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Poetas sem qualidades: em

busca da contemporaneidade
possível
Poetas sem qualidades: In search of a possible
contemporaneity

Luis Maffei

Resumo
Surge uma nova tendência na literatura portuguesa, uma nova geração, que se mostra numa anto-
logia de nome Poetas sem qualidades. Esta poesia manifesta uma relação forte com a realidade, e propõe,
a partir de uma nova dicção poética, a adoção de parâmetros distintos não apenas para o fazer poético, mas
também para a recepção de poesia. Desse modo, boa parte do que se fez em literatura portuguesa no século
XX dará lugar a um modo que convidará o prosaico e o pequeno, o sem qualidade, mas sem que exista um
esquecimento de certos nomes decisivos da história dessa literatura, como Pessoa e, sobretudo, Camões.
Palavras-chave: poesia portuguesa, poetas sem qualidade, real.

Abstract
A new trend appears in Portuguese literature – a new generation, which is presented in an anthology
named Poets without qualities. This poetry manifests a strong relationship with reality, and proposes,
from a new poetic diction, the adoption of distinct parameters not only for the poem-making, but also for the
reception of poetry. Thus, a great deal of what was done in the twentieth century- Portuguese literature will
be replaced by a mode that deals with things that are prosaic, small and have no quality. However, certain
decisive names of this literature’s history, such as Pessoa and Camões, will not be disregarded.
Key words: Portuguese poetry, poets without qualities, reality.

Não sem surpresa foi recebida a publica- a cumprir (2002, p.9): “A um tempo sem quali-
ção, em 2002, duma pequena coletânea de poe- dades, como aquele em que vivemos, seria no
mas, com pouco mais de cem páginas, intitula- mínimo legítimo exigir poetas sem qualidades”.
da Poetas sem qualidades. Surge um novo movi- Coerência esta que, na lógica adotada por Frei-
mento na poesia portuguesa? Surge, decerto, tas (cumpre ressaltar que Manuel de Freitas tem
aquilo que Manuel de Freitas, organizador e uma produção poética, ainda que recente, já
prefaciador do volume, aponta como coerência relativamente vasta, mas não comparece com

Luis Maffei é doutorando em Literatura Portuguesa pela UFRJ, onde lecionou em 2004 e 2005. É também poeta, autor de A (Oficina Raquel, 2006).
Endereço para correspondência: Rua Santa Amélia 88/408, Bloco A2, Tijuca, Rio de Janeiro/ RJ, CEP 20260-030. E-mail: luis.maffei@terra.com.br

Canoas n. 14 jul./dez. 2006 p.5-14


poemas ao volume aqui citado, apenas com o vantes questões do fazer poético, e os poetas sem
prefácio e a organização), necessita de uma his- qualidades, por outro lado, procurarão, ainda
toricidade contornada por boa parte da poesia que em poesia, um mais forte pacto com o mun-
portuguesa do século XX, e o exemplo disto que do e suas “arestas”.
se vê como falta pode ser localizado no nome Ainda que surja outro nome fortíssimo
de Nuno Júdice, poeta que, segundo Freitas do século XX português no prefácio a Poetas
(2002, p.12,13), “poderia parecer (...) um Antero sem qualidades, este se localiza num terreno acei-
fascinado pela biografia de Kleist ou um con- tavelmente distinto e, por isso, não serve de
temporâneo bizarro de Sá de Miranda”: é Júdi- parâmetro (FREITAS, 2002, p.13), o “poeta –
ce o autor, por exemplo, de um “Salmo” (2004, português, vivo – que melhor tem dado voz a
p.48): “Aceita a substância do vento, confunde- uma quase esmagadora intemporalidade: Her-
te com ela”; nada mais distante da proposta berto Helder. Mas a uma génio tudo se perdoa”,
duma poesia “sem qualidades” o misturar-se mesmo porque é Herberto Helder quem forne-
com “a substância” do vento, num sálmico exer- ce a epígrafe à antologia (2002, p.5): “Os poetas
cício lírico que Teresa Almeida (apud JÚDICE, estão a avançar com uns vagares de galinholas.
2004, p.8) entende como a proclamação do “tri- Porra”. Mas é urgente salientar que poucas cita-
unfo da poesia sobre o mundo”: o mundo, cla- ções a Herberto Helder representá-lo-iam tão
ro, será dos temas fulcrais da poesia que se des- pouco como a recém-citada, pois é muito raro o
pe da ambição das qualidades. uso do palavrão na poesia herbertiana. Além
E não é apenas Nuno Júdice o nome forte disso, não é exagerado suspeitar que o poeta
do século XX português a ser atacado: menos português contemporâneo menos resgatador
frontalmente, Fiama Hasse Pais Brandão tam- da realidade para sua obra é, justamente, Her-
bém é convocada para que se possa sublinhar a berto Helder; os versos de abertura de um dos
novidade que se apresenta: os poetas reunidos poemas de Do mundo (1996, p.595) revelam este
na antologia (FREITAS, 2002, p.14) “não são (...) distanciamento herbertiano da realidade cir-
limadores das arestas que a vida deveras tem”: cundante: “Se perguntarem: das artes do mun-
a idéia de Fiama, em particular, e da Poesia 61, do?/ Das artes do mundo escolho a de ver co-
em geral, de que o surgimento da peculiarida- metas/ despenharem-se”. Portanto, mesmo
de lingüística que a poesia é faz-se apesar de quando admite o valor (sim, valor, pois o autor
uma opressão que a realidade impõe à lingua- de A colher na boca é considerado um “génio”)
gem manifesta-se claramente num fragmento de de uma dicção distinta da que virá pela antolo-
seu “Grafia 1” (1961, p.1): “onde// as mãos der- gia por si prefaciada, Manuel de Freitas traz o
rubam arestas/ a palavra principia”: agora, sem menos herbertiano Herberto Helder, o menos
qualidades, os poetas não mais “derrubam ares- intemporal exemplo desta “quase esmagadora
tas”, mas as convocam para sua poesia. É im- intemporalidade”.
portante assinalar que a publicação Poesia 61 Mas é Joaquim Manuel Magalhães, no
reuniu cinco poetas, à época jovens, que hoje prefácio de Freitas, que merece o único panegí-
ocupam, de modo mais ou menos decisivo, im- rico coadunado à proposta da geração que se
portantes lugares na poesia portuguesa da se- anuncia (2002, p.13): “se quisermos a cicatriz
gunda metade do século XX; são eles: Luiza pungente de um tempo que é o nosso e das ci-
Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão dades e perfídias que nos matam, é à poesia de
Cruz, Casimiro de Brito e Maria Teresa Horta. Joaquim Manuel Magalhães que teremos de re-
Ainda que insistam os próprios componentes correr ”: assim, é impossível contornar o poema
de Poesia 61 em afirmar que aquela reunião foi sintetizador duma fala poética portuguesa sur-
uma coincidência muito da ordem do editori- gida nos anos 70, “Princípio” (1981, p.48): “Vol-
al, verifica-se, inegavelmente, uma coincidên- tar ao real, a esse desencanto/ que deixou de
cia também de dicção poética: em todos eles, de cantar”: é a realidade que interessou àquilo que,
maneira mais ou menos intensa, existe a pers- nos anos 70, apareceu como sotaque novo, é a
pectiva de que o poema deve ser dotado duma realidade que volta a interessar aos Poetas sem
altíssima densidade corporal: a linguagem, qualidades, sobretudo porque o “desencanto”
logo, torna-se, ela mesma, uma das mais rele- deve voltar ao canto, ou melhor, o “desencan-

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to” deve ser comunicado; afirma Freitas que os na lírica. Assim sendo, não apenas se parte do
poetas prefaciados “Comunicam, em suma”. E, real rumo a uma transfiguração desse mesmo
claro, a ausência de qualidades dirá muito des- real: quem fez isto, de modo insuperável, foi a
sa confessada vocação comunicativa, dessa am- espécie de flâneur finissecular de nome Cesá-
bição de dar conta duma realidade que não diz rio Verde, que viu sua Lisboa e a pôs numa gra-
apenas daquele que a escreve, ou, a escrevê-la, ve historicidade e numa espessa densidade psi-
comete sobre ela um ato de transfiguração, mas cológica e simbólica que, gradativamente, reti-
também do outro, do receptor, co-vivente de ra o poema da cidade e faz com que o sentimento
semelhantes vivências. passe a ser não exatamente dum ocidental, mas
A poesia como algo que parte da experi- dum individuo, sobretudo; parte-se, agora, nes-
ência (que não se perca de vista o interesse de ta poesia sem qualidades, do real, mas para que
Joaquim Manuel Magalhães pela espanhola Po- a poesia, dele não saindo, descubra nesse mes-
esía de la experiencia, dela tradutor e divulgador mo real outras hipóteses de realidade: a “ener-
em Portugal) se mostra já no primeiro dos anto- gia” é conta de luz mas é também vitalismo, e o
logizados, Carlos Alberto Machado (2002, p.21): sujeito poético pensa, sim, “no fim do mês”.
Cumpre ressaltar, porém, que existe ao
Não é que não pense no fim do mês menos uma outra presença literária portuguesa
até já pus o íman no contador neste poema, o que o coloca, desde logo, num
angustia-me tanta energia invisível espaço tenso: “esvai-se a casa”, convida-se a es-
penso no fim do mês e da vida vaída casa de Camilo Pessanha (1989, p.36): “Ó
e não sei o que me dói mais minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova./
os olhos abertos da minha filha Olha a noite. Olha o vento. Em ruína a casa
esperam por saber como perguntar nova...”: não é casual, decerto, que a figura da
o teu pai filha ainda espera respostas mãe compareça ao poema de Camilo Pessanha
ou como construir as perguntas certas e Carlos Alberto Machado traga para o seu a
esvai-se a casa e eu com ela presença da filha, outra figura feminina, por
preocupado com as respostas excelência, de forte representatividade. Portan-
com as sobras das perguntas to, é neste lugar difícil entre o real circundante
enredo as palavras e embalo-as. e o intertextual que se localiza o sotaque de
Machado, que logra, também a partir de encon-
Convencionalmente, o “fim do mês” não tros surpreendentes como o da conta de luz com
é assunto de poesia, é aresta, é sujeira no olho a luz vitalista herdeira dum Campos ou dum
do poeta: do mesmo modo a conta de luz. Po- Herberto Helder, desvendar o que há de per-
rém, não deixa de haver um redimensionamen- manente no precário; acerca desta tensão, afir-
to da mesma conta de luz no poema de Macha- ma António Guerreiro (2003, p.17):
do, pois a eletricidade, a “energia invisível”,
comparece aqui e faz com que seja possível pen- (...) quem acusa este tipo de poesia de não se afastar
sar numa certa poesia portuguesa que tem o suficientemente do imediato, de se moldar pela
tema da eletricidade como, grosso modo, lugar banalidade da vida quotidiana, esquece-se muitas
de incontáveis metaforizações redundantes na vezes que, neste caso, o golpe da magia poética,
própria idéia de vitalismo, ou vida mesmo: que quando é conseguido, consiste precisamente em
se pense em Álvaro de Campos a escrever sob interromper aquilo que está diante dos nossos olhos,
artificial iluminação sua “Ode triunfal” (1993, em provocar um acto de estranhamento que faz
p.200): “À dolorosa luz das grandes lâmpadas com que apareça como uma forma de experiência
elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo”: se aquilo que estava escondido na repetição banal. Esta
moderno até à medula foi a poética de Campos, interrupção, que é um estado de excepção na regra
ela é, agora, tradição incontornável para poetas da quotidianidade, revela as asperezas que o hábito
de princípios do século XXI. Pense-se também tinha alisado.
num Herberto Helder e sua Electronicolírica, tí-
tulo da herbertiana recolha vinda à luz em 1963 Surge, assim, inequivocamente, o “golpe
que depois passaria a ser chamada de A máqui- da magia poética”: do exercício que já não era

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tão quotidiano assim, a palavra de poesia toma quando o carteiro passa.
o centro da cena e vai ser embalada pelos bra- Hoje, abriu a primeira flor
ços do cantor, comunicante não apenas de sua e eu disse é um sinal.
experiência, mas também de alguma coisa, poé- Olho em volta: estou só
tica, claro, que extrapola os prazos de validade trago esta sombra comigo.
de qualquer fim de mês. E é a poesia, por outro
lado, que pode, mais do que nunca, a partir Numa realidade solitária, plena dum
desta perspectiva des-qualificada, admitir-se, abandono nada incomum para viventes hodi-
prática discursiva que é, insuficiente, mera prá- ernos, “milagres acontecem”, mas “a horas in-
tica discursiva, em suma; ainda Carlos Alberto certas”: “o carteiro passa” mas as notícias não
Machado (2002, p.25): serão novas, não serão capazes de desmontar o
entorno de solidão: “estou só”. A poesia, con-
Assinaste o teu nome tudo, ainda que modo de confissão destas ári-
em papel sufocante das experiências, destes áridos estares, localiza
impressão bem à vista a abertura da “primeira flor ”: “é um sinal” de
xis escudos por página que permanece, noutra dimensão mas perma-
um livro repleto nece, uma certa ambição mágica nos Poetas sem
de palavras amestradas qualidades: é um “acto de estranhamento” este,
pra oferecer no Natal mas que, se ocorre no real, é comunicado em
ou isso ou umas peúgas. estado de poesia, pois não somente é a voz lo-
cutora do fato poético a que diz da “flor ”, mas
Quem o autor das “palavras amestradas”, também porque isto, no poema, “é um sinal” de
quem o tu? Talvez a própria voz que enuncia o magicidade restante. Não se perca de vista, to-
poema, lugar de confissão de insuficiência, pois davia, que um texto assim, ainda que sombrio
a realidade, no que possui de massacrante, afas- ao final (“trago esta sombra comigo”, trago-me
ta a poesia do próprio real. Desse modo, trazer a mim mesma como imitação, trago uma memó-
a realidade para a poesia talvez seja o único ria que nada tem de consoladora), é um modo
modo possível, hoje em dia, de se realizar um de dizer do olhar: se hoje “abriu a primeira flor”,
tipo de matrimônio há muito desfeito, pois há isto se comunica apenas porque se viu: atento
muito o vate já não representa seu grupo, des- estará este tipo de dicção a certas mágicas que
de longa data o real, sobretudo no que tem de têm lugar no mundo, nas ruas, como se pode
quotidiano, mostra-se inacessível à poesia, pois ler num poema de Rui Pires Cabral (2002, p.53):
a ela hostil. Assim sendo, a re-união de poesia e
realidade dá-se, tão-somente, se a primeira con- Eu gosto da tua cara contra o fundo
vidar a segunda, já que o contrário não ocorre- circunstancial, ocupas o espaço por onde a rua
rá. Este é, decerto, o salto que os Poetas sem qua- se intromete, as tuas pernas magras no passeio
lidades propõe-se executar, pois “comunicam, em como as de um fantoche que só mexe os braços.
suma”, o que sugere um certo amestramento das
Ao canto uma árvore fazia sombra pequena
“palavras”. Mas, para além da mera comunica-
na desconversa. Estavas mais ou menos
ção, uma angústia e um embalo: não deixa de
a dizer: nenhum futuro neste sofrimento.
ser “sufocante” o “papel”, pois aquilo que sur-
preende tira o ar, aquilo que diz algo novo in- O teu melhor ângulo.
terrompe a respiração, um fluxo imperceptível
de tão habitual. O poeta, aqui, faz-se pintor, ou melhor (já
O segundo nome que se vê na antologia é que se fala aqui duma contemporaneidade ine-
o de Ana Paula Inácio, autora duma como que xorável), fotógrafo. E “a rua” “se intromete” no
desalentada confissão (2002, p.30): retrato, “o passeio” diz presente pois é o lugar
duma certa possibilidade não apenas de comu-
Os milagres acontecem nicação, mas de comunhão urbana, difusa mas,
a horas incertas ainda assim, comunitária: se fazer com que po-
e nunca estou em casa esia e realidade dêem-se os braços é um dos pro-

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blemas desta geração de poetas, localizar o que terminar com a poesia do aqui já citado Cesário
há de comunitário em ruas cada vez mais hostis Verde, e é ali, num poema – “O sentimento dum
será outro. Porém o “sofrimento” não tem futu- ocidental” – releitor do épico camoniano, que
ro, e constrói-se um duplo sentido irresolvível, Cesário, segundo Jorge Fernandes da Silveira
muito da ordem do poético: não há “futuro” (2003, p.163), assinala “a passagem do soberbo
para os sofredores, mortais que são e condena- ao medíocre” (VERDE, 1995, p.100): “Mas, num
dos ao fim de qualquer de suas vivências? Ou recinto público e vulgar,/ Com bancos de na-
não há futuro apenas para o “sofrimento”, es- moro e exíguas pimenteiras,/ Brônzeo, monu-
paços de prazer que advirão do retrato constru- mental, de proporções guerreiras,/ Um épico
ído no poema? De todo modo, é pequeno o ân- de outrora ascende, num pilar!”: se o início da
gulo, pois pequena terá de ser esta poesia; de Modernidade portuguesa já se confessava, por-
volta ao prefácio de Manuel de Freitas (2002, tanto, “medíocre”, exíguo e “vulgar ” diante do
p.14): “Estes poetas não são muita coisa”: esta monumento que é Camões, em princípios do
poesia, se se centra na experiência, centra-se em século XXI voa-se, claro, para pequenas experi-
pequenos eventos construtores da experiência ências, carregadas de entornos difíceis e pre-
do indivíduo que vê perdida, desde muito, tensamente comunicativos, como a televisão e
qualquer possibilidade de grandiloqüências. E a Internet. Mas aparece um tu neste poema de
é pequeno o domingo de “amarelo com azul”, Bessa, como em outros aqui citados, e, diante
poema de Carlos Bessa (2002, p.44): da dificuldade de estabelecimento de uniões,
torna-se problemático o próprio recorte do tu a
Fomos até ao aeroporto no velho citröen azul quem se dirige a voz enunciativa. É evidente
E tu nasceste e tu já tinhas nascido que a “mãe” em “amarelo com azul” pode ser
E a mãe disse meus filhos um modo de referir a obra fundadora da pró-
pria auto-imagem portuguesa – auto-imagem,
Com os cintos apertados e as malas cheias de livros
saliente-se, em estado de recorrentes revisões,
Tudo era nervosismo, as malas as horas
como aqui já se observou –, e de novo um poeta
Os táxis, os telefonemas
sem qualidades demonstra que sua des-qualifi-
Rostos baços e tristes, porque era domingo cação não parte da ignorância acerca de sua li-
E a merda da televisão teratura, mesmo porque as malas do vôo estão
E www, coisas assim. “cheias de livros”. Porém, a mãe da vez dá lu-
gar, um tanto abruptamente, a notícias plenas
Mais uma vez pode-se perceber que os de carga tecnológica que redundarão não ape-
Poetas sem qualidades não deixam de se filiar à nas na renúncia de conclusão (“coisas assim”),
história da literatura nacional a que pertencem. mas também no palavrão da última estrofe: no
O tema das viagens é dos mais recorrentes em mesmo ensaio já referido, António Guerreiro
literatura portuguesa, sobretudo porque o gran- comenta, tendo a geração aqui contemplada
de exemplar desta literatura tem como razão de como tema (2003, p.17): “(...) a poesia surge com-
ser uma viagem, a viagem: as vagas d’Os lusía- pletamente exposta, liberta de todos os resquí-
das, portento incontornável, ainda hoje se ma- cios idealizantes, ostentando as suas fraquezas
nifestam e, pode-se afirmar, continuarão a ma- até quase à negação de si própria, nos exemplos
nifestar-se, infinitamente. Apontar que as no- extremos”: nada se idealiza no supracitado po-
vas viagens são pequenas é práxis, enfim, desde ema de Bessa, e o mesmo se aplica ao seguinte,
o século XIX: admite Almeida Garret, autor- do mesmo autor, de nome “rua” (2002, p.41):
narrador da obra marco do romantismo portu-
guês, estar diante duma pequena realidade que Grossas lentes de míope fechado numa
lhe permite apenas uma viagem que será, evi- Ideia de si com dois filhos, mulher e
dentemente, também pequena: lê-se que as Via- Futebol Clube do Porto. A língua em constante
gens na minha terra (s/d, p.29) possuem “oculta” Desculpa, os nervos. Saiu de casa, ela
uma “profunda idéia”, mas “debaixo” da “apa- Mas não foi longe, meia dúzia de metros abaixo
rência de uma viagenzita que parece feita a brin- Até à cama de outro. Tanta felicidade cansa
car” (grifo meu). O mesmo século XIX começa a Tanto lume e

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Vapor, fodeu-a, como quem diariamente ção de outro, pois ela é um tipo de expressão
E ele, olhos piscos, nossa senhora que quer as arestas da mesma realidade. Por
Cada vez mais velho a suicidar-se nesse medo outro lado, se “já é tarde” para um lirismo que
De um dia acordar morto, as imprescindíveis tarefas se mantenha distante das “imprescindíveis ta-
O emprego, O Futebol Clube do Porto. refas” do quotidiano, não deixará esta geração
de lamentar o que, inexoravelmente, se perdeu:
A ausência de idealização manifesta-se já “Queremos certas lágrimas”, e em muitos exem-
no primeiro verso: se “míope”, a espécie de plares tais lágrimas chegam mesmo a ser conse-
personagem que norteia este poema vê de me- guidas; é o caso, portanto, de voltar a Rui Pires
nos. E cabe ressaltar esta que é uma característi- Cabral, já que outro poema desse autor convi-
ca forte deste tipo de poesia: a narratividade: é da um modo antigo ao possuir o nome de “Can-
como se a linguagem poética, ao renunciar a tiga” (2002, p.49):
“todos os resquícios idealizantes”, ao chegar
“quase à negação de si própria”, recorresse a as palavras repousam fermentadas
estratégias próprias da narrativa, não da lírica: na geometria do meu lagar
“Saiu de casa, ela” é um fragmento que, efetiva-
é uma guerra e está dentro de mim
mente, narra. É claro que a poesia possui um
como um bicho emboscado
gênero que pratica a narração, o épico, mas pen-
sar no épico aqui leva a pensar, mais uma vez, agora já tenho quatro versos turvos
no pequeno, pois os fatos narrados por Bessa e uma dor longínqua no intervalo
jamais ganham qualquer dimensão de epicida- dos ossos
de, mesmo que tratem dum tema que ganhou com o que sobra
contornos grandiloqüentes pelas mãos de poe-
invento outra mitologia
tas brasileiros, como Drummond e Melo Neto,
e portugueses, como Manuel Alegre: o futebol: A “Cantiga” de Rui Pires Cabral poderia
o Futebol Clube do Porto presentifica-se no
ser lida como uma tentativa de interlocução com
poema como um mero item de infelicidade, não
Bessa, sobretudo com o último poema citado ao
como um fornecedor de memórias gloriosas. E autor de “amarelo com azul”: antes de mais, vai
as “imprescindíveis tarefas” não serão as da or-
tornando-se evidente que, não obstante a dic-
dem do subjetivo, mas as que, como expressa
ção comum, a antologia que reúne os Poetas sem
um sintagma de Carlos Alberto Machado, ven- qualidades traz, positivamente, poetas, e cada um
cem no “fim do mês e da vida”: ainda que possa
terá voz própria. De todo modo, é de altíssima
haver alguma mágica na poesia desta geração,
subjetividade e de forte abstração a “Cantiga”
é, evidentemente, no desalento que se encon- de Cabral, ainda que na idéia de “sobra” en-
tram as vozes destes poetas, capazes de dimen-
contre seus co-antologizados, pois a poesia,
sionar a aridez e a ausência de lirismo de seu
aqui, é muitas vezes a “sobra” do que a realida-
tempo, como o faz, em outro poema, Carlos Bes- de massacrou. Neste pormenor, é de novo o caso
sa (2002, p.45):
de se pensar na obra, basilar para os poetas que
Manuel de Freitas apresenta, de Joaquim Ma-
Queremos levantar a paliçada das perguntas
nuel Magalhães, mais especificamente na aber-
E o terreno, árido, rejeita-as
tura do poema “2”, de Vestígios (1977, p.30): “Pou-
E o aço parte-se.
cas vezes a beleza terá sido tanta/ como nos lus-
Queremos certas lágrimas
tros pretos dos sacos de lixo/ à porta dos hotéis,
Mas já é tarde.
dos armazéns, das casas de comida/ nas mais
pequenas horas da noite em Londres”: há “be-
O “terreno” da realidade é “árido”, e aqui leza” num dado concreto do real, mas ela se
se fala, inegavelmente, de recepção: um mun-
encontra “à porta”, portanto à margem daquilo
do cada vez mais alheio à poesia será um mun-
que pode ser convencional pretexto para a ocor-
do transformador da poesia que nele se faz e a rência do lírico; ademais, esta “beleza”, peque-
ele convida. E esta poesia, certamente, não se
na como as “horas da noite” em estado londri-
permitirá escapar deste mundo rumo à funda-
no de cenário, e pequena também como uma

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vontade tão-somente comunicativa, localiza-se Repara nos seus dedos riscados pela esferográfica
em “sacos de lixo”, repositórios, claro, do resto, que deixou arrumada
da “sobra”. Assim sendo, pode ter alguma bele- sobre a secretária. Está bonita na sua insegurança.
za, ou “beleza” “tanta”, o que reside, no poema Leonor é agora tão verdadeira nessa impureza frá-
de Rui Pires Cabral, para além dos quatro ver- gil como
sos turvos que, não sendo belos, não sendo lus- a água canalizada, que escondida na parede do prédio
trosos como a “sobra” pode ser, acusam mais só é relembrada quando falta na torneira.
uma impossibilidade: se um dos traços recor- Leonor em vez de se colocar a meio do elevador
rentes da lírica medieval, lugar de origem da vazio prefere pôr-se
literatura portuguesa, é o paralelismo das can- aconchegada a um canto, tal como faz à noite antes
tigas, fica-se, na “Cantiga” de agora, “com o que de adormecer,
sobra”, e não pode passar despercebido o fato de modo a não sentir o resto da cama fria.
de a terceira das quatro estrofes do poema pos-
suir versos em número ímpar. A Lianor camoniana, pronto, está posta
Mas uma “outra mitologia” é inventada, diante dum espelho: agora, no “elevador”, vê-se
e o poeta, logo, dá-se o direito de ser um in- a si mesma, num novo tempo (de elevadores, de
ventor, um fundador de verdades um tanto má- “água canalizada”, de cartões pessoais), numa
gicas, um tanto simbólicas, que terão a possi- nova poesia. Mas não é nada irreverente a rela-
bilidade de interferir no real estando acima ção proposta por Queirós: ao contrário, é um
dele, estando num espaço perto do transcen- modo de, através duma espécie de “cartão pes-
dente. Pode-se, aqui, pensar na “flor ” de Ana soal”, divulgar Camões por meio duma “Lianor”
Paula Inácio, “um sinal”, e a “outra mitologia” – cujo nome, grafado ao modo quinhentista, é o
de Rui Pires Cabral sinaliza que, mesmo dian- título do poema – outra, que no fundo será aquela
te da “merda da televisão” e “coisas assim”, ao mesma, até porque não será mais preciso faltar
poeta ainda é facultado ocupar o sítio do in- Camões (diz muito, e não apenas de água, o ver-
ventor, pois ele ainda pode, como o Pessoa de so “só é relembrada quando falta na torneira”)
“Isto” (1993: 104), usar “a imaginação”. Diante para que se o relembre, para que se o homena-
dum texto como o de Cabral, cabe a palavra de geie: não se perca de vista que a Leonor de João
Fernando Pinto do Amaral acerca desta gera- Miguel Queirós, “bonita na sua insegurança”,
ção de poetas (2003, p.24): “(...) a linguagem da acha-se no mesmo estado da camoniana (s/d,
experiência não poderá, afinal, prescindir de p.60), que “vai fermosa, e não segura”. Assim sen-
uma intensa experiência da linguagem, para do, toda a irreverência que se vê no prefácio a
se transformar em poesia”: não é apenas a ex- Poetas sem qualidades jamais atingirá nomes como
periência que norteia a prática dos Poetas sem os de Camões e Pessoa (sugerido aqui, por exem-
qualidades, mas uma experiência da linguagem plo, num citado poema de Rui Pires Cabral).
capaz de resituar a Lianor camoniana em ou- Logo, os alvos escolhidos por esta geração loca-
tra das práticas dialogantes dos Poetas sem qua- lizam-se, decerto, no que há de pós-pessoano no
lidades, desta vez feita por João Miguel Quei- século XX da poesia portuguesa. E se num “can-
rós (2002, p.63): to” da cama, Leonor/Lianor esconde-se não ape-
nas do que pode ser hostil no mundo circun-
Hoje no elevador descobri o seu nome. dante em que é posta em claro desassossego por
No cartão pessoal, que retirou com cuidado Queirós, mas também dum equívoco de eventu-
para não soltar os fios da camisola de lã, ais más releituras.
estava escrito à máquina Lianor. E é justamente Camões o nome convida-
do por José Miguel Silva e seu poema “Não é
Leonor no espelho do elevador vê pelo canto do
tarde” (2002, p.75):
olho se está arranjada.
Ela sabe que por detrás da orelha já não tem uma
O amor é como o fogo, não se propaga
flor selvagem, e por isso
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
tem espaço para arrumar o seu cabelo com a mão,
eu fecho mais a porta.
como se o escondesse.

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Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro questão da noite
funciona! Poderoso combustível do programa que acontece:
é o corpo. Acende deste lado.
em portugal, neste fim de século,
Ainda não é tarde, foi agora anunciado navegar é preciso?
pela rádio, são dezoito e vinte cinco.
resposta:
Respira-nos, repara, a ilusão
se morar no barreiro, sim.
de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
A “questão” premente no “programa que
vai perdendo o nosso número de telefone.
acontece” – decerto um programa cultural de
nome Acontece, exibido durante anos pelo canal
Ao contrário do “já é tarde” de Carlos
RTP – é deslocada para uma questão ainda mais
Bessa, aqui há a permanência da esperança –
premente: quem mora “no barreiro” precisará
“Ainda não é tarde” –, e o que a permite locali-
“navegar” para voltar à casa, e tal navegação não
za-se não apenas num exercício erótico de
tem nada de metafórico: é a vida real impondo-
amor, pois não é só o erotismo em si mesmo
se à velha questão que Pessoa colocou na ordem
que se verifica no poema, mas o erotismo trans-
do dia do imaginário português. E o desmonte
formado em poesia tendo Camões como ori-
da grandiloqüência proposta pelo programa de
gem: “O amor é como um fogo” traz à cena
TV mais uma vez sinaliza para a adoção do pe-
uma das mais conhecidas metáforas antitéti-
queno, do menor, por estes poetas que libertam a
cas camonianas (s/d, p.71), “Amor é fogo que
poesia de “resquícios idealizantes”. O mesmo
arde sem se ver ”. Assim, a realidade em suas
António Guerreiro (2003, p.18) afirma, traçando
pequenas coisas conspira a favor do amor e
uma diferença entre a geração d’agora e a dos
contra a morte, já que o “isqueiro” “funcio-
anos 70, da qual fez parte Joaquim Manuel Ma-
na!”, e pode fundar-se um amor entre dois
galhães: “Agora, o real está aí, como uma presen-
naquilo que o poema tem de circunstancial, e
ça inescapável, é dele que se parte e não a ele que
um amor entre poetas naquilo que o poema
se regressa”. Isto fica claro, também, num poema
constrói no terreno da plurissignificação. E o
de Vindeirinho, “o_” (2002, p.91):
sofisticado jogo poético prossegue no duplo
sentido do “Ainda não é tarde”: ainda há tem-
com o outono vestes meticulosamente os chinelos e
po de vida, ainda há subjetividade suficiente
dobras cada
para o amor-paixão, e ainda é cedo no univer-
peça de roupa que despes quando chegas a casa e
so cronológico deste dia em questão; além dis-
fechas a janela por onde uma árvore se começa a
so, “ainda” há tempo para que “a morte” vá
despir para o
“perdendo” não apenas o “número de telefo-
inverno, está frio e pensas na tua cama quentinha.
ne” dos amantes, mas também seu poder de
alvejar a permanência camoniana, a quem está à mesma hora
(CAMÕES, s/d, p.71) “preso por vontade” um no metropolitano à esquina da última carruagem
bom número de poetas sem qualidades. E quem
ela mastiga uma
informa as horas em “Não é tarde” é o rádio,
pastilha elástica a pensar na roupa suja que tem em
um componente concreto da realidade. Cabe, casa. e quando é que a apanhará, uma vez que se
portanto, mais uma vez a afirmação de Fernan-
esqueceu
do Pinto do Amaral (2003, p.24): “(...) a lingua-
da roupa há dois dias.
gem da experiência não poderá, afinal, pres-
cindir de uma intensa experiência da lingua- uma camélia murcha no vaso perto das peças de
gem, para se transformar em poesia”. vestuário
Mas na economia dos Poetas sem qualida- depositadas na cadeira no
des é possível que certas questões altas dêem quarto. agora de roupa interior lembra
lugar a urgências da mais evidente concretude: se das peças de roupas e dirige
um poema de Nuno Moura expõe uma das “im- se ao estendal para as apanhar.
prescindíveis tarefas” (2002, p.83): com medo da chuva.

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É um efetivo relato este poema – não se Fazer ler apenas as “notas de rodapé” é
perca de vista que o sujeito da enunciação se- um modo de resumir o projeto dos Poetas sem
quer renuncia à onisciência do narrador con- qualidades? Ou seja, o volume reúne tão-somente
vencional –, e chama a atenção o fato de que “notas de rodapé” travestidas de poemas, e é
nada do que se relata mereceria, em tese, ser rela- por isso que o trabalho do leitor pode se ver
tado: são coisas demasiado pequenas, comezi- facilitado? Talvez não. Mas é notável que exista,
nhas, sem interesse senão para o que as vivencia. ainda que em tom irônico (sobretudo pela pre-
Por outro lado, ocorre uma certa violência do sença duma personagem ficcional, classificada
mesmo relato, pois a versificação não se acorda como “representante” “da escola neo-mística de
àquilo que se conta, tampouco às formas con- Detroit”), uma idéia de salvação do mundo nes-
vencionais: lê-se “dirige/ se”, e não “dirige-se”: te poema, o que pode sugerir que haja, no fun-
este incômodo faz com que, no plano mesmo da do da ambição comunicativa proposta no pre-
forma, da experiência da linguagem, o real, fon- fácio de Manuel de Freitas, uma vontade gran-
te, claro, deste e de diversos outros dos poemas diloqüente num dos poetas sem qualidades. Po-
sem qualidades, seja dimensionado como o lugar rém, não é exatamente isto o que ocorre, mais
mesmo do incômodo, das arestas. Mas, já que bem seu contrário: diante da sugestão dum dis-
existe uma experiência formalizante nesta poe- curso messiânico, o que salta aos olhos, mais
sia, há, certamente, a manutenção do lugar do uma vez, é o pequeno lugar que esses poetas
poético como linguagem capaz da invenção, ca- querem ocupar, a pequena poesia possível nes-
paz de, a partir de sua forma, fornecer sentidos tes tempos de agora. E não surpreende que seja
àquilo que sentidos não teria não fosse posto em dotado de forte ironia um outro texto do autor
estado de poesia, sem que isso, entretanto, for- Anônimo, que encerra a recolha e:que tem como
neça uma excessiva dificuldade de leitura ao re- título “[Finalmente um poema?]” (2002, p.109):
ceptor: de novo vem à tona a idéia de que esses
Quando nos deitamos, amor,
poetas, ao quererem comunicar, buscam uma
sobre a cama fofa dos séculos
nova maneira de abordagem do leitor, buscam
eu não olho para a lua
uma espécie de comunidade; afirma Rosa Maria
nem penso em livros complicados.
Martelo que estes novos poetas (2003, p.50) “não
pretendem ignorar nem as problemáticas nem Sinto a tua pele, o teu buço
as temáticas da Modernidade,” – e há que acres- e o fim da história no púbis.
centar que tampouco ignoram sua literatura na- Depois enrolamo-nos, fingimos
cional, como já foi visto aqui – “embora procu- que esta vida é nossa
rem reequacioná-las de um modo discursiva- ou que um cronometrado orgasmo
mente diferente e sobretudo em função de outro redime a pobreza simples dos dias.
tipo de leitor”: este “novo tipo de leitor” é aque- É a altura, amor, em que dou
le que poderá, a partir não apenas de coincidên- por mim a acender os cigarros
cias vivenciais, mas sobretudo de um objeto de solicitamente uns nos outros,
leitura que se não apresenta em estado de fecha- à espera de que tudo acabe
mento significativo, dar a mão ao texto e lê-lo. – os poemas, a vidinha, o mais –
O último dos antologizados é referido, e que o arroto seja teu,
simplesmente, como “Anônimo”; é deste autor minha ânfora de cetim tão roxa.
não nomeado a prática radicalizada da ficcio-
nalização narrativa que se encontra em alguns Nada de “livros complicados” na hora do
desses poetas (2002, p.108): “amor ”, pois os poetas sem qualidades põem em
Robert H. Jones, distinto representante questão, desde o prefácio de Freitas, sua condição
da escola neo-mística de Detroit, contemporânea; afirma o prefaciador (2002, p.10):
levou ao rubro uma assistência “Ao homem reificado, cabe um tempo – e tam-
de jovens afro-americanos, ao afirmar bém, cada vez mais, um espaço – sem qualidades”:
que o mundo se salvaria portanto, este homem não pensa em “livros com-
se em cada livro se lessem apenas plicados”, cheios de qualidades, mas, por outro
as notas de rodapé. lado, não deixa de celebrar o momento presente

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como hipótese de realização, apesar de a vida, mínima confortável distância que a ela permita
por vezes, ser um depreciado diminutivo, “vidi- expressar certezas mais definitivas. De todo modo,
nha”: “Sinto a tua pele, o teu buço/ e o fim da que se apresente ao leitor brasileiro um grupo
história no púbis”: é o corpo quem se faz impera- que propõe uma poesia, senão nova, decerto inte-
tivo, não uma reflexão grave acerca do “fim da ressada na noção de qual é seu próprio lugar. Se
história”, mesmo porque “história”, neste poema, tal lugar será definitivo no futuro da literatura
renuncia à idéia de ciência entendedora do per- portuguesa, é demasiado cedo para afirmar.
curso humano para significar aquilo que se faz,
como evento, num episódio entre amantes. Além
disso, “arroto”, na ironia que ajuda a compor “[Fi-
REFERÊNCIAS
nalmente um poema?]”, serve para acusar a histó-
ria de discurso residente em “livros complicados”,
sendo preferível que arrote, como gesto fisiológi- AMARAL, F. P. A porta escura da poesia. Relâm-
co, a amada. Mas existe, também neste poema, uma pago, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava
forte tensão, que se localiza, antes de mais, no tí- v.12, p.19-27, 2003.
tulo: admite-se, ainda que em estado de dúvida, a BRANDÃO, F. H. P. Morfismos. In: BRANDÃO,
feitura dum “poema”, e essa admissão torna-se F. H. P. et. alli. Poesia 61. Lisboa, Edição de
ainda mais clara quando se pensa num dos nortes autor, 1961. 15p.
da poesia portuguesa do século XX, o fingimen- CAMÕES, L. Clássicos na Gulbenkian – Camões.
to: “fingimos/ que essa vida é nossa”, e quem fin- MACEDO, H.; GIL, F. (org.). Lisboa, Funda-
ge, sabe-se desde Pessoa (1993, p.104), é o poeta: ção Calouste Gulbenkian, 2004. 71p.
“O poeta é um fingidor./ Finge tão completamen- ______. Lírica – redondilhas e sonetos. 9.ed. Rio
te” que é no poema, lugar de “uma intensa expe- de Janeiro, Ediouro, s/d. 136p.
riência da linguagem”, em palavras de Fernando ______. Os Lusíadas. 9.ed. São Paulo, Cultrix,
Pinto do Amaral aqui já citadas, que pode prati- 1993. 342p.
car sua realização erótico-amorosa. FREITAS, M. (org.). Poetas sem qualidades. Lis-
Ademais, tal realização pratica-se em par- boa, Averno, 2002. 123p.
ceria com alguém cujo corpo pode metaforizar- GARRETT, A. Viagens na minha terra. Rio de Ja-
se por “ânfora de cetim tão roxa”, e é impossível neiro, Ediouro, s/d. 152p.
não pensar numa das praticantes de amor mais GUERREIRO, A. Alguns aspectos da poesia
notáveis da história da poesia portuguesa, a Vê- contemporânea. Relâmpago, Lisboa, Funda-
nus por Camões desenhada n’Os lusíadas (Lus, ção Luís Miguel Nava, v.12, p.11-18, 2003.
II, 37, 3-4): “Porém nem tudo esconde nem des- HELDER, H. Poesia toda. Lisboa, Assírio &
cobre/ O véu, dos roxos lírios pouco avaro”: se Alvim, 1996. 627p.
“ânfora” é um modo de metaforizar a sexualida- JÚDICE, N. Por dentro do fruto a chuva. São Pau-
de feminina, a sugestão vaginal que aparece em lo, Escrituras, 2004. 159p.
“[Finalmente um poema?]” é evidentemente fun- MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Os dias, peque-
dada na Vênus camoniana. Isso faz com que se nos charcos. Lisboa, Presença, 1981. 87p.
encontrem, num mesmo poema sem qualidades, ______. Vestígios. Lisboa, Centelha, 1977. 88p.
os dois nomes líricos nucleares de todos os tem- MARTELO, Rosa Maria. Reencontrar o leitor.
pos em poesia portuguesa, Camões e Pessoa. Relâmpago, Lisboa, Fundação Luís Miguel
Em linhas gerais, pode-se dizer dos poetas Nava, v.12, p.39-52, 2003.
sem qualidades que, entre eles, existe uma comum PESSANHA, C. Clepsidra. São Paulo, Princípio,
vocação para uma poesia atenta ao pouco e à rea- 1989. 72p.
lidade, mas jamais ignorante da tradição a que se PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.
filia, seja de maneira respeitosa, seja de modo crí- Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993. 280p.
tico. Não se pode, contudo, num estudo como SILVEIRA, J. F. Verso com verso. Coimbra,
este, mais do que rascunhar um pouco da feição Angelus Novus, 2003. 438p.
desses poetas, mesmo porque tais feições são di- VERDE, C. O livro de Cesário Verde. 4.ed. Lisboa,
versas; ademais, a contemporaneidade desses au- Ulisséia, 1995. 174p.
tores é muita para que uma análise possa ter a

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