãe não viu mais o filho. conhecido como “Gilmarzinho”, de 32 anos,
apontado pela polícia como um dos chefes

E ram cerca de 8 horas da manhã de sexta-


feira quando homens das unidades espe-
ciais da PM — batalhões de Choque e de
do tráfico do local. Em outros pontos das
duas comunidades, mais dois fuzis e quatro
pistolas foram apreendidos e três homens fe-
Operações Especiais (Bope) — entraram ridos pelos agentes e levados ao hospital em
nos morros do Fallet e dos Prazeres, em caçambas de viaturas. No dia seguinte, mais
Santa Teresa. A operação tinha como obje- dois corpos foram encontrados por morado-
tivo acabar com uma guerra entre facções res numa mata atrás do Morro dos Prazeres.
do tráfico que perdura há mais de oito Mobilizados para atenderem feridos em
anos. O último capítulo da disputa aconte- confronto, médicos da unidade de saúde
ceu na primeira semana de fevereiro, quan- receberam todos os homens já mortos. Fo-
do criminosos das duas favelas invadiram o tos dos corpos feitas por funcionários do
VIDAS INTERROMPIDAS 51

hospital mostram que quatro das vítimas do, na hora errada”, disse a mãe de Enzo,
foram atingidas por tiros nas pernas. Um que saiu do encontrou aos prantos.
dos mortos foi baleado no rosto. Outro As famílias dos 15 jovens mortos duran-
chegou sem roupas ao hospital. Nenhum te a operação não negam o envolvimento
PM que participou da ação foi ferido. deles com o tráfico de drogas da favela,
Na residência que foi alvo da operação, mas dizem que os jovens se renderam e ne-
mora uma família pobre com uma idosa e gam que eles tenham trocado tiros com a
uma criança, que estavam em casa no momen- polícia. “A polícia tem de prender, e não
to da operação e foram expulsos do local para exterminar jovens rendidos”, afirmou uma
que os agentes entrassem. A casa parece um parente de um dos jovens.
cenário de filme de guerra: tem mais de 40 Testemunhas afirmaram que uma dupla
marcas de disparos, espalhadas por todos os de irmãos mortos juntos, dentro de casa, em
cômodos. Paredes e portas foram perfuradas, outro ponto da favela, foi torturada por 40
vidros foram quebrados. A família que vive ali minutos pelos PMs antes de ser assassinada.
quer agora ser indenizada pelo Estado. Maikon e David Vicente da Silva, de 17 e 22
Em seu perfil oficial numa rede social, a anos, dormiam em casa quando a mãe saiu
PM comemorou o resultado da operação: “Não para ir ao supermercado. Quando voltou, os
iremos parar. Conte com a Polícia Militar!”. dois já haviam sido levados ao hospital pe-
los policiais. “Não dá nem para falar que

Q uatro dias depois da operação, a Defen-


soria Pública foi à favela ouvir parentes
das vítimas e dos moradores. Mais de 50 pes-
houve tiroteio. Eles ficaram 40 minutos lá
dentro. Os meninos apanharam muito, deu
para ouvir eles gritando e chorando. Depois,
soas se apertaram na associação de moradores mataram e levaram os corpos”, disse uma
do Fallet, uma casa de apenas dois cômodos vizinha, que testemunhou a ação.
no alto da favela. Para todos os presentes, era Ao todo, cinco inquéritos foram abertos
consenso: houve um massacre dentro da casa. na Divisão de Homicídios para investigar
“O que aconteceu ali foi uma barbarida- as mortes nos morros dos Prazeres e Fallet.
de. Eram todos garotos, adolescentes. O A perícia feita nos cadáveres determinará
Enzo sempre foi um ótimo garoto, pode se os tiros foram disparados a curta distân-
perguntar para todos que o conheceram. cia. A Defensoria Pública prepara relatório
Ele se encantou por esse mundo, achava com as denúncias dos moradores ao Minis-
que tirava onda. Conhecia gente ruim, an- tério Público. Os PMs que participaram da
dava com gente ruim. Estava no lugar erra- ação seguem trabalhando normalmente.

PILAR OLIVARES/REUTERS
Interior da casa em que
polícia disse ter entrado
em confronto com jovens
ligados ao tráfico. Mais
de 40 buracos de balas
só nas paredes
Parentes e amigos de
Christian Esmerio durante
o enterro do jogador
do Flamengo e da seleção;
homenagem em campo
e nome lembrado na camisa
do clube que amava
FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS
54 VIDAS INTERROMPIDAS

H
á o costume, nas divisões de Torres, entre 2010 e 2012, para dar lugar ao
base dos clubes de futebol, de Parque Madureira, projeto da prefeitura do
se referir ao ano de nasci- Rio na esteira dos Jogos Olímpicos de 2016.
mento — e não à idade atual O endereço de Christian mudou para as
dos atletas — para facilitar imediações do Morro da Congonha e do
sua identificação no espaço- Morro do Cajueiro, controlados por facções
tempo do esporte. A origem pressupõe uma criminosas. Nesse meio-tempo, o futebol
medida mais fiel do ponto da vida em que se deixou de ser brincadeira e virou meio de
encontram. Christian Esmério Cândido, go- vida. Christian começou no Madureira e,
leiro do Flamengo, da Seleção Brasileira e aos 8 anos, chegou a ser levado para fazer
uma das dez vítimas do incêndio no Ninho testes no Vasco. Não ficou porque faltava
do Urubu no dia 8 de fevereiro, completaria ajuda de custo em São Januário. Completar
16 anos no mês que vem. Para efeitos práti- a renda da família já era artigo de primeira
cos, no entanto, era da “geração 2003”. importância naqueles tempos.
Christian cresceu em meio a projetos es- No Madureira, onde ficou até os 13 anos,
portivos ambiciosos e remoções de moradia, o jovem goleiro chamava a atenção pelas de-
ambos alimentados pela realização da Olim- fesas e também por passagens cômicas, típi-
píada no Rio de Janeiro. Passou, no caminho cas de um adolescente inquieto. Certa vez
entre sua casa e os treinos, por flutuações nas brigou com um colega no treino e ouviu do
taxas de criminalidade e reorganizações de treinador: “Você está fora, Christian!”. Pe-
transporte. Mudou hábitos e passatempos: o gou suas coisas, foi para casa e lá ficou por
menino que brincava de goleiro na rua, com vários dias. O treinador estranhou a ausên-
meias improvisadas como luvas, redirecionou cia e foi atrás do menino. Quis saber por
sua vida e as amizades para o alojamento do que ele vinha faltando os treinos, já que ti-
Centro de Treinamento George Helal, em nha sido apenas expulso de uma atividade,
Vargem Grande, Zona Oeste do Rio, onde sua sem ter qualquer suspensão. Christian se
Artista plástico e amigos
de Arthur Vinicius, trajetória foi interrompida abruptamente. surpreendeu: “Eu achei que o senhor tinha
jogador do Flamengo Com seus pais, Cristiano e Andreia Cân- dito que eu estava fora do Madureira”.
morto na sexta-feira, dido, e o irmão mais velho, Cristiano Junior, Na época, parentes e funcionários do clu-
grafitaram homenagem
em muro vizinho ao colégio Christian formava uma das cerca de 1.000 be ficavam preocupados com o trajeto de 1,5
em que ele estudou famílias removidas da comunidade Vila das quilômetro feito por Christian de casa até a

AGÊNCIA O GLOBO
VIDAS INTERROMPIDAS 55

Rua Conselheiro Galvão, onde fica o está- “Ele estudava em um colégio lá dentro mes-
dio do Madureira. Os embates entre trafi- mo, tinha internet, videogame, TV, comida,
cantes dos vizinhos Morro da Serrinha e tudo. Aí a carreira decolou.”
Morro do Cajueiro, de facções rivais, causa-
vam constantes tiroteios e operações policiais
na região. Quando finalmente ganhou sua
chance no Flamengo, em 2015, a preocupa-
G oleiros costumam dizer, em tom resig-
nado, que sua posição é ingrata. O pro-
tagonismo só vem junto com sofrimento,
ção aumentou: embora a estação do BRT quando atacantes rivais bombardeiam o gol e
Transcarioca, inaugurada meses antes, facili- o camisa 1 é a última resistência à explosão de
tasse o deslocamento, Christian tinha de alegria do adversário. Mesmo assim, Christian
acordar às 4 horas da manhã, caminhar por raramente era visto sem um sorriso no ros-
ruas desertas e depois ainda pegar outro ôni- to. Em 2018, acumulou convocações para as
bus até o Ninho do Urubu. A vida pareceu seleções sub-15 e sub-17. Também brilhou
ficar mais fácil quando o Flamengo acolheu pelo Flamengo, defendendo um pênalti na
o menino no alojamento da base. Até uma final do Carioca Sub-15 e garantindo o título
As relíquias certa rebeldia com os estudos foi sanada. rubro-negro diante do Fluminense.
guardadas pela “Quando ele se mudou para o Ninho do As comemorações pelas taças e conquistas
família de Arthur
Vinicius: medalhas, Urubu, foi como passar da água para o vi- pessoais eram efusivas, mas o jovem goleiro
prêmios e bola nho”, contou Alan Silva, tio de Christian. também fazia questão de mostrar à família que
a felicidade era diária. Quase diariamente,
AGÊNCIA O GLOBO
Christian compartilhava pelo WhatsApp
vídeos de brincadeiras com colegas no aloja-
mento. Algumas vezes, pregavam peças uns nos
outros — uma recorrente era remover o estra-
do da cama de um colega antes que se deitasse.
Em outras, mandavam recados para familiares
e namoradas. A rotina de treinos e isolamento
do futebol não endurecia os jovens atletas.
“Eram crianças, estavam brincando de tra-
balhar”, disse Thiego Santos, amigo da família
e um dos muitos ombros amigos na carreira
de Christian. “E tudo era para dar o melhor a
seus familiares. O Christian só falava em cres-
cer na vida no sentido de ajudar os pais.”
Christian, da “geração 2003”, passou a
noite de quinta para sexta-feira no CT do
Flamengo por causa da amizade com Arthur
Vinicius, zagueiro da “geração 2004”. Arthur,
zagueiro, vinha seguindo os passos de
Christian e já tinha conseguido convocações
para a seleção sub-15. Ele faria aniversário
no sábado. Como passava a semana longe da
família, natural de Volta Redonda, alguns jo-
vens da base rubro-negra se mobilizaram
para fazer uma festa surpresa na manhã da
sexta-feira. No dia seguinte, Thiego e o em-
O FOGO NO CENTRO DE TREINAMENTO presário Renan Costa buscariam Christian
DO FLAMENGO COMEÇOU APÓS para revelar sondagens de clubes europeus.
UM CURTO-CIRCUITO NO SISTEMA O primeiro contrato profissional, com o
DE AR-CONDICIONADO NOS Flamengo, seria assinado no dia 5 de março,
CONTÊINERES QUE ABRIGAVAM aniversário do goleiro. Neste caso, a idade
JOGADORES. O MATERIAL INFLAMÁVEL era mais importante do que ser da “geração
DE REVESTIMENTO ACELEROU 2003”: Christian precisava completar 16
A PROPAGAÇÃO DAS CHAMAS anos para assinar o vínculo.
56 CONCORDAMOS EM DISCORDAR

Auditores fiscais, eles divergem sobre


normas mais rígidas para análise de
dados de agentes públicos. Para um, as
regras valem para todos. Para o outro,
não pode haver coação à investigação
por Marcello Corrêa

MARTINS×SILVA

MONTAGEM SOBRE FOTOS: AILTON DE FREITAS/AGÊNCIA O GLOBO | WALDEMIR BARRETO/AGÊNCIA SENADO

IÁGARO MARTINS, 49 anos MAURO SILVA, 51 anos


O que faz e o que fez: subsecretário de fiscalização O que faz e o que fez: diretor de estudos técnicos
da Receita. Bacharel em Direito pela PUC-RS da Unafisco Nacional, associação que representa
e em ciências contábeis pela UFRGS, os auditores fiscais. Bacharel em Direito e doutor
com pós-graduação em Direito Tributário, em Direito pela USP, é auditor da Receita há 24 anos
é auditor fiscal há 25 anos
CONCORDAMOS EM DISCORDAR 57

O vazamento de uma investigação da Receita Federal sobre o


ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF),
causou discussões dentro e fora do Fisco. Para o ministro, houve
abuso de autoridade. A própria Receita emitiu nota criticando a di-
vulgação e o conteúdo do documento preliminar. Servidores diver-
gem sobre até que ponto as regras mais rígidas para análise de
dados das chamadas Pessoas Politicamente Expostas (PPE) inter-
fere na capacidade de fiscalização de políticos e autoridades.

Deve haver controle sobre quem acessa os dados de Pessoas


Politicamente Expostas (PPEs) no Fisco?
IÁGARO MARTINS Sim, deve haver. A Receita Federal há muitos
anos faz esse tipo de análise. É um trabalho normal da Receita.
MAURO SILVA Já existe um controle. Tudo, absolutamente tudo, é
registrado, com hora, minuto, com página que acessou, se impri-
miu aquela página. O controle que existe é o registro do que a
gente faz, para que, se houver um evento, seja investigado. O que
eu sou contra é a outra parte em relação somente às PPEs. O sis-
tema em que, se eu acessar o CPF de uma PPE, vai um e-mail pa-
ra meu chefe e ele vem me perguntar por que estou acessando.
Isso cerceia o trabalho.

Esse controle ajuda no combate a irregularidades cometidas


por agentes públicos?
IM Do ponto de vista da fiscalização, a gente tem estratégias para
diferentes tipos de contribuintes. A gente tem pessoas físicas que são
pequenos contribuintes, que restringe à malha fina. Para as pessoas
de maior capacidade contributiva e que também sejam politicamen-
te expostas, a gente estabelece critérios para verificar se a variação
patrimonial tem substrato em rendimento oferecido à tributação.
MS Não posso criar uma camada extra de sigilo fiscal para PPE,
porque isso é o oposto do que a comunidade internacional prega.
A gente vem criticando isso há muito tempo e uma resposta foi a
criação desse grupo especial (auditores que investigam PPEs). O
que acho que cerceia é não poder acessar uma PPE não sendo
desse grupo especial.
58 CONCORDAMOS EM DISCORDAR

Esse controle não tende a coibir a investigação de agentes


públicos?
IM Não é uma questão de coibir ou não, é uma questão de compe-
tência. A competência da Receita é de fiscalização. A Receita tem um
controle de acesso de todas as pessoas que acessam seus dados. Em
relação às PPEs, temos camadas de segurança para saber, por exem-
plo, se um servidor de um município que não é de jurisdição daquele
contribuinte imprimiu uma declaração daquele contribuinte. Vem
um alerta para o superior sobre isso. É um procedimento natural que
verifica se há motivação funcional para acesso àquela informação.
MS Pode gerar um constrangimento, que gera um desestímulo, ter
de ficar explicando por que está acessando. A Receita diz que audi-
tor não deve se deixar coibir por isso, mas sempre ocorre.

AILTON DE FREITAS/AGÊNCIA O GLOBO


CONCORDAMOS EM DISCORDAR 59

A Receita deve estar atenta a outros crimes, como lavagem


de dinheiro, além do escopo de fraudes fiscais?
IM O que motiva a ação do auditor fiscal da Receita é o indício de
infração tributária. Ponto. Inevitavelmente, durante o procedimento
de identificação de indícios de infração tributária, podem surgir ele-
mentos que possam caracterizar qualquer outro tipo de crime de ação
penal, como improbidade administrativa, lavagem de dinheiro, cor-
rupção. O auditor fiscal, durante o procedimento de fiscalização para
recuperar um crédito tributário sonegado, pode se deparar com essas
condutas. Nessas hipóteses, ele elabora uma representação penal, que
é direcionada ao MP, que então vai avaliar aquela representação.
MS Questões fiscais são antecedentes de alguns crimes, como de la-
vagem de dinheiro. A redação daquele relatório (sobre o ministro Gil-
mar Mendes) não foi muito feliz. A investigação de corrupção e lava-
gem de dinheiro já vem desde a Lava Jato. Isso é institucional dentro
da Receita. Há treinamento para isso. A questão, que seria natural
das PPEs, é que elas estão incomodadas por ter de prestar conta ao
Fisco. Agora, o vazamento, além de ilegal, foi muito ruim.

O ministro Gilmar Mendes disse que processaria os audito-


res fiscais que o investigaram. Ele tem razão? Por quê?
IM Se o ministro olhar os documentos que infelizmente foram va-
zados, vai verificar que não há afirmação peremptória de que ele ou
a esposa praticaram crimes. O que se está analisando é se ocorre-
ram ou não infrações fiscais correlacionadas àquelas atividades.
Evidentemente, ele pode processar quem ele quiser, como qualquer
pessoa. Mas o entendimento da Receita é que ela tem competência
para verificar a existência de crimes fiscais e, se identificar corre-
ção com outros crimes, vai representar no Ministério Público. Isso
é feito para qualquer contribuinte, para os que têm foro por prer-
rogativa de função ou para os que não têm. A Receita trabalha de
forma impessoal, técnica e objetiva. Qualquer vazamento causa
um constrangimento bastante significativo para a Receita. No caso
concreto gerou também, porque foi um vazamento de um docu-
mento de análise interna, em caráter absolutamente preliminar, e
em que não havia nenhum tipo de conclusão, que deu a falsa im-
pressão de que havia algum tipo de direcionamento da atividade
de fiscalização, o que não é verdade.
MS É preciso separar três coisas: o sigilo, a existência da investiga-
ção e o teor daquele documento. Ele tem toda razão em acionar o
Judiciário quanto à quebra do sigilo, mas a existência da investiga-
ção é absolutamente normal. A Receita contribuir para o combate à
O ministro Gilmar corrupção é institucional e um desejo da sociedade. Quanto ao con-
Mendes, do STF, teúdo do documento, que avança (sobre outras questões, como suge-
classificou como rindo tráfico de influência), tem de ver o contexto. Se não estiver
“abuso de poder”
a investigação feita embasado em provas, é um pouco estranho. Teria sido melhor se
por auditores fiscais isso não constasse do relatório.
A MORTE
É VERMELHA
PENÚRIA COMUNISTA 61

L’HUMANITÉ, O HISTÓRICO
JORNAL DA ESQUERDA FRANCESA,
SE AFUNDA EM DÍVIDAS
E PEDE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
por Fernando Eichenberg, de Paris

R osa Moussaoui entrou para o jornal


L’Humanité em 2004, ano do centenário
da histórica publicação francesa. “Estou
Fundado em 1904 pelo político Jean Jaurès
(1859-1914) como uma tribuna para as corren-
tes dos movimentos socialista e operário, o jor-
aqui há 15 anos por convicção. É um jornal nal acumulou em sua longa trajetória períodos
enraizado nas lutas sociais, na solidariedade de “luzes e sombras”, como costumam definir
internacional, e é um reflexo de combates os historiadores. O assassinato de Jaurès, infa-
ecologistas e feministas. Essa identidade po- tigável pacifista, em 31 de julho de 1914 — três
lítica é extremamente importante para mim. dias antes de a França entrar na Primeira
Esse jornal sempre sobreviveu pela vontade Guerra Mundial —, enquanto jantava no Café
daqueles que o fazem e o leem”, disse, as- du Croissant, próximo da então sede do L’Hu-
sentada na redação situada no número 5 da manité, na Rua Montmartre, abalou a publica-
Rua Pleyel, em um moderno complexo de ção. “Jaurès é uma personalidade extremamen-
escritórios em Saint-Denis, subúrbio ao nor- te importante na França, e sua morte provo-
te de Paris. O tom militante emerge da crise cou uma guinada. Mas o jornal que deixou co-
vivida nas últimas semanas pelo jornal. A mo herança acompanhou todos os grandes
secular aventura do L’Humanité, afundado momentos da vida deste país: o combate pela
em dívidas, esteve ameaçada de chegar ao paz na Primeira Guerra Mundial, as greves de
fim. No último dia 7, no entanto, o Tribunal 1936, a Resistência durante a Segunda Guerra
de Bobigny concedeu uma sobrevida à pu- Mundial (foi publicado clandestinamente por
blicação e aceitou o pedido de recuperação quatro anos), a Liberação e todas as lutas anti-
judicial, com permissão de continuar em ati- coloniais até hoje. Em 2005, fomos o único
vidade por um período de observação de jornal diário a dizer não à Constituição euro-
seis meses. Uma nova audiência está marca- peia”, orgulhou-se Moussaoui.
da para o dia 27 de março. A partir de 1920, o jornal se tornou órgão
Não é a primeira vez que as rotativas do oficial da Seção Francesa da Internacional
emblemático diário francês correm o risco de Comunista (SFIC), que viria a ser o Partido
parar em definitivo. Não muito longe dali, um Comunista Francês (PCF), com direito a foi-
prédio de amplas curvas e paredes envidraça- ce e martelo sob o título na primeira página.
das, inaugurado em 1989 e classificado como Passadas sete décadas, em 1994 a menção na
monumento histórico nacional, é testemunha capa “Órgão central do PCF” foi substituída
das consecutivas dificuldades do L’Humanité, por “Jornal do PCF” e desapareceu em 18 de
também chamado pelos franceses de L’Huma março de 1999, como parte de uma reforma
(pronuncia-se “lumá”). A obra, nas proximi- editorial em meio a mais uma crise financei-
dades da célebre Basílica de Saint-Denis, foi ra. “Temos ainda uma grande proximidade
projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer com membros do PCF, somos ligados a esse
(1907-2012) para abrigar a sede do jornal. Mas, mundo comunista, mas também ao restante
em 2008, sem ter como pagar as contas, a re- do movimento progressista e social. Hoje, é
dação se viu obrigada a trocar de endereço e, um jornal arco-íris que permite que pessoas
dois anos depois, vender ao Estado francês a de diferentes convicções se identifiquem
Vendedores do jornal prestigiosa criação do arquiteto brasileiro, co- com ele. Em nossas páginas cotidianas de
L’Humanité na cidade
de Le Havre, na França, munista convicto, por € 12 milhões. “L’Huma- debates, vozes se confrontam com opiniões
em 1955, quando nité sempre foi um jornal frágil, desde sua diversas”, defendeu Moussaoui.
a publicação se fundação, porque não possui acionistas e não A cega defesa dos desmandos da União
colocava como órgão
oficial do Partido é associado a capitais. Essa fragilidade faz par- Soviética e do stalinismo, no entanto, é uma
Comunista Francês te de nosso DNA”, admitiu Moussaoui. mancha que cola ainda hoje na imagem do
FOTO: GAMMA-KEYSTONE VIA GETTY IMAGES
62 PENÚRIA COMUNISTA

L’Huma. No dia da morte do ditador soviéti- (1954-1962) e contra a Guerra do Vietnã


co Josef Stálin, em 5 de março de 1953, o jor- (1959-1975); a luta pelos direitos políticos das
nal titulou em edição especial: “Luto por to- mulheres na França ou a solidariedade a An-
dos os povos que exprimem, em recolhimen- gela Davis no combate pelos direitos civis
to, seu imenso amor pelo grande Stálin”. nos Estados Unidos — a ativista americana
Três anos depois, quando os tanques soviéti- foi, em 2013, convidada a ser editora-chefe
cos invadiram a Hungria para esmagar a Re- do jornal por um dia. “L’Huma constrói pas-
volução Húngara de 1956, o L’Humanité cele- sarelas para mostrar que não se está só. É um
brou: “Budapeste volta a sorrir em meio a jornal que vive, respira, por vezes tosse um
suas feridas”. Marie-José Sirach, há 25 anos pouco, hoje atravessa uma grande crise, mas
no jornal, acredita que não se pode varrer o temos recebido mensagens de apoio e de ca-
passado: “Isso faz parte de nossa história, e é rinho, e se ele desaparecer será um mau sinal
preciso encará-la. O L’Huma foi o órgão cen- para a democracia na França”, alertou.
tral do PCF, justificava tudo que ele fazia —
é nossa parte sombria. Por outro lado, ser
jornalista naquele tempo comunista devia
ser complicado, pois muitas pessoas na reda-
P ara poder prosseguir em sua resistência,
o L’Humanité lançou uma vasta campa-
nha de doações e de assinaturas. Até a sema-
ção eram críticas. Louis Aragon (poeta e es- na passada, a arrecadação havia alcançado
critor francês), por exemplo, defendia nas pá- pouco mais de € 1 milhão. Personalidades de
ginas do L’Huma toda uma geração de diferentes áreas e políticos de todas as ten-
poetas russos que morreu no gulag ou foi dências, inclusive da direita, têm se mani-
proibida de publicar. O jornal era sensível a festado em apoio ao jornal. O deputado Au-
essas pessoas com um ideal comunista que rélien Pradié, do partido conservador Os
não correspondia ao stalinismo”, relativizou. Republicanos, tuitou: “O L’Humanité não
Sirach prefere destacar a mobilização do costuma defender minhas ideias. Mas tenho
jornal em torno das frentes antifascistas des- um profundo respeito por seus valores e pe-
Rosa Moussaoui e de os anos 30; seu papel na revelação de la exigência de seus jornalistas. O debate pú-
Marie-José Sirach, massacres cometidos pelas forças do general blico precisa do L’Huma. Acabo de fazer
jornalistas do L’Humanité, Franco na Guerra Civil Espanhola (1936- uma assinatura. Não hesitem...”.
dizem que a França
precisa da voz dissidente 1939); o engajamento anticolonial nas guer- No próximo dia 22, uma jornada de soli-
da tradicional publicação ras da Indochina (1946-1954) e da Argélia dariedade ocorrerá no espaço La Bellevilloise,
em Paris. Para engordar seus cofres, o jornal
FERNANDO EICHENBERG
conta ainda com sua tradicional Fête de
L’Huma, evento anual realizado em La Cour-
neuve, em setembro, que no ano passado re-
cebeu 800 mil visitantes em três dias. A festa
foi criada em 1930 e oferece debates, exposi-
ções e shows. Já passaram por seus palcos no-
mes como Jacques Brel, Georges Brassens, Ju-
liette Gréco, Pink Floyd, Joan Baez, Leonard
Cohen, Patti Smith e New Order.
O clima entre os 175 assalariados — 124 jor-
nalistas — ainda é de preocupação em relação
ao futuro do jornal, mas também “extrema-
mente combativo”, assegurou Moussaoui:
“Pensamos em nossos predecessores. Anatole
France (escritor francês) escreveu, certa vez,
que não havia dinheiro nem para comprar ve-
las. Vamos fazer com que este jornal sobrevi-
va. Existe uma ideia de que a França sem o
L’Humanité não seria a França. As pessoas
precisam do L’Huma por sua voz singular e
dissidente. É uma parte de nosso patrimônio
nacional que não se quer ver destruída”.
M.B.
63

mbolle@edglobo.com.br

MONICA DE BOLLE É DIRETORA DE ESTUDOS


LATINO-AMERICANOS E MERCADOS EMERGENTES DA JOHNS
MIOLO MOLE
HOPKINS UNIVERSITY E PESQUISADORA SÊNIOR DO PETERSON
INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS

JMeioquanto
air Bolsonaro tuíta bobagens do leito hospitalar en-
o país sofre com suas tragédias. O ministro do
Ambiente descarta Chico Mendes e o chama de gri-
O problema é que com essa fala
pé no chão Guedes parece um turista
leiro. A turma mais assanhada do governo ataca a Igreja acidental no governo Bolsonaro.
Católica, porque, afinal, no mundo da direita religiosa ul-
traconservadora, o catolicismo agora é “de esquerda”. Pa- Transcorrido mês e meio após a posse, o governo Bolsona-
pa Francisco fica chateado, mas, como na definição de ro nada mostrou até agora além de tuítes, muitos ministros
Paulo Guedes esquerdistas “têm bom coração”, tudo é despreparados, filhos que se julgam presidentes da Repú-
perdoável. Armar a população é a solução para todos os blica paralelos pelo sangue e pelo DNA, ideólogos alucina-
problemas de violência e fim de papo. Miolo mole tem dos que vociferam contra os demônios que habitam suas
quem não acredita em nada disso. O corolário é que miolo cabeças. Em meio a essa balbúrdia, nada sabemos de con-
mole é o que têm os generais... creto ainda sobre a reforma da Previdência. Primeiro nos
Troças à parte com um governo que pede para que disseram que a reforma seria desvelada após a posse. De-
sejam feitas dia sim, outro também — olha a semelhança pois avisaram que o anúncio seria feito em Davos. De-
com o dilmismo aí, gente —, li a entrevista de Paulo Gue- pois... bem, depois não disseram mais nada. Evidentemen-
des para o Financial Times. O ministro, claramente, gosta te, Paulo Guedes está trabalhando na reforma, quiçá já te-
de um bom sound bite: “O Brasil precisa de uma peres- nha até todos os detalhes alinhavados. Contudo, qualquer
troika”; “Pessoas de esquerda têm miolo mole e bom co- reforma, sobretudo uma com a envergadura da reforma da
ração. As pessoas de direita têm a cabeça mais dura e... o Previdência, precisa de um fiador político. Quem é o fia-
coração não tão bom”; criar-se-á no Brasil uma “socieda- dor político da reforma? Bolsonaro hospitalizado que in-
de popperiana aberta”; “Éramos uma democracia de sistiu em trabalhar e despachar nestas últimas semanas até
uma perna só”; “Passei toda a vida gerando alfa e vendo agora não disse palavra sobre a reforma da Previdência.
governos sucessivos destruírem beta. Agora quero me- Inquieto, o vice Mourão defendeu as reformas econômicas
lhorar o beta brasileiro”. Confesso que, após ler esses tre- acima de tudo, para o enorme desagrado dos religiosos
chos, sobretudo a fala de operador de mesa, bateu sauda- governistas e dos filhos atiçados.
de visceral da mesóclise. Vai dar em que este governo Bolsonaro? Difícil saber,
Dito isso, a entrevista não foi ruim. Guedes destacou mas por enquanto arrisco um palpite: é possível que a eco-
corretamente o isolacionismo comercial brasileiro que nomia caminhe razoavelmente bem — nenhuma maravi-
impede ganhos de produtividade, transferências tecno- lha, mas o suficiente para justificar o sentimento de que o
lógicas e investimentos como trava que deve ser remo- Brasil volta aos trilhos pouco a pouco. No mais, acredito
vida imediatamente. Acusou o clientelismo inerente às que teremos um show ininterrupto de miolos moles falan-
ineficiências de um Estado excessivamente intervencio- tes. Como venho dizendo, cabe aos generais garantir que a
nista pelo engessamento e pela disseminação da corrupção moleza dos miolos fique restrita às declarações estapafúr-
no país. Afirmou que as reformas econômicas precisam dias repletas de espécie de ideologia incoerente sobre a po-
dar atenção à redução dos privilégios, inclusive para que se lítica externa brasileira, a política educacional, a política
possam enfrentar com mais coerência os problemas de de- para o meio ambiente, as políticas para os direitos huma-
sigualdade. Mostrou ser realista em relação às inevitáveis nos. Caberá aos generais garantir que as maluquices fi-
restrições políticas que terá pela frente e reconheceu que quem circunscritas à retórica. Ao menos assim teremos
consertar a economia brasileira não será tarefa fácil. algum divertimento nos próximos quatro anos.
64

Criador do termo “coletes amarelos”,


o geógrafo Christophe Guilluy diz que
a insurreição nas cidades francesas
é antes de tudo um movimento cultural
contra a burguesia cosmopolita e
intelectualizada, incapaz de se conectar
às demandas populares
por André Duchiade

9 PERGUNTAS PARA GUILLUY

STEPHANE GRANGIER/CORBIS
9 PERGUNTAS PARA GUILLUY 65

1. De onde vem a raiva dos coletes amarelos?


É uma raiva que vem de longe, de há mais ou menos 20 anos. Ela está
ligada a categorias sociais menos integradas à economia francesa, em
um processo relacionado à desindustrialização e ao crescimento da
precariedade social. A precariedade cresceu primeiro entre os traba-
lhadores e camponeses, em seguida alcançou as profissões indepen-
dentes e hoje toma a classe média mundial, que desaparece. Isso é con-
sequência de um modelo econômico muito desigual, que cria riqueza,

2. mas não produz sociedade — isto é, não integra a maioria das pessoas.
O que liga os Estados Unidos de Trump à França dos coletes amarelos?
O eleitorado de Trump e os coletes amarelos têm as mesmas condições
sociológicas e geográficas. Os Estados Unidos que elegeram o republi-
cano são a antiga classe média do país, trabalhadores que estavam inte-
grados na economia, muitas vezes no Cinturão da Ferrugem, e que
deixaram de ter condições econômicas e sociais favoráveis. Eu os cha-
mo de os Estados Unidos periféricos, em referência a essas populações
em territórios rurais. Também foi o caso do Brexit no Reino Unido,
apoiado pela antiga classe média, nesses mesmos territórios rurais. O
movimento populista nos países desenvolvidos tem sempre a mesma
geografia, é sempre sustentado pela antiga classe média, distante das
metrópoles. Essa geografia não é a da pobreza. Há pobres entre esses
setores, mas há também partes das classes populares que são muitas
vezes invisibilizadas. Colocam-se sobretudo os imigrantes, que são os
novos pobres, na frente delas, ocultando os demais. Os pobres são as-
sim instrumentalizados pela burguesia para se proteger das classes po-
pulares, como se estas não pudessem exigir mais proteção social ou sa-

3. lários melhores, porque estão mais bem posicionadas que os pobres.


Em um artigo recente no Guardian, o senhor diz que as ofertas políticas
da direita e da esquerda devem se adaptar às demandas da classe média.
No que elas se confundem?
É um problema. Os partidos hoje continuam a pensar em termos de
classes que não existem mais. A esquerda e a direita devem pensar um
modelo que seja sustentável para o conjunto da sociedade. Há novas
demandas sociais, políticas e culturais. As elites políticas devem criar
um modelo que integre a maioria. E essa integração deve ser geográfi-
ca, econômica, social, política e, sobretudo, cultural. Há um ponto es-
sencial dos coletes amarelos, dos eleitores de Trump e de outras partes

4. da Europa: são, antes de tudo, movimentos culturais.


Como assim culturais?
O conjunto dessa categoria não é representado culturalmente. Na Fran-
ça, os coletes amarelos não são apoiados pelo mundo cultural. Acredi-
távamos que a categoria social da qual eles fazem parte havia desapare-
cido. Então, eles querem dizer: nós existimos, ainda estamos na França.
Subitamente, a elite francesa descobre que há um povo na França, co-
mo se descobrisse uma tribo perdida na Amazônia. O espanto da elite
66 9 PERGUNTAS PARA GUILLUY

francesa lembra o da elite britânica quando houve o Brexit e o da ame-


ricana com Trump. Há uma diferença cultural muito forte, estruturada
ao longo de 20 anos. A organização territorial se deu de modo que a
elite intelectual e a burguesia concentraram-se nas grandes metrópoles,
como Paris, Londres, Milão, Toulouse ou São Paulo e Rio de Janeiro. O
problema é que essas cidades são enclaves intelectuais, como novas ci-
dades medievais, para acadêmicos, jornalistas, intelectuais. É a isso que
quero me referir em meu último livro, quando falo em “no society” —
que não há sociedade. Não há ligação entre o que está em cima e o que

5. Primeira vez?
está embaixo. É a primeira vez na história que isso acontece.

O Partido Comunista Francês tinha uma base popular e uma intelli-


gentsia, e havia uma conexão entre um modelo cultural que integrava
as pessoas e um modelo econômico que as representava. Hoje são ca-
tegorias separadas, que vivem em territórios sociais diferentes, e há
um fosso cultural gigantesco separando as duas. Aqueles que estão
em cima, como os intelectuais, os políticos e as pessoas do entreteni-
mento, têm medo de seu próprio povo. Eles não querem fazer socie-
dade com um povo que desprezam. Sobre isso falou (o historiador
americano) Christopher Lasch, com a tese de “secessão das elites”. E
também vemos isso quando os coletes amarelos falam contra a mídia,

6. em resposta a décadas de invisibilização.


As questões ecológica e social podem ser conciliadas?
Acredito que há uma instrumentalização da ecologia para deslegitimar
o movimento. Os coletes amarelos não são contra a ecologia — se você
lhes oferecer um carro elétrico, eles o dirigirão com prazer. Eles têm a
mesma consciência ecológica dos que estão no alto, mas não têm os
mesmos meios. Muitos falam que os coletes amarelos dirigem carros
velhos, mas se esquecem da intelligentsia, que anda de avião e queima

7. querosene, muito mais poluente, em quantidades muito maiores.


O que o senhor diria daqueles que propõem o multiculturalismo como fator
de abertura da sociedade francesa?
Assim como a ecologia, o multiculturalismo é muito instrumentalizado
entre todos os segmentos políticos. A questão não é ser contra ou a fa-
vor, é estúpido ser contra ele. Já vivemos em sociedades multiculturais e
globalizadas — seria como ser contra globalização, quando ela já está
aqui. A verdadeira questão do multiculturalismo diz respeito a como as
sociedades se dividem. Como organizar sociedades multiculturais, já
que todas as minorias têm a impressão de sofrerem ostracismo pelas ou-
tras? O risco é nos tornarmos paranoicos e passarmos a pensar que so-
mos vítimas uns dos outros. Os brancos pensam que são vítimas dos ne-
gros, os negros vítimas dos brancos, os muçulmanos vítimas de todos
etc. É muito importante se concentrar no essencial: ninguém na França
ou na Europa quer se tornar minoritário. É essa a grande questão hoje.
Uma opinião muito majoritária que vemos na sociedade francesa, ade-
mais, é a das regras para a imigração. Cerca de 70% da população quer
limites. Eu trabalho muito sobre a questão do alojamento social em Pa-
ris e vejo que os imigrantes magrebinos querem um limite para a mi-
gração. Não é uma demanda específica dos brancos, mas do conjunto
da sociedade. Na Dinamarca, há um governo que, de maneira consen-
sual, com apoio tanto dos sociais-democratas como da extrema-direita,
impôs esses limites. Isso chegará a outros países europeus.
9 PERGUNTAS PARA GUILLUY 67

8. Chamou-se a atenção para posições racistas e homofóbicas de alguns


manifestantes de coletes amarelos. Como o senhor as entende?
Essas posições são muito minoritárias. Esquecemos sempre de dizer
que o racismo, o antissemitismo e a homofobia nas classes trabalha-
doras e na burguesia são os mesmos. Na elite, no máximo, são mais
discretos. Há uma instrumentalização que visa deslegitimar o movi-
mento, há pessoas racistas, mas é a própria sociedade que é assim.
Não são as classes populares que são racistas. O antirracismo se tor-
nou na França, na Europa e nos EUA uma arma de classe, para desle-
gitimar todos os movimentos sociais. Usamos contra os coletes

9. amarelos, mas também contra pessoas que votaram pelo Brexit.


O que o senhor pensa que acontecerá? O presidente Emmanuel Macron
conseguirá fechar a cisão da sociedade francesa?
É muito difícil hoje prever o que acontecerá. Macron é hoje muito criti-
cado na sociedade, mas não há uma grande oferta política. Uma das
contestações dos coletes amarelos é que não há representação. O movi-
mento cultural é muito importante e não vai parar. A intelligentsia e as
elites em geral não entendem que é uma revolução intelectual. Pode-
mos ter uma economia globalizada, mas ela não é suficiente, é preciso
Coletes amarelos
protestam em Paris pensar na proteção dos mais fracos e de categorias sociais mais vulnerá-
no sábado 9, veis. Nesta revolução cultural por vir, para as próximas eleições, fala-se
na 13ª semana por vezes no crescimento dos extremismos, como da Reunião Nacio-
consecutiva
de manifestações nal. Não é isso que mudará as condições, mas, sim, o fato de os partidos
nas cidades francesas tradicionais enfim responderem a essas demandas da sociedade.

OMAR HAVANA/GETTY IMAGES


RICARDO
BOECHAT
1952-2019
A VIDA QUE ELE LEVOU 69

Ibrahim Sued, o "Turco",


foi o mestre de Boechat
por Elio Gaspari

R icardo Boechat trabalhou com o colu-


nista Ibrahim Sued de 1970 a 1983. Ali se
aprendia tudo.
uma enorme fotografia de John Kennedy
cumprimentando Ibrahim Sued. Isso
mesmo, ele era o presidente dos Estados
Mesmo no tempo em que tinha um só Unidos, mas a figura central da cena era a
terno, Ibrahim era um homem bonito, de do “Turco”.
olhos verdes e porte elegante. Ele reinou no Boechat, como seus antecessores, deve-
colunismo por quase 20 anos. ria ter terminado seu serviço, entregando-
Quem teve a dádiva de trabalhar com lhe duas páginas, talvez três, de notas cur-
ele aprendeu a aprender. Seu negócio era tas, com dez linhas, no máximo. A menos
notícia. Quando Boechat foi trabalhar em que fosse um grande assunto ou a descri-
seu escritório da Avenida Nossa Senhora de ção de uma festa, não devia tentar algo
Copacabana, esquina com a Siqueira Cam- mais comprido, pois corria o risco de ser
pos, recebia uma lista de fontes para as chamado de “editorialista”.
quais devia ligar. (Era um tempo em que Ibrahim lia, cortando as notas que não
não existia discagem direta e mesmo uma queria. Às vezes perguntava a fonte e, em
linha local demorava um bom tempo.) alguns casos, passava a faca. A notícia po-
Diga que é do escritório do Ibrahim deria até ser interessante, mas esse compor-
Sued, porque, se disser que é você, nin- tamento demarcava sua autoridade. A con-
guém vai atender. tribuição do ajudante equivalia a pelo me-
Todos atendiam, desde o jurista Francis- nos metade da coluna. A outra parte ficava
co Campos, autor do preâmbulo do Ato Ins- por conta de Ibrahim. Por volta das cinco
titucional, à linda e elegante Maria Thereza da tarde o texto ia para as mãos de Fernan-
Castello Branco (ex-Guinle). Ela contava o do Carlos de Andrade, o terceiro jornalista
que vira de sua frisa num concerto no Thea- da equipe, que datilografava — e corrigia
tro Municipal com o cuidado de pedir dis- — os textos, com cópias em carbono.
crição em relação a si própria, coisa rara. Era um sufoco diário e ao mesmo
O jornalista Ricardo Vindo do Bife de Ouro, o restaurante tempo uma escola. Quem não aprendesse
Boechat morreu do Copacabana Palace, onde almoçava, ali faria melhor se mudasse de profissão,
em um acidente Ibrahim entrava no escritório com um até porque as ruidosas reclamações de
de helicóptero na última
segunda-feira 11, aos humor imprevisível, quase sempre mau. Ibrahim injetavam alguma humildade no
66 anos, em São Paulo Na entrada desse conjunto de salas havia DNA de suas vítimas.
FOTO LEONARDO AVERSA /
AGÊNCIA O GLOBO
70 A VIDA QUE ELE LEVOU

Boechat aprendeu tudo com Ibrahim e,


anos depois, tornou-se o principal colunista
de O Globo. Sua marca foi a notícia
pura e simples. Se possível, com alguma graça

ARQUIVO PESSOAL
Em 1965, a coluna noticiou que o escri-
tor francês Jean Cocteau abrira uma expo-
sição em Paris. Ele chegou ao escritório e,
calmo, disse:
“O Cocteau morreu há dois anos, e o
anafabelo sou eu.”
O Turco era perseguido pela fama de
não escrever o que publicava e de não sa-
ber português ou qualquer outro idioma.
Incomodava-se, mas levava a fama com
humor. Quando anunciou que escreveria
um livro sobre sua visita à União Soviética,
Sérgio Porto, seu maior algoz, sugeriu que
o título fosse 000 contra Moscou. Esse era o
tempo em que James Bond fazia sucesso
com o filme 007 contra Moscou. Sugestão
aceita, e 000 ficou.
Ibrahim escrevia direto, sem cuidado al-
gum, porque sabia que seus textos seriam
corrigidos pelo fiel “Fernandão”. Havia no
Turco uma disfunção verbal. Certo dia ele
produziu a seguinte frase:
“O Mike Krimchatowsky está maluco.
A o longo de 13 anos Ibrahim foi um bom
amigo de Boechat. Chamava-o de “Chi-
ta”, sabe-se lá por quê. Fizeram algumas via-
Ricardo Boechat
e o colunista Ibrahim
Sued trabalharam
juntos de 1970 a 1983
Disse que durante a guerra derrubou 17 gens juntos, e as idas a Paris foram memorá-
Massachusetts.” veis. Afinal, o filho de imigrante libanês que
Deveria ter dito Messerschmitts, mas viveu a pobreza no velho centro do Rio de
pronunciou direito as saladas de letras de Janeiro era um cavaleiro da “Légion d’Hon-
Krimchatowsky e Massachusetts. neur” e, desde o dia em que colocou a fiti-
Fechada a coluna, o velho Sampaio — nha vermelha na lapela, nunca mais senta-
passador das roupas de Ibrahim desde o ram-no na Sibéria dos restaurantes franceses.
tempo em que ele tinha dois ternos — saía Boechat aprendeu tudo e, anos depois,
pela cidade levando as cópias para as reda- tornou-se o principal colunista de O Globo.
ções. Ia de ônibus, puxando a perna com- Sua marca foi a daquele escritório: a notícia
prometida por um AVC. A presença de pura e simples, se possível, com alguma gra-
Sampaio no escritório do Turco era uma ça. Na Band, ele acrescentou sua desassom-
das mostras de sua enorme generosidade. brada contundência com uma naturalidade
Com alguma frequência, Ibrahim leva- que, tanto na televisão como no rádio, mos-
va seu assecla para uma sauna no Copaca- trava que havia ali um grande jornalista. Re-
bana ou para a mesa cativa que tinha no pórter pode não acreditar em Deus, mas
falecido restaurante Le Bec Fin. Era uma tem uma alma especial.
roda de amigos onde o pior que poderia
acontecer era o aparecimento de um Elio Gaspari trabalhou com Ibrahim Sued
“chumbeta” que puxasse conversa para de 1965 a 1967, foi o autor da nota da exposição
de Jean Cocteau e teve a amizade do Turco
tentar plantar uma nota na coluna. A e de Boechat até que eles se foram, um em 1995,
paciência do Turco esgotava-se. o outro na última segunda-feira
H.G.
71

hgurovitz@edglobo.com.br
@gurovitz

HELIO GUROVITZ É JORNALISTA É POSSÍVEL PREVENIR


E BLOGUEIRO DO PORTAL G1
NOVAS TRAGÉDIAS?

D epois das chuvas e da ciclovia, o helicóptero com Ricar-


do Boechat. Depois de Mariana, Brumadinho. Depois
da Boate Kiss, o Ninho do Urubu. Por que tragédias se repe-
Narrador exímio, autor dos best-sellers Moneyball,
Flash boys e O projeto desfazer, Lewis disseca no novo livro
os principais riscos que atingem seu país e as “tentativas
tem como roteiro de um filme macabro? Por que não con- do governo para salvar as pessoas de coisas que podem
seguimos preveni-las? Descaso? Negligência? Inépcia? matá-las”. Não só tornados ou furacões, mas também
Impunidade? Respostas óbvias se sucedem a cada nova des- eventos como gripe aviária, epidemia de opiáceos, mortes
graça. Há o desleixo criminoso, o uso de técnicas arriscadas no trânsito, acidentes nucleares, terrorismo ou mesmo a
para erguer barragens, de materiais inflamáveis em abrigos fome. Seu relato atravessa os organismos encarregados
ou construções, o desprezo por alarmes, regras de voo ou de lidar com tais questões no Estado americano: os de-
normas de segurança. Há a indiferença (ou corrupção) de partamentos de Energia, Agricultura e Comércio. De-
autoridades responsáveis pela fiscalização. Mas há mais que monstra como, desde a transição, o governo Donald
isso: a dificuldade humana intrínseca em avaliar e lidar com Trump deu de ombros aos riscos, ao conhecimento e aos
riscos. Não se trata de desvio de caráter do brasileiro. recursos necessários para preveni-los.
Um funcionário do Departamento de Energia elenca
Mesmo em países onde as normas os cinco principais em sua área: acidente com armas nu-
são respeitadas, mesmo quando cleares, Coreia do Norte, Irã, rede elétrica e um quinto
risco que ele não consegue definir direito. Acaba cha-
os riscos são conhecidos, mesmo mando genericamente de “gestão”. “É o risco que uma
quando as sirenes tocam na hora sociedade corre quando adota o hábito de sanar riscos de
certa, tragédias acontecem. longo prazo com soluções de curto prazo”, diz Lewis. “É
a ameaça existencial que jamais imaginamos de verdade
Em 2011, na região central dos Estados Unidos, uma onda de como um risco.” A maior dificuldade é a mesma das víti-
360 tornados deixou um saldo de 324 mortos, milhares de mas do tornado em Joplin: acreditar que o inimaginável
feridos e um rastro de devastação. Só em Joplin, no Missouri, pode se tornar real. Tentar evitar o pior exige, portanto,
morreram 158 pessoas no dia 22 de maio, o recorde de mor- respostas menos óbvias. Longe do clima de indignação
tos em 64 anos de tornados. Detalhe: um alerta foi lançado raivosa. Longe do sentimento inquisitorial que aponta
com quatro horas de antecedência, sirenes soaram quase 20 culpados e busca bodes expiatórios. O melhor que pode-
minutos antes da chegada do flagelo. “Não é que as pessoas mos fazer depende da combinação de dois ingredientes
que haviam ignorado os alertas não tivessem ficado sabendo que andam em baixa. Primeiro, governo. Só o Estado,
deles”, escreve o jornalista Michael Lewis no recém-lançado representado por funcionários públicos de carreira, in-
O quinto risco. Todo mundo sabia. O que havia era uma sen- dependentes de interesses políticos ou financeiros,
sação falsa de segurança, a confiança cega (“Se nunca aconte- dispõe de autoridade para recolher dados na escala ne-
ceu, não aconteceria”), a crença irracional numa trajetória cessária para avaliar os riscos e impor medidas preventi-
imaginária do vento (não atravessaria um certo rio, se dividi- vas a empresas ou cidadãos. Segundo, ciência. É ela que
ria ao chegar perto da cidade, não chegaria perto de um ce- permite interrogar tais dados, estudar as incertezas, me-
mitério indígena). “Não conseguiam imaginar que todos dir os riscos e, no limite do conhecimento humano, fazer
aqueles tornados que haviam atingido outras pessoas pode- o possível para mitigá-los.
riam ter se abatido sobre elas. As sirenes tinham virado fake
O QUINTO RISCO
news.” Quando chegou, o vendaval varreu tetos, carros, Michael Lewis, Intrínseca
casas, gado, árvores e o que mais encontrou pela frente. 2019 | 192 páginas | R$ 50
VIVI PARA CONTAR 73

VENDEDORA DE 28 ANOS
RESGATOU MOTORISTA
DE CAMINHÃO QUE SE
CHOCOU COM HELICÓPTERO
por Leiliane Rafael da Silva
em depoimento a Sérgio Roxo

ELA AGIU,
ENQUANTO
ELES
FOTOGRAFAVAM
E u, meu marido e nossos três filhos (uma
menina de 8 anos, um menino de 4 e um
bebê de 4 meses) vivemos parte dos dias da
aula à tarde. Quando a gente estava passan-
do próximo ao Morro Doce (bairro localiza-
do às margens da estrada), falei para meu
semana na casa de minha sogra em Cajamar marido: “Nossa, aquele helicóptero está
(cidade da Grande São Paulo) e parte na casa muito baixinho. Acho que vai pousar na
de minha mãe, em Pirituba (bairro da Zona pista”. Não tinha nenhum barulho diferente
Oeste de São Paulo). Por isso, a gente pega nem soltava fumaça. Ele disse: “Não vai,
sempre a Anhanguera (rodovia onde caiu o não”. Eu falei: “Vai, sim”. Eu nunca tinha
helicóptero que transportava o jornalista Ri- visto um helicóptero de perto.
cardo Boechat). Na segunda-feira (dia do aci- Ele passou por cima de nós, e, quando
dente), acordei na casa de minha sogra às eu olhei para trás, vi uma pessoa pulando.
9h30. Tomamos café da manhã e, por volta A parte da frente estava mais baixa do que
das 10h20, eu e meu marido saímos de moto a de trás. Depois, o helicóptero se chocou
para levar nossas coisas até a casa de minha com a carreta que estava saindo do Rodoa-
mãe. As crianças ficaram com uma amiga nel e já explodiu. A batida foi bem de fren-
minha. Não temos carro, então a gente foi te na cabine. Um pedaço do helicóptero
de moto mesmo, levando bolsa, sacola e coi- caiu perto da mureta de divisão das pistas e
Leiliane Rafael sas do bebê penduradas. Eu estava na garu- um outro pedaço em cima da pessoa que
da Silva socorre pa. Chegamos a Pirituba, deixamos as coisas havia pulado. Eu falei para meu esposo:
o caminhoneiro, que e pegamos a moto para voltar. Em Cajamar, “Para a moto”. Ele voltou pelo canto da pis-
depois a abraçou
e a chamou de seu apanharia as crianças e seguiríamos de ôni- ta na contramão. Desci, arranquei o capace-
anjo da guarda bus para Pirituba. Os dois maiores tinham te e saí correndo em direção ao caminhão.
MONTAGEM SOBRE REPRODUÇÃO
74 VIVI PARA CONTAR

VI QUANDO O HELICÓPTERO VOAVA BAIXINHO


E IMAGINEI QUE POUSARIA NA PISTA.
O APARELHO PASSOU POR NÓS, FOI QUANDO
VI UMA PESSOA PULANDO. ACONTECEU ENTÃO
O CHOQUE E A PRIMEIRA EXPLOSÃO.
UMA MÃO SAÍA DO FOGO PEDINDO AJUDA

Preocupado, meu marido ainda tentou me Ajudei a socorrê-lo mais uma vez. Os poli-
segurar, mas soltei o braço dele. O motorista ciais o colocaram na viatura e o levaram para
do caminhão estava vivo, felizmente. Ele me o hospital. Fiquei preocupada. Depois de tu-
falou que não sentia as pernas, que estavam do que fizemos para salvá-lo, não queria que
presas nas ferragens. Estava caindo muita nada acontecesse. Mais tarde, fui até o hospi-
gasolina no chão. Pensei que poderia explo- tal para ver como ele estava. Ele me abraçou
dir novamente. Falei para o moço: “Vou ti- e disse que eu sou seu anjo da guarda. Falou
rá-lo daqui”. Ele começou a ficar nervoso. que eu o tinha salvado na estrada e depois
Peguei uma faca com o pessoal que estava na delegacia. Eu respondi que ele que é meu
trabalhando na limpeza do mato da estrada anjo da guarda porque, se não fosse o cami-
e cortei o cinto. Com o capacete consegui nhão, o helicóptero teria caído em cima da
quebrar o para-brisa porque a porta da cabi- nossa moto e nós teríamos morrido.
ne do caminhão estava emperrada e a gente
não conseguia abrir. Tinha gente que grita-
va: “Doida, sai daí porque vai explodir”.
Mas eu queria salvar aquela pessoa.
Q uando já estava escurecendo, fui até a
casa de minha sogra pegar meus filhos.
Minha amiga que estava cuidando deles con-
Meu marido veio me ajudar e consegui- tou que o Alexandre (de 4 anos) me viu na
mos afastar o painel do caminhão que havia televisão e ficou chorando para eu ir para
se soltado com a batida e prendia o motoris- casa. Peguei as crianças e fomos para Piritu-
ta. Em seguida, conseguimos tirá-lo. Leva- ba de carro de aplicativo. Quando cheguei à
mos o motorista até o gramado no canto da casa de minha mãe, desabei. Comecei a cho-
estrada. Ele me falou que precisava da agen- rar, chorei bastante. Coloquei as crianças na
da e do celular que estavam na cabine para cama, mas não consegui dormir. Estava com
avisar a empresa e a família sobre o acidente. uma tosse forte, acho que por causa da fu-
Voltei lá, peguei e entreguei para ele. Depois, maça que inalei. Passei a noite em claro.
fui na direção do helicóptero. Vi uma pessoa Não sei se pelo nervoso que tinha passado
no meio do fogo com a mão levantada pe- ou por causa do café. Eu tenho um vaso san-
dindo ajuda. Cheguei bem perto, ia pegar na guíneo entupido na cabeça por causa de
mão dele, mas os funcionários da concessio- uma malformação de nascença e preciso ser
nária (que administra a rodovia) não deixa- operada. A recomendação é não passar es-
ram, porque diziam que eu me queimaria tresse, porque esse vaso pode romper, mas
junto. A pessoa já estava em chamas, e eu na hora do acidente nem pensei nisso. Vi os
não poderia fazer mais nada. Falaram tam- vídeos que as pessoas fizeram na hora do
bém que poderia acontecer uma nova explo- acidente e percebi que realmente corri muito
são. Realmente, logo em seguida, ocorreu risco, mas não me arrependo. Lamento não
uma nova explosão e acho que aí essa pessoa ter ajudado mais. Acho que a gente tem
que pedia ajuda acabou morrendo. sempre de ajudar o próximo. Faz parte do
Não senti medo. Só queria saber de aju- meu instinto. Se eu vejo duas pessoas bri-
dar. Nunca tinha passado por nada nem pa- gando na rua, tento separar. Quando fiquei
recido com isso. Fui para a delegacia em se- internada, ajudava os outros pacientes, tro-
guida e, só mais tarde, soube que o jornalista cava fraldas. Quero agora fazer minha cirur-
(Ricardo Boechat) estava no helicóptero. Na gia para resolver esse problema que tenho
delegacia, o motorista (João Adroaldo To- na cabeça e poder voltar a trabalhar como
manckeves) passou mal e chegou a desmaiar. vendedora, como sempre fiz.
75

VENES CAITANO
A ORIGEM
DAS
GRACINHAS
O quarto de uma série
de dez textos sobre
como nasceram os
emojis, a linguagem
dos tempos modernos
por Keith Houston
tradução de Matheus Rocha

FOTO: NOPPAWAT TOM CHAROENSINPHON/GETTY IMAGES


TRADUZINDO EM IMAGENS 77

C om os emojis cada vez mais presentes em nossa vida on-line, a


pergunta se torna inevitável: quem decide qual emoji devemos
usar? Como observamos anteriormente, a resposta é a Unicode Con-
sortium, a empresa que supervisiona o vocabulário de símbolos por
meio dos quais os computadores se comunicam. Fundada na Cali-
fórnia em 1991, a organização é, em sua própria definição, “uma cor-
poração sem fins lucrativos voltada para o desenvolvimento, a ma-
nutenção e a promoção da internacionalização dos padrões de
software e dados, particularmente o Padrão Unicode, que especifica
a representação textual em todos os softwares modernos”.
Um objetivo nobre, sem dúvidas. Mas quem está nos bastidores?
Como é de esperar, a julgar por sua origem no Vale do Silício, o
conselho deliberativo da Unicode é marcado fortemente pela pre-
sença de grandes companhias de tecnologia, como Google, Apple,
Microsoft, Facebook e IBM. A companhia de software Sap é um raro
exemplo de integrante não americano do grupo. A gigante chinesa
da telecomunicação Huawei é um caso mais raro ainda, de compa-
nhia votante cujo país de origem não usa o alfabeto latino. Além
desses pesos-pesados da tecnologia, existe um par de especialistas
em tipografia — Adobe e Monotype.
Há também um número de votantes fora do mundo comercial, e
aqui as coisas ficam mais interessantes. Os governos de Omã, Bangla-
desh e Índia, além do estado indiano de Tâmil Nadu, gastam por volta
de US$ 12 mil a US$ 18 mil por ano para ter direito a voto. Omã, que
78 TRADUZINDO EM IMAGENS

Os emojis ganharam grandes proporções


desde sua estreia, em 2010, mas os usuários
continuavam insatisfeitos com a oferta
de ícones. Até que, em 2015, foram
incorporados 41 emojis ao sistema-padrão

se juntou ao conselho em 2015, faz de sua bem-intencionadas que possam ser e desinte-
participação uma forma de promover a cul- ressadas que tentem ser — assume a respon-
tura dos escritos árabes. Mais especificamen- sabilidade pela linguagem do mundo informa-
te, o país deseja que a Unicode conserte o cional. Infelizmente para a Unicode, os emojis
modo como codifica certos caracteres pre- fizeram alargar as possibilidades de críticas.
sentes no Alcorão. Bangladesh e Índia, que
ingressaram em 2010, usam o espaço para
defender o alfabeto do subcontinente india-
no: algumas letras bengalis são pesadas de-
C omo vimos, a grande missão da Unicode
Consortium é elaborar um único núme-
ro para cada caractere que faça parte da es-
mais para ser usadas, enquanto o tratamento crita humana. Com os símbolos do Unicode
dado pela Unicode ao alfabeto indiano tem 1.0 retirados de uma coleção de caracteres já
atraído críticas por uma variedade de razões existentes, como o americano Ascii, o japo-
técnicas. Tâmil Nadu se juntou ao grupo um nês Shift-JIS e, meu predileto, o Spellbinding
ano mais tarde, em parte para estimular a Gost 10859-64, da antiga União Soviética, a
Unicode a melhorar o tratamento dispensado pergunta de lá para cá é: quais novos carac-
à região e em parte para provocar o governo teres devem se admitidos?
federal indiano, com quem tem uma rixa so- Para um caractere textual, como os que
bre codificação. Além disso, Andhra Pradesh, encontramos no corpo de um e-mail ou no
outro estado indiano, foi membro de 2011 a texto de um livro, o preço para entrar é rela-
2014, quando esperava melhorar o perfil e a tivamente baixo. É necessário estar em uso e
interoperabilidade de seu alfabeto, o telugu. deve ser um único caractere indivisível. Ima-
Um cínico poderia olhar para tudo isso e gine, por exemplo, que você queira digitar
se perguntar: teriam a Índia e a Península uma fictícia (e incrível) letra g̈ com uma úni-
Arábica sido abençoadas com governos com ca tecla em um dos milhões de aparelhos que
preocupações altruístas, que se uniram à estão de acordo com os padrões da Unicode
Unicode em uma demonstração de pureza ao redor do mundo. Você submete uma pro-
de seus corações? Ou seria plausível supor posta à organização — e eles rejeitam sumaria-
que a Unicode não seja sempre a melhor es- mente, porque língua alguma do mundo usa g̈.
colha na hora de lidar com alfabetos não la- Mesmo que seu amado g com trema existisse
tinos? Vale lembrar que a Unicode também na vida real, a Unicode rejeitaria da mesma
ficou sob fogo cruzado na China, no Japão e forma, porque a letra poderia ser criada com-
na Península Coreana ao se tornar a porta- binando a letra latina G minúscula (g) e o
bandeira da unificação linguística dessas três caractere que indica a diérese (¨).
regiões. A proposta é um esforço controver- No que se refere ao que podemos cha-
so para reduzir o número de caracteres ne- mar de símbolos — caracteres incluídos ao
cessários para representar o alfabeto desses redor do texto, mas que não são inteira-
povos. A ideia de unificação é conduzida mente parte dele —, as coisas ficam mais
pelo Grupo de Relatório Ideográfico, uma complicadas. Os símbolos na fonte Zapf
comissão que, embora independente, está li- Dingbats e em outras fontes Pi foram inte-
gada ao assunto. No entanto, o carimbo da grados à Unicode 1.0 sem que fossem feitas
Unicode nos trabalhos do grupo o tornou muitas perguntas. Mas, de lá para cá, a em-
suscetível a efeitos colaterais. presa se tornou mais exigente, e qualquer
Esses são problemas que nascem quando proposta de inclusão precisa passar por um
um pequeno grupo de pessoas — por mais rosário de critérios. O caractere já está sen-
TRADUZINDO EM IMAGENS 79

do usado em aplicativos de computadores? mo tempo que evitam a maioria dos negati-


É usado de maneira ativa em determinada vos. Tanto que, quando o Google pediu a
comunidade? Seu significado é fixo e inteli- admissão dos emojis no sistema-padrão,
gível? Pode ser utilizado em textos planos? houve pouco debate. Ainda assim, os emo-
(O emoji pode, enquanto sinais de trânsito jis diferem de outros símbolos de uma for-
não podem.) Faz parte de um grupo de ma importante: eles mudam constantemen-
símbolos semelhantes? Preenche um vazio te, tanto em número quanto em significado.
na padronização da Unicode? Também E isso é problemático para a Unicode, por-
existe uma lista semelhante de razões para que, de acordo com as diretrizes da própria
uma rejeição. O símbolo é registrado como empresa, se um símbolo faz parte de “um
uma marca? É usado normalmente de for- sistema que sofre rápidas mudanças”, nor-
ma independente (como os já mencionados malmente é rejeitado. Enquanto registro de
sinais de trânsito), em vez de conectado a caracteres, a Unicode prefere que novas
um texto? Ocorre mais em textos escritos à adições estejam plenamente maduras.
mão que dentro de computadores? Não tem

Exemplos de carinhas
uma comunidade de usuários?
A Unicode entende que os emojis de
Shigetaka Kurita são símbolos, e eles reú-
O caráter incerto do emoji é algo que a
própria Unicode ajudou a construir.
Nos quatro anos que separam a Unicode
do sistema-padrão versão
11.0 da Unicode nem todos os requisitos positivos ao mes- 6.0, quando o emoji entrou pela primeira
vez no sistema-padrão, e a publicação da
Unicode 7.0, em 2014, o organismo ignorou
fortemente os ícones. Apenas duas figuras
foram adicionadas em 2014. A carinha com
um discreto sorriso e um rosto com uma le-
ve cara feia. A intenção era completar as ca-
tegorias de satisfação presentes nos banhei-
ros de aeroportos, que eram formadas por
. Em 2015, no entan-
to, apenas um ano depois, a nova Unicode
8.0 incorporou nada menos que 41 emojis.
Entre eles havia carinhas ( ); ani-
mais ( ); lugares sagrados ( );
materiais esportivos ( ); e muitos ou-
tros. Foi anunciada uma grande mudança
no modo como a Unicode tratava os emojis,
uma reviravolta com a qual a companhia
ainda está aprendendo a lidar.
Logo após lançar a Unicode 7.0 com um
insignificante acréscimo de rostinhos,
Mark Davis e Peter Edberg, respectivamente
o presidente e o diretor técnico da Unicode,
veicularam uma circular sobre a situação
dos emojis. Eles escreveram: “Os emojis se
tornaram extremamente populares. Ainda
assim, o modo como a Unicode decidiu re-
presentá-los deixou muitas pessoas confu-
sas ou desapontadas”.
Eles não estavam equivocados. O emoji
havia ganhado grandes proporções desde
sua estreia, em 2010, mas era visível que
os usuários estavam insatisfeitos com a ofer-
ta de ícones. Além do mais, como Davis e
Edberg explicaram, os usuários estavam
confusos com a aparente arbitrariedade dos
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80 TRADUZINDO EM IMAGENS

emojis em seus teclados — sem mencionar a aceito no Unicode se ele preencher uma
injustiça de toda aquela situação. ausência clara — como nos esportes lista-
Para começar, havia a predominância de dos —; se a Unicode Consortium achar
ícones ligados ao Japão, como trem-bala, que ele será popular — com base em
( ), criaturas do folclore japonês ( )e hashtags ou outros medidores —; ou se a
símbolos culturais ( ), tudo isso em empresa tiver certeza de que vai ser popu-
detrimento de símbolos semelhantes de ou- lar — porque muitas pessoas estão pedindo
tros países. Profissões, como a de construtor, por ele. Emojis muito gerais, muito especí-
policial, dançarina ( ), eram retra- ficos ou modismos são rejeitados.
tadas dentro de um estereótipo masculino ou O que isso significa é que emojis agora
feminino, e, da mesma forma, a imagem de estão sujeitos a um tipo de evolução dirigi-
casais e famílias era elaborada dentro de con- da, que ocasionalmente dá errado. Qual-
ceitos heterossexuais ( ). Não havia quer pessoa suficientemente motivada pode
também qualquer variação nos tons de pele. simplesmente puxar sardinha para seu lado.
Carinhas sorridentes e pequenas figuras hu- A ex-jornalista do New York Times Jennifer
manas eram desenhadas com um tom irreal Lee fez exatamente isso ao propor um emo-
de amarelo, mas estava nítido que não havia ji de bolinho chinês, uma comida mundial-
emojis de cores mais escuras. Por fim, as pes- mente reconhecida, cuja ausência era um
soas queriam mais emojis: Edberg e Davis ci- dos grandes pontos cegos em relação à cul-
taram artigos do site BuzzFeed, de revistas tura. Por outro lado, quando o produtor de
como New York Magazine e Business Insider rádio Mark Bramhill defendeu a inclusão
em que, eles afirmaram, havia uma consistên- de uma pessoa em posição de lótus, ele não
cia surpreendente de pedidos por símbolos. fez isso por altruísmo, mas sim para forne-
Tudo isso obrigou a Unicode a dar um cer material para um episódio de um pod-
passo sem precedentes e abrir o sistema de cast popular de design chamado 99% Invisi-
padrões a novos emojis, um luxo negado a ble. Motivos equivocados como esse são
todos os ícones anteriores e posteriores. Nos abundantes no caso de companhias que pe-
preparativos da publicação da Unicode 8.0, dem para consumidores fazerem lobby em
os próprios Edberg e Davis acrescentaram seu nome. A Taco Bell produziu uma cam-
vários emojis novos na esperança de preen- panha colaborativa na qual estimulava seus
cher os buracos mais flagrantes do sistema. frequentadores a tuitar em apoio ao emoji
Entre os novos símbolos, havia esportes que de taco que acabou sendo adicionado à
não eram originários do Japão, como o crí- Unicode 8.0. A Durex, por outro lado, fa-
quete ( ), hóquei no gelo, hóquei sobre lhou ao tentar angariar o mesmo nível de
grama ( ), tênis de mesa ( ) e bad- apoio para um emoji de camisinha.
minton ( ). Foram acrescentados itens ali-
mentares como taco ( ), uma garrafa de
champanhe ( ) e queijo ( ), que haviam
sido sugeridos em artigos de revista e cam-
O rganizações sem fins lucrativos também
veem emojis como alternativa à propa-
ganda tradicional. Em 2016, um grupo cul-
panhas publicitárias. Além disso, o mais sig- tural catalão fez uma petição ao WhatsApp
nificativo, incorporaram-se cinco caracteres para adicionar um emoji do tradicional por-
“seletores”, que mudavam a cor de pele dos rón catalão, ou frasco de vinho, sem perce-
emojis existentes. De Shervin Afshar, da ber que a Unicode Consortium seria uma
HighTech Passport, Ltd., e Roozbeh Pourna- aposta melhor. Outros lugares, como Escó-
der, do Google, veio a proposta de acrescen- cia, Inglaterra e Gales, receberam recente-
tar símbolos religiosos, como terços, a Caa- mente sua própria bandeira em formato de
ba, uma sinagoga, entre outros. emoji depois de uma proposta bem-sucedi-
O resultado foi uma grande expansão no da de Owen Wilson, um jornalista galês. Pa-
conjunto de emojis na versão 8.0 da Unico- trocínio corporativo e propaganda regional
de, formalmente aprovada em 2015 e dispo- colidiram quando a companhia espanhola
nível nos smartphones e computadores no Fallera alistou o comediante Eugeni Ale-
final daquele ano. A comporta estava aberta. many para promover um emoji de paella. A
Nesse novo mundo de emojis sugeridos campanha #PaellaEmoji resultou na aprova-
por usuários, um novo símbolo pode ser ção da ideia pela Unicode, mas o emoji re-
TRADUZINDO EM IMAGENS 81

REPRODUÇÃO

A campanha sultante fez algumas pessoas torcer o nariz textos e lemos sites sem nos preocupar com
#PaellaEmoji, promovida quando a Apple não exibiu os ingredientes a forma como nossas letras e palavras fo-
por uma empresa
espanhola, conseguiu tradicionais, como coelho e feijões-verdes. ram armazenadas ou comunicadas. Isso
incorporar o símbolo Esse tipo de caso ilustra como emojis dife- não quer dizer que os fabricantes de com-
do tradicional rem de outros caracteres. Caso seu pedido de putadores e softwares não estivessem se es-
prato valenciano
à linguagem digital emoji tenha sido aprovado pela Unicode, você forçando para fazer tudo isso funcionar,
terá pouco a dizer sobre como ele se parecerá mas, hoje em dia, graças à Unicode, a situa-
quando for ao mundo. Em um universo ideal, ção melhorou muito.
isso não seria um problema — afinal de con- Com o advento do emoji, entretanto, e
tas, quantos designers discordam sobre como particularmente desde a Grande Expansão
a letra “A” deveria se parecer? —, mas emojis de 2014, o público está prestando muito
se desenvolvem tão rapidamente que nada po- mais atenção. O ritmo anual da Unicode de
de ser subestimado. Em 2016, por exemplo, a trazer novas versões tem estimulado uma
Apple decidiu revisar seu emoji de arma para “estação dos emojis”, na qual comentaristas
que ele se parecesse com uma arma de água, e criticam a nova versão dos ícones que bre-
não com uma arma real. Por dois anos, a vemente aparecerão em computadores, ta-
da Apple estava de acordo com a representa- blets e smartphones. Nem toda essa atenção
ção realista das armas presentes em boa parte é positiva — a Unicode Consortium tem si-
de suas concorrentes — até que uma mudança do criticada por seus membros serem ho-
coletiva em 2018 fez com que todas as outras mens brancos antiquados; já o emoji é criti-
pistolas sofressem atualizações. Por muito cado por ser culturalmente tendencioso e
tempo, o emoji de bandeira cruzada da Sam- por carecer de representatividade —, mas a
sung ( ) mostrava a bandeira da Coreia, em ribalta tem encorajado a empresa a se refa-
vez da usual bandeira do Japão. Já durante to- zer e a refazer as pequenas figuras que con-
do o ano de 2014, o coração amarelo do Goo- trola, tudo isso sob a luz da equidade.
gle se apresentava de forma inadequada como Existem ainda rumores de que a Unicode
um coração rosa e peludo. A Unicode é um ficaria contente em sair completamente dos
sistema de padrões, já o emoji não é. negócios ligados aos emojis para poder se
voltar novamente ao trabalho de codificar os

H oje em dia, a Unicode está numa en-


cruzilhada. Durante os quase 27 anos
da empresa, seus usuários — quer dizer,
sistemas de escrita, mas essa é uma história
para outro texto. Por enquanto, é suficiente
dizer que, independentemente do que o fu-
nós — raramente atentaram para a codifi- turo reserve, o está fora dos bastidores e
cação. Digitamos e-mails e mensagens de é pouco provável que volte para lá.
C.H.M.
82

chubner@edglobo.com.br

CONRADO HÜBNER MENDES É DOUTOR


EM DIREITO E PROFESSOR DA USP
FEBEJAPÁ NEW AGE

O Febejapá (Festival de Barbaridades Judiciais que


Assolam o País) entrou na fase new age e adquiriu
dupla personalidade. A primeira é a face mais embrute-
abate” esteve a todo vapor na favela de Manguinhos, em que
14 pessoas foram mortas. Acumulam-se evidências de que
disparos foram feitos de uma torre da polícia, por snipers.
cida, do “tiro, porrada e bomba” com um toque de Bí-
blia. A segunda vem com polimento, dissimulação e eu- O Febejapá new age não é só
femismos. De um lado, a magistocracia hardcore, com truculência, mas também desfaçatez.
esteroides; de outro, a magistocracia softcore, com o
mesmo DNA, mas menos atrevida e ostensiva. Ambas Sergio Moro deu guinada na carreira e entrou para a polí-
têm representantes prototípicos. tica. Menos por apego à legalidade, mais por sua rara dis-
A ala carioca do Febejapá fornece as três encarnações posição de colocar, a jato, alguns poderosos na cadeia, foi
mais acabadas da hardcore. A primeira é a desembarga- aclamado síndico do panteão dos homens de bem e pas-
dora Marília Castro Neves, guerreira contra o politica- sou a gozar da presunção de infalibilidade. Emprestou, de
mente correto. Sua obra em redes sociais já afirmou que graça, seu status ao bolsonarismo. Associou sua trajetória
Zumbi dos Palmares é um “mito inventado” que “esti- a quem pratica caixa dois, festeja milícias e pede foro pri-
mula racismo”, debochou de professora portadora de vilegiado no STF. Quando seus próprios sócios boicotam
síndrome de Down, declarou que Marielle “estava enga- o projeto de combate à corrupção e restringem a transpa-
jada com bandidos” e que Jean Wyllys merecia uma rência, engole em seco. Teve de substituir sua doutrina
“execução profilática”. Indagada, disse que foi brinca- “caixa dois é crime contra a democracia” pela alternativa
deira e acusou o “mau humor da esquerda”. “ele já admitiu e pediu desculpas”. Seu pacote anticrime,
Marcelo Bretas e Wilson Witzel (ex-juiz, ainda embebi- já vimos, serve à filosofia hardcore, mas ele o explica com
do no éthos magistocrático) completam o trio. A perfor- toda a serenidade e sem apego a evidências.
mance de Bretas está nas redes sociais, que considera um Por fim, o ministro Toffoli propõe um “pacto repu-
espaço privado onde exerce liberdade de expressão. Ali, blicano” entre os Três Poderes na elaboração de “ma-
ironiza quem critica seu auxílio-moradia, curte postagens crorreformas estruturantes”. Ali estão a da Previdência,
de Jair Bolsonaro, festeja o novo governo — que entende a tributária, a da repactuação federativa, entre outras.
ser marcado por ministros técnicos no lugar dos ideológi- Não especifica, contudo, o que mais lhe caberia como
cos —, divulga fotos de seu treino na academia militar chefe do Judiciário — os sacrifícios que a magistocracia,
com fuzil e na academia de ginástica com camiseta regata. estamento mais privilegiado do Estado brasileiro, que
Afirmou dias atrás que a ação policial goza de “presunção habita o 0,1% mais alto da pirâmide social, faria em no-
de legitimidade” até que se prove o contrário e que, “em me dessas reformas. Na verdade, não especifica nada de
situação de legítima defesa, o policial tem o DIREITO DE concreto, apenas a promessa de boa vontade.
MATAR o agressor”. Foi assim, em caixa-alta, sem nenhu- Há pouca coisa menos republicana que a proposta. A
ma qualificação sobre o tipo de agressão ou a proporcio- filosofia do republicanismo defende o oposto: pede distri-
nalidade da reação, como quer a doutrina penal moderna. buição do poder e controle recíproco de uma agência go-
O “direito de matar”, em caixa-alta, soa como música pa- vernamental sobre a outra. Exige participação social e
ra Witzel. Amigo de Bretas, foram juntos num jato da FAB à contestação pública, a antítese de uma negociação palacia-
posse de Bolsonaro. Pouco importa que, durante a campanha, na. “A fase em que os Poderes estavam em conflito passou”,
decisões de Bretas, corretas ou não, tenham afetado adversá- declarou. Não sabemos se combinou com seus colegas esse
rios do amigo. Witzel é figura folclórica na magistocracia e esforço colaboracionista. Eufemismos à parte, o “pacto re-
não se constrangeu pela divulgação do vídeo em que expli- publicano” é uma pérola antirrepublicana.
cava a juízes sua “engenharia” para burlar o sistema e ga- Em comum, o Febejapá new age tem alergia à divergên-
nhar a “gratificação de acúmulo”. Seu protocolo policial é cia e ao contra-argumento. Seu pendor anti-intelectual des-
“mirar na cabecinha e fogo, para não ter erro”. Sua polícia, preza o argumento dos “especialistas”. Desqualificam o crítico
nos últimos dez dias, matou 42 pessoas. Sua “política do em vez de responder à crítica. Temem a esfera pública.

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