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O imperador Nero e as perseguições

aos cristãos no I século D.C.: um estudo


da obra Annales de Tácito1

Semíramis Corsi Silva 2

William Bottazzini Rezende 3

Resumo: O presente artigo visa, à luz da obra Annales do historiador romano Cornélio
Tácito (55 - 120), à análise da primeira perseguição sistemática perpetrada pelas potên-
cias imperiais efrentada pelos cristãos durante o regime de Nero (54 – 68). Procuraremos
compreender não apenas o desenrolar da perseguição em si, mas o contexto e a motiva-
ção que influenciaram a inclusão deste episódio na composição dos Annales. Trataremos
também de analisar o uso de determinados termos empregados por Tácito durante a sua
narrativa e a sua relação com o pensamento do próprio autor, bem como buscaremos
compreender qual era a situação dos cristãos na capital do Império por volta do terceiro
quartel do primeiro século.

Palavras-chave: Império Romano. Nero. Tácito. Annales.

1
A ideia sobre a elaboração deste artigo surgiu durante a apresentação de um trabalho pelo dicente Wil-
liam Bottazinni Rezende na disciplina História Antiga II do curso de História do Centro Universitário
Claretiano de Batatais (SP), ministrada pela Profa. Ms. Semíramis Corsi Silva.
2
Mestre e Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP de Franca). Docente do
Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <semiramiscorsi@claretiano.edu.br>.
3
Acadêmico do curso de História pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). Ministra palestras
e aulas sobre temas ligados à História do Cristianismo e da Igreja Católica na cidade de Pouso Alegre (MG).
E-mail: <williambottazzini@yahoo.com.br>.

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1. INTRODUÇÃO

Há muitos estudos e comentários a respeito das perseguições sofri-


das pelos cristãos no seio do Império Romano. Entretanto o que muitas
vezes nos chega são relatos que reduzem a questão das perseguições per-
petradas pelos imperadores à mera intolerância religiosa. Esquece-se que
é fundamental, para que se tenha uma análise propriamente histórica, en-
tender a conjuntura do período estudado. Podemos observar, desta feita,
que nem sempre a intolerância religiosa foi a força motriz do processo
persecutório.
Outro equívoco bastante comum é considerar indênticas as formas
de perseguição que aconteceram sob o governo de diversos imperadores.
Ora, a motivação para coibir a expansão do cristianismo de Juliano, o
Apóstata (361 – 363 d.C.), por exemplo, era distinta, em vários aspec-
tos, daquela levada a cabo por Diocleciano (284 – 305 d.C.) no alvore-
cer no século IV d.C. É bem verdade, ainda, que devemos ter em mente
que as perseguições não se desenvolveram de maneira uniforme ao longo
de toda a extensão do Império, mas, quando não se limitavam apenas à
capital do Império, foram mais ou menos acentuadas em determinadas
regiões. Portanto, é necessário que haja uma compreensão de cada período
de perseguições, assim como das posíveis motivações de cada Imperador,
que estão diretamente ligadas à problemática de seu contexto. Devemos
lembrar ainda que o período conhecido como Império Romano abarca
um longo momento, desde o hoje conhecido século I d.C.2 até o V século
d.C., tendo aí realidades muito distintas diante das várias transformações
sócio-históricas presentes.
A este propósito, faremos neste trabalho uma investigação sobre a
mais famosa das perseguições: aquela perpetrada pelo imperador romano
Nero (54 – 68 d.C.) na década de sessenta do primeiro século de nossa era.
Sem embargo, nos restringiremos a analisar esta perseguição tendo por

2
Muitas datas são propostas como marco do início do Império Romano. Para nós, o Império deve ser mar-
cado com início em 27 a.C. quando pela primeira vez um general romano passa a receber uma série de títu-
los honoríficos como o de Imperator, esse general era Otávio, conhecido também pelo título de Augusto.

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base as informações que nos são fornecidas por um historiador e aristro-
crata romano: Cornélio Tácito (55 – 120 d.C.).
Tácito procurou descrever o que se passara naqueles dias tensos que
sucederam ao grande incêndio que devastou a capital imperial, e entender
o que motivou Nero a tomar as decisões que tomou. Optamos por re-
ter nosso foco sobre o trabalho de Tácito por duas razões principais: em
primeiro lugar, Tácito viveu no Império, embora ainda estivesse na aurora
da puberdade, durante os acontecimentos que se propôs a narrar anos
mais tarde, de forma que não é de todo falso julgar que, quando começara
a escrever sua obra-prima, os Annales, o mesmo ainda retivesse em sua
memória informações a respeito do desenrolar dos fatos em Roma que,
seguramente, percorriam o Império, que, por sua vez, seriam complemen-
tares àquelas que podiam ser encontradas nos documentos que consul-
tou para a elaboração da referida obra; em segundo lugar sua descrição
sobre esta primeira perseguição é mais completa do que aquela que nos
foi legada por Suetônio (69 – 130 d.C.), outro escritor romano contem-
porâneo a Tácito, que se limitou a dizer que durante o regime de Nero
“[...] também punições foram infligidas aos cristãos, uma seita que profes-
sava superstições novas e danosas” (SUETONIUS, The twelve Caesars,
VI, 16)3, o que, como fica-nos evidente, é assaz insuficiente para que pos-
samos fazer qualquer estudo mais pormenorizado do fenônemo. Suetônio
não faz nenhuma ligação entre o incêndio de Roma e o início da primeira
perseguição contra os cristãos, apenas pontua que Nero foi o responsável
pelo mesmo (SUETONIUS, The twelve Caesars, VI, 16). Para alcançar-
mos nossos objetivos, portanto, este trabalho visa traçar o perfil sócio-
histórico de Tácito e tentar compreender qual era a sua posição em relação
ao que escrevia. Afinal, acreditamos que é necessário ler Tácito dentro do
contexto cultural e histórico no qual o historiador estava inserido. A obra
de Tácito que nos servirá de base para tratarmos do tema que propomos
será os Annales.

3
As traduções contidas neste artigo, como esta do inglês para o português, são de autoria do autor Wil-
liam Bottazinni.

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2. CORNÉLIO TÁCITO

O local de nascimento de Públio Cornélio Tácito é-nos incerto. Sa-


bemos, no entanto, que o mesmo viveu entre os anos 55 e 120 de nossa era.
O pouco que sabemos sobre o renomado escritor romano foi-nos revelado
por ele mesmo ao longo de seus escritos, pelas cartas que seu amigo Plínio,
o Jovem, lhe endereçou e por descobertas arqueológicas tais como a da
cidade de Mylasa onde ele exerceu o proconsulado entre 112-113.
Tácito desempenhou importantes funções dentro do Império como
questor, pretor, tribuno da plebe, quindecêmviro e, mais tarde procônsul
da Ásia, uma das razões pelas quais podemos entender porque ao longo
de sua obra ele faz tantas referências à Ásia (WOODMAN, 2004, p. 10).
Pode-se inferir a partir de tais dados que Tácito provavelmente possuía
uma linhagem patrícia, uma vez que tais posições eram necessariamente
desempenhadas por homens considerados “bem-nascidos”, fazendo parte,
assim, da mais alta aristocracia romana, sua família era de origem esqüestre
(uma das ordens sociais da elite romana). Além disso, no ano de 77 ele se
casa com a filha do cônsul Júlio Agrícola ( JOLY, 2004, p. 38), o que lhe
rendeu alianças de poder e prestígio, já que os casamentos entre membros
da elite romana tinham esta função. No mesmo ano de 77, Tácito adentra
a ordem senatorial, a mais alta camada da elite romana.
Como grande parte dos aristocratas romanos do período, Tácito,
provavelmente, nutria uma afeição especial à forma republicana de gov-
erno. Para compreender este aspecto, devemos ter em mente o contex-
to político em que Tácito viveu. Embora tenha tido uma vida política
e socialmente confortável sob os imperadores Nerva (96-98) e Trajano
(98-117), Tácito tinha presenciado o período de governo de Domiciano
(81-96), considerado negativo pela elite da época, que, seguramente, o im-
pressionaram de maneira definitiva. Sob Domiciano, Tácito viu cidadãos
proeminentes da sociedade aristocrática serem executados a mando do
imperador porque este se via constantemente ameaçado.
O historiador Tácito, ao escrever, demonstrava preocupar-se muito
com uma visão moralista da sociedade. A este propósito, Joly diz-nos que:

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[...] se o aspecto moral é marcante em seus escritos, isso é devido a
uma concepção pragmática de história, em que a representação de
determinados episódios históricos visa a estabelecer uma identidade
cultural com seus leitores e propor regras de conduta no contexto do
Principado. ( JOLY, 2004, p. 56).

Vemos, deste modo, que é extremamente perturbador para ele ver o


que os imperadores faziam inescrupulosamente, muitas vezes, apenas para
se manterem no poder. Por esta razão ele está convencido de que sua época
passa por um processo de degeneração, embora isto seja amenizado pela
existência de verdadeiras virtudes nobres. Não obstante, Tácito nota que
esta degeneração é fruto do sistema imperial vigente.
Já o artigo referente a Tácito da Encyclopedia Britannica nos revela
que “[...] Tácito estava mais preocupado com a ética do que com a política”
(1957, p. 735) . O supracitado artigo ainda acrescenta que:

apesar de sentir que o mundo está “de cabeça para baixo” – com um
certo sentimento de simpatia ele pode observar a era da “liberdade” e
admirar a época heróica da República – ainda assim ele parece estar
convencido de que o Império é uma necessidade prática, e até mesmo
benéfico para as províncias.(ENCYCLOPEDIA BRITANNICA,
1957, p. 735).

Mas no sentido de “necessidade prática”, Joly (2004, p. 53) atesta


que, através dos olhos taciteanos, o “Principado4 é visto de maneira posi-
tiva pela estabilidade que proporcionou [...]”.

4
Compreendemos Principado como o governo do Princeps (Imperador romano). Os historiadores uti-
lizam o termo Principado para referir ao período corresponde aos primeiros séculos do Império Romano
(séculos, I, II e primeira metade do III d.C.).

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3. OS ANNALES5

Conforme nos informa Joly (2004, p. 44), nos Annales, uma das
obras-primas da História escrita entre os anos 115 e 120 de nossa era,
Tácito faz uma análise do período “[...] entre a morte de Augusto (14
d.C.) e a de Tibério (37 d.C.) (seis primeiros livros), os anos 47 a 54 do
Principado de Cláudio [...] e o governo de Nero até 66”.
Segundo a historiadora Juliana Bastos Marques (2010, p. 45).

Os Anais são a obra que representa a maturidade intelectual de Táci-


to, escrita entre o Principado de Trajano e o de Adriano. Por sua im-
portância, tanto na tradição historiográfica latina quanto na forma-
ção do pensamento político ocidental, tem-se hoje disponível uma
gama extremamente vasta de estudos sobre a obra [...].

Lamentavelmente, esta obra não nos chegou completa. Apenas nove


livros estão na íntegra. O restante são fragmentos. Daquilo que sobre-
viveu ao tempo, temos informações de apenas quarenta dos cinquenta e
quatro anos que os Annales se propõem a narrar. (ENCYCLOPEDIA
BRITANNICA, 1957, p. 736).

Durante o século XIX duvidou-se que Tácito houvera escrito os


Annales, uma vez que os manuscritos mais vetustos que temos datam do
século X ou XI. Em 1878 tentou-se provar que os trabalhos de Tácito
eram falsos e tinham sido forjados pelo italiano Poggio Bracciolini, um
erudito século XV. No entanto, após o término das análises, chegou-se
à conclusão de que os documentos são autênticos. (ENCYCLOPEDIA
BRITANNICA, 1957, p. 736).

5
A tradução do nome da obra Annales para o português é Anais. Em geral encontramos textos historiográfi-
cos trazendo a obra com seu título traduzido. Nós, porém, preferidos utilizar o título no original em latim,
conforme indicações do Oxford Classical Dictionary.

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Ademais, o monge Rudolphus do século IX já demonstrava conhec-
er ao menos os dois primeiros livros de Tácito. Podemos ainda acrescentar
que Jerônimo já garantia que Tácito escrevera 30 livros relatando a vida
dos Césares. Outro fator que comprova a autenticidade dos Annales é o
estilo, o mesmo dos demais autores do primeiro século, em que foram es-
critos. Hoje está fora de questão colocar em dúvida a autenticidade da au-
toria dos Annales. (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 1957, p. 736).
Para compor os Annales ele usou os documentos aos quais tinha
acesso (acta diurna, acta senatus, acta populi) a fim de retratar o que se
passava no período em que vivia e antes. Outro fator que precisamos
destacar o fato de Tácito ter exercido altas funções no Império, o que, sem
dúvida, lhe permitia acesso a documentos que eram incógnitos à maioria.
O tema da obra é a descrição das ações dos Imperadores e delinemanto e
julgamento sobre o caráter dos mesmos. Seus escritos nos forneceram um
bom quadro geral da situação do Império no final do primeiro século na
visão de um membro da elite senatorial. (ENCYCLOPEDIA BRITA-
NNICA, 1957, p. 736).

4. TÁCITO E A INVESTIDA DE NERO


CONTRA OS CRISTÃOS

Logo no início dos Annales, Tácito apresenta as razões pelas quais


decidiu escrever, da maneira que escreveu, a respeito de um período espe-
cífico. Assim, avança o romano:

Os romanos de outrora, entretanto, tiveram seus êxitos e adversidades


rememorados por escritores brilhantes; e para narrar a respeito dos
tempos de Augusto não faltaram talentos dignos, até que fossem dis-
suadidos pelo avolumar-se da adulação. As ações referentes a Tibério
e Caio, bem como aquelas referentes a Claudio e Nero, foram falsi-
ficadas pelo terror, e os próprios homens as enchiam de ornamentos,
e após a queda daqueles, eram recompostas com ódio renovado. Por
este motivo, meu plano é escrever poucas coisas a respeito de Au-

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gusto e da parte final de seu período, e a respeito do Principado de
Tibério e dos demais – sem ira ou parcialidade, razões pelas quais eu
me mantenho à distância. (TACITUS, Annals, 1, I).

Como observado por Joly (2004, p. 54), há neste trecho uma alusão
de Tácito aos componentes políticos inerentes à narrativa histórica . Ob-
viamente, a pretensa imparcialidade alegada não pode ser real, uma vez
que Tácito estava inserido em um contexto e em uma camada social espe-
cíficos, que condicionava sua maneira de perceber a história.
Joly (2004, p. 55), ainda conclui que:

[...] a ênfase de Tácito na imparcialidade da história, é, no fundo,


uma estratégia retórica, que acaba por reforçar a tese do engajamento
político da historiografia, reflexo dos mecanismos de promoção so-
cial do Principado, que dependiam de uma vinculação ao imperador.

Assim, começamos a perceber que Tácito, sofrendo da mesma par-


cialidade pela qual julgava os outros historiadores romanos, escreveu com
detalhes sobre a perseguição de Nero, porque no seu próprio tempo os
cristãos passavam por perseguições, embora em menor escala, promovi-
das pelo Estado, e de alguma forma, tratar a respeito destas perseguições
da maneira como ele tratou proporcionaria algum tipo de vinculação ao
imperador vigente. A pretensa imparcialidade era apenas uma máscara.
Lembremos, como bem nos atenta André Leonardo Chevitaresse
(2006, p. 166), que Tácito é a única documentação romana que temos
conectando os cristãos ao grande incêndio de Roma no verão de 64.
Após narrar sobre o grande incêndio que se abateu sobre Roma e as
suspeitas que circulavam pela Cidade de que o mesmo havia sido provo-
cado pelo próprio Nero, escreveu Tácito:

Então, para acabar com os rumores, Nero forjou culpados e lhes in-
fligiu as mais atrozes punições naqueles, detestados por suas abomi-
nações, a quem o vulgo apelidava de Chrestianos. (A fonte do nome
era Chrestos, o qual, durante o governo de Tibério, fora enviado ao

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suplício pelo procurador Pôncio Pilatos; e, embora esta superstição
execrável tenha sido contida por um momento, ela ressurgiu, não ap-
enas na Judéia, a origem deste mal, mas também na Cidade, onde,
independetemente da origem, converge tudo o que é temível e ver-
gonhoso e ali é celebrado).
Os primeiros a serem presos eram aqueles que confessavam, então,
através de suas informações, um grande número de pessoas foi acusa-
do, não tanto de ter ateado fogo à Cidade, mas de ódio contra a raça
humana. E, conforme eles pereciam, zombarias eram acrescidas, tan-
to que, cobertos com peles de animais selvagens, eles morriam devido
às mutilações que os cães lhes infligiam, ou, fixados a cruzes, eram
queimados, e no cair da noite eram usados para a iluminação notur-
na. Nero forneceu seus jardins para o espetáculo e ofereceu jogos cir-
censes misturando-se com a plebe disfarçado de condutor de carro de
guerra ou em sua própria biga. Daí que surgiu – embora os acusados
merecessem o tratamento mais exemplar - um sentimento de pie-
dade, embora tal não fosse motivado pelo interesse público, mas pela
selvageria de um único homem, que eles estavam sendo eliminados.
(TACITUS, Annals, XV, 44).

Muitos aspectos deste trecho nos chamam a atenção. Primeiramente


podemos observar que Tácito acusa Nero de ter “forjado culpados” (TA-
CITUS, Annals, XV, 44) para o incêndio que destruíra boa parte de Roma.
Ora, o historiador Daniel-Rops (1956, p. 179) sustenta uma posição hoje
consensual entre diversos historiadores e nos lembra que à época do in-
cêndio Roma era uma “cidade sobrepovoada, onde numerosas habitações
amontoadas e construídas de madeira eram pasto fácil das chamas”. Assim,
muito provavelmente o incêndio tenha começado de forma acidental, no
entanto a mente do vulgo procurava de qualquer maneira um responsável,
afinal não pode haver “acaso” onde os deuses governam. A este propósito
nos informa Daniel-Rops (1956, p. 180) que “[...] avolumou-se o boato de
que houve quem visse os seus criados (de Nero) percorrendo, com archo-
tes na mão, os bairros humildes da cidade”.
Assim, pouco a pouco, as acusações de que o incêndio havia sido
proposital recaíam sobre Nero que, para esquivar-se, encontra nos cris-

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tãos, já mal-vistos pela população, o bode expiatório que necessitava. Per-
cebemos o tom de censura que Tácito utiliza enquanto narra estes fatos,
pois logo no início da missiva ele acusa Nero de ter forjado culpados e
parece lamentar que Nero tenha agido da maneira como agiu “[...] pela
selvageria de um único homem” (TACITUS, Annals, XV, 44). No en-
tanto, devemos nos lembrar de que Tácito possuía ideais republicanos e
que para ele os imperadores sempre procuravam se manter no poder, inde-
pendentemente de qualquer valor moral, o que, a seu ver, era desprezível.
Assim, para Tácito, podemos concluir que Nero não teria fugido à regra.
Devemos considerar que existiu uma tradição, entre os escritores
romanos como Suetônio, Plínio, o antigo, ente outros, que considerou
Nero um Imperador ruim, cheio de problemas de governo e de caráter.
Percebemos que Tácito fez parte desta tradição e que junto com estes de-
mais escritores é considerado como responsável pela criação negativa de
uma imagem de Nero.
Todavia, Bihlmeyer e Tuechle (1989, p. 105) discordam da inter-
pretação de críticos modernos de que Tácito teria acrescido inverdades à
narrativa com o escopo de manchar a imagem do imperador Nero para a
posteridade. Não obstante, os autores citados alhures admitem que “[...]
nesta narração existe algum ponto que permanece obscuro”. (BIHLMEY-
ER; TUECHLE, 1989, p. 105).
Outro ponto interessante é que Tácito afirma que os cristãos eram
“[...] detestados por suas abominações” (TACITUS, Annals, XV, 44). Afi-
nal, que abominações seriam essas que tanto escandalizavam os romanos
do início do século II? Hamman (1997, p. 94) parece ter a resposta:

A celebração eucarística, na qual o bispo diz: isto é o meu corpo, isto


é o meu sangue, era apresentada como um rito canibal: os cristãos
imolariam uma criança viva como no festim de Tiestes. Todos os
apologistas viam-se obrigados a desfazer esse boato, que ia de cidade
em cidade, no século II.

Ora, o mesmo vulgo que produzia imagens infamantes sobre a pes-


soa do imperador parecia também produzir uma visão negativa a respeito

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da então desconhecida crença cristã, embora Tácito não pareça concordar
com a ligação dos cristãos e o incêndio. Mais adiante Tácito revela que a
acusação de que os cristãos teriam propositalmente incendiado Roma pas-
sa a ser uma questão de segundo plano, já que mais grave, e por isso mere-
cedora de castigos exemplares, o que justificaria o tratamento desumano
sofrido pelos cristãos do período, era a acusação de “[...] ódio contra a raça
humana” (TACITUS, Annals, XV, 44). Percebemos que Tácito já pos-
suía uma opinião formada sobre o cristianismo6, o qual ele denomina de
“execrável superstição” (TACITUS, Annals, XV, 44) e “mal” (TACITUS,
Annals, XV, 44). O historiador eclesiástico Daniélou faz uma interessante
observação a respeito deste texto de Tácito:

Ao lado da reprovação de atividade sediciosa, ligada ao messianismo, nós


vemos aparecer aquele de odium humanis generis. A expressão traduz o
termo grego misanthropia. Tal acusação já tinha sido feita contra os ju-
deus e foi renovada contra os cristãos, juntamente com as de adoração
de um asno, de morte ritual e de incesto. (DANIÉLOU, 1965, p. 113).

Outrossim, através do escrito de Tácito podemos ter uma ideia mais


clara daquilo que os pagãos da elite romana pensavam dos cristãos do
primeiro e segundo séculos. Ademais, vemos, por este estudo, que com
os escritos de Tácito começa a haver uma distinção mais clara, para os
pagãos, entre judeus e cristãos. No entanto, as acusações que recaíam so-
bre os cristãos são inspiradas naquelas que outrora recaíram sobre os ju-
deus. (DANIÉLOU, 1965, p. 113).
Já em outra parte da narração, chama-nos à atenção a grafia das pa-
lavras Chrestos e Chrestianos que aparentemente teriam sido escritas de

6
Não vemos problema em utilizar os termos “cristianismo” e, eventualmente, “Igreja Católica”, para este
período que estamos retratando, haja vista a existência destes termos já no primeiro século. No livro dos
Atos dos Apóstolos encontramos a seguinte menção: (...) e foi em Antioquia que os discípulos, pela primei-
ra vez, receberam o nome de “cristãos” (Atos 11:26). E é um bispo de Antioquia, o que por si só já mostra
uma certa hierarquia na Igreja primitiva, Inácio, que ao escrever uma epístola para a Igreja de Esmirna, dirá:
Onde comparecer o Bispo, aí esteja a multidão, do mesmo modo que, onde estiver Jesus Cristo, aí está a
Igreja Católica (Epístola aos Esmirnenses 8).

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maneira equivocada por Tácito. No entanto, Suetônio também faz uso do
termo “Chrestos” neste trecho em que narra a decisão do imperador Cláu-
dio (41 – 54 d.C.) de expulsar os judeus de Roma (podemos perceber que
nos tempos deste imperador, predecessor imediato de Nero, os romanos
não distinguíam judeus de cristãos): “[...] uma vez que os judeus em Roma
provocavam distúrbios continuamente sob a instigação de Chrestos, ele
[Cláudio] os expulsou da cidade”. ”(SUETONIUS, The twelve Caesars, V,
25). Para Daniélou (1963, p. 113) estas palavras para se referirem a Cristo
e aos cristãos “são garantidas pela oposição do nome ‘cristão’ e a acusação
de abominação, o que supõe um jogo de palavras com χριστός (christós) e
χρηστός (chrestós), bom”. Por esta via, o autor alega que Tácito ironiza ao
chamar de “bons” aqueles que, supostamente, praticavam abominações e
odiavam o gênero humano.
As preocupações éticas de Tácito com os rumos que a cidade de Roma
tomava parecem ser bastante claras neste desabafo: “[...] Cidade, onde, in-
dependetemente da origem, converge tudo o que é temível e vergonhoso”
(TACITUS, Annals, XV, 44). O que desperta a atenção é o fato de Tácito
fazer uso da palavra “tudo”, ou seja, para ele a decadência moral de Roma
não está restrita apenas à religião, assunto pelo qual Tácito parece demon-
strar pouco interesse, mas aos costumes de maneira geral. O historiador
romano, como um típico membro da alta elite desta época, parece temer
o sincrestismo cultural crescente que acontecia na cidade das sete colinas.
E podemos afirmar, sem receios, que o cristianismo era um dos prin-
cipais fatores considerados como “contaminação” da cultura pagã romana.
Tácito, enquanto narra sobre as perseguições perpetradas pelo imperador-
artista Nero, alega que “[...] um grande número de pessoas foi acusado”
(TACITUS, Annals, XV, 44; grifo nosso). Esta frase nos permite ver
claramente o poder de penetração do cristianismo, já que apenas cerca de
trinta e cinco anos após a morte de Jesus, a nova fé havia arrebanhado um
grande número de pessoas, isto apenas na cidade de Roma ( JEDIN, 1966,
p. 210). Isto fica mais evidente no fato de que:

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Apenas fundado, o cristianismo já se espalhava como fogo no matagal.
Se nele os pobres e os humildes são a maioria, como na vida, desde a
primeira hora ele recruta discípulos em todas as classes da sociedade.
Essa interpenetração não é menos notável do que a expansão geográ-
fica; uma e outra põem abaixo as barreiras sociais, étnicas e culturais,
não por oposição, mas por fraternidade. (HAMMAN, 1997, p. 41).

É evidente que ao observar tudo isso, o republicano e conservador


Tácito deve ter se preocupado com os rumos de Roma.
Por fim, devemos ainda considerar que a mudança de comporta-
mento de Nero com os cristãos, que até 62 e inícios de 63 não tinham sido
perseguidos enquanto tal, coincide como uma mudança geral de política
por parte deste Imperador. Há neste mesmo período uma mudança em
relação aos membros estoicos da camada dirigente, há a saída pública de
cena de Sêneca7, assismilação de atributos orientais por Nero, entre out-
ras questões (CHEVITARESE, 2006, p. 165-166). Tácito não deixou de
bem comentar todas estas mudanças em sua obra.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quadro desenhado por Tácito sobre esta primeira perseguição


aos cristãos nos possibilita redimensionar noções ainda carentes de mel-
hores formulações a respeito do tema que estamos tratando. Ao con-
trário do que comumente se acredita, Tácito deixa claro que esta primeira
perseguição não se deveu ao fato de uma suposta crença religiosa romana
de que a fé cristã poderia desestabilizar o Império Romano por ser um es-
pécie de provocação aos deuses. Estes não foram os fatores que motivaram

7
Sêneca foi um filósofo estoico e preceptor do jovem Nero. Fazia parte da ordem senatorial e ocupou
posições na corte imperial no governo do imperador Cláudio (41-54). Foi trazido de seu exílio em Córsega
por Agripina, a mãe de Nero e mulher de Cláudio, a fim de ser o preceptor do futuro imperador. Recebeu
ordens para se matar em 65 após envolvimento em conflitos políticos (HARVEY, 1998, p. 458).

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Nero a perseguir os cristãos ( JEDIN, 1966, p. 210). Para Jedin, “Nero se
aproveita sem escrúpulos, para seus planos, da hostilidade pagã contra os
cristãos, mas não tenta com isso ferir a fé cristã como tal” (1966, p. 210).
Outro ponto digno de destaque é o caráter essencialmente restrito
desta perseguição. Hamman lembra que esta perseguição foi “estritamente
urbana” (1997, p. 63). Assim seria despropositado alegar que a reação de
Nero tenha se estendido por todo o Império. Não obstante, “a impressão
deixada por essa perseguição no mundo romano foi forte e durável; de en-
tão em diante o nome de cristão foi banido e ferreteado como coisa crimi-
nosa, digna de morte” (BIHLMEYER; TUECHLE, 1989, p. 105).
Se mesmo sem as perseguições a fé cristã parecia difundir-se de
forma extraordinariamente rápida, tem-se a impressão de que o início do
processo persecutório acelerou a difusão e ampliou o alcance do cristian-
ismo, até então restrito às orlas do Mediterrâneo. A este propósito Tertu-
liano8 clamará: “Nos tornamos mais numerosos cada vez que nos ceifais:
o sangue dos cristãos é uma semente” (Apologético, L,13). Sob este prisma,
vemos que o que Nero plantara foi imortalizado pelas mãos e pelo olhar
de Tácito. Além disso, podemos perceber como Tácito corrobora com a
visão negativa da tradição literária de sua época sobre o Imperador Nero.

REFERÊNCIAS

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Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2004.

8
Escritor cristão nascido na Capadócia entre 150 e 160 d.C., aproximadamente. De suas obras, a mais
conhecida foi Apologeticus, escrito em 197 (HARVEY, 1998, p. 485).

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1867. (vol. 1: the apostolic fathers).

Title: The emperor Nero and the persecution of christians in the first century A.D.: A
study of Tacitus’work annales.
Author: Semíramis Corsi Silva; William Bottazzini Rezende.

ABSTRACT: The aim of the present article is, in the light of the work Annales of the
Roman historian Cornelius Tacitus (55 A.D. – 120 A.D.), to analyze the first systematic
persecution perpetrated by the imperial forces and faced by the Christians during the
regime of Nero (54 A.D. – 68 A.D.). Our goal is to understand not only the develop-
ment of the persecution itself, but the context and the motivation that influenced the
inclusion of this episode in the composition of the Annals. We will analyze the usage of
some terms employed by Tacitus in his account and their relation to the thoughts of the
author himself, and we will also examine the situation of the Christians in the capital of
the Empire around the third quarter of the first century.
Keywords: Roman Empire. Nero. Tacitus. Annals.

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