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Director:

Telo Ferreira Canhão

Número 5

Lisboa, Novembro de 2017


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Estela em calcário policromo oriunda de Amarna, mostrando uma cena íntima da vida familiar de Akhenaton e Nefretiti
com as suas três filhas mais velhas. Da esquerda para a direita: Merietaten, Meketaten e Ankhesenpaaten. Duas delas
têm a trança de criança do lado esquerdo da cabeça e a mais velha recebe um brinco do pai. Império Novo, Museu
Egípcio do Cairo.»
Concepção, nascimento e infância
Telo Ferreira Canhão
Centro de História, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
telofcanhao@gmail.com

Resumo: Numa primeira parte apresentamos, sumariamente, alguns dos conhecimentos e crenças de
anatomia e fisiologia dos antigos Egípcios. Com apoio em imagens que nos legaram, em papiros, óstracos
e pequenas estatuetas, faremos a sistematização das possíveis posições da prática do acto sexual registadas
pelos antigos Egípcios, através das quais as mulheres podiam conceber. Faremos uma breve abordagem
à fertilidade, aos testes de gravidez e à contracepção, apoiados em papiros médicos e em algumas investi-
gações recentes sobre estas matérias. Uma segunda parte será dedicada à gravidez e ao nascimento, tendo
por base os dados arqueológicos, a produção artística e a literatura, para vermos como seriam os ritos
de passagem de mulher a mãe e da vida intra-uterina à vida terrena, tão importantes para mães e filhos.
Na terceira parte apresentaremos algumas estatísticas sobre mortalidade das parturientes e das crianças,
e observaremos os primeiros e difíceis tempos de vida na primeira infância, abordando o aleitamento, as
amas-de-leite e os problemas relacionados com a passagem a outro tipo de alimentação. Veremos ainda as
principais características com que eram representadas as crianças na arte egípcia. Iremos concluir no final
da infância e na passagem à condição de jovem, onde abordaremos sucintamente a circuncisão, o acesso à 17
educação e a introdução dos jovens no mundo de trabalho dos adultos.

Palavras-chave: anatomia e fisiologia; concepção e contracepção; nascimento e aleitamento; in-


fância; mortalidade infantil.

Abstract: In a first section we briefly present some of the knowledge and beliefs of anatomy and
physiology of the ancient Egyptians. With the assistance of images that have been handed down to us,
in papyri, ostracon and small statuettes, we will systematize the possible positions of the practice of
the sexual act, through which women could conceive, recorded by the ancient Egyptians. We will take
a brief look at fertility, pregnancy testing and contraception, supported by medical papyri and some
recent research on these issues. A second section will be devoted to pregnancy and birth, based on ar-
chaeological data, artistic production and literature, to see how the rites of passage, so important for
mothers and sons, from woman to mother and from intra-uterine life to earthly life. In a third section we
will present some statistics on the mortality of parturients and children, and observe the first and diffi-
cult lifetimes in early childhood, addressing lactation, wet nurses and problems related with switching
to another type of diet. We will also see the main characteristics by which children were represented
in Egyptian art. We will conclude this paper at the end of childhood and the transition to youth, where
we will succinctly address circumcision, access to education and the introduction of young people into
the working world of adults.

Keywords: anatomy and physiology; conception and contraception; birth and lactation; childhood;
child mortality.
D
epois de «Namoro, casamento e divórcio no antigo Egipto»1, abordaremos agora a
concepção, o nascimento e a infância. Antes porém, apresentaremos algumas ideias
sobre o conhecimento que os Egípcios tinham dos órgãos reprodutores masculino
e feminino, e exporemos algumas teorias egípcias sobre concepção e desenvolvimento de novas
vidas, tendo sempre presente que no antigo Egipto o desejo de ter filhos se manifestava mais no
quadro da religião do que junto dos médicos. O conhecimento do acto sexual, a função do sémen
e a vinda ao mundo de um novo ser, confundem-se com o aparecimento da humanidade, mas só
a partir do Neolítico, com o desenvolvimento da criação do gado, é que a raça humana deve ter
enriquecido o conhecimento prático da reprodução observando o comportamento dos animais
domésticos. Desde muito cedo que os Egípcios conceberam um deus da reprodução sexual, o
deus Min, com o membro permanentemente erecto, uma divindade antropomórfica adorada des-
de tempos pré-históricos, da Época Nagadiana (c. 4000-3000 a. C.). Era um deus polígamo, se-
nhor de um tão vasto harém que lhe valeu os epítetos de «Touro que cobre as fêmeas» e «Senhor
das raparigas». A sua planta sagrada era a alface (Lactuca virosa) cujo líquido branco que sai do
seu caule era comparado ao sémen, acreditando-se assim que tivesse propriedades afrodisíacas.
Daí ser associado à fertilidade dos solos como figura central dos «Festivais de Min», onde se
conjugavam os atributos procriativos e fecundos2. O próprio demiurgo Atum, senhor primitivo
de Iunu (Heliópolis), era igualmente uma divindade solar pré-dinástica. «O Grande Ele-Ela», era
também uma divindade antropomórfica que depois de sair do caos primordial, o Nun, quando
nada havia ainda sido criado, agarrou o próprio pénis, masturbou-se e gerou assim o primeiro
18 casal divino: Chu, o ar, e Tefnut, a humidade3. E a deusa Ísis para conceber magicamente Hórus
colocou-se sobre o falo tumefacto, mais correctamente, sobre a prótese vegetal tumefacta de
Osíris ressuscitado, e recebeu a sua semente4. Portanto, os Egípcios tinham o conhecimento dos
órgãos internos e ele era muito antigo, mesmo anterior ao faraonato.
Esse conhecimento também ficou registado desde o Império Antigo na escrita hieroglífica
no signo D52 ( ) da lista de Gardiner, um falo intumescido que se designava por henen
(Hnn) e aludia directamente ao órgão sexual masculino, tanto do homem como dos animais,
sendo bem diferenciado de D53 ( ), um falo ejaculando ou urinando que expressava as
5
actividades do referido órgão . Sabiam que o sémen ejaculado, mu (mw), provinha dos tes-
tículos kherui (Xrwy), «os dois que estão por baixo», ou semati (smAty), «os dois que estão
unidos»6, mas julgavam que era para aí levado por dois vasos que o conduziam da origem que
lhe atribuíam, que eram os ossos («dois canais vão para os dois testículos: são eles que forne-

1 - T. F. CANHÃO, «Namoro, casamento e divórcio no antigo Egipto», Hapi 4 (2016), 30-83.


2 - Cf. J. C. SALES, As Divindades Egípcias, Lisboa: Editorial Estampa, 1999, pp. 306-312; T. F. CANHÃO, «A
alimentação no antigo Egipto», Hapi 3 (2015), 32-89.
3 - Cf. J. C. SALES, As Divindades Egípcias, pp. 93-96.
4 - Cf. J. C. SALES, As Divindades Egípcias, pp. 121-143.
5 - A. GARDINER, Egyptian Grammar, Oxford: Griffith Institute, Ashmolean Museum, 3.ª ed., 1994, p. 456;
R. O. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, Oxford: Griffith Institute, Ashmolean Museum,
1996, p. 172.
6 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 355.
cem a semente», «o esperma (situado) nos ossos», mu em kesu (mw m qsw)7, acreditando os
Egípcios que as crianças recebiam os tecidos duros do seu pai e os moles da sua mãe através
do leite materno8. O escroto que continha os testículos era designado por chak (Sak) ou chet
(St), «bolsa», ou por aref (arf) ou kerefet (qrft), «saco»9.
Na anatomia e na fisiologia do aparelho sexual feminino designavam a vagina por kat
(kAt) ou ched (Sd), os lábios da vagina por sepeti ched (spty Sd) e a zona púbica por kenés
(kns). Também a podiam designar por iwf (iwf), lit.: «carne do corpo»10. Usavam as palavras
ched (Sd)11, idet (idt) ou hemet (Hmt), conforme os documentos, para útero, que pensavam
que flutuava livremente no ventre. Esta capacidade de se movimentar em liberdade por toda a
cavidade abdominal tanto podia provocar consequências psíquicas como a histeria, ou doen-
ças como o prolapso uterino, mas explica também algumas das aplicação de remédios vagi-
nais e dos resultados esperados12. Ao colo do útero, ou cérvix, os Egípcios chamavam ra em
hemet (r m Hmt), «boca do útero». Menstruação era hesemen (Hsmn), que durante a gravidez
supunham que continuasse a correr no interior da mulher sendo o sangue desviado para
alimentar o feto13, ainda que, obviamente, o feto se alimentasse dos conteúdos nutritivos do
sangue materno14. Chamavam ao cordão umbilical khepa (XpA), cujo determinativo era D26
( ), um par de lábios a verter líquido com que também se escrevia «cuspir» ou «vomitar»,
e à placenta mut remetj (mwt rmT), «mãe dos homens» ou «mãe da humanidade», ou khé (xa),
que também podia significar «bebé», e ao embrião humano ou animal suhet (swHt), «ovo»,
reservando o termo uenu (wnw) exclusivamente para o humano15. Aparentemente desconhe-
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7 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, Paris: Éditions Fayard, 2001, pp. 98 e 142.
8 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, Liverpool: Liverpool University Press, 1997, p. 12; T. BARDI-
NET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, pp. 140 e 145.
9 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 355.
10 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, Cuenca: Editorial Alderabán, 2013, pp.
72-73. Manuel Juaneda-Magdalena Gabelas é um apaixonado pelo Egipto, sendo membro da Egypt Exploration So-
ciety, da Asociación Española de Egiptologia, da Societat Catalana d’Egiptología e coordenador da secção de me-
dicina na Associación de los Amigos de la Egiptología. É um especialista da medicina do antigo Egipto, com uma
base de conhecimento inquestionável: é médico especialista em Cirurgia Geral e Aparelho Digestivo (Universidad
de Santiago de Compostela), com mestrados em Mastologia e Patologia Mamária (Universidad Menéndez Pelayo),
em Patologia Mamária-Senologia (Universidad de Barcelona) e, ainda, em Antropologia Física e Genética Forense
(Universidad de Granada). É cirurgião na Unidade de Patologia Mamária do Complexo Hospitalário Universitário
de La Coruña, conforme consta da badana deste livro.
11 - E. Strouhal refere ched para «útero», mas T. Bardinet diz que é chet e que significa o «conjunto de órgãos do
tórax e do ventre»; e Sánchez Rodríguez diz que ched é «vulva» (E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p.
12; T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 81; Á. SÁNCHES RODRÍGUEZ, Diccio-
nario de Jeroglíficos Egipcios, Madrid: Alderabán Editiones, 2000, p. 430).
12 - Cf. M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 73-79.
13 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, Mónaco: Editions du Rocher, 2015, p. 61; E.
STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 13.
14 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 28.
15 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 12 e 16; L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo
Egito, p. 228; Á. SÁNCHES RODRÍGUEZ, Diccionario de Jeroglíficos Egipcios, p. 464.
ciam o desenvolvimento vivíparo do embrião e apoiavam uma teoria ovípara generalizada16.
Desconheciam também os ovários mas conheciam as trompas de Falópio, de que ignoravam
a funcionalidade. O próprio signo F45 ( ), determinativo de «útero», representa um útero de
vaca17 e não o de uma mulher.
Isto leva alguns investigadores a pensar que mais do que do trabalho dos embalsamadores
que, de facto, só se interessavam por aquilo que estivesse relacionado com o simbolismo religio-
so, o conhecimento de anatomia humana dos Egípcios vinha sobretudo dos matadouros, através
da observação das entranhas de outros animais18, fazendo o que se pode chamar uma «anatomia
comparada»19. Os Egípcios pensavam também que o sistema alimentar se iniciava na boca e
terminava no ânus passando pelo útero20, sustentando esta ideia com um certo paralelismo cós-
mico, pois a deusa Nut engolia o sol todas as noites e gerava-o pela vagina a cada manhã. Então
engolia as estrelas, que «nasciam» da mesma forma todas as noites. Muito limitado pela religião,
o seu conhecimento anatómico humano só progrediu verdadeiramente no princípio da época
ptolemaica com a autorização dada ao médico Herófilo para «vivissecção dos corpos proceden-
tes dos prisioneiros»21, pese embora a crueldade e, por isso, o dilema ético, desta prática.
Eugen Strouhal, médico, arqueólogo e egiptólogo checoslovaco, com um trabalho na pa-
leopatologia tão significativo que fez dele um dos grandes obreiros da independência científica
desta disciplina, julga que «esta ideia, bastante habitual, pode ter sido inspirada por raríssimos
casos de gravidez extra-uterina, onde o embrião é expulso pelo cólon ou recto22. Também

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16 - «(Homenagem a ti, Khnum) que dás forma à semente no teu torno, que se situa (a semente) no interior do
ventre (da mulher) para desenvolver o ovo», T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p.
142. Embora com alguma confusão ornitológica, há também um mito da criação heliopolitano em que a «Grande
Grasnadora», uma gansa, pôs um ovo na pedra sagrada benben de onde nasceu da ave Benu, uma garça real, uma
manifestação de Ré-Atum no alvorecer do mundo, L. M. ARAÚJO, «Benu», em L. M. Araújo (dir.), Dicionário
do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 148-149.
17 - Especificamente um «útero de dois chifres de uma novilha», A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 466.
18 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 12.
19 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 67.
20 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 12-13.
21 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 68.
22 - Uma gravidez extra-uterina, ou ectópica (fora do lugar), ocorre quando há implantação do embrião fora da cavi-
dade uterina. Tem várias causas e pode ocorrer numa trompa de Falópio, num ovário, no colo do útero ou no abdó-
men. Esta última, a gravidez ectópica abdominal, é das mais raras (99,8% são tubárias, 0,1% são ovarianas e 0,1%
são abdominais). Tem elevado risco de morte para a mãe e, na quase totalidade dos casos, não há como o embrião
sobreviver. O óvulo ao morrer ou é absorvido pelo organismo da mulher ou ela tem dor e sangra com a expulsão
do óvulo. Na maioria dos casos de gravidezes ectópicas tubares o embrião costuma morrer antes do terceiro mês
de gestação provocando um aborto espontâneo. Apenas evolui durante mais tempo nos casos em que a gravidez se
desenvolve na cavidade abdominal, geralmente até aos cinco meses. Excepcionalmente, se houver crescimento e
maturação do óvulo haverá alta incidência de mal formações ou morte. Mesmo assim, ainda que muito raramente,
é a única que pode gerar filhos vivos. Uma gravidez ectópica abdominal pode ser primitiva ou secundária: a pri-
mitiva resulta de uma ruptura da trompa com queda do embrião no abdómen onde se desenvolve; a secundária é a
queda do embrião directamente do ovário no abdómen. Seja primitiva ou secundária, uma vez no abdómen a placen-
ta pode fixar-se em lugares como o recto, porque um dos lugares mais comuns para o fazer é na bolsa de Douglas,
originou a crença de que relações sexuais não genitais, especialmente as orais, podiam gerar a
concepção»23. Apoia-se em textos como o «Conto dos Dois Irmãos», onde a favorita do faraó
e mulher de Bata, o irmão mais novo, engravida ao engolir uma lasca da árvore em que se
transformara o marido. É uma ideia que vem também de uma variante do mito heliopolitano da
criação referido, quando o demiurgo Atum,
sozinho no mundo, engole a sua própria se-
mente e, escarrando e cuspindo, gera o pri-
meiro casal divino, Chu e Tefnut.
O decorrer da existência e o acumu-
lar de experiência acabaram por lhes dar
também uma noção bem exacta da duração
normal de uma gestação. As suas estima-
tivas variavam entre 271 e 294 dias, entre
as quais se situa o período actual de 282
dias a partir do início da última menstrua- Autofelação de Atum de Heliópolis, que depois de
engolir o próprio sémen gerou Chu e Tefnut através do
ção e um pouco mais longas do que os 269
escarro e do cuspo (Papiro de Londres 10018).
dias actuais desde a data da concepção24.
Os cálculos dos antigos Egípcios são dedutíveis de algumas considerações dos contratos
matrimoniais como, por exemplo, o facto de uma noiva que jurou no dia do casamento que
não estava grávida e lhe foi exigido um período de prova de 275 dias para demonstrar a sua
honradez, como consta num fragmento de terracota no Museu de Estrasburgo; ou até em 21
objectos funerários, como é o caso do sarcófago do Museu Egípcio de Berlim onde ficou
registado: «Tua mãe levou-te dentro até ao primeiro dia do décimo mês, isto é, 271 dias
(9x30) + 1»25. A fertilidade conjugal era muito valorizada no antigo Egipto e a maioria das
mulheres desejava e esperava ter filhos, pois, para além de serem mais bocas para alimentar,
eram sobretudo mais braços para trabalhar e a garantia de apoio na velhice. O ideal mesmo
era ter filhos que garantissem a memória social, sobretudo para quem tinha posses, para poder
ter um túmulo e celebrá-la aí.

nome do espaço formado entre a parede uterina posterior e a parede rectal anterior, separando a parte supravaginal
do colo do útero e o corpo do útero da parte final do intestino, constituído pelo cólon sigmoide – parte inferior do
intestino grosso, uma das quatro partes do cólon, a que extrai a água e o sal dos alimentos ingeridos antes de serem
removidos do corpo, sob a forma de resíduos – e pelo recto. Se ocorrer um cisto fetal e houver infecção, a sua elimi-
nação pode ser através de uma fístula pela pele, recto, vagina ou bexiga (R. MATOS, «Gravidez Ectópica», em M.
Néné, R. Marques e M. A. Batista, Enfermagem e Saúde Materna e Obstétrica, Lisboa: Lidel - Edições Técnicas,
2016, pp. 276-280; M. O. MENEZES, C. M. MENEZES e M. I. BOCARDI, «Gravidez abdominal com recém-nas-
cido vivo: relato de caso», em Interfaces Científicas - Saúde e Ambiente, Aracajú: Editora Tiradentes, vol. 3 - n.º 2,
pp. 65-72, Fev. 2015 (ISSN Impresso 2316-3313; ISSN Eletrônico 2316-3798); http://www.misodor.com/ GRAVI-
DEZECTOPICA.php; http://www.manuaismsd.pt/?id=271&cn=1969; https://www.womenonweb.org/pt/page/525/
what-is-an-ectopic-pregnancy-and-how-do-you-know-you-have-one (todos consultados em 30-01-2017).
23 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 13.
24 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 15.
25 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 15.
Em relação à cópula, para a qual os Egípcios usavam essencialmente os termos nek (nk)
ou nehep (nhp) para «copular», nedjememet ou nedjememyt (nDmmt ou nDmmyt) para pai-
xão e orgasmo26, benen (bnn) para «erecção» e «ejacular» e siui (siwi) para «engravidar»27,
em termos literários praticamente só existem os relatos dos mitos, sobretudo os da criação,
que apresentam a sexualidade procriativa dos deuses, aparentemente sem qualquer limite ou
censura. Já na literatura profana surge com intenso lirismo. Como demos conta ao falar do
namoro, a lírica do Império Novo dá-nos a entender que os jovens egípcios mostravam gran-
de interesse pela paixão amorosa, não poucas vezes revelando, implícita ou explicitamente,
o desejo entre apaixonados, ou mesmo o seu relacionamento sexual, servindo-se dos mais
variados subterfúgios e adornos para incitar à paixão e ao desejo. Contudo, havia também
uma linguagem popular como a que ficou registada no Papiro Lansing 14.8, do reinado de
Senuseret III no fim da XII dinastia: «que a tua boca não fornique»28.
Por outro lado, se durante o período faraónico, sobretudo no Império Antigo e no Império
Médio, a representação dos afectos na escultura, relevos, estatuária ou na pintura se pautava
mais por casais que se enlaçavam amorosamente, acompanhados ou não pelos filhos, no Impé-
rio Novo há grande quantidade de óstracos, sobretudo de Deir el-Medina, e grafitos, de Deir el-
-Bahari e Uadi Hammamat, e na Época Baixa e na Época Greco-romana são sobretudo os amu-
letos com cenas de cópulas ou homens com pénis enormes, aliás, de fraca qualidade artística,
a que Luís Araújo chama «cenas arrojadas de poses erótico-satíricas»29. Embora a sua função
fosse proteger a sexualidade, a fertilidade e a virilidade de quem os usava, eles mostram-nos
22 certas facetas dos seus costumes eróticos. Claro que eram objectos propiciatórios intimamente
associados à magia e aos feitiços amorosos, mais ligados ao desejo sexual e a tratamentos
contra a impotência ou a infertilidade, do que a aspectos reprodutivos. Enquanto os homens
ostentavam pénis descomunais, numa demonstração exacerbada de virilidade, a sexualidade
feminina era representada com muito mais realismo ou recato. A isto não deve ser estranho o
facto de, desde o Neolítico, as figuras femininas representarem o desejo de ter filhos: nelas eram
salientadas as partes sexuais do corpo, mas tendo sempre como principal objectivo a capacida-
de de gerar descendência. No antigo Egipto, estatuetas representando mulheres nuas com pen-
teados complicados, colares e cintos nas ancas eram consideradas «figuras de fertilidade», pois
embora o motivo sexual fosse salientado por um púbis largo realçado por um pontilhado em
toda a região púbica, a fertilidade era associada às coxas amplas e a fecundidade simbolizada
pelos chamados «cintos de fertilidade» usados pelas mulheres em idade de procriar30.

26 - J. C. SALES, «Sexualidade e sagrado entre os Egípcios. Em torno dos comportamentos erótico-sexuais dos an-
tigos Egípcios», em J. A. Ramos, M. C. Fialho e N. S. Rodrigues (coord.), A Sexualidade no Mundo Antigo, Coim-
bra, Lisboa: C. E. C. H. da Universidade de Coimbra e C. H. F. L. da Universidade de Lisboa, 2009, p. 57; R. O.
FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 144.
27 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, pp. 261-262.
28 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 82.
29 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 143.
30 - L. MESKELL, Vies privées des Égyptiens. Nouvel Empire (1539-1075), Paris: Éditions Autrement, 2002, p. 88;
H. W. MÜLLER e E. THIEM, El Oro de los Faraones, Madrid: Editorial LIBSA, 2001, p. 165.
É de considerar ainda de capital importância para este ponto do nosso estudo o Papiro de
Turim 5500131 a que uns chamam Papiro Erótico de Turim32 e outros Papiro Pornográfico
de Turim33, um papiro da XIX dinastia que se julga originário de Deir el-Medina, sobretudo
porque o seu primeiro proprietário moderno, Bernardino Drovetti, escavou aí a partir de 1811
onde recolheu a maior parte dos objectos das três colecções que vendeu em Turim, Paris e
Berlim34. Embora possa ser considerado um papiro satírico, as doze cenas de sexo explícito
que evoluem ao longo dos seus 2,59 metros, não deixam de mostrar com clareza, sem qual-
quer pudor e com demonstrações de grande flexibilidade, algumas das práticas sexuais dos
antigos Egípcios, sejam elas passadas ou não num bordel. Começaremos, então, por expor
algumas ideias despidas de preconceitos, sobre as posições do coito com que uma esposa
egípcia, hemet (Hmt), uma nebet-per (nbt pr), uma «dona de casa», no sentido de «senhora da
casa», podia conceber filhos, para depois nos fixarmos na gravidez, no nascimento e termi-
narmos nos primeiros anos de vida das crianças no antigo Egipto.

A concepção

Não é pois, o erotismo demiúrgico ou profilático que nos move, nem, no outro extre-
mo, eventuais aberrações como a necrofilia ou a zoofilia, que já abordámos de raspão35, ou
mesmo um qualquer fascínio pelo Kama Sutra, mas simplesmente a exploração de mais um
capítulo do quotidiano: a prática sexual comum que podia conduzir à procriação. Isto é, as 23
posições sexuais que os antigos Egípcios podiam utilizar para conceber uma nova vida e que

31 - R. LANDGRÁFOVÁ e H. NAVRÁTILOVÁ, Sex and the Golden Goddess I: Ancients Egyptian Love Songs in
Context, Praga: Lucie Storchová Editor, 2009, p. 78; J. JANÁK e H. NAVRÁTILOVÁ, «People vs. P. Turin 55001»,
em C. Graves-Brown (ed.), Sex and Gender in Ancient Egypt, Oxford, Oakville: The Classical Press of Wales, pp.
63-70. J. Toivari-Viitala evita adjectivar a designação deste papiro, chamando-lhe simplesmente «Papiro de Turim
55001», mas não deixa de se referir diversas vezes ao «papiro satírico-erótico de Turim», deixando bem claro que
isso é já uma designação interpretativa ao colocar imediatamente a seguir «(P. Turim 55001)», J. TOIVARI-VIITA-
LA, Woman at Deir el-Medina, Leiden: Nederland Instituut Voor Het Nabije Oosten, 2001, pp. 147-153.
32 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, Bordeaux: Culture Suds, 2006, p. 10; L. Manniche não nomeia
o papiro mas mostra-o e refere-se a ele como «um desenho erótico», L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt,
Londres, Nova Iorque, Bahrain: Kegan Paul, 2002, pp. 106-115.
33 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 26. Na realidade, nós até julgamos que o termo
«pornografia» não tinha qualquer significado para os antigos Egípcios, sendo um conceito que apenas faz sentido
para a mentalidade judaico-cristã.
34 - W. R. DAWSON e E. P. UPHILL, Who Was Who in Egyptology, Londres: The Egypt Exploration Society, 1995,
pp. 129-130.
35 - T. F. CANHÃO, «Erotismo e sensualidade no Papiro Westcar», em https://www.academia.edu/13139680/
Erotismo_e_sensualidade_no_Papiro_Westcar; T. F. CANHÃO, «Eroticism and Sensuality in Papyrus Westcar»,
em L. M. Araújo e J. C. Sales, Actas do Segundo Congresso Internacional para Jovens Egiptólogos, CD, ISBN 978-
989-8068-07-1, Lisboa: Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009, pp. 567-585
e em F. Caramelo (ed.), Res Antiquitatis. Journal of Ancient History, vol II (2011), Lisboa: Centro de História de
Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa, Universidade dos Açores, 2011, pp. 83-101.
deixaram documentadas, ainda que possamos pedir ajuda
a alguma informação da prática sexual divina, justificada-
mente por julgarmos que ela terá bebido em raízes humanas.
Embora o momento do acto sexual fosse evitado na arte ceri-
monial dos templos e dos túmulos, podiam aparecer alusões
simbólicas ao sexo através de cenas de caça e pesca, como o
caso dos peixes, por exemplo, sempre com evidentes cono-
tações fálicas. Outras vezes era o tipo de vestuário que des-
cobria os seios ou apresentava os corpos por entre diáfanas
roupagens de cerimónia. Outras, ainda, eram as dependentes
desnudadas que serviam em banquetes, ou as bailarinas que
se exibiam com sumárias vestimentas que lhes facilitavam os
movimentos e as arrevesadas poses.
Tudo isto era apresentado de forma simples e natural,
uma vez que os Egípcios não se envergonhavam com os te-
mas sexuais, integrando-os na convicção de que eram ape-
Amuleto erótico, Museu Britânico. nas mais um elemento da natureza, já que, tal como a terra
se regenera ciclicamente, também o homem tem que nascer,
crescer e reproduzir-se para assegurar a sua própria regeneração no Além através da sua
descendência. Com a maior naturalidade integraram falos, seios e úteros na própria escrita
24 hieroglífica36! Contudo, há documentos em que a prática amorosa representada na sua forma
mais realista é clara e evidente: são grafitos e óstracos feitos pelos trabalhadores das aldeias
de artesãos, como Deir el-Medina; são grafitos em grutas, como uma em Deir el-Bahari onde
foram registados de forma muito realista vários seres humanos a copular, acompanhados de
longos textos em escrita hierática, ricos em expressões e comentários provocatórios sobre
fantasias sexuais; em amuletos propiciatórios, usados tanto por homens como por mulheres
para potenciarem a sexualidade e a fecundidade, multiplicando-se os femininos na Época
Baixa e na Época Greco-romana. Quase sempre com uma carga erótico-satírica, como a da
figura desta página que está no Museu Britânico, de um homem que ostenta um enorme pénis
com cerca do triplo da sua altura e no topo do qual se equilibra uma pequena figura feminina
de pernas abertas37. No entanto, nem sempre se procuravam os fins reprodutivos, pois às
vezes só se pretendia satisfazer o desejo sexual.
É por isso importante dar mais visibilidade a um estudo que Pedro Miguel Correia Marques
apresentou em 2006 no II Congresso Internacional para Jovens Egiptólogos, sugestivamen-
te intitulado «O acto sexual no antigo Egipto: um estudo acerca das posições sexuais», uma
análise de fontes situadas entre o Império Antigo e o Terceiro Período Intermediário38. A sua

36 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egíto, pp. 221-238 e 259-277.


37 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 93.
38 - P. M. C. MARQUES, «O acto sexual no antigo Egipto: um estudo acerca das posições sexuais», em L. M.
Araújo e J. C. Sales, Actas do Segundo Congresso Internacional para Jovens Egiptólogos, de 23 a 26 de Outubro
investigação divide-se em oito capítulos: 1 - Posição com os amantes deitados; 2 - Posição
com os amantes em pé; 3 - Posição sentada; 4 - Posições com uma perna levantada; 5 - Po-
sição com ambas as pernas levantadas; 6 - Posição a tergo; 7 - A dança e as suas posições;
8 - Considerações finais. São os seis primeiros capítulos que encerram as principais posições
do acto sexual, e algumas variantes, registadas pelos antigos Egípcios que as praticavam em
casa, ou noutro lugar escolhido pelos casais para se relacionarem sexualmente, podendo ser
uma forma de expressar o seu amor, ao mesmo tempo que obtinham prazer e podiam atingir
a ambicionada gravidez. Com acréscimos nossos e alterações à nomenclatura, pois fixámos a
nossa atenção no facto de os intervenientes poderem estar deitados, em pé ou sentados, con-
siderando as diferentes posições das pernas como variantes, esta parte deste texto tem como
ponto de partida esse estudo.

1 - Posições com os amantes deitados


A) Um sobre o outro, face a face, com o homem por cima. É a posição do «mis-
sionário» em que os elementos do par estão face a face:
o homem encontra-se sobre a mulher e toma a iniciativa,
e ela sob ele, de pernas abertas,
está receptiva. O principal exem-
plo data de cerca de 2000 a. C. e
é uma representação hieroglífica
(hieróglifo 438 na Hieroglyphi- 25

Representação hieroglífica da ca, ) de um túmulo do Im-


cópula sobre uma cama, XI/XII
dinastia, Beni Hassan.
pério Médio, de uma necrópole
Óstraco de Tell el-Amarna.
da XI ou da XII dinastia, em Beni
Hassan39. As patas de bovino deste tipo de leitos, invocam
a força procriadora do touro, simbolizando a sua potência sexual e a sua fertilidade, bem
como as forças reprodutora, renovadora e maternal da vaca40. Só existe mais um exemplo
que é possível integrar neste grupo: um pedaço de um óstraco encontrado em Tell el-
-Amarna datado da XVIII dinastia. Apresenta do seu lado direito um desenho com apenas
duas cabeças frente a frente sobre um leito, imaginando-se o resto do desenho na posição
do «missionário»41.

de 2006, CD, ISBN 978-989-8068-07-1, Lisboa: Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lis-
boa, 2009, pp. 490-502.
39 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 35; L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito,
p. 155; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 196; N. GRIMAL, J. HALLOF, e D. VAN DER PLAS
(eds.), Hieroglyphica, Publications interuniversitaires de recherches égyptologiques informatisées, I, Utreque e Pa-
ris: Centre for Computer-aided Egyptological Researchs, Utrecht University e Université de Paris-Sorbonne (Paris
IV), 2000, pp. 1- A6 e 2A - 15.
40 - M. K. ACÚRCIO, «Touro» e «Vaca», em L. M. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 834-835 e 857.
41 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 21; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 7.
B) Um sobre o outro, face a face, com o homem por cima. Variante. No Papiro de
Turim 55001 encontramos uma variante desta posição, em
que os amantes estão deitados numa superfície inclinada e a
mulher tem a perna esquerda erguida. É a cena XII, a última
do papiro42. O homem está por cima mas não está em força
sobre a mulher. Para isso apoia o joelho direito na platafor-
ma e o pé esquerdo no pé direito da sua parceira e numa lira
onde, do outro lado, se equilibra outra figura de outro par.
A mulher deitada de costas tem a perna esquerda levantada
e assente no ombro direito do amante, facilitando assim a
penetração e demonstrando grande flexibilidade. Nesta posi-
ção não parece ser totalmente passiva. Tanto mais que com a
mão do seu braço esquerdo parece puxar para si o seu par ou,
pelo menos, segurá-lo ou acariciá-lo por detrás da cabeça.
Cena XII do Papiro de Turim
Simultaneamente ele estende o braço esquerdo para o ros-
55001.
to da mulher para a acariciar, ou no intuito de um qualquer
outro gesto afectivo ou erótico. Curiosamente ela tem na mão direita o que parece ser um
pequeno estilete, provavelmente um pincel ou um aplicador de cosméticos, como sugere Lise
Manniche43, enquanto ao seu braço direito se segura uma criança pequena.
C) Um sobre o outro, face a face, com o homem por cima. Variante. Na cena X do Papiro
26 de Turim 5500144, surge outra variante: uma rapariga deitada
também em posição inclinada, provavelmente sobre almofadas,
recebe o parceiro com as duas pernas levantadas. Ela tem a perna
direita no sovaco esquerdo do homem e a perna esquerda sobre
o ombro direito dele. Há uma torção do tronco da mulher para
a esquerda, empurrada pelo braço esquerdo dele, obrigando-a a
esticar os dois braços para o mesmo lado e dando ao homem a
mão esquerda que ele segura com a sua mão direita. Com o joe-
lho direito sobre a superfície em que se encontram, ele aumenta
Cena X do Papiro de Turim 55001. a profundidade da penetração e do prazer da mulher.
Esta posição surge ainda no Óstraco 11198, do Império
Novo, que se encontra no Museu Egípcio do Cairo. O homem com o joelho esquerdo na su-
perfície sobre a qual se encontra o casal e a perna direita esticada, puxa para si a parceira pelo
pescoço ou pelos ombros. A mulher com as nádegas na superfície de apoio assenta as pernas
nos ombros do parceiro e puxa-o para si com os seus braços no pescoço dele45.

42 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 114; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa
solta com uma reconstituição do estado original do Papiro de Turim 55001 de Begoña Lafuente.
43 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 114.
44 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 115; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
45 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 201.
Mas é uma estatueta da Época Greco-
-romana, também do Museu Egípcio do
Cairo, que melhor apresenta esta variante
da posição do «missionário»46. O par está
num leito e a mulher comprime os braços
contra a cama elevando o baixo ventre. As
suas pernas estão dobradas em V numa po-
sição fetal de pernas abertas. Sobre ela, o
homem entre as suas pernas agarra-a pelos
ombros passando os seus braços por entre Óstraco 11198, Império Médio, Museu Egípcio do Cairo.
as suas pernas e comprime-se sobre as suas
coxas. Apoiando os pés na trave do fun-
do da cama descarrega o seu peso sobre
os ombros da mulher, empurrando-a para
cima e ajudando-a a elevar o baixo ventre.
Desta forma a penetração é bem profunda
e o prazer pode ser mais intenso. Ao con-
trário de todos os outros exemplos, esta
estatueta exibe claramente a ideia de que
o acto sexual não era exclusivamente sexo,
pois, para além de uma posição esforçada Variante da posição do «missionário». Estatueta da 27
e intensa de ambos, os seus lábios e narizes Época Greco-romana, Museu Egípcio do Cairo.
em pleno contacto mostram-nos um beijo
arrebatador que parece transpirar paixão e desejo.
D) Um sobre o outro, face a face, com a mulher por cima. Já a posição invertida,
com o homem deitado de costas como sujeito passivo e a mulher deitada ou sentada so-
bre ele, está mais documentada com uma considerável ajuda da mitologia. Conforme se
vê em Abido, no templo de Seti I, da XIX dinastia, a concepção de Hórus, assenta nesta
posição, em que Osíris deitado de costas,
morto e com uma prótese do pénis, e Ísis
assumindo a forma de falcão empoleirada
no falo de Osíris, liberta a sua força má-
gica dando furiosamente às asas e geran-
do assim Hórus47. Outro exemplo divino
é a cópula entre Geb, a Terra, de costas Osíris mumificado concebe Hórus pela acção mágica
no chão, numa pose que não parece tão de Ísis. Templo de Seti I, XIX dinastia, Abido.
passiva quanto outras no Papiro de Lon-

46 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 372; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pha-
raons, p. 200.
47 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 77.
dres 10008, da XXI dinastia, do Museu
Britâ¬nico (Geb normalmente aparece
mais prostrado e pode até ter o seu pai
Chu entre eles sus-tentando Nut ao nível
dos seios e do baixo ventre48, enquanto
Nut se debruça sobre ele para assim ge-
rarem Osíris, Ísis, Set e Néftis49. Como
observa Pedro Marques, até pode haver
uma sequência ritualista: enquanto Chu
Cópula cósmica de Geb em baixo (a Terra) com Nut em está entre os dois, Geb está mais prostra-
cima (o Céu). Papiro de Londres 10018, XXI dinastia, do, mas depois pode ser ele que se eleve
Museu Britânico.
até Nut consumando o acto sexual e assu-
mindo o seu papel activo.
Esta posição está também documentada
entre humanos na Estela 1375 do Museu Bri-
tânico, da XIII dinastia, onde duas mulheres
ajudam uma terceira, aparentemente mais pe-
quena, a colocar-se sobre um homem deitado
numa cama de barriga para cima50. Contudo,
refira-se que tal como Osíris, este homem
28 parece mumificado embora não apresente o
falo erecto, para além da mulher se encontrar
Estela 1372, XIII dinastia, Museu Britânico. vestida e ajudada por duas outras mulheres,
podendo a imagem representar uma cópula
ritualista, simulando-se apenas o acto sexual.
É conveniente a este propósito lembrar que o Papiro do Louvre 3079, na coluna 110,10 afirma
que no antigo Egipto, com excepção de Ísis, o papel activo na cópula era do homem:

«Sou sua irmã Ísis. Não há outro deus ou deusa que tenha feito o que eu fiz. Eu
desempenhei a parte de um homem, embora eu seja uma mulher, para deixar
o seu nome viver na terra, pois a sua semente divina estava em meu corpo.»51

Entre as doze cenas de sexo explícito do Papiro de Turim 55001 também encontramos
uma que documenta esta posição. Na cena VIII52, um homem deitado de costas no chão com

48 - Como no Papiro Greenfield, do Museu Britânico (L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 56).
49 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 52; L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 59.
50 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 59.
51 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 59. O Papiro de Turim 55001 e alguns poemas de amor, igual-
mente do Império Novo, desmentem esta afirmação.
52 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 112; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
o tronco ligeiramente erguido e sustentado pelo cotovelo
direito, apoia a cabeça na mão do braço do mesmo lado e,
sobre um descomunal pénis, como o são todos neste papi-
ro, uma mulher equilibra-se e arqueia o corpo como a deusa
Nut sobre Geb, e afaga-lhe a cabeça calva e o queixo com
as suas mãos. É curioso que das catorze figuras de homens
registados neste papiro, em que algumas figuras poderão ser
do mesmo homem, treze são calvos53. A mulher tem sobre a
cabeça uma flor de lótus, como quase todas as mulheres do Cena VIII do Papiro de Turim
papiro, que embora fosse um símbolo de renascimento, aqui 55001.
era muito mais apreciada pelo seu odor divino considerado
um estimulante sexual, mas que, integrando determinadas bebidas, podia ser também consi-
derado uma droga recreativa com efeitos narcóticos e eufóricos54.

2 - Posições com os amantes em pé.


A) Posição em pé com os amantes frente a frente. Esta posição está documentada ape-
nas em dois óstracos. O primeiro é o Óstraco 23676, da XIX dinastia, do Museu Egípcio de
Berlim55. É um desenho em que se consuma a cópula. Um homem, à esquerda, e uma mulher,
à direita, estão de pé frente a frente favorecendo o contacto visual e abraçando-se, com os
baixos ventres encostados e sem que se veja o pénis do amante. Enquanto o homem estende
os braços segurando os da mulher, esta agarra-lhe as coxas para se segurar, ajeitando e aju- 29
dando a penetração. A posição das pernas, uma à frente e outra mais atrás, uma delas entre
as do parceiro, facilitam a acção e aumentam o contacto genital e o prazer. Pode-se, talvez,
imaginar que a excitação é crescente, que o coito se torna cada vez mais rápido até terminar
numa explosão de prazer.
Quatro outras personagens surgem no óstraco sem que seja muito clara a sua função. Apa-

53 - A testosterona é responsável pelas características sexuais masculinas, sendo a principal hormona andrógina pro-
duzida naturalmente nos testículos. É produzida pelos dois sexos, apresentando o homem cerca de trinta vezes mais
testosterona que a mulher, que a produz nos ovários. Esta sobrecarga leva a que o comportamento sexual masculino de-
penda da testosterona, aumentando o desejo sexual e estimulando a libido. Contudo, estimula também a agressividade,
porque se relaciona com o desenvolvimento da massa muscular aumentando o metabolismo das gorduras e produzindo
energia. Por seu lado, a deficiência de testosterona ocasiona perda de massa muscular, de massa óssea e de força, além
da perda da libido e do armazenamento de gordura. É também uma das principais causas da calvície nos homens ao
converter-se noutra hormona designada por dihidrotestosterona (DHT), o andrógino mais potente produzido por ambos
os sexos, que é duas ou três vezes mais potente do que a testosterona. 20/25% forma-se no testículos, mas os restantes
80/75% são formados em vários tecidos não endócrinos, embora primariamente na pele e tecidos sexuais como a prós-
tata e a genitália feminina. O DHT ao agir nos folículos capilares reduz a produção de cabelo, tornando-os mais finos e
mais fracos, acabando por atrofiar a própria produção e fazendo surgir a calvície, sobretudo nas áreas frontais e na coroa
do couro cabeludo (http://testosterona.me/; http://www.infoescola.com/hormonios/testostero-na/; http://steroidly.com/
pt/dht-and-testosterone/; http://www.todabiologia.com/dicionario/testosterona.htm; http://segredocapilar.com/calvicie-
-ou-alopecia/dht-saiba-como-evitar-seus-efeitos/ (todos consultados em 30-01-2017).
54 - T. F. CANHÃO, «A alimentação no antigo Egipto», em Hapi 3 (2015), pp. 53-54.
55 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 204; L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 19.
Óstraco 23676, da XIX dinastia, do Museu Egípcio
de Berlim. Óstraco de uma colecção privada.

rentemente estariam duas figuras atrás de cada um dos amantes, embora uma das que estavam
atrás do homem já mal se perceba, restando apenas o topo da cabeça e um joelho. De cada
lado há uma figura que parece empurrar ou suster os amantes ao nível das nádegas, sendo a da
direita uma mulher, a única cujo género é possível verificar. Não parece que fosse uma orgia
e o facto de serem mais pequenas pode indiciar que fossem dependentes, crianças ou anões.
O outro óstraco pertence a uma colecção privada, sendo desconhecida a sua proveniência
e datação56. A posição é a mesma que encontramos no óstraco precedente, mas numa fase an-
30
terior e preliminar do coito. Neste exemplo há um maior afastamento entre os amantes e vê-se
o homem aproximar o longo pénis erecto do baixo ventre da mulher, parecendo afagá-lo com
a mão numa atitude preparatória. Também aqui surgem mais duas figuras a que não é possível
determinar o género. Uma está sentada numa cama e a outra numa posição mais elevada ou
por detrás da cama. Não é possível determinar o que estas duas personagens estariam a fazer.
B) Posição em pé com os amantes frente a frente. Variante. No Papiro de Turim
55001 podemos considerar a cena XI como uma variante da
Cena XI do Papiro de Turim posição em que os amantes estão de pé, embora não total-
55001.
mente de frente mas encarando-se57. Para nivelar alturas e
tornar a investida mais certeira, o homem investe em bicos
de pés para a mulher que está à sua frente, numa posição
cuja acrobacia faz com que esteja de lado. Com a perna di-
reita no chão meio flectida, levanta a esquerda com grande
elasticidade na mesma posição mas na direcção oposta sobre
a cabeça do amante, abrindo as pernas a cerca de cento e
oitenta graus, e aumentando assim a possibilidade de pene-
tração. Também a passividade da mulher aparenta não ser
das maiores nesta posição. A sustentabilidade da posição é

56 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 19.


57 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 114; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
conseguida com quatro apoios: a sua mão direita apoia-se sobre uma lira que se encontra no
chão, a mesma que sustenta o pé do homem da cena XII antes referida, a mão esquerda segura
a perna do mesmo lado ao nível da barriga da perna; o parceiro ajuda-a agarrando-a pelos
cabelos com a mão direita e sustendo-lhe a perna esquerda ao nível da parte interna da coxa.
C) Posição em pé com os amantes frente a frente. Variante. Ainda no Papiro de Turim
55001, também a cena V a consideramos uma outra variante
da posição de pé frente a frente, embora a consideremos no
limiar deste caso, uma vez que a mulher está sentada58. Con-
tudo, como é sobre o homem que se senta e ele está em pé
sustentando-a totalmente, prevalece para nós a posição dele.
O homem, visivelmente musculado, suporta todo o peso da
mulher que se aninha contra o seu peito dobrada em V, com
as pernas sobre os seus ombros e o tronco para cima, um pou-
co mais elevado ao do homem. Este sustenta-a com o braço
direito no seu pescoço e segura-a com o esquerdo por detrás
Cena V do Papiro de Turim 55001.
da cabeça. O braço esquerdo da mulher agarra a cabeça do
parceiro, não se vendo o seu braço direito. Embora o homem
aguente o esforço da cópula, mostrando força e agilidade, não é totalmente certo que seja o úni-
co a ter uma atitude activa: enquanto ele a agarra pelos ombros podendo investir de baixo para
cima flectindo as pernas e fazendo dos pés molas, também ela pode fazer força com as pernas
nos ombros dele e, igualmente com um efeito de mola, baixar-se e elevar-se sobre o seu falo. 31

3 - Posições com pelo menos um dos amantes sentado


A) Homem e mulher sentados frente a frente. Consideramos deste grupo a estatueta
erótica do Museu de Brooklyn, em calcá-
rio branco pintado, com a referência n.º
58.3459. É do período ptolemaico, mede
14.8 x 21 cm. e as suas duas figuras estão
sentadas. Um homem nu, sentado de per-
nas abertas, tem à sua frente o seu enorme
falo que se estende erecto sobre a super-
fície em que o grupo se encontra. Muito
mais pequena, uma mulher nua toca harpa
sentada na glande do enorme pénis, frente
ao homem que segura sobre o pénis um ob-
jecto rectangular que pode representar um
Estatueta erótica n.º 58.34, Museu de Brooklyn,
papiro, uma vez que tem inscrições a preto.
Nova Iorque.
Diz o catálogo que as inscrições são ilegí-

58 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 110; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
59 - https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/3649 (consultado no dia 15-12-2016).
veis; que não é escrita hieroglífica, avançando a ideia de que possa representar notação musi-
cal. Por isso alguns referirem-se a este grupo como «A lição de música»60. Mas introduzem
também a ideia de poder ser um instrumento musical. Tal como outras figuras do género, é
provável que a mulher não estivesse apenas sentada, mas que esta possa ser a forma «elegan-
te» de mostrar uma cópula entre figuras de tamanhos tão díspares, embora não seja de admitir
que ela se sentasse frente a frente com as pernas entrelaçadas nas do parceiro, uma vez que há
entre eles os dois objectos mencionados. Através de imagens deste género, percebe-se tam-
bém que a associação da música ao sexo não é uma coisa dos nossos dias, mas que vem já do
longínquo Egipto faraónico, onde a música parece ter tido a capacidade de criar ambiências
eróticas, podendo ser um importante meio de sedução tanto em festas como em privado61.
B) Mulher sentada ao colo do amante frente a frente. A imagem que apresentámos na
página 24, um amuleto erótico-satírico do Museu Britânico, que nos foi mostrado por Lise
Manniche, é exemplo de um coito em que o homem está sentado numa base, de pernas flec-
tidas, segurando um descomunal pénis erecto em posição vertical. Na extremidade do falo
equilibra-se com pernas e braços uma mulher, cuja posição transposta para a realidade a poria
sentada sobre as pernas do seu parceiro. Ela envolvê-lo-ia com as pernas e os braços, num
abraço intenso como o que parece executar à glande. Nesta posição, a proximidade entre eles
seria absoluta e o prazer elevado, com a mulher a poder controlar o nível de penetração, o
movimento e o amplexo. Contudo, o desmedido falo e a pequenez e pose acrobática da figura
feminina, desviam o papel activo para o elemento masculino.
32 C) Mulher sentada com uma perna levantada e homem de pé. Neste grupo incluímos
a composição erótica ptolemaica em calcário pintado, com 16.5 x 9.5 x 17 cm, que se encon-
tra no Museu de Brooklyn, Nova Iorque, com o registo n.º 58.13, cuja descrição no catálogo
diz ser um grupo sobre uma base rectangular amarela que tem ao centro uma mulher nua
pintada de branco com uma peruca ondulada preta, «atendida por seis machos nus»62. Na re-
taguarda estão dois anões itifálicos63, ou dois meninos, um em cada canto, um sentado outro
deitado, cruzam os seus enormes falos sobre os quais a dama se senta, ou representando uma

Três vistas da composição erótica n.º 58.13, Museu de Brooklyn, Nova Iorque.

60 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, pp. 43 e 46.


61 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, pp. 44-45.
62 - Em https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/3641 (consultado no dia 14-12-2016).
63 - Como lhes chama L. M. de Araújo em L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, última página
do caderno de imagens coloridas.
múltipla penetração, e por baixo dos quais está estendido um terceiro elemento masculino.
Na frente, no canto direito, dois outros meninos, ou anões, seguram uma miniatura de um
órix enfaixado. O que não parece levantar dúvidas é que é um jovem, ainda com a trança
de criança, que satisfaz com o seu poderoso falo a dama. Os restantes também parecem ter
tranças de criança. Todos os elementos masculinos estão pintados de vermelho. Recordamos
que a cena XII do Papiro de Turim 55001 apresenta uma diminuta figura complementar, que
julgamos ser uma criança, contudo, ao contrário destas, sem qualquer interferência no acto.
Diz ainda o catálogo que apesar das imagens serem abertamente sexuais, esta composição
tem um conteúdo religioso importante, associado à fertilidade e à ressurreição: a união pro-
criadora recorda o nascimento de Hórus concebido magicamente pela sua mãe Ísis depois da
morte do seu pai Osíris. Esta teoria diz ainda que as cinco pequenas figuras provavelmente
representam sacerdotes e o órix significa a destruição do mal e reforça o triunfo de Osíris.
Contudo, o quinto sacerdote parece mais Hórus, na sua forma de Horpakhered, ou Hórus
menino/criança, do que Osíris, e a mulher não aparenta qualquer presença maternal atribuível
a Ísis! A nós parece-nos uma teoria um pouco bizarra!
D) Mulher sentada com as duas pernas levantadas e homem de pé. Uma outra
figura com a mulher sentada e o homem de pé, também associa a música. É um desenho
em madeira do Império Novo, proveniente de um túmulo de Tebas64. Uma mulher música
despertou tal entusiasmo com o tanger das cordas do seu instrumento, que o ouvinte nem a
deixou poisar o instrumento e possuiu-a naquele preciso momento. E para que não hajam
dúvidas de que é uma cópula e não apenas um amplexo, os órgãos sexuais dos dois em 33
plena função foram desenhados em primeiro plano, tornando a carne das coxas femininas
completamente transparente, num processo de representação tipicamente egípcio. A có-
pula acontece com o homem em pé fren-
te à mulher, segurando-a nas costas com
o braço direito ao passar sobre o ombro
esquerdo dela e com a sua mão esquer-
da afaga-lhe o seio direito. A mulher está
numa posição em V, com as pernas fecha-
das e elevadas, apertadas sob o sovaco
esquerdo do parceiro. Como é um banco
baixo, ao nível dos joelhos do homem,
não só a mulher está um pouco inclinada
para trás como o homem se inclina sobre
ela. Nesta posição a acção está toda con-
centrada no homem.
Mais uma vez encontramos uma posição O coito em transparência. Desenho em madeira de
semelhante no Papiro de Turim 55001. É a um túmulo tebano do Império Novo.

64 - L. M. ARAÚJO, Estudos Sobre Erotismo no Antigo Egipto, Lisboa: Edições Colibri, 1995, p. 107; L. MANNI-
CHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 66; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 50.
cena III65, em que podemos estabelecer à partida duas diferen-
ças principais: o banco em que se senta a mulher tem o dobro
da altura encontrando-se ao nível do baixo ventre do homem e o
corpo da mulher, em V, tem a cabeça e as pernas mais altas do
que a cabeça do homem que lhe dá pelos ombros. No entanto
há outros particularismos. A mulher segura as suas pernas fe-
chadas passando o seu braço esquerdo sob elas. O homem, que
se encontra frente a frente, ao invés de investir parece recuar
com medo de que as pernas tombem sobre a sua cabeça. Inclina
o corpo para trás, afasta o rosto olhando para o lado oposto e
interpõe os seus braços entre a sua cabeça e as pernas da mu-
lher, numa atitude de protecção. Aqui a acção parece ser toda da
Cena III do Papiro de Turim mulher que, aparentemente, impede o homem de sair de dentro
55001. de si, retendo-lhe o falo com a sua mão direita ou impondo-lhe
o ritmo mais apropriado para si. Provavelmente, a mulher nada
mais faz do que ajudar um inexperiente amante! Sob o banco, um sistro também liga esta cena à
música e a certos cultos.

4 - Posições a tergo
A posição a tergo é difícil incluí-la entre os grupos antes definidos, porque, embora haja
34 exemplos sentados e em pé, não os há propriamente deitados e surgem exemplos ajoelhados.
Como é uma posição que deriva directamente da observação quotidiana da natureza, tanto
da vida selvagem como do pastoreio, que vemos em muitos exemplos da arte egípcia, certa-
mente a forma mais antiga do homem se reproduzir exercendo a sua posição dominante e a
mais representada na arte egípcia, resolvemos abrir um espaço próprio para ela. Mas antes
apresentamos três exemplos dessa mesma realidade natural, de que os Egípcios deixaram
diversos quadros espalhados no tempo e no espaço na sua produção artística: o desenho de
um baixo-relevo com cabras copulando do templo solar de Niuserré, V dinastia, em Abu
Gurab, hoje no Museu Egípcio de Berlim66, o Óstraco 2218, de Deir el-Medina, do Império

Templo solar de Niuserré, V dinastia. Óstraco 2218, Império Mastaba de Neferherenptah, V


Novo, Deir el-Medina. dinastia.

65 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 108; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
66 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 126.
Novo, que mostra um casal de canídeos a copular67 e um baixo-relevo tumular da mastaba
de Neferherenptah, em Sakara, V dinastia, Império Antigo, de um touro a cobrir uma vaca68.
A) Cópula a tergo com o homem sentado e a mulher deitada. Nesta posição temos
um amuleto erótico de faiança do Museu
Britânico, mostrando ainda restos do anel
de suspensão nas costas do homem, apre-
sentado por Lise Manniche69. Um homem
sentado possui uma mulher por detrás,
deitada à sua frente de barriga para baixo.
Com a cabeça, os braços e o peito na base, Amuleto erótico, Museu Britânico.
ela eleva a parte posterior do seu corpo dobrando as pernas e sustendo-a no ar de joelhos,
facilitando a penetração. Não está totalmente deitada, mas também não está simplesmente
de joelhos. Embora esta posição, e todas as variantes que se seguem, facultem tanto o coito
vaginal como o anal, consideraremos aqui apenas o primeiro, uma vez que o que nos importa
é a procriação.
B) Cópula a tergo com o homem sen-
tado e a mulher deitada. Variante. Na
pequena estatueta do Museu Britânico que
funcionava como amuleto erótico, o ho-
mem permanece sentado e a figura femi-
nina, de costas para ele, apresenta-se numa 35
posição em L de barriga para baixo. A par-
te longa do L é constituída pela cabeça e
pelo tronco, e a curta pelas pernas. Só a Estatueta erótica, Museu Britânico.
cabeça e os pés estão assentes na superfície
em que se encontra. O tronco no ar e as pernas erguidas a direito elevam-lhe bastante a parte
traseira do corpo, sustentada pelos pés70. Os braços da mulher estão colados ao corpo. Na
verdade não está nem deitada nem ajoelhada. É uma estatueta cujo valor é essencialmente
simbólico, porque a posição é irrealista, uma vez que a mulher teria que suster as investidas
do homem apenas com a cabeça, em esforço de rins e do pescoço. Contudo, lembremos que
referidas neste texto há outras poses acrobáticas visíveis em várias representações!
C) Cópula a tergo com o homem sentado e a mulher deitada. Variante. Nesta esta-
tueta de faiança do Museu Britânico, também apresentada por Lise Manniche71, o homem
está quebrado mas ainda dá para ver que está sentado. Apresenta a mulher numa posição
semelhante à da representação anterior, mas de forma mais realista. A mulher, igualmente de

67 - J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 130.


68 - http://www.desheret.org/photogallery/TombofNeferherenptah/neferherenptah20.html (consultado em 18/12/2016).
69 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 65.
70 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 73.
71 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 98.
costas para o homem, está de pé dobrando
o corpo para diante, em L, com a barriga,
o peito e o rosto deitados numa superfície
mais elevada que, possivelmente, são al-
mofadas, onde assenta confortavelmente
o rosto de lado. Os braços também se se-
Estatueta de faiança, Museu Britânico.
guram aí ajudando ao equilíbrio. A cabeça
está mais baixa do que a parte posterior do corpo.
D) Cópula a tergo com o homem ajoelhado e a mulher deitada. Esta posição surge bas-
tante clara no grupo escultórico de terracota,
da Época Greco-romana, que L. M. Araújo
nos apresenta72. Uma mulher sobre um lei-
to ajoelha-se com a cabeça numa almofa-
da, ficando com as costas paralelas à cama,
onde os seios mal tocam. As suas pernas
estão flectidas para deixar bem acessível ao
seu parceiro a vagina pela retaguarda. Ele,
ajoelhado fora da cama, numa posição mais
Grupo escultórico da Época Greco-romana.
baixa, penetra-a por detrás segurando-se às
suas coxas. Nesta imagem também é visível que a mulher dá uma ajuda ao parceiro, estendendo
36 os seus braços para trás e abrindo mais as coxas com as suas mãos nas próprias nádegas.
E) Cópula a tergo com o homem em pé e a mulher sentada. De novo no Papiro Turim
55001 para observar agora a cena II73. Um homem está em pé
por detrás de uma mulher, que se senta no interior de um carro
sustido por duas jovens dependentes. Na retaguarda das duas ra-
parigas, um homenzinho, com o que parece ser uma mala na
mão direita, chama-as e mostra-lhes o seu desejo. As jovens pa-
recem acenar-lhe também, a da direita olhando-o directamente
enquanto o faz. A mulher no carro projecta o rabo para trás, para
Cena II do Papiro de Turim
fora do carro, e o homem, em bicos de pés, investe na sua direc-
55001.
ção de baixo para cima possuindo-a por detrás. É uma cena cheia
de adereços. O principal é o carro de combate, um equipamento militar de oficiais, isto é, de gente
de estatuto social mais elevado. Poderia querer dizer que o homem em acção era um soldado. A
mulher, numa posição descontraída, pousa o braço esquerdo numa planta trepadeira, da família das
convulvoláceas, «uma planta frequentemente encontrada em contextos erótico»74, e com o direito
agarra o que parece ser um macaquinho, pois é bem diferente da pequena figura da cena XII, e as

72 - L. M. ARAÚJO, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, p. 354.


73 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, pp. 108-109; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
74 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 108; cf. P. M. C. MARQUES, «O acto sexual no antigo Egipto:
um estudo acerca das posições sexuais», p. 499.
rédeas do carro. Também aqui há um sistro, que o homem tem no braço direito e que deveria ser da
mulher. Com a mão desse braço segura um frasco de unguentos. Com a esquerda, segura a parceira
pelos cabelos, que se vira para ele. Esta atitude, que ainda vemos nas cenas IX e XI, bem como o
aspecto de alguns cabelos (cenas I, III, V e VI) indiciam que o cabelo destas mulheres seria mesmo
delas e não perucas. Nesta cena a acção parece ser toda do par masculino.
F) Cópula a tergo com o homem e a mulher em pé. A cena IX do Papiro de Turim 55001
representa uma cópula a tergo com os dois intervenientes em pé75. O homem na retaguarda da
rapariga investe para diante com a parceira à sua frente de cos-
tas viradas para si, dobrada para a frente com o tronco paralelo
ao chão, as pernas flectidas e os joelhos unidos, com os braços
apoiados numa almofada. Com a mão direita o homem segura
um saco e com a esquerda agarra os cabelos da rapariga, que
o olha nos olhos.
Num grafito no Uadi Hammamat, como na maioria das re-
lações a tergo, a mulher vira o seu rosto para o parceiro. Am-
bos ajudam à penetração de mão dada sobre o falo, ele com a Cena IX do Papiro de Turim
mão esquerda e ela com a mão direita. Ele ainda estende a sua 55001.
mão direita para as costas dela76. No Óstraco 50714 do Museu
Britânico, do Império Novo77, para ajudar ao movimento de vaivém do coito, o homem inclina
o corpo para trás e agarra a sua parceira pelas coxas. Um outro grafito num túmulo inacabado
em Deir el-Bahari, da XVIII dinastia, é parte de um conjunto de grafitos e uma estela feitos, 37
provavelmente, pelo escriba Neferhotep, que a tradição diz serem a faraó Hatchepsut e o seu
amante Senenmut ou outro homem não identificado78.
Lise Manniche apresenta ainda três óstracos de colecções privadas representando có-

Grafito do Uadi Hammamat. Óstraco 50714 do Museu Britânico. Grafito de um túmulo em


Deir el-Medina.

75 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 112; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
76 - L. M. ARAÚJO, Estudos Sobre Erotismo no Antigo Egipto, p. 120; L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient
Egypt, p. 44; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 203.
77 - L. M. ARAÚJO, Estudos Sobre Erotismo no Antigo Egipto, p. 106; L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient
Egypt, p. 61; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, p. 203.
78 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 55; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, pp. 172-175.
Óstracos de colecções privadas.

pulas a tergo deste grupo79, com as quais é possível imaginar uma sequência. No primeiro,
só se vê o falo do elemento masculino do par, que estaria a tomar posição atrás da mulher,
estando esta ainda em posição vertical. No segundo, seria ainda uma fase de aproximação
mas a mulher já estava a tomar uma posição mais apropriada, flectindo as pernas e dobrando
o tronco para diante, oferecendo ao parceiro a sua parte posterior. Finalmente no terceiro ós-
traco, consuma-se o acto agarrando o homem a mulher pelos cabelos com um braço, enquan-
to com o com o outro parece querer baixar-lhe ou acariciar-lhe as costas. Aqui volta a haver
a presença de uma figura mais pequena, possivelmente uma dependente, que parece querer
ajudar a mulher estendendo os braços na direcção em que a própria mulher se encontra.
G) Cópula a tergo com o homem e a mulher em pé. Variante. Consideramos a cena
38
I do Papiro de Turim 55001 uma variante da anterior, em
que o homem, aparentemente o mesmo da cena precedente,
investe de baixo para cima tendo na mão direita um saco e
a esquerda sobre o rabo da parceira que está ligeiramente
acima do nível dos seus ombros80. Ela dobra-se em V com
os pés e as mãos no chão, mas como os braços estão em U, a
cabeça afasta-se do chão para onde pendem naturalmente os
cabelos, o que não acontece com os colares. Aliás, a maioria
Cena I do Papiro de Turim 55001.
das figuras femininas deste papiro apresenta colares, assim
como pulseiras nos pulsos e na parte superior dos braços, e
todas as raparigas têm um cinto.

***

Desta forma, movidos pela possibilidade de melhor compreender o quotidiano do antigo


Egipto, julgamos ter apresentado e sistematizado todas as possibilidades de conceber um
novo ser no antigo Egipto que, segundo o nosso conhecimento, estão disponíveis e documen-

79 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, pp. 45 e 55.


80 - L. MANNICHE, Sexual Life in Ancient Egypt, p. 109; J. M. PARRA, Le Sexe au Temps des Pharaons, faixa solta.
tadas na sua arte. Não queremos com isto dizer que todas as mulheres se dispusessem a todos
os malabarismos e acrobacias reveladas, pois, ontem como hoje, há sempre quem seja mais
tradicional e reservado, por oposição aos mais arrevesados e experimentalistas. Ainda assim,
acreditamos que se não eram todas, pelo menos uma boa parte destas posições poderia ser
utilizada fora dos lupanares por jovens casais de apaixonados que, no recato da intimidade
em casa, no campo ou onde entendessem relacionar-se, estavam prontos a pôr à prova a sua
imaginação criativa na arte do prazer sexual e, assim, gerar filhos. Salvaguardamos, contudo,
a possibilidade de possíveis exageros poderem provocar dor e, até, ferimentos, mas, como
diz Juaneda-Magdalena, «embora seja um abismo o que separa o pensamento do homem
egípcio antigo e o do homem moderno, é curioso ver como há momentos, situações, desejos,
maneiras de explicar a sexualidade que permanecem constantes na consciência colectiva da
humanidade.»81

Fertilidade, testes de gravidez e contracepção

Embora o que nos interesse neste texto seja a concepção, não podemos deixar de fazer
uma breve referência ao facto de os antigos Egípcios também se terem preocupado com mé-
todos contraceptivos, tal como com testes de fertilidade e de gravidez, por vezes difíceis de
distinguir entre si, e com a determinação do sexo das crianças antes do seu nascimento. Os
testes de gravidez podiam ter valor legal em disputas sobre heranças ou serem importantes 39
se uma mulher pretendesse voltar a casar, mas não se baseavam em nenhuma prática clínica
consistente, somente em analogias e pouco mais82. Estes testes tinham uma introdução ha-
bitual cujo sentido é «para distinguir entre quem dará à luz uma criança e quem não dará à
luz uma criança», isto é, quem está grávida e quem não está. Eles surgem em papiros como o
Papiro de Kahun (19-27), muitas vezes designado por Papiro Ginecológico de Kahun, o Pa-
piro de Berlim (193-199) ou o Papiro Carlsberg83, em que alguns prognósticos são simples
observações externas como, por exemplo, os olhos da paciente:

«Berlim 198 (verso, 2, 1-2)


Outro (meio de) ver: tu deverás fazer com que ela fique de pé junto à om-
breira da porta. Se encontrares semelhanças nos seus dois olhos, um (olho)
comparável ao de um Asiático, o outro ao olho de um Núbio, ela não dará à
luz (= ela não está grávida). Se <tu> os encontrares de uma só cor, ela dará à
luz (= ela está grávida).»84

81 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 37.


82 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 15.
83 - J. F. NUNN, Ancient Egyptian Medicine, Londres: British Museum Press, 1996, p. 191.
84 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 452.
O teste mais famoso de determinação do sexo de uma criança, que é também um teste
de gravidez, mais do que de fertilidade, vai para lá da simples observação e encontra-se no
Papiro de Berlim (199), com textos semelhantes no Papiro Carlsberg III (1, 6-x + 3) e no
Papiro Carlsberg II (1, 3-5):

«Berlim 199 (verso, 2, 2-5)


Outro (meio de) ver (se) uma mulher dá à luz (de forma normal) ou (se) ela
não dá à luz (de forma normal): cevada (it) e trigo (bedet), que a mulher hu-
medecerá com a sua urina, diariamente, assim como tâmaras e areia, (postas)
em dois sacos (separados). Se todos se desenvolverem (normalmente), ela dará
à luz (de forma normal). Se (só) a cevada se desenvolver (bem), isso significa
uma criança macho. Se (só) o trigo se desenvolve (bem), isso significa uma
menina. Se eles não se desenvolverem (correctamente), ela não dará à luz (de
forma normal).»85

As experiências de Walter Hoffmann, em 1934, regando regularmente alguns recipien-


tes, uns com cevada outros com trigo, uns com urina de uma mulher grávida, outros com
urina de uma mulher não grávida e outros, ainda, com água, provaram que os primeiros
foram os únicos a desenvolverem-se rapidamente e melhor, tendo mesmo os que foram
regados com urina de uma mulher não grávida morrido. Mais tarde, em 1963 Pierre Gha-
40 liounghi repetiu a experiência com urina de mulheres grávidas e de mulheres não grávidas,
mas substituiu a água por urina de homens. Os resultados foram os mesmos, tendo morrido
as dos dois últimos casos. Hoje sabe-se que a urina das grávidas sofre alterações hormo-
nais temporárias causadas pela concepção, apresentando durante o período de gestação
duas substâncias, a foliculina e o pregnandiol, respectivamente uma poderosa substância
estrogénica e um álcool inactivo, que são os responsáveis por essas florações mais rápidas.
Contudo, os resultados das experiências dos dois investigadores não foram considerados
totalmente eficazes, provavelmente por eles não terem conseguido reproduzir com exac-
tidão o meio em que os testes eram feitos no antigo Egipto86. A determinação do sexo da
criança dependia do resultado, mas não derivava directamente dele: era rapaz ou rapariga
apenas porque na língua egípcia a palavra «cevada» (it, it) era masculina e a palavra «tri-
go» (bedet, bdt) era feminina87.
Outro teste para «Distinguir aquela que está grávida (de forma normal) daquela que não
está grávida (de forma normal)», encontra-se no Papiro de Kahun (26-3, 12-14), com para-
lelo numa variante mais completa no Papiro de Berlim (196), e baseia-se na observação das
veias sobre os seios depois de ter sido aplicado óleo novo na paciente:

85 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, pp. 452-453.


86 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 43-44.
87 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 15; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte
ancienne, p. 45.
«Berlim 196 (verso, 1, 9-11)
[Outro] (meio de) ver. Quando ela se deitar, tu untarás o seu peito e os
braços até aos ombros com óleo novo. Tu levantar-te-ás de manhã para
ver isso. Se encontrares os seus vasos sanguíneos (metu) íntegros e per-
feitos, sem terem colapsado, será um parto feliz. (Se) vires que eles estão
comprimidos e da cor (?) da própria pele superficial, isso significa bened
(significado desconhecido: aborto ou que não está grávida?). Se tu consta-
tares que eles estão verdes e escuros (no período do) exame, ela dará à luz
tardiamente.»88

Por seu lado o Papiro de Kahun (28-3, 17-19) e o Papiro Carlsberg IV (1, x+4-x+6),
apresentam-nos um outro método curioso para verificar se uma mulher estava grávida, em
que uma aplicação vaginal atravessaria o corpo da paciente, fazendo sentir-se na sua boca, ou
no seu nariz, conforme a fonte, na manhã seguinte:

«Carlsberg IV (1, x+4 - x+6)


[...] dará à luz (de forma normal) de uma mulher que não dará à luz (de forma
normal). Tu deverás deixar à noite um dente de alho humedecido [...] na sua
vagina até de manhã. Se um odor se manifestar na sua boca [no seu nariz, em
Kah 28] ela dará à luz (de forma normal). Se [nenhum odor se manifestar na
sua boca] [no seu nariz, em Kah 28] ela [não dará à luz] (de forma normal), e 41
para sempre.»89

O conceito egípcio antes referido de que o útero e o sistema digestivo comunicavam entre
si é que sustentava este tipo de testes práticos de gravidez. A fertilidade era uma das coisas
mais valorizadas no antigo Egipto pois a maioria das mulheres desejava ter filhos. O oposto,
a esterilidade, era bastante temida. A mesma ideia de comunicação entre aqueles órgãos, tam-
bém permitia aos Egípcios terem uma explicação lógica para a esterilidade: em algum lado as
ligações do sistema deveriam estar bloqueadas. Mas, obviamente, também aqui funcionava o
recurso à magia, com encantamentos, ou fórmulas, para proteger as grávidas, desviando o seu
sangue para o feto. No Papiro de Londres E100593 surgem seis encantamentos deste tipo,
dos quais destacamos o que se segue:

«Londres 37 (13, 1-3)


Fórmula para repelir o sangue: Para trás, tu que estás na mão de Hórus!
Para trás, tu que estás na mão de Set! Que seja repelido o sangue que sai de

88 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, pp. 441-442; J. F. NUNN, Ancient Egyptian
Medicine, p. 192.
89 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 442; J. F. NUNN, Ancient Egyptian Medi-
cine, p. 192.
Iunu. Que seja repelido o sangue vermelho que vem antes da hora. Tu não
sabes o que é um dique (= tampão, denit dnit)? Para trás, tu, da (presença
de) Tot.»90

Em relação à contracepção, para além dos previsíveis métodos naturais que podem ter
usado e não deixaram registos, como a abstinência ou o coitus interruptus, por exemplo,
há um método natural que parece ter sido usado: o aleitamento prolongado, eventualmen-
te em simultâneo com a abstinência ou com o coitus interruptus. Isto pode depreender-
-se do contrato de aleitamento que apresentamos mais adiante. Em relação aos métodos
contraceptivos artificiais de carácter médico ou farmacológico, eles surgem como apli-
cações a posteriori de medicamentos propostos pelos papiros médicos para o efeito91.
Não conheciam ainda, com precisão, o mecanismo de desenvolvimento de um novo ser
no útero materno, mas sabiam que era o esperma o responsável por ele. Daí que todos
os contraceptivos do antigo Egipto fossem para aplicação local por parte da mulher, a
maioria consistindo em contraceptivos de barreira, isto é, na aplicação de emplastros
espermicidas na vagina (kat, idet)92, que aí procuravam bloquear o esperma, como a
fórmula 783 do Papiro Ebers:

«Ebers 783ter (93, 6-8)


Fazer com que uma mulher deixe de estar grávida durante um ano, dois anos,
42 três anos: uma parte qaa de acácia; alfarroba; tâmaras. (Isto) será moído com
um recipiente henu (450 ml) de mel. Impregnar um tampão vegetal e colocar
na sua vagina.»93

Por seu lado, o Papiro Ramesseum IV diz que para evitar uma gravidez se devia utilizar
excremento de crocodilo:

90 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 488; A. MARSHALL, Maternité et petite
enfance en Égypte ancienne, p. 61.
91 - M.-C. RICHARD, Pharmacognosie et traitements gynécologiques en Egypte ancienne, texte adapté de la thèse
d’Exercice pour le Diplôme d’Etat de Docteur en Pharmacie soutenue à l’Université François Rabelais/UFR des
Sciences Pharmaceutiques de Tours, le 16 septembre 2014, pp. 43-44.
92 - Lembramos que se a palavra kat só se traduz por vulva, a palavra idet pode ser utilizada tanto com o seu
significado de vulva como com o de útero, pois a aplicação de um tampão desta natureza na «boca do útero», a
ra em hemet (r m Hmt), em terminologia moderna o «colo do útero» ou «cervix», é o local indicado para a colo-
cação dos antigos contraceptivos vegetais de barreira, já que esse é o local onde hoje são colocados os modernos
diafragmas. Parece poder fazer mais efeito e provocar menos transtorno «na boca do útero» do que na «entrada
da vagina», como surge na tradução apresentada do Papiro Ramesseum IV (R. O. FAULKNER, A Concise Dic-
tionary of Middle Egyptian, p. 35).
93 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 443; J. F. NUNN, Ancient Egyptian Medi-
cine, p. 196.
«Ramesseum IV (C, 2-3)
Evitar que uma mulher engravide [...]: excrementos de crocodilo [...]. Impreg-
nar um tampão vegetal e isso será aplicado na entrada da sua vagina [...].»94

Nestes contraceptivos, dos quais até há bem pouco tempo só se reconhecia a possibilidade
de infecções ou a dificuldade de circulação dos espermatozóides, como foi posto a circular por
alguns no caso da viscosidade do mel95, hoje já é possível reconhecer certas características ac-
tivas de algumas das substâncias que os integram. Por exemplo, a acácia contém goma arábica,
cuja fermentação e dissolução em água transforma em ácido láctico, ainda hoje utilizado em
algumas geleias contraceptivas como espermicida nas concentrações de 1 a 2%. Por outro lado,
a acácia contém tanino e saponinas triterpenoides, tendo estas demonstrado in vitro um efeito
imobilizador do esperma impedindo-o de entrar no muco cervical, pois as membranas plasmá-
ticas dos acrossomas dos espermatozóides romperam-se e estes desintegraram-se. Esta goma
também pode desempenhar o papel de emoliente, o que permite evitar processos inflamatórios
localizados96. No que respeita ao mel, ele possui propriedades anti-sépticas e a sua utilização
num período longo pode ajudar a garantir a estabilidade microbiana. Além disso, o mel tem
uma enzima chamada glucose-oxidase que produz peróxido de hidrogénio a partir da glicose,
que é fatal para as células reprodutoras reforçando a actividade contraceptiva do tampão97.
Por seu lado, o esterco de crocodilo tem um pH bastante alcalino (pH entre 7,6 e 8,6),
assim como os espermicidas actuais, pelo que alguns acreditam que o pH dos excrementos
de crocodilo pode ter tido um efeito espermicida. O mais interessante e surpreendente, é que 43
exames coprológicos aos excrementos dos crocodilos permitiram concluir que «o risco de
infecção causada por esses componentes é parcialmente compensada por uma alta resistência
imunológica»98. Também a alfarroba revelou ser «antimicrobiana, nematicida, antioxidante e
calmante» e o sumo das tâmaras ser «um meio perfeito para a fermentação do ácido láctico».
Além disso, o caroço das tâmaras contém estrona, um fito-estrogénico que, usado localmente,
hipertrofia a mucosa sendo utilizado no tratamento de vaginites atróficas, úlceras, pruridos
vulvares e dispareunia99.

94 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 443; J. F. NUNN, Ancient Egyptian Medi-
cine, p. 196.
95 - Por exemplo: https://www.facebook.com/EgiptologiaBrasil/posts/1234067146637346:0; http://prof-adjr.blogspot.
pt/2009/08/https://arnaldovcarvalho.wordpress.com/2004/07/06/anticoncepcional-egipcio/ (consultados em 29/07/2017).
96 - M.-C. RICHARD, Pharmacognosie et traitements gynécologiques en Égypte ancienne, p. 47.
97 - M.-C. RICHARD, Pharmacognosie et traitements gynécologiques en Égypte ancienne, p. 48.
98 - M.-C. RICHARD, Pharmacognosie et traitements gynécologiques en Égypte ancienne, pp. 44-45. O pH mede
a acidez ou alcalinidade de uma solução aquosa e é determinado através de uma escala universal graduada de 0 a 14,
sendo 7 o ponto correspondente à neutralidade. Os valores inferiores são considerados ácidos e os superiores alcali-
nos. Em condições de saúde o sangue do ser humano é ligeiramente alcalino, apresentando um pH médio de 7,4, que
pode oscilar entre 7,35 e 7,45. A escala do pH é logarítmica, ou seja, cada valor seguinte é dez vezes maior do que
o anterior (http://anticancro. blogspot.pt/2011/02/o-que-significa-ph-acido-neutro.html (consultado em 04/03/2017).
99 - M.-C. RICHARD, Pharmacognosie et traitements gynécologiques en Égypte ancienne, pp. 47-48.
Embora não haja qualquer documento que suporte a afirmação de que era interdito por
lei, o aborto raramente é referidos pelas fontes100. Embora o aborto voluntário fosse castiga-
do, os Egípcios sabiam como provocar um aborto aos quais se referiam como «desvios da
gravidez». Foi o caso do sacerdote puro Penanuket que desassossegava as mulheres casadas
do domínio de Khnum, em Elefantina, e sobre o qual o vizir Neferrenpet, que julgava o caso,
escreveu: «Memorando concernente ao facto de ele ter feito abortar a cidadã Tarepit...»,
depois de já haver outros do tipo «Memorando concernente ao facto dele ter fornicado com
a cidadã Mutnemeh, filha de Pasekhet, enquanto ela era mulher do pescador Djehutiemheb,
filho de Pentauer» ou «Memorando concernente ao facto dele ter fornicado com Tabes, filha
de Chui, enquanto ela era mulher de Ahuti»101. Alguns dos seus métodos incluíam, por exem-
plo, duches com azeite quente102. Por outro lado, os abortos espontâneos eram atribuídos à
malvadez de Set, e era necessário tomar as devidas precauções para os minimizar, usando
a medicina ou a magia. Por isso, também havia prescrições médicas para recuperar destes
casos, como a que se segue do Papiro de Kahun.

«Kahun 9 (1, 27, 29)


Descritivo (médico) concernente a uma mulher afectada na sua vagina e (tam-
bém) em todos os outros lugares no corpo, como uma mulher destruída (= cujo
filho foi destruído nela). (O que) tu deverás dizer sobre isto: “são as substân-
cias uterinas (chamadas) [...].” (O que) tu deverás preparar para isso: que ela
44 coma gordura/óleo até que esteja curada.»103

A gravidez e o nascimento

Embora seja um momento crucial da vida de qualquer indivíduo, talvez por ser um pe-
ríodo de apenas alguns meses na vida de uma mulher, a iconografia egípcia não se mostrou
muito empenhada em apresentar a gravidez, havendo muito poucos exemplos de mulheres
grávidas e normalmente associados à realeza, sobretudo de rainhas que geraram filhos con-
cebidos por deuses, sobretudo no Império Novo e, em particular, na XVIII dinastia. Foi o
caso de Ahmés, mulher de Tutmés I, mãe do futuro faraó Hatchepsut, e Mutemuia, mulher de
Tutmés IV, mãe do futuro Amen-hotep III, as duas engravidadas por Amon. Acrescentamos
ainda a rainha Mutnefert, a outra esposa real de Tutmés I, mãe do futuro rei Tutmés II, cuja
estátua encontrada na capela de Uadjmose, em Tebas Ocidental, nos parece representá-la

100 - B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s. av. n. è. - IVe s. de n. è.). Droit, Histoire, Anthropologie,
Paris: Armand Colin, 2010, p. 24.
101 - P. VERNUS, Affaires et scandales sous les Ramsès, Paris: Pygmalion, 1993, pp. 124-126.
102 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 15.
103 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 439.
Óstraco de calcário com um desenho do feto do astro Óstraco tridimensional de calcário pintado repre-
solar no ventre da mãe Nut. Túmulo de Ramsés IX, sentando Nut grávida do astro solar. Deir el-Medina,
XX dinastia, Museu Egípcio do Cairo. Império Novo, Museu do Louvre, Paris.

grávida104. Contudo, era um processo conhecido de que há várias representações, por exem-
plo, em dois óstracos e numa pintura no túmulo de Ramsés VI da deusa Nut grávida do astro 45
solar, por vezes visto à transparência dentro do ventre materno.
Por outro lado, crê-se que a alta taxa de mortalidade, tanto dos filhos como das mães, parece
ter levado a que fossem muito mais representadas figuras de mulheres com os seus filhos, como
prova de sucesso da sua, ou das suas gravidezes. Não quer isto dizer que para os Egípcios o
feto não tivesse um lugar de destaque: ele era o princípio da existência de qualquer indivíduo,
símbolo de vida futura, que se prolongava para o Além. Este pensamento era desde logo asso-
ciado à mitologia, por exemplo a Osíris, «que para renascer sob a forma solar» primeiro tinha
que passar «pelo estado de embrião», conforme se lê no Papiro Salt 825105. Obviamente, que
era também a condição dos defuntos que, «no ventre da deusa Sechat», se preparavam para «re-
nascer no reino de Osíris», segundo diz a fórmula 84 dos Textos dos Sarcófagos106. Para além
das diversas divindades que protegiam o feto, donde se destacava a deusa escorpião Serket que,
associada a Ísis e a Taueret, se integrava tanto nos ritos fúnebres como protegia o nascimento
dos vivos. Mais uma vez, a magia tinha um papel protector da criança, que o Papiro de Berlim
3027 nos mostra ser bem anterior ao seu nascimento:

104 - L. M. ARAÚJO, O clero do deus Amon no Antigo Egipto, Lisboa: Edições Cosmos, 1999, pp. 53-54; A. DO-
DSON e D. HILTON, The Complete Royal Families of Ancient Egypt, London: Thames & Hudson, pp. 130-141.
105 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 62 e 208 nt. 79.
106 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 62 e 208 nt. 80; R. O. FAULKNER, The
Ancient Egyptian Coffin Texts, Oxford: Aris and Phillips, 2007, pp. 88-89.
«Berlim 3027 F (5, 8-6, 8)
[...] o criador foi embora, sabendo a teu respeito o teu nome, Meskhenet, tu
criarás o ka desta criança que está no ventre desta mulher [...] Nut acolhe todos
os deuses, as suas estrelas são um exército de estrelas que não se afastam como
suas estrelas. Que a sua protecção venha para NN e que ela proteja P.
Dizer estas palavras sobre um par de tijolos... [...].»107

Para além do contexto em que se integra esta fórmula, ela não deixa dúvidas: evoca-se o
nome da mãe e, ainda antes do seu nascimento, o do bebé. Ora esta atitude, a atribuição de um
nome, dá-lhe status social, não só no seio da família mas também entre a sociedade. É um rito
de passagem verdadeiramente poderoso, que antes do nascimento já considera aquele ser emer-
gente um indivíduo. Segundo Amandine Marshall, os trabalhos arqueológicos já permitiram
descobrir em diversos locais cerca de sessenta fetos que foram enterrados em todas as épocas.
Uns sepultados dentro de recipientes de barro, tipo jarros, outros colocados directamente no
chão e outros ainda, mas mais raros, em cestas ou caixas de madeira. Alguns chegavam a ser
sepultados com mobiliário funerário, uma jarra ou uma jóia, muito raramente com os dois.
Contudo, a fragilidade extrema das suas ossadas, a dificuldade na sua identificação e o grande
desinteresse que os arqueólogos têm manifestado até agora neste tipo de achados, explicam o
pouco conhecimento que há deles108. Em Deir el-Medina, no conhecido cemitério das crianças,
foram encontradas mais de uma centena de crianças de ambos os sexos e de diversas idades,
46 bem como alguns fetos que aí foram também enterrados109. Ainda assim, existem alguns fetos
mumificados do Império Novo e posteriores. Os casos mais antigos são os dois encontrados no
túmulo de Tutankhamon. Um do sexo feminino com 5 meses lunares de idade, com uma más-
cara funerária em ouro na cabeça, sendo o outro mais um prematuro ou nado-morto de cerca
de 8 ou 9 meses lunares, do que propriamente um feto. Há outros casos de fetos mumificados
no Vale dos Reis, no Vale das Rainhas e noutras necrópoles tebanas, mas fora desta região são
muito mais raros como é o caso do feto, prematuro ou nado-morto, encontrado na sepultura que
Horemheb construiu em Sakara e que acabou por acolher a sua mulher, a grande esposa real
Mutnedjemet, que, provavelmente, morreu no parto. A incerteza é motivada principalmente
pelo estado do sítio, por ter sido pilhado na Antiguidade. Há, ainda, exemplos de outras épocas,
em museus e colecções privadas. O Museu Britânico, por exemplo, tem dois fetos mumificados
do período romano e duas caixas de forma osírica mumiforme, feitas para fetos mumificados
da Época Baixa. Para além de um grupo de fetos mumificados de sangue real do Império Novo,
há um outro grupo de fetos mumificados de populares da Época Baixa e do período romano, o
que parece querer dizer que a comunidade lhes concedia um lugar de destaque no seu seio110.

107 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 62-63 e 209 nt. 82.
108 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 63-64.
109 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 344-345.
110 - Cf. A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 64-68; N. REEVES, The Complete
Tutankhamun. The King. The Tomb. The Royal Treasure, Londres: Thames and Hudson, 2000, pp.123-125.
Ataúdes exterior e interior de madeira, máscara, múmia enfaixada e cadáver de feto do túmulo de Tutankhamon.

Tal como hoje, as grávidas enfrentavam o dia-a-dia normalmente, trabalhando pratica-


mente até ao parto. Mas em relação a este os papiros médicos não dizem quase nada. Para
47
alguns investigadores a justificação parece simples: só havia interveniência de um médico
caso se verificassem complicações, de resto era um acto normal da esfera das parteiras e suas
ajudantes. Mas não há nenhuma prova de que assim fosse. Se até agora não foi encontrado
nenhum registo de qualquer intervenção médica nesse sentido, por outro lado é difícil de crer
que num momento tão difícil e perigoso, tanto para a mãe como para o filho, não houvesse
a presença de um médico. Esta possibilidade não deve ser posta de lado definitivamente, até
porque há diversas recomendações médicas relativas a este assunto. Dada esta inexistência,
a maior parte das informações disponíveis sobre os procedimentos nos partos foi recolhida
de ilustrações, sobretudo dos mammisi, palavra copta que significa «local de nascimento»
ou «casa de nascimento», pequenos templos erguidos nas proximidades de grandes templos,
normalmente frente a um dos pilones que davam acesso ao edifício, onde a deusa do templo
dava à luz o seu filho divino, um futuro rei, e onde se comemorava anualmente o divino
nascimento real. O termo egípcio é meset (mst), «lugar de nascimento», usado por vezes na
expressão per-meset (pr-mst), «casa do nascimento», a partir do período ramséssida, mas
Jean-François Champollion imortalizou a designação de mammisi111.
Também nesta temática a gestação, o parto e a criação de uma criança ficaram registadas
no sistema hieroglífico, em cinco dos sete signos do grupo B. A mulher e as suas ocupações,
como que a marcar o maior desígnio da mulher: o signo B2 mostra uma mulher grávida de

111 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 92.


joelhos ( ), determinativo dos verbos beka (bkA), «estar grávida», e iur (iwr), «conceber»;

B3 representa uma mulher de joelhos a dar à luz ( ), ideograma e determinativo do verbo

mesi (msi), «parir», «dar à luz», podendo ser substituída pela variante B4 ( ) em que uma

mulher de joelhos se cruza com o signo F31 ( ), três peles de raposa amarradas, fonetica-
mente o bilítero ms, que inicia a palavra mesi; em B5 uma mulher ajoelhada amamenta uma

criança ( ), determinativo do verbo menat (mnat), «amamentar»; e em B6 ( ) surge uma


mulher sentada num trono com uma criança no colo, sendo usada como determinativo do
verbo remen (rmn), «criar»112.
A mulher grávida merecia toda a atenção divina que lhe assegurasse a protecção do seu
estado até ao nascimento do bebé, da mãe e do filho no parto e do recém-nascido no futuro,
e que era exercida através de fórmulas mágicas, como a que se segue do Papiro Brooklyn
47.218.2, que protegia o quarto da grávida:

«Brooklyn 47.218.2 (x + IV7-9)


Capítulo para proteger o quarto da uma mulher que vai dar à luz (em breve):
NN. nascida de NN. dorme sobre uma esteira de junco enquanto Ísis está ao seu
colo, Néftis está por trás dela, Hathor está sobre a sua cabeça e Renenutet sobre
48 as suas pernas; Ipet a Grande assegura a sua protecção e as deusas guardam-na.
Se vier um inimigo, uma inimiga, um morto, uma morta, um adversário, uma
adversária, e assim por diante, todas as coisas más e dolorosas que ocorrerem
contra NN. nascida de NN. a qualquer hora do dia, então as sete combatentes
(flechas) serão muito eficazes a repelir o adversário de NN. nascida de NN.,
cada uma delas assegurando a sua protecção.»113

Segundo alguns egiptólogos, antes do parto era comum a mãe retirar-se para um «alpen-
dre para partos», uma estrutura provisória de madeira coberta de folhas de palmeira erguida
no jardim, no pátio ou no terraço da casa, aí permanecendo até terminar o período de purifica-
ção114. Contudo, com base nesta fórmula apotropaica do Papiro Brooklyn 47.218.2, Amandi-
ne Marshall contesta esta ideia, sem a pôr totalmente de lado. Para si, a futura mãe daria à luz
no seu quarto protegida por cinco poderosas deusas, não havendo nenhuma fonte textual que
fale de um pavilhão, de uma estrutura ligeira ou de um espaço específico para dar à luz, no
jardim ou no pátio. Com respeito à cobertura da casa também não há quaisquer provas, mas
acrescente-se que, fazer uma grávida prestes a dar à luz subir umas escadas para a cobertura

112 - A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 448; F. J. MARTÍN VALENTÍN, Gramática Egipcia, Madrid: Alde-
rabán Editiones, 1999, p. 130.
113 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 70-71.
114 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 16.
da casa e obrigá-la a ter a criança a céu aberto sem a protecção de quaisquer paredes, é um
pouco insensível. Ainda por cima coberturas tipo jardins suspensos, com vegetação! É uma
situação que aparece representada em fragmentos cerâmicos do Império Novo originários
de Deir el-Medina, onde uma mulher com uma roupa leve, ou sem roupa, se encontra numa
cama cujos pés, quando existem, podem ter esculpido o deus Bés. Tem o filho nos braços ou
deitado a seu lado, e está rodeada de mulheres, crianças e macacos que com ela interagem.
Algumas dessas figuras dão-lhe recipientes com leite ou outro líquido. Pode haver objectos
para seu embelezamento como espelhos ou cones de perfume. Em nosso entender, parece
antes preparar-se para amamentar o filho e não para o dar à luz. Como estas imagens foram
enquadradas num caixilho de plantas tre-
padeiras e flores, sugeriram a alguns um
bucólico «alpendre para partos»115.
Além das formulas encantatórias e da
protecção das deusas principais respeitan-
tes ao seu estado, as grávidas tinham ainda
uma série de amuletos protectores da gra-
videz e do parto que gostavam de trazer
ao pescoço, a maioria representando divin-
dades protectoras da sua condição, como
eram o deus Bés e a deusa Taueret, tam-
bém representados em estatuetas que eram 49
colocadas em pequenos santuários casei-
ros. O deus Bés, de aspecto feio e bizar-
ro, não só divertia os outros deuses com a Deus Bés. Deusa Taueret.
sua dança e com a música que tocava num
tambor que muitas vezes o acompanhava, como interditava os lares que protegia aos espíritos
malignos, com a sua fealdade e com o barulho que fazia. Mas era particularmente apreciado
como protector das mulheres grávidas e patrono dos partos.
Neste papel era considerado marido de Taueret, outra divindade de aspecto repulsivo,
uma deusa compósita parte hipopótamo, parte crocodilo, parte leão, aparentemente prenhe,
com mãos humanas e seios pendentes de mulher. Muitas vezes apoiava-se no signo hiero-

glífico sa ( sA), sinal de «protecção». Contudo, também ela era uma divindade inofensiva,
protectora e muito apreciada nos lares egípcios. Além de ser a protectora das grávidas e do
trabalho de parto, favorecia igualmente a abundância de leite materno no início da infância.
Ambos protegiam do mesmo modo os recém-nascidos e as crianças. Em termos de divinda-
des domésticas ultrapassaram para muitos a popularidade das divindades dos cultos de pri-
meiro plano. Talvez porque também tutelavam o sono, afastando os maus espíritos e as más

115 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 19; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte
ancienne, pp. 95-96.
influências116! Entre os amuletos sagrados destacamos o tit ( tit), ou nó de Ísis, usado pelas
mulheres grávidas para impedir a entrada de espíritos malignos no útero e evitar o aborto; e o

ankh ( anx), o signo da vida, cujo formato é o de um tampão vaginal, o referido denit (dnit),
associado ao fluxo menstrual de Ísis117, que Aton colocou «para proteger o não-nascido Hó-
rus dos ardis destrutivos de Set»118.
Mas não é possível falar deste tema sem abordar os dois últimos contos do Papiro de
Westcar, que integra o que resta de cinco contos que designamos por Khufu e os Magos119.
Embora escrito, provavelmente, durante o período hicso (c. 1660 a. C.), o seu arquétipo
terá sido redigido na XII dinastia, mesmo assim mais de 500 anos depois da época dos
relatos que descreve. O rei Khufu combatia o tédio, fórmula literária para introduzir os
textos, escutando contos que os seus filhos lhe iam relatando à vez. O tema central desses
contos é a magia. No quarto conto, a que chamamos «O mágico Djedi», chega a vez de
Hordedef que faz vir à presença de seu pai o mago Djedi, que tinha a capacidade de unir de
novo aos seus corpos as cabeças decepadas dos animais, devolvendo-lhes a vida. Depois
de várias demonstrações, Khufu instiga-o a dizer o número de câmaras do santuário de Tot,
mas Djedi diz-lhe que não o poderá fazer e que isso ficará a cargo do mais velho dos filhos
de Reddjedet, r(w)d-Ddt, que estava «grávida de três crianças de Ré, senhor de Sakhebu».
Reddjedet, «Aquela que é forte e estável», nome apropriado para a mãe de três reis, era
mulher de Rauser, ra-wsr, ou numa grafia actualizada User-ré (a anteposição honorífica co-
loca o nome do deus antes do verbo mas lê-se no fim e a consoante fraca do fim da palavra
50
passa a ler-se «e» em vez de «a»), significativamente traduzido por «Ré é poderoso», que
era «um sacerdote de Ré, senhor de Sakhebu». É o modo de atribuir a paternidade divina
às três crianças: surgindo-lhe sob a forma de marido, Ré concebeu as crianças com esta
mulher. Reddjedet parece encarnar o papel da rainha Khentkaués I, que segundo o conto
terá sido a mãe dos três primeiros reis da V dinastia, mas que os dados arqueológicos dizem
serem apenas dois, sendo o terceiro um primo destes, e que tem o seu túmulo junto aos de
Sahuré e Neferirkaré Kakai em Guiza. Userkaf fez o seu templo solar em Abusir e a sua
pirâmide em Sakara120.
É pois, em pleno quarto conto, que é introduzido o quinto conto, «O nascimento da V

116 - J. C. SALES, As Divindades Egípcias, pp. 318-325.


117 - J. C. SALES, As Divindades Egípcias, p. 140.
118 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 19.
119 - T. F. CANHÃO, Textos da literatura egípcia do Império Médio. Textos hieroglíficos, transliterações e tradu-
ções comentadas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 47-165; cf. tb. T. F. CANHÃO, Doze textos
egípcios do Império Médio. Traduções integrais, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pp. 49-69.
120 - P. CLAYTON, Chronicle of the Pharaohs, pp. 60-62; P. VERNUS e J. YOYOTTE, Dictionnaire des Pha-
raons, pp. 48-49; M. LEHNER, The Complete Pyramids, pp. 140-151; para a localização do túmulo de Khentkaués
ver J. BAINES e J. MÁLEK, Egipto. Deuses, Templos e Faraós, p. 158; para o «Problema Khentkaués» ver A. DO-
DSON e D. HILTON, The Complete Royal Families of Ancient Egypt, pp. 62-65 e T. F. CANHÃO, «Sobre rainhas
(1)», em Boletim da Associação Cultural de Amizade Portugal-Egipto, n.º 31 (Set./Dez. 2015), pp. 6-8, http://acape-
-portugal.blogspot.pt/.
dinastia», de que também se desconhece o final, com a garantia de que eles só reinariam
depois do filho e do neto de Khufu, Khafré e Menkauré, governarem. Neste conto, relata-
-se, pois, o nascimento dos três primeiros reis da V dinastia, Userkaf, Sahuré e Neferirkaré
Kakai121, tendo alguns autores considerado este conto anexo dos outros. Os seus nasci-
mentos serão assistidos por Ísis, Néftis, Meskhenet e Heket, deusas ligadas aos partos e
à protecção das mulheres e das crianças, disfarçadas de músicas, que alguns documentos
iconográficos confirmam terem existido em ambientes perinatais para afastar maus espí-
ritos e demónios e anunciar uma nova vida acolhendo-a em ambiente festivo e alegre122,
assessoradas pelo deus criador Khnum. Nascerão todos como seres divinos «com um côva-
do, de ossos fortes, os membros revestidos a ouro e um toucado de verdadeiro lápis-lazúli»,
cada um destinado a ser «um rei que assumirá a realeza em toda a terra». Em nossa opinião,
o quinto conto é o clímax deste texto: os contos anteriores serviram para criar o clima que
torna «natural» o nascimento mágico dos três primeiros reis da V dinastia e, portanto, da
própria dinastia, num mundo onde a magia, heka (HkA), tinha uma existência fundamental.
Uma das formas usada pelos antigos Egípcios para activar a heka era pela palavra, que
encerrava o poder em si mesma, pelo que os textos mágicos procuravam servir-se da força
da palavra para activar o poder pretendido. Neste sentido, o Papiro de Westcar é um texto
mágico que atribui à V dinastia a criação divina. Eis a parte do texto do Papiro Westcar
que fala dos nascimentos.

121 - Embora no primeiro nome surja User-ref, que significa «Mais poderoso do que ele», claramente inscrito no 51
papiro em vez de Userkaf («O seu ka é poderoso»), o nome correcto do primeiro rei da V dinastia. Contudo, não
somos da opinião de Sethe que julgava que os nomes do papiro deviam ser mudados para os nomes correctos. E
por uma razão muito simples: esta não é uma questão de erros. Há é jogos de palavras semelhantes no som, mas de
significado diferente, aquilo que geralmente se chama um calemburgo ou trocadilho. Neste caso a palavra foi wsr.
Em muitas culturas surge a atribuição de nomes por paronomásia, isto é, formados a partir da combinação de pa-
lavras que apresentam semelhança fonética e/ou morfológica mas com sentidos diferentes (K. SETHE, «Aus den
Wundererzählungen vom Hofe des Königs Cheops» (1927), p. 42; G. LEFEBVRE, Romans et contes égyptiens, p.
87; P. CLAYTON, Chronicle of the Pharaohs, pp. 9-10 e 60-61). O segundo nome é um trocadilho com a palavra
sAH. É atribuído à criança o nome de Sahré, «Aquele que resiste a Ré» e o nome do segundo rei da V dinastia é
Sahuré (sAH-w-ra), «Aquele que não resiste a Ré» ou «Aquele que é próximo de Ré». Com a simples intromissão
da partícula enclítica negativa, altera-se o nome para o seu oposto. A criança ao querer atrasar o seu nascimento,
não só resistia ao corpo da mãe, cuja função era expeli-lo, como estava a resistir ao seu pai Ré, que o concebera
para que nascesse e se tornasse rei (P. CLAYTON, Chronicle of the Pharaohs, pp. 60-62). E o terceiro trocadilho,
para a terceira criança, para o terceiro rei da V dinastia, que na realidade não se chamava Keku, «Aquele que é
escuro», um estranho nome para um rei, completamente fora de toda a lógica onomástica faraónica, mas Kakai.
É o primeiro rei a aparecer com duas cartelas, Neferirkaré Kakai, sendo a primeira o seu nome de coroação e a
segunda o seu nome de nascimento. Quanto ao seu significado, o primeiro não levanta qualquer dúvida, significa
«Belo é o ka de Ré»; já o segundo, kA-kA.i, é difícil de traduzir. Não é um plural ideográfico, pois nesse caso se-
riam três ka e lia-se kau e também não parece haver qualquer associação a alimentos, não se aplicando mais uma
vez o plural kau; parece ser um dual, mas este plural só se utilizava para entidades duplas, que constituíam pares
(braços, olhos, mãos…). Ora, cada pessoa tinha apenas um ka. Por isso a tradução mais aproximada que é pos-
sível fazer, «Aquele que tem os seus ka» resulta estranha e fora da lógica onomástica egípcia. Será que lido em
conjunto com o primeiro nome significará a união do ka de Ré com o ka real? Mesmo assim não é convincente (P.
CLAYTON, Chronicle of the Pharaohs, pp. 60-62).
122 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 83.
Quinto conto: o nascimento da V dinastia
Num desses dias
chegou o sofrimento de Reddjedet
e o seu trabalho de parto foi difícil.
Então disse a majestade de Ré, senhor de Sakhebu,
a Ísis, Néftis, Meskhenet, Heket e Khnum:
«Desejaria que fossem e libertassem Reddjedet
das três crianças que estão no seu ventre
e que irão exercer esta generosa função em toda esta terra.
Eles construirão os vossos templos,
eles aprovisionarão os vossos altares,
eles farão prosperar as vossas mesas de oferendas,
eles aumentarão a satisfação do deus (com terras e bens).
Estas divindades (então) partiram
depois de terem tomado a forma de mulheres músicas.
E Khnum ia com elas transportando a bagagem.
Eles chegaram à casa de Rauser
e encontraram-no em pé com a tanga em desordem.
Deram-lhe de presente os seus colares e os sistros
e então ele disse-lhes:
52 «Minhas senhoras! Vede! A mulher está a sofrer!
O seu trabalho de parto está difícil!»
Então elas disseram: «Deixa-nos vê-la.
Olha! Nós sabemos como fazer um parto!»
Ele respondeu-lhes: «Ide.»
Eles entraram e dirigiram-se a Reddjedet.
Depois fecharam o quarto com ela e eles lá dentro.
Então Ísis colocou-se diante dela,
Néftis atrás e Heket apressou o trabalho de parto.
E Ísis disse:
«Não sejas tão forte no seu ventre!
O teu nome será User-ref!»
E a criança precipitou-se nos seus braços.
Era uma criança com um côvado,
de ossos fortes, os membros revestidos a ouro
e um toucado de verdadeiro lápis-lazúli.
Elas lavaram-no, cortaram-lhe o cordão umbilical
e puseram(-no) numa cama de tijolo.
Depois Meskhenet foi até junto dele
e disse: «Um rei
que assumirá a realeza em toda esta terra.»
E Khnum deu vigor ao seu corpo.
Ísis colocou-se (novamente) diante dela,
Néftis atrás e Heket apressou o trabalho de parto.
Ísis disse:
«Não resistas no seu corpo! O teu nome será Sahré.»
E a criança precipitou-se nos seus braços.
Era uma criança com um côvado
de ossos fortes, os membros revestidos a ouro
e um toucado de verdadeiro lápis-lazúli.
Elas lavaram-no, cortaram-lhe o cordão umbilical
e puseram(-no) numa cama de tijolo.
Depois Meskhenet foi até junto dele
e disse: «Um rei
que assumirá a realeza em toda esta terra.»
E Khnum deu vigor aos seus membros.
Ísis colocou-se (novamente) diante dela,
Néftis atrás e Heket apressou o trabalho de parto.
Ísis disse:
«Não permaneças nas trevas do seu corpo! O teu nome será Keku.»
E a criança precipitou-se nos seus braços.
Era uma criança com um côvado 53
de ossos fortes, os membros revestidos a ouro
e um toucado de verdadeiro lápis-lazúli.
Depois Meskhenet foi até junto dele
e disse: «Um rei
que assumirá a realeza em toda esta terra.»
E Khnum deu vigor aos seus membros.
Elas lavaram-no, cortaram-lhe o cordão umbilical
e puseram(-no) numa cama de tijolo.
As divindades saíram
depois de terem libertado Reddjedet das três crianças
e então disseram:
«Alegra o teu coração Rauser,
pois nasceram-te três crianças!
.................................................
Então Reddjedet purificou-se
com uma purificação de catorze dias.»123

123 - T. F. CANHÃO, Textos da literatura egípcia do Império Médio. Textos hieroglíficos, transliterações e traduções
comentadas, pp. 111-121; T. F. CANHÃO, Doze textos egípcios do Império Médio. Traduções integrais, pp. 64-66.
Embora seja, sobretudo, um texto propagandístico cujo principal objectivo era legitimar a
V dinastia, temos aqui notícia de um parto triplo, o melhor dos documentos conhecidos sobre
este momento tão importante da vida de uma mulher e sua descendência, onde a vida e a morte
se digladiam. Há outros exemplos de partos múltiplos, como o que ficou registado numa estela
que se encontra no Museu Britânico pertencente a dois irmãos chamados Hórus e Suti, com
a seguinte inscrição: «Honro-me em meu irmão, que é igual a mim, tendo saído do corpo de
nossa mãe no mesmo dia»124. Como se deduz então da segunda linha do extracto do Papiro
de Westcar, também no antigo Egipto a dor da mãe era inerente ao parto, tal como o desalinho
do pai devido à aflição de estar só e de ter que enfrentar um parto difícil sozinho sem ter qual-
quer experiência e confrontando-se com os seres por si mais amados. Aliás, entre os Egípcios
distinguiam-se três tipos de partos: os normais ou satisfatórios (hotep, Htp), os complicados ou
difíceis (bened, bnd) e os prolongados (udef, wdf)125. Logo no início Rauser dirige-se apenas às
mulheres, mas o bagageiro não se tinha eclipsado! Era um simples criado e, portanto, marginal
à conversa entre o dono da casa, um sacerdote de Ré, e três distintas damas que o visitam para
ajudar numa hora de aflição. O desalinho do homem e a passagem das mulheres para o interior
do quarto prontas a fazerem o parto, fechando a porta nas suas costas, também nos dá a medida
de quanto este acto parecia ser um assunto muito mais de mulheres do que de homens. Aparen-
temente, a presença de Khnum é estranha, uma vez que, como antes dissemos, não há provas
escritas de médicos a assistirem aos nascimentos, nem eles parecem surgir em nenhuma das
representações que existem em paredes de templos, sobretudo dos mammisi, normalmente de
54 nascimentos reais. Porém, também não há qualquer prova em contrário!
A parturiente era auxiliada exclusivamente por mulheres, que no conto são quatro e se co-
locam numa determinada posição que, por razões práticas e mágicas, deveremos considerar
como uma forte possibilidade da prática dos partos no antigo Egipto, pois, como vimos, en-
contramos uma disposição semelhante no Papiro Brooklyn 47.218.2: Néftis à sua retaguarda,
certamente segurando-lhe a cabeça, refrescando-lhe a testa e confortando-a, Ísis à sua frente
fazendo o trabalho de parteira e aparando as crianças, e as outras duas deusas, provavelmen-
te, uma de cada lado, fazendo Heket de assistente de parteira e estimulando o nascimento e
Meskhenet observando o estado das crianças após serem deitadas na «cama de tijolo». Esta
última criava ainda o ka de cada criança, isto é, a sua energia e força vital.
Há um certo paralelismo na maneira de ver a actividade das parteiras no antigo Egipto e
o passado recente de abortos clandestinos nas sociedades contemporâneas. A actividade das
parteiras era considerada impura e pouco respeitada, não tendo a maioria das parteiras uma
formação especializada de obstetrícia ou ginecologia, e sendo poucas as que a obtiveram
na «célebre “Casa da Vida” em Sais, no Delta»126. Tal como nos tempos modernos, muitas

124 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 18.


125 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 18; J. C. SALES, «Amamentar no Egipto Antigo: do prazer
na relação materno-infantil à Ideologia», em Estudos Orientais IX. Os prazeres no Médio Oriente Antigo, Lisboa:
Revista do Instituto Oriental da F.C.S.H. da U.N.L., 2006, p. 79.
126 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 17. As Casas da Vida eram escolas superiores onde os mais
dotados se especializavam em determinadas áreas, embora aí se pudessem estudar outras matérias. Os principais
destas parteiras não especializadas podem ter sido uma das causas de finais menos felizes
que custaram problemas de saúde a bebés e mães, quando não mesmo a própria vida. Para
a possível ausência de médicos são apresentadas frequentemente duas hipóteses: o facto de
também haver mulheres versadas nesta matéria, ou, como se disse, ser um processo tão natu-
ral que dispensava o apoio médico. Não se sabe se alguma delas é válida. Contudo, as deusas
tomam posição junto da mãe e Khnum não. Ele não ajudava nem assistia aos nascimentos,
mantendo-se à margem e sendo chamado a assumir a sua função só no fim de cada nascimen-
to127: depois da criança nascer, de lhe ter sido cortado o cordão umbilical, de ter sido lavada
e colocada numa cama de tijolo, Khnum dava «vigor aos seus membros». Aparentemente é o
papel de um deus criador e não o de um médico, embora seja certo que quando uma criança
nasce é necessário estimulá-la para desentupir o sistema respiratório para que ela tenha «vi-
gor nos seus membros»!
Além disso, o túmulo da VI dinastia (c. de 2323 a 2150 a. C.) do vizir do faraó Teti,
Ankhmahor, em Sakara, que alguns dizem
ter sido um sacerdote do ka, é um túmulo Mastaba de Ankhmahor, em Sakara (VI dinastia),
c. de 2323 a 2150 a. C.).
com seis câmaras, onde numa sala de cin-
co pilares a porta e os pilares estão quase
exclusivamente decorados com cenas de
práticas médicas, o que fez alguns pensa-
rem erradamente que também pudesse ter
sido médico, ao ponto de referenciarem o 55
seu túmulo como a «Mastaba do Médico».
Contudo, lembramos que no antigo Egip-
to havia uma forte ligação entre religião,
magia e medicina. Apesar do mau estado
de grande parte dos relevos deste túmulo,

estudos aí praticados eram medicina, magia, teologia, rituais, interpretação dos sonhos e administração dos tem-
plos. Tinham também um scriptorium onde eram redigidos e copiados os livros religiosos. Sabe-se que existiram
Casas da Vida em Abido, Akhetaton, Akhmim, Edfu, Esna, Coptos, Mênfis, Heliópolis e Sais, e, provavelmente,
noutros locais. A estátua de Udjahorresne, sacerdote de Neit e médico chefe a quem Dario I mandou restaurar a
actividade da Casa da Vida, abalada pela invasão de Cambises, apresenta «a mais importante inscrição biográfica
do tempo da dominação persa do Egipto». O texto é totalmente dedicado a Sais, por isso, ao único espaço lacunar
do texto, depois da inscrição Casa da Vida, têm sido atribuídas diversas hipóteses, sendo uma delas, a de Posener,
«de Sais», contrariada por Gardiner que sugere nw ir sinw ficando a frase «o departamento(s) da Casa(s) da Vida
de acordo com a medicina», a que Lichtheim contrapõe que lá não se aprendia apenas medicina e que por isso é
provável que lá estivesse uma frase do tipo «em todas as suas partes», M. LICHTHEIM, Ancient Egyptian Lite-
rature. A Book of readings. vol. III - The Late Period, Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California
Press, 1980, pg. 36-41. A confirmação de uma Casa da Vida em Sais surge no primeiro texto do Papiro Ebers,
cujo início diz: «Eu saí de Heliópolis em companhia dos Grandes do Grande Templo, os detentores dos meios de
protecção, os senhores da eternidade. Também saí de Sais, em companhia da Mãe dos deuses.», T. BARDINET,
Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 39.
127 - B. BRIER e H. HOBBS, Daily Life of the Ancient Egyptians, pp. 235-236; C. STETTER, The Secret Medicine
of the Pharaohs, pp.85-89.
encontramos entre eles a conhecida e divulgada cena da circuncisão ritual de um jovem sa-
cerdote, bem como o exemplo que apresentamos de uma mulher grávida amparada por dois
homens ao sentir as dores do parto. Infelizmente não há nenhuma legenda que nos diga com
exactidão o que está no relevo. É uma imagem integrada entre as diversas cenas de práticas
médicas, o que, aparentemente, faz dos dois homens médicos128. Mas é apenas uma interpre-
tação possível!
Por outro lado, papiros médicos e ginecológicos como o Papiro Ebers, o Papiro Kahun
ou o Papiro de Berlim 3038, oferecem diversas receitas médicas relacionadas com a gravi-
dez, entre as quais algumas para facilitar o parto, contendo por vezes cerveja e vinho, bebidas
embriagantes. Por exemplo, no primeiro dos papiros referidos até era possível escolher a
forma de aplicação:

«Ebers 797 (94, 10-11)


Outro (remédio): para fazer uma mulher desembarcar (= fazer nascer): planta
niaia. Fazer a mulher sentar-se sobre ela nua.»

«Ebers 800 (94, 14-15)


Outro (remédio) para entregar (= favorecer o nascimento de) uma criança que
se encontra no interior do corpo de uma mulher: sal marinho:1; trigo emmer:
1; juncos: 1. Fazer um emplastro no abdómen com isso.»
56
«Ebers 804 (94, 18-19)
Outro (remédio): planta niaia: 1; khesenti: 1; vinho:1. (Isto) será filtrado e
depois bebido durante quatro dias seguidos.»

«Ebers 806 (94, 19-21)


Outro (remédio): bagas de zimbro: 1; planta niaia: 1; resina de pinheiro: 1.
(Isto) será moldado como um supositório e introduzido na vagina.»129

É de referir, contudo, que alguns egiptólogos consideram que estas receitas podiam ser
consideradas abortivas. É o caso, por exemplo, de Pascal Vernus, que embora afirme que o
aborto era uma prática «condenável» no antigo Egipto, com base no Papiro de Turim 1887
apresenta uma queixa oficial interposta em Elefantina no tempo de Ramsés IV (c. 1156-1150)
e Ramsés V (c. 1150-1147 a. C.), contra o sacerdote Penanukhet que apresenta um historial
de relações adúlteras e que, para evitar as consequências dum acto que não queria assumir,
obrigou uma mulher chamada Tarepit a abortar. Pascal Vernus diz que havia receitas médicas
«para entregar uma criança do ventre de uma mulher», mas acrescenta que elas eram usadas

128 - https://egyptsites.wordpress.com/2009/02/21/tomb-of-ankhmahor/; http://www.fascinioegi-to.sh06.com/gine-


co.htm (ambos consultados em 11/02/2017).
129 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, pp. 445-446.
principalmente para «facilitar o parto ou a expulsão de substâncias fisiológicas mais do que
interrupção da gravidez»130.
Segundo o Papiro Westcar cada criança nasceu com um côvado, ou seja, cerca de 52,5
cm de comprimento, um tamanho aceitável uma vez que o tamanho médio com que uma
criança nasce actualmente se situa entre 45 e 55 cm131. Depois foram deitadas em «camas de
tijolo» porque o material de construção típico das habitações
era o tijolo cru. Nalgumas dependências das casas eram feitos
junto à parede uns socalcos de tijolo, com cerca de 75 cm de
altura, 175 cm de comprimento e 80 cm de largura (modelo de
Deir el-Medina) que deviam ser cobertos com esteiras, mantas
e almofadas para se sentarem e dormirem. Não se sabe se é a
este tipo de estrutura que o texto se refere132.
As mulheres davam à luz de joelhos, normalmente, sobre
dois ou quatro tijolos133, os «tijolos de nascimento», a meskhe-
net (msxnt), lit. «o lugar onde nos pomos», cada um evocan-
do uma divindade protectora e, no segundo caso, também os
pontos cardiais. O único encontrado até hoje, em Abido, tem
Hieróglifo de uma mulher a dar
35x17x13 cm, é da XIII dinastia, e pertenceu a Renseneb, mu- à luz de joelhos. Época Greco-
lher do governador provincial local que era de sangue real. De- -romana, Museu Britânico.
corado nas seis faces com pinturas apotropaicas policromas,
estava acompanhado de uma série de fragmentos de marfins mágicos utilizados em rituais de 57
nascimento134. O que interessava era não estarem em contacto directo com o chão, longe das
divindades ctónicas malévolas e criando espaço para o líquido amniótico e a placenta, uma
vez que a criança era amparada pela parteira. Daqui a apropriada expressão «dar à terra», redi
er ta (rdi r ta) para referir o parto135. As representações que há de nascimentos, em hierógli-

130 - P. VERNUS, Affaires et scandales sous les Ramsès, p. 126; B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s.
av. n. è. - IVe s. de n. è.), pp. 23-24.
131 - J. P. ALLEN, Middle Egyptian, An Introduction to the Language and Culture of Hieroglyphs, Cambridge:
Cambridge University Press, 1ª ed., 2000, p. 101.
132 - G. e M. F. RACHET, Dictionnaire de la civilisation égyptienne, pp. 149-150; G. POSENER, Dictionnaire de
la civilisation égyptienne, pp. 160-161; B. BRIER e H. HOBBS, Daily Life of the Ancient Egyptians, pp. 235-236
133 - Algumas fontes textuais falam de dois tijolos de nascimento, um par de tijolos, e outras de quatro, um duplo
par de tijolos. Entre as primeiras está o Papiro de Berlim 3027 que diz claramente «em cima de um par de tijolos»,
A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 88 e 100. Tanto o 2 como o 4 eram números
altamente significativos e basilares no pensamento dos antigos Egípcios: o primeiro enquadrava a sua visão dualista
do mundo e o segundo a totalidade do que era ou estava completo, daí os quatro pontos cardeais como simbologia
de «todos os lugares do mundo».
134 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp 86-87.
135 - J. F. NUNN, Ancient Egyptian Medicine, p. 194. É oportuno referir que no Egipto faraónico não havia instru-
mentos de extracção dos bebés do útero materno, bem como é provável que também não existisse a cesariana (A.
MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 20). A raiz etimológica da palavra «cesariana» é a
palavra latina «caedere», que significa «corte» ou «cortar». Por outro lado há a referência de Plínio, o Velho, que não
fos ou outras, são todas de fases avançadas dos partos, numas sendo já visível a cabeça e os
braços do bebé e noutras estando o recém-nascido já ao colo da mãe.
Outra hipótese era a meskhenet ser uma estrutura para darem à luz sentadas ou de cócoras
como se duma «cadeira de partos» se tratasse. Também teria os tijolos para as parturientes
se colocarem, mas num enquadramento como se de um pórtico se tratasse. Podia designar-se
igualmente por «banco dos nascimentos»,
«lugar de nascimento» ou «tijolos de nasci-
mento». Esta solução é conhecida desde os
«Textos das Pirâmides», mas apenas ico-
nográfica e textualmente136. Como não há
qualquer prova arqueológica, questiona-se
se foi, de facto, uma peça da casa onde a
mulher dava à luz, ou uma mera realida-
de da esfera divina e/ou real137. Contudo,
era tal a sua importância que levou à sua
personificação ainda no Império Antigo na
deusa do mesmo nome. Meskhenet era a
protectora das parturientes e dos recém-
-nascidos, sendo representada como uma
Mulher de cócoras num meskhenet dando à luz assistida mulher com um útero de vaca estilizado na
por duas deusas Hathor. Período ptolomaico, Dendera,
58 cabeça ou como um tijolo de partos enci-
templo de Hathor.
mado por uma cabeça de mulher. Esta as-
sociação aos «tijolos de nascimento» ligavam-na também ao tijolo como elemento de cons-
trução arquitectónica, concedendo-lhe ainda por esta via a noção de fundação, no seu caso
particular da fundação da vida138.
Graças aos numerosos perigos de infecções e às carências a que estava sujeita a população
da civilização faraónica, tanto as mães como os recém-nascidos enfrentavam constantemente
a morte, havendo apenas uma reduzida percentagem de bebés que sobrevivia, bem como uma
alta taxa de mortalidade entre as parturientes. Segundo os trabalhos estatísticos de G. Robins,
calcula-se que 20 % das gravidezes terminassem espontaneamente, que 20 % dos recém-nas-

se sabe se é verdadeira, e que diz que o imperador romano Júlio César adoptou o nome da operação que o trouxe ao
mundo depois da morte de sua mãe, Aurélia («primus que Cesar a caeso matris utero dictus»). Já uma das versões
do mito do deus da medicina Esculápio (nome latino) ou Asclépio (nome grego), diz que ele tinha sido retirado do
ventre de sua mãe morta, Corónis, uma mortal, pelo deus Apolo, seu pai, antes de lhe cremar o corpo. No entanto, na
Antiguidade e na Idade Média, os relatos de cesarianas levam a crer que só seria feita em caso da morte da mãe. O
relato do primeiro parto por cesariana com a mãe viva é posterior a 1500 («Cesariano», Grande Enciclopédia Por-
tuguesa e Brasileira, vol. 6, Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, s.d.).
136 - R. O. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 117; Á. SÁNCHES RODRÍGUEZ, Dic-
cionario de Jeroglíficos Egipcios, p. 219; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 86.
137 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 92.
138 - R. SCHUMANN-ANTELME e S. ROSSINI, Lecture illustrée des hiéroglyphes. L’écriture sacrée de l’Égypte,
Paris: Éditions du Rocher, 1998, p. 478; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 86.
cidos morressem durante o primeiro ano de vida e que outros 30 % não ultrapassasse a idade
dos cinco anos, o que significa pouco mais de 1/3 de sobreviventes entre todos os que eram
concebidos139. Num estudo em Adaima só 17,6 % dos restos mortais eram de adultos140. Mas
há outros cálculos. O período de fertilidade das mulheres no antigo Egipto ia, de uma forma
geral, dos 15 aos 40 anos, calculando-se que se cada mulher tivesse, em média, um filho de três
em três anos (período teórico de aleitamento) poderia ter oito filhos, dos quais só quatro a seis
sobreviviam141. Por seu lado, ao falar de ginecologia, e sem pôr em causa a média de filhos de
Eugen Strouhal, Christiane Desroches-Noblecourt contraria um pouco este «calendário» come-
çando o seu relato dizendo: «cerca de seis anos após o nascimento dos seus sete filhos, a jovem
anfitriã, que tinha alcançado o seu vigésimo primeiro ano, sentiu fraqueza...»142. Esta mulher
deverá ter tido o seu primeiro filho antes dos 15 anos e não foram observados os intervalos de
três anos entre filhos, calculados por Eugen Strouhal. Aliás, o caso clínico relatado, inflamação
do útero com possível desvio deste, aparenta ser o resultado de todos esses partos consecutivos.
Contudo, a autora não refere a fonte consultada para este caso. Mas como, de modo geral, hou-
ve um crescimento populacional progressivo, só interrompido em determinadas circunstâncias
como, por exemplo, em épocas de fome e de carestia como no Primeiro Período Intermediário,
deduz-se que as mulheres egípcias mais saudáveis davam à luz com frequência, podendo passar
incólumes por diversas situações de gravidez ao longo do seu período de fertilidade.
Mas se não há provas do que poderá ter acontecido a muitas mulheres e recém-nascidos
depois do parto, há algumas evidências em múmias, da morte de mulheres e dos seus filhos
durante o parto. Alguns restos mortais de crianças apresentam terríveis malformações, como 59
a hidrocefalia, normalmente associada à espinha bífida, ou a escoliose, como causas da sua
morte143. E há o caso da múmia de uma mãe núbia que morreu ao dar à luz, devido à cabeça
do bebé ter ficado entalada na região pélvica144. Como já referimos, entre os restos ósseos
fragmentados da rainha Mutnedjemet, grande esposa real de Horemheb, os ossos da sua pú-
bis tinham sinais de partos difíceis anteriores e foram também descobertos diminutos ossos
de um feto completamente desenvolvido. Provavelmente a rainha morreu durante o parto ou
logo após ele, com mais de 40 anos145.

139 - L. MESKELL, Vies privées des Égyptiens. Nouvel Empire (1539-1075), p. 108.
140 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 344. Adaima é uma necrópole do fim
do período pré-dinástico e princípio do dinástico ao sul de Lucsor, que contém um cemitério infantil com cerca de
mil túmulos perfeitamente preservados.
141 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 21-22.
142 - C. DESROCHES-NOBLECOURT, La Femme au temps des Pharaons, Paris: Éditions Stock/Pernoud,
2000, p. 215.
143 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 345.
144 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 18.
145 - A. DODSON e D. HILTON, The Complete Royal Families of Ancient Egypt, p. 156; E. STROUHAL, Life of
the Ancient Egyptians, p. 18. A média da esperança de vida calculada pelo Departamento de Antropologia de Turim,
depois de estudos em 709 crânios dinásticos, é de cerca de 36 anos, sendo 35 para as mulheres e 39 para os homens,
M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 343.
Como consequência dos partos prolongados também se verificavam deformações diver-
sas ao nível das progenitoras, que estão igualmente documentadas, como o exemplo a que
Eugen Strouhal se refere como «o útero e a vagina caídos», que Juaneda-Magdalena também
descreve entre hemorragias, infecções urinárias, prolapsos rectais e lacerações perineais. É o
caso de uma mulher da Época Pré-dinástica, mumificada de forma natural, na necrópole de
Gebelein146, a cerca de 40 quilómetros a sul de Tebas. Esta até pode ter sido uma situação
recorrente no antigo Egipto, uma vez que foi objecto de análise e proposta de tratamento
médico no Papiro Ebers:

«Ebers 795 (94, 7-8)


Outro (remédio) para fazer descer (= voltar) o útero ao seu lugar natural: uma
íbis (feita) de cera. (Isto) será colocado sobre brasas, e vamos garantir que a
fumaça entra na vagina.»147

Em relação ao acompanhamento de possíveis problemas post-partum, Amandine Mar-


shall diz que «o útero e a vaginas caídos» não existem e que isto é um «prognóstico incorrec-
to», pois do que se trata é de uma endometrite pós-parto, uma infecção do útero muitas vezes
provocada por aí terem ficado resíduos de placenta. Sustenta este diagnóstico com o Papiro
Brooklyn 47.218.2 que, na realidade, fala de «uma deslocação do útero»:

60 «Brooklyn 47.218.2, x + V18-11


Remédios para uma mulher que deu à luz recentemente e sofre de uma dor
intensa no abdómen: se examinares uma mulher que sofre de uma dor intensa
no abdómen, que tem os dois lados tensos, sofrendo de um lado, do coração
à região púbica, do lado direito ou do lado esquerdo, de tal modo que não é
capaz de dormir, tu deverás concluir acerca disso: é uma deslocação do útero,
ele moveu-se e está dolorosamente no abdómen, é uma doença que eu posso
tratar. E tu farás para ela pão bekhesu seco. Moer finamente. Aquecer mistura-
do com gordura de ganso novo. Comer. Outro: madeira maau. Moer finamente
(e misturar) com mel. Comer durante quatro dias.»148

O parto era um rito de passagem tanto para a mãe, que passava de simples esposa a mãe no
primeiro parto e ia multiplicando a experiência, mas sobretudo para o bebé que deixava a vida
intra-uterina e ingressava na vida terrestre. Qualquer dos meios e respectivas passagens esta-

146 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 19. É o que se chama prolapso uterino, que é a descida do útero
para o interior da vagina devido ao enfraquecimento dos músculos que mantêm os órgãos na sua posição correcta. No pior
dos casos, o útero pode exteriorizar-se à vulva mais de 1 centímetro. É uma situação muito rara que, entre outras conse-
quências, pode levar ao aborto espontâneo e ao trabalho de parto prematuro (https://www.tuasaude.com/prolapso-uterino/
(consultado em 06-02-2017); cf. M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 182-187.
147 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 445.
148 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 90-91.
Verso e reverso do marfim mágico encontrado em Tebas. Império Médio, c. 1750 a. C. (BM18175).

vam cheios de momentos em que ambos jogavam com a própria vida. Daí a necessidade de se
rodearem de uma série de objectos de cariz mágico para protecção e acompanhamento, como os
tijolos de nascimento, considerados mágicos e profiláticos, ou os marfins mágicos, designados
por vezes de facas mágicas ou marfins apotropaicos, documentados nas XII e XIII dinastias.
Estes eram feitos a partir de uma presa de hipopótamo, a protecção de Taueret e Ipet, além da
de Ísis, Hathor e Nut que por vezes assumiam esta forma zoomórfica, e tinham a forma de uma
lâmina plana e o feitio de um bumerangue, por vezes com mais de 50 cm de comprimentos.
Eram de carácter apotropaico, e se a sua forma se assemelhava ao instrumento de caça, usado
também pelos defuntos no Além para se defenderem de todo o tipo de demónios, assemelhava-
-se igualmente ao ventre arredondado de uma grávida. Decorados com divindades, génios e
diversos tipos de animais, tinham também representações de facas para neutralizar e matar tudo
o que ameaçasse a mãe e o bebé. Incluíam fórmulas de protecção, como a do verso do marfim
61
mágico da imagem: «Palavras ditas: “Eu vim para proteger a senhora da casa Senebet”»149.
Contudo, como foram encontrados em contexto arqueológico funerário e não ligados à
sua exacta função, ignora-se como eram utilizados, havendo apenas algumas suposições: uns
pensam que podiam ser colocados sobre a barriga da grávida, outros avançam a hipótese de
que se pudessem usar vários para se fazer um círculo à volta da grávida, outros, ainda, que
seriam brandidos no ar em rituais que procuravam afastar todas as ameaças contra mãe e
filho150. O facto de terem sido encontrados em contexto funerário, chega mesmo a permitir
avançar a hipótese de poderem ter sido utilizados para proteger o morto no período inicial da
sua morte, entre o renascimento e a vida eterna151. Alguns parecem ter sido deliberadamente
quebrados, provavelmente como demonstração da vitória sobre as forças do mal152. Como te-
mos vindo a dizer, a magia e a adivinhação estavam sempre presentes, como mostra também
este «remédio» do Papiro Ebers para saber se o recém-nascido viveria ou não simplesmente
se pronunciasse sons próximos das palavras ni, «sim», e embi, «não»153:

149 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 100-107.


150 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 107.
151 - G. PINCH, Magic in Ancient Egypt, Londres e Austin: The British Museum Press e University of Texas Press,
2010, p. 131.
152 - G. PINCH, Magic in Ancient Egypt, pp. 40, 78-79 e 131.
153 - I. BONNAMY e A. SADEK, Dictionnaire des Hiéroglyphes, Arles: Actes Sud, 2010, pp. 261 e 307; J. C. SA-
LES, «Amamentar no Egipto Antigo: do prazer na relação materno-infantil à Ideologia», p. 80.
«Ebers 838 (97, 13-14)
Outro: determinar o destino de uma criança no dia em que é posto no mundo.
Se ele disser ni, isso quer dizer que viverá, se disser embi, isso quer dizer que
morrerá.»154

O surgimento da nova mãe e do recém-nascido davam lugar também a alguns rituais.


São conhecidos dois rituais de passagem da mãe: a oferenda de um determinado alimento
e um período de purificação. Do primeiro há um único testemunho já da Época Greco-
-romana no mammisi de Edfu, com duas cenas em que o rei oferenda Hathor de forma
semelhante. A primeira:

«Ofereço-te este bolo cheser com mel para restaurar o seu (= teu) ventre depois
do parto; tu comes os pães que fizeste com as tuas próprias mãos, adoçados
pelos estados de espírito da sua majestade.»155

A segunda cena é semelhante mas fala especificamente em «pão (de) parto», te mes (t ms)156.
Se era um ritual que vinha de outros tempos não se sabe. Em relação à purificação post partum,
parece não haver até ao momento qualquer documento que estabeleça um determinado tempo
específico de purificação. Há alusões à existência de temporalidades diferentes, que variam
entre 14 e 23 dias. Por exemplo, no Papiro de Berlim 3027 ou no mammisi de Edfu, onde se
62 celebrava todos os anos a festa da «Purificação de Hathor» depois de ter dado à luz Horsamtaui,
durava 21 dias. No mammisi de Dendera havia uma celebração semelhante que durava 23 dias
e, além destes, temos o testemunho do Papiro Westcar, um documento cujas raízes mergulham
no Império Médio157. Aí ficou registado que Reddjedet fez um período de purificação pós-natal
de 14 dias, o tempo normal que as mulheres egípcias passavam no «alpendre para partos»
para se restabelecerem, como diz Eugen Strouhal158. A ter existido um local destes, faz mais

Mãe e filho deitados numa cama, XIX. A mãe tem Mulher deitada de costas. Museu Petrie (UC8648).
na cabeça um cone de perfume. Museu Britânico.

154 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 450.


155 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 108.
156 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 108.
157 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 109-110.
158 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 19.
sentido que fosse um lugar arejado, fresco e
com sombra, para fazer uma recuperação e
cuidar dos primeiros dias do filho do que ter
aí o filho, pelos motivos antes invocados.
Assim sendo, seria mais correcto começar a
pensar em mudar-lhe a designação moderna
para «alpendre de recobro»! Contudo, lem-
bramos que existem peças com e sem crian-
Mãe deitada amamenta o filho, XIX dinastia. Museu
ça. Se a estas últimas podemos ver como Egípcio do Cairo.
«uma incitação à fertilidade»159 ou como
protecção ao parto, uma vez que algumas camas apresentam pés com a figura de Bés, aquelas
em que se encontram as mães, ou amas de leite, com uma criança, deitada a seu lado ou maman-
do, por vezes incluindo uma mesa de oferendas repleta de alimentos, parece-nos mais uma cena
respeitante à nutrição e, portanto, podendo ser relacionada com a amamentação.
Por sua vez, o recém-nascido tinha direito a cinco rituais de separação e de protecção: a
abertura da boca, o tratamento do cordão umbilical, o tratamento da placenta, a purificação
e a nomeação. A abertura da boca é uma intervenção bem real que os antigos Egípcios aca-
baram por transpor de forma simbólica para as cerimónias fúnebres, devolvendo ao defunto
todas as suas faculdades físicas no seu renascimento no Além. Tal como ainda hoje é feito vi-
rando o recém-nascido de cabeça para baixo e fazendo-o chorar, servia para retirar os mucos
que se acumularam no seu aparelho respiratório enquanto esteve no útero materno. Muitas 63
vezes era utilizando para esse efeito o «pequeno dedo», isto é, o dedo mindinho, devido ao ta-
manho do recém-nascido, como se pode ler na seguinte fórmula dos «Textos das Pirâmides»:

«... tua boca foi aberta por Hórus com a ajuda d[este] d[edo que é seu].
Fórmula a recitar: “Este pequeno dedo que é seu com a qual ele abriu a boca
de seu pai (e) com o qual ele tinha aberto a boca de Osíris”.»160

O corte do cordão umbilical era, tal como ainda é e será sempre, o principal rito de separação
ao acabar em definitivo com a ligação do recém-nascido ao útero materno. O corte era feito com
uma faca especial, a pesechkef (psS kf), literalmente «sílex (ou similar) que divide», cujo modelo
por vezes também era usado como amuleto161. Segundo o Papiro Westcar, o cordão umbilical só
era cortado depois do bebé estar limpo e lavado. Mas Strouhal diz ainda que ele só era cortado
depois da placenta ter saído: «Evidentemente que a separação só era efectuada depois da circu-
lação umbilical ter terminado. O cordão e a placenta tinham associações mágicas e acreditava-se
que estavam investidos de um alter ego espiritual ou um duplo da criança. Às vezes secavam-nos

159 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 101.


160 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 111.
161 - G. PINCH, Magic in Ancient Egypt, p. 130.
e eram conservados para acompanhar o indivíduo até ao túmulo.»162 Depois de cortado podia
ser ritualmente enterrado, conforme se lê no templo de Edfu em relação ao de Osíris, disputado
por Hórus e Set, sem que se saiba se isso era uma prática generalizada. Mesmo assim mostra a
importância que lhe era dada e, tanto quanto informa Amandine Marshall, parece ser um costume
ancestral que atravessou o tempo, pois «ainda hoje, nos campos egípcios, certas famílias colocam
o cordão umbilical num saco com sementes e enterram-no num campo, geralmente no do pai.»163
Com respeito à placenta, a escrita hieroglífica também a utilizou. Alan Gardiner registou-a na
sua lista como o signo Aa1 ( ), o fonema kh (x)164, um dos mais usados na história de toda a es-
crita hieroglífica. Recordando que o seu nome significava «mãe dos homens» ou «mãe da huma-
nidade», mut-remetj (mwt rmT), o que só por si mostra a importância que tinha para os Egípcios,
possuía uma grande e muito antiga carga mágica associada que determinava o seu destino após o
parto. Juaneda-Magdalena diz que «os egípcios observaram que ao nascimento do bebé se seguia
o da placenta, o “outro” segundo a forma placentária (o gémeo)»165. E Geraldine Pinch remata:
«no pensamento egípcio a placenta estava ligada com o conceito de ka ou duplo»166, o que é uma
expressão do dualismo típico do pensamento egípcio. Por isso, ao contrário do cordão umbilical,
a placenta podia ser conservada ou «piedosamente enterrada». Chegam a existir evidências do
culto da placenta real na IV dinastia, no reinado de Seneferu, em cuja capela funerária do seu

Pormenor do reverso da Paleta de Narmer, com leitura da direita para a esquerda. Quarto estandarte: placenta
com cordão umbilical.

64

162 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 17.


163 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 112-113.
164 - A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 466.
165 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 64.
166 - G. PINCH, Magic in Ancient Egypt, p. 130.
funcionário Metehen há um episódio da cerimónia funerária diante do símbolo da placenta real
que sugere que ele possa ter tido o título de «director do templo da placenta do rei»167. Juaneda-
-Magdalena refere este culto em várias épocas do antigo Egipto, do Pré-dinástico onde inclui o
estandarte da Paleta de Narmer que exibe uma placenta e o cordão umbilical, ao Império Novo
onde indica modelos de placenta do túmulo de Horemheb e outros testemunhos recolhidos no
túmulo de Ramsés IV168. Já foram encontradas placentas mumificadas em Gurnet Murai, uma
das necrópoles de Deir el-Medina, e noutros locais de enterramentos de perinatais, materiais
orgânicos que embora não possam ser ainda associados a placentas, também não permitem que
se ponha já esta hipótese de lado169. Aliás, a expulsão da placenta também foi alvo da atenção
dos médicos egípcios. No Papiro Ebers há uma «receita» para esse fim:

«Ebers 789 (98, 18-20)


Remédio para fazer descer a placenta de uma mulher ao seu lugar natural
(sair): serradura de abeto. (Isto) será misturado com fezes. Revestir um tijolo e
cobri-lo com tecido. Garantir que ela se senta sobre isso.»

Embora de reconhecida importância, o Papiro Westcar é claramente um texto com o ob-


jectivo propagandístico acima de todos os outros, pelo que a verdade histórica de não terem
sido realmente três irmãos170 ou o relato clínico e integral dos três partos, estavam fora de
questão. É que neste conto, nem a abertura da boca, fundamental no rito de passagem e com
repercussões importantíssimas na ideologia faraónica da vida no Além, nem a placenta, com 65
toda a carga que sublinhámos, são referidos.
Por seu lado, a purificação do recém-nascido é a lavagem que ainda hoje é feita aos bebés
quando nascem para ficarem com um aspecto mais agradável e limpo antes de serem entre-
gues aos pais171 e que, além de referida no Papiro Westcar, ficou também registada no «Livro
dos Mortos», na boca de Ani osírificado quando ele renasceu no Além:

«O que significa isto? Significa que fui purificado no dia do meu nascimento
nos dois grandes e nobres pântanos que estão em Heracleópolis, dia de oferen-
das do povo ao grande deus que aí se encontra.»172

167 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 66.


168 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 66 nt. 150 e 151.
169 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 113-114.
170 - T. F. CANHÃO, «Sobre rainhas (1)», pp. 6-8.
171 - Actualmente alguns pediatras defendem a manutenção do verniz caseoso, a substância gordurosa esbranquiça-
da que cobre o corpo do bebé ao nascer e que costuma desaparecer após 24 horas, por mais algumas horas para uma
melhor adaptação extra-uterina, porque é termorregulador e antibactericida.
172 - R. FAULKNER, O. GOELET E C. ANDREWS, The Egyptian Book of The Dead. The Book of Going Forth by
Day. The First Authentic Presentation of The Complete Papyrus of Ani. Featuring Integrated Text and Full Color Im-
ages, Cairo: The American University in Cairo Press, 1998, chapa 8.
Finalmente, a nomeação da criança que não só a tira do anonimato atribuindo-lhe uma
identificação e permitindo-lhe existir, como lhe confere o reconhecimento social. Não se sabe
exactamente como era e quando era realizado este ritual, mas, com base no Papiro Westcar,
é provável que fosse no acto do nascimento, porque é o momento em que o novo ser vem à
existência e se individualiza como gente, precisando da protecção do nome. Mas como vi-
mos, no capítulo F (5, 8-6, 8) do Papiro de Berlim 3027, os antigos Egípcios já reconheciam
o feto como um ser com vida, sugerindo que a criança recebia o seu nome antes de nascer. Os
nomes podiam aludir a determinadas características ou circunstâncias do parto ou do recém-
-nascido, como «(Aquele) cujo rosto é belo», Neferhor (nfr Hr), ou «A mais bela chegou»,
Nefertiti (nfrty ii.ti); elogiar uma divindade como forma de agradecimento (nome teofóri-
co), como «Amon comanda», Amenemhat (imn-m-HAt), ou «Aquele que Anúbis protegeu»,
Khuenanupu (xw-n-inpw); ou serem uma manifestação de apreço pelo soberano reinante
(nome faraofórico, eg., ou basilofórico, gr.), como «Viva Unas», Ankhunas (anx-wnis) ou «O
poderoso Seti», Setinakht (sXty-nxt)173.

A infância

Graças, sobretudo, a uma alta taxa de consumação, o


quotidiano dos antigos Egípcios fervilhava com a abundân-
66 cia de crianças no seu seio, sendo impensável a sua socie-
dade sem as ter como fundamento de si própria e da família.
Contudo, é de ter em conta que as fontes antigas escritas,
iconográficas ou outras, «emanam sempre de adultos, e de
adultos principalmente masculinos (....) recuperando exclu-
sivamente ou quase o olhar que os homens tinham da in-
fância e das crianças, portanto um olhar de indivíduos que
não tiveram a mesma ligação que as mulheres que trans-
portaram dentro de si a sua progenitura e passaram depois
grande parte dos seus dias ocupando-se deles, pelo menos
até que eles tivessem adquirido uma certa autonomia. (...)
uma documentação que não dá conta senão de uma percep-
ção particular da criança e que assim é tendenciosa, porque
está privada do olhar que a mãe tem da sua progenitura.»174
Acrescentemos, ainda, que também não temos a visão das Criança, um rapaz, com longa
trança. Estatueta de marfim da
crianças sobre si próprias e sobre a sua vida, para além de,
Época Arcaica, Abido. Deutsches
provavelmente, quase todos os seus artefactos terem sido Archaölogisches Institut, Cairo.
concebidos e feitos por adultos!

173 - P. M. PINTO, «Nome», em L. M. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, 2001, pp. 617-620.
174 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, Mónaco: Éditions du Rocher, 2013, p. 16.
Além disso, as suas representações estão submetidas a uma série de convenções e códigos
que lhes retiram o carácter individualista. Os relevos, as pinturas ou as esculturas das diversas
épocas seguiam o critério da variação dos tamanhos, que na arte do antigo Egipto determi-
nava que quanto mais importantes fossem os representados maiores eram as suas represen-
tações. Sendo os elementos da família de menor estatuto social no seu seio, as crianças eram
sempre representadas num tamanho diminuto comparadas com os restantes familiares, sendo
o pai o de maior tamanho, igualado em algumas épocas pela mãe, que noutras era menor que
o pai. Havendo irmãos de diversas idades, também eles podiam variar de tamanho. Nestas
representações familiares, as crianças pequenas mal chegavam ao joelho do seu pai. E se
fosse um faraó, os príncipes e as princesas ainda pareceriam mais pequenos! Ainda assim...
Conforme nos demonstra essa icono-
grafia e expressam os textos, os Egípcios
manifestavam muito amor e carinho pelos
filhos, havendo cenas familiares pungen-
tes, tornando mais queridos os que sobre-
viviam como reflexo da alta taxa de mor-
talidade. O amor dos filhos pelos pais era
recíproco ao que recebiam dos pais. So-
bretudo pela mãe, que chega a ser incluída
em representações de grupos familiares ao
lado do filho, da nora e dos netos. Era tida 67
em grande consideração pelos cuidados e
atenções que dispensava aos filhos: «Con-
tudo o maior prazer de uma mãe que teve
um filho e cujo coração não sente aversão,
é o constante alimento que com o seu peito
coloca diariamente na sua boca»175.
Como nos primeiros tempo de vida, o Mulher a amamentar uma criança. Bronze da XII dinas-
tia, Brooklyn Museum of Art, Nova Iorque.
futuro não estava garantido para muitos, ha-
vendo uma selecção natural entre os doentes
e os deformados ou com deficiências congénitas. A falta de higiene era um dos principais motivos
para muitas doenças infecciosas que mantinham elevada a taxa de mortalidade infantil. As doen-
ças infantis mais comuns eram as infecções do aparelho digestivo, das amígdalas, das glândulas
linfáticas e as doenças de pele, que um misto de medicina e magia procurava tratar, como se vê
no Papiro Ebers ou no Papiro de Berlim 3027, considerado o primeiro tratado de pediatria176.
O leite materno ajudava a enfrentar alguns destes males. Porém, as imagens de aleitamento
popular não são muitas, existindo sobretudo imagens de carácter ideológico-religioso. Mesmo
assim, permitiram a Jonckheere agrupar em 1955 os exemplos que há em óstracos, relevos e

175 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 212.


176 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 24-25.
esculturas em cinco tipos diferenciados, o
que mostra que não seguiram um cânone rí-
gido177. Para além do contacto físico entre a
mãe ou a ama-de-leite e o bebé, que favorece
o estabelecimento do vínculo afectivo entre
ambos, o valor nutritivo do leite produzido
pelo ser humano, irtjet remetj (irTt rmT), for-
nece todos os nutrientes de que um recém-
-nascido precisa nos primeiros meses de vida
para um desenvolvimento saudável porque
é rico em água, proteínas, lípidos, glícidos,
vitaminas e minerais, estando perfeitamente
adaptado às suas necessidades iniciais. «O
leite contém elementos insubstituíveis com
propriedades que o tornam ideal para o cres-
Grupo de duas mulheres e uma criança. Calcário da
transição do Império Médio para o Império Novo, cimento cerebral precoce. Marca também
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorqe. a continuação da maturidade emocional do
bebé pela via nutricional, complementada
com o calor do contacto íntimo de uma mãe com quem viveu longos meses de comunicação
através da mais primária das ferramentas: o ensino.»178 O período de aleitamento podia durar até
68 aos três anos de idade conforme se observa em diversos documentos, nomeadamente segundo o
que lemos nas «Instruções de Ani», quando o sábio diz ao instruendo o que devia fazer pela mãe
depois da mãe ter feito o que fez por ele:

«Devolve com abundância o pão que a tua mãe te deu.


Transporta-a como ela te transportou.
Fez muito por ti, por ti que eras uma carga, sem que te dissesse:
“Não me importunes.”
Durante três anos os seus seios estiveram na tua boca,
E o seu coração nunca se enojou com os teus excrementos.
Mandou-te à escola para aprenderes a escrever,
E todos os dias velava por ti.»179

No antigo Egipto já havia a consciência de que o leite materno era fundamental para o
desenvolvimento e bem-estar das crianças nos primeiros tempos de vida, pelo que o período
de três anos funcionava como uma verdadeira estratégia, certamente empírica, de protecção

177 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 335-336.


178 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 31.
179 - C. JACQ, A sabedoria viva do antigo Egipto, Venda Nova: Bertrand Editora, 1998, p. 99.
no princípio da primeira infância180. Palavras como «ama», menat (mnat) ou «cuidar», mena

(mna), tinham como determinativo o referido hieróglifo B5 ( ), onde uma mulher dá de ma-
mar ao bebé que tem no colo. Também os hieróglifos representando um seio, D27 ( ) e D27A
( ), eram usados como determinativos de palavras como «seios», beneti (bnty), «mama»,
menedj (mnD), «amamentar», senek (snq), «educar», chedi (Sdi), «tutor», menai (mnay) ou
«ama», menat (mnat)181. Algumas variantes destas palavras conjugavam B5 com D27 ou
D27A, apresentando os dois signos. As mães procuravam dar aos bebés o leite adequado em
qualidade e quantidade, por isso era importante reconhecer a sua qualidade. No Papiro Ebers
ela era determinada pelo odor que libertava:

«Ebers 796 (94, 8-10)


Avaliação de um leite bom: o seu odor é semelhante ao das raspas de raízes de
junça comestível. Esta é a forma de saber isso.»182

Caso a mãe não tivesse leite suficiente ou houvesse outra razão que a impedisse de ama-
mentar, recorria a fórmulas mágicas para o obter ou entregava o filho a uma ama-de-leite,
uma mulher que tivera recentemente um parto e perdera o filho ou, eventualmente, que tives-
se leite em abundância para dois bebés, aumentando assim o seu rendimento. Era, portanto,
uma situação criada pela necessidade e pelo instinto de sobrevivência, que deve ter aparecido
no dealbar da civilização nas pequenas comunidades onde a solidariedade e os actos de com-
pensação eram vitais para a continuidade da espécie. Caso fosse uma criança de uma família 69
abastada, a ama-de-leite podia mudar-se para a casa da criança, mas se a família da criança
e a ama-de-leite fossem do mesmo estrato social a criança poderia ficar em casa da ama que
a levaria aos pais conforme o contratado. A elite e a realeza, mesmo quando as mães tinham
leite para amamentar, contratavam na maior parte das vezes amas-de-leite, podendo as crian-
ças ter várias pessoas para cuidar exclusivamente de si, das amas aos tutores, para além dos
servos comuns. Quem ganhava eram as crianças, que alargavam o seu campo de afectos,
sentimentos e experiências!
Se é possível encontrar iconografia do Pré-dinástico ao período romano de mulheres a

180 - Actualmente, a OMS e a UNICEF recomendam o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade e
daí aos 2 anos como uma alimentação complementar com  outros alimentos que serão introduzidos gradativamente,
sendo aconselhada mas rara daí para diante. Em Portugal, de acordo com os dados de 1995 da DGS, «a amamentação
é uma prática corrente à nascença (cerca de 95%), mas diminui nos restantes meses de vida. Ao fim de um mês só
50% das crianças são amamentadas; aos 3 meses esses valores situam-se nos 33%, chegando a atingir os 11 % aos 6
meses», D. SARDO, «Promover e apoiar a amamentação», em M. Néné, R. Marques e M. A. Batista, Enfermagem
e Saúde Materna e Obstétrica, pp. 473 e 475.
181 - A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 453. Não nos referiremos à figura do «tutor», mas ele era imprescindível
à educação dos príncipes, sendo um cargo do mesmo grau de importância que o das amas-de-leite, como é exemplo o
cargo do vizir Imhotep, do início da XVIII dinastia, de pai-tutor dos príncipes do senhor do Alto e do Baixo Egipto Aa-

heperkaré (Tutmés I): it mena en nesu mesu nesu-bit aá-kheper-ka-ré ( ) it


mna n nsw msw nsw-bit aA-xpr-kA-ra, M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 358-359.
182 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 445.
amamentar crianças, sendo umas amas divinas, deu-
sas ou mães reais a alimentar reis ou príncipes, e ou-
tras simplesmente mães comuns ou amas-de-leite183,
a verdade é que só do Época Greco-romana sobrevi-
veram vinte e quatro contratos de aleitamento realiza-
dos entre pais e amas-de-leite184, desconhecendo-se
se existiram anteriormente. Esses contratos impu-
nham uma série de restrições e regras a cumprir por
ambas as partes, e respectivas indemnizações tam-
bém de ambas as partes em caso de incumprimento,
como lemos no Papiro Tebtunis II, 279, registado no
dia 8 de Maio de 232 a. C. em Tebtunis185. Escrito
em grego, menciona na datação que o encabeça como
representante dos Ptolemeus o sacerdote do culto real
Mulher a amamentar uma rapariguinha,
enquanto outra criança lhe puxa o peito
Keresmeges, um nome difícil de transpor para o gre-
contrário por baixo do braço e se vai go186. Foi feita também uma cópia escrita em demó-
servindo também. Calcário policromo, tico, o Papiro do Cairo 30604, registado na mesma
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. data igualmente em Tebtunis. Nele, um homem cha-
mado Fanésis contrata por três anos uma mulher de
nome Sponésis, para ama-de-leite do seu filho Petesukhos. O prazo de vigência deste con-
70 trato é mais uma evidência de que o período de aleitamento podia prolongar-se até aos três
anos. Este contrato foi traduzido do demótico para o francês por Heinz Josef Thissen e aqui
o deixamos em português. O recto tem o contrato completo redigido em doze linhas escritas
em demótico, seguido de uma nota de registo de quatro linhas em grego. No verso, existe
uma linha em demótico com uma espécie de título do contrato e a lista das oito testemunhas:

«Papiro do Cairo 30604


Recto
(linha 1) No ano 15, mês de Famenoth, do rei Ptolemeu, dotado de vida eterna,
filho de Ptolemeu e de Arsínoe, os deuses adelfos, o sacerdote de Alexandre,
dos deuses adelfos e dos deuses evergetas, Krsmgs filho de Leão, (linha 2) e de
Berenice, filha de Straton, [que era] canéfora de Arsínoe Filadelfo.

183 - S. L. BUDIN, Images of Woman and Child from the Bronze Age, Nova Iorque: Cambridge University Press,
2011, pp. 35-117.
184 - B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s. av. n. è. - IVe s. de n. è.), p. 49.
185 - Cidade do Sul do Faium fundada por Amenemhat III na XII dinastia, que floresceu e enriqueceu no período
ptolemaico tornando-se um centro regional importante. A sua fama deve-se ao facto de em 1899-1900 uma missão
californiana ter aí encontrado grande quantidade de papiros demóticos e gregos sobre o quotidiano dos seus habitan-
tes, B. P. GRENFELL, A. S. HUNT, E. J. GOODSPEED, The Tebtunis Papyri, vol. II, Londres: Oxford University
Press, 1907, pp. v-vi.
186 - B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s. av. n. è. - IVe s. de n. è.), pp. 54-55.
A senhora Sponésis, filha de Hórus, cuja mãe é Taués, diz ao homem do Te-
souro e servidor de Sobek Fanésis, filho de Nekhtiris, cuja mãe [é] Tabi «Eu
vim a tua casa; eu farei para ti (linha 3) de ama-de-leite, o meu leite é bom nos
dois seios (lit.: dos dois lados), [e eu] deixo o menino Petesukhos, teu filho,
mamar, e eu alimentá-lo-ei, eu guardá-lo-ei e eu protegê-lo-ei de quaisquer
erros e de qualquer dano [que eu possa fazer enquanto for] ama, a partir do
ano 15, no dia 11 de Famernoth do rei dotado de vida eterna, (linha 4) até ao
fim dos três anos = 36 meses = três anos de ama. E eu passo os dias supraditos
com o menino Petesukhos, teu filho, alimentando-o com o bom leite dos dois
seios, e ele (sic) alimenta-o e eu guardá-lo-ei e protegê-lo-ei de quaisquer erros
e de qualquer [dano] [que eu possa fazer enquanto for] ama (linha 5) os dias
supraditos, e eu durmo e vigio na tua casa o menino, teu filho supracitado du-
rante os dias supraditos. Tu dás-me 1 e 1/6 de um artabe de trigo (estimado)
na medida em que seja 1/6 de um artabe, 1 e 1/2 lok de óleo, e dinheiro para as
despesas: 1/2 kite de dinheiro. ........, uma lavagem [da roupa] por mês [para] a
minha subsistência, o meu óleo (linha 6) [e] o meu dinheiro para as despesas
de cada mês; [dás-me ainda] 1 deben de prata e 2 kite, a metade de 6 kite =
deben de prata e 2 kite novamente [para] as minhas roupas em cada ano. Não
poderás recusar de um mês para o outro a minha subsistência, vestuário, óleo,
[e] o [dinheiro] para as despesas. Se houver um atraso de um mês, tu dar-me-ás
com a mensalidade o mês em dívida acrescido de um 1/2, no mês seguinte ao 71
mês antes mencionado.
(linha 7) Se eu parar [de cuidar] do menino Petesukhos, teu filho supracitado,
[por que eu estou] sem leite ou por que eu estou grávida de um homem de al-
guma parte [ou] de ti, de tal forma que eu não conclua os dias supraditos com
o menino Petesukhos, teu filho supracitado, eu dar-te-ei 10 deben de prata,
metade sendo 5 deben de prata = 10 deben de prata, por dia, cinco dias [após
o fim da minha actividade]. Tu tens o direito [de me obrigar] a acabar os dias
supraditos (linha 8) com o menino Petesukhos, teu filho supracitado. Se eu
parar [de me ocupar] do menino Petesukhos, teu filho supracitado [durante]
os dias supraditos, eu dar-te-ei uma ama-de-leite, que tenha leite bom nos dois
seios, depois do seu nascimento até ao fim do tempo supradito, ou dar-te-ei
20 deben de prata, a metade sendo (linha 9) 10 deben de prata = 20 deben de
prata mais uma vez, por dia, cinco dias [após o fim da minha actividade], e
farei tudo o que quiseres segundo os dois documentos. Tudo o que eu tenho e
o que vou ganhar, é a garantia do cumprimento das obrigações do que acima
foi escrito. As obrigações do que acima foi escrito dependem da garantia do
que tu queres de mim, (linha 10) e eu conservo-a para ti, até eu ter cumprido
as obrigações escritas acima. Eu não poderei dizer: «Eu realizei as obrigações
do que ficou escrito acima» enquanto o escrito acima estiver na tua mão. E eu
passarei todos os dias, que uma ama deve passar, até ao fim do referido prazo.
Não poderei fugir para qualquer asilo, (linha 11) um altar do [rei] [ou] templo
de um deus, com o menino Petesukhos, teu filho supracitado, até ao fim dos
dias supracitados. Se tu me tirares o menino Petesukhos, teu filho supracitado,
durante os dias supraditos, apesar do facto de eu cumprir as obrigações do que
está acima escrito, durante os dias supraditos, tu dar-me-ás 10 deben de prata
no próprio mês. (linha 12) Eu tenho o direito de te obrigar a levar até ao fim
os dias supraditos com o menino Petesukhos, teu filho. O teu representante é
aquele que recebeu a procuração para dizer todas as coisas que me foram pro-
metidas, sobre todas as coisas supraditas, e eu cumpri-las-ei em conformidade
com o discurso dele, por obrigação e sem demora. Escrito por Petubastis (?)
filho de Haruothés.»
Nota de registo grega
«Ano 16, mês de Famenoth, dia 20. Foi depositado nos arquivos de Tebtunis,
em nome de Arsínoe, graças a Antikrates o agente de Harmodios, o contrato de
alimentação por três anos, no valor de 250 dracmas. Sponésis filha de Hórus
para Fanésis filho de Nekhtiris.»
Verso
«Cópia do contrato de aleitamento para três anos, feito pela senhora Sponésis,
filha de Hórus, para Fanésis filho de Nekhtiris».
Segue a lista de oito testemunhas.187
72
Este contrato ptolemaico perpetua a tradição das mulheres egípcias, tanto entre os mais
carenciados por motivos de solidariedade ou económicos, como entre os altos funcionários
de serem amas das crianças reais, um cargo que, independentemente da sua carga mercantil,
permitia a criação de fortes laços pessoais e era de grande importância no antigo Egipto,
pois dele dependiam futuros reis, futuros deuses que recebiam a soberania divina através
do leite divino. Se deusas como Ísis ou Hathor, muitas vezes assumindo a sua versão de
vaca divina, e muitas outras deusas como Taueret, Mut, Bastet, Néftis, Meskhenet, Heket
ou Anuket, foram amas-de-leite de deuses como Ré ou Hórus e de faraós, manifestações
terrestres do jovem Hórus, damas houve que, mesmo retirando-lhes qualquer dimensão ideo-
lógica188, asseguraram o seu futuro e o dos seus familiares por exercerem quotidiana e siste-
maticamente de forma pragmática essa função que as colocava ao nível das referidas deusas.
Desconhece-se se havia algum sistema de selecção das candidatas, para além de terem leite
em qualidade e quantidade. De qualquer modo, terá existido uma «Casa das amas reais»,
uma vez que na necrópole de Cheikh Abd el-Gurna, o escriba real Hekarechu (TT 226), do

187 - B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s. av. n. è. - IVe s. de n. è.), pp. 50-52. O artabe (c. 30 litros) e o lok
(c. 0,27 do litro) são unidades de volume; as unidades monetárias eram o deben e o kite em que 1 deben valia 10 kitu e
1/2 kite uma dracma, uma moeda grega, B. LEGRAS, Hommes et femmes d’Égypte (IVe s. av. n. è. - IVe s. de n. è.), pp.
52-53. Sobre o deben ver T. F. CANHÃO, «Namoro, casamento e divórcio no antigo Egipto», Hapi 4 (2016), 64, nt. 82.
188 - Com respeito à dimensão ideológica do aleitamento cf. J. C. SALES, «Amamentar no Egipto Antigo: do prazer
na relação materno-infantil à Ideologia», pp. 63-113.
tempo de Amen-hotep III, tinha também o título de imi-rá set per-menat nesu (imy-r st pr-
-mnat nsw) «superintendente das amas-de-leite reais»189. Como antes dissemos, contratos
anteriores ao exposto não existem, conhecendo-se apenas alguns elementos vindos de Deir
el-Medina que confirmam pagamentos a amas-de-leite, no Papiro de Turim 1880, o célebre
papiro da greve no tempo de Ramsés III e num documento
que relata um abandono infantil conhecido pelo nome de «A
mulher sábia»190.
Mas conhecem-se vários casos de amas-de-leite reais.
Por exemplo, Satiah (sat iaH) «A filha da lua», a primeira es-
posa real de Tutmés III, era filha de Ipu B, que tinha sido
ama-de-leite do jovem Tutmés, tendo o marido mandado
gravar para a sua irmã de leite e esposa diversas dedicató-
rias depois da sua morte191. Tié, esposa do futuro faraó Ai,
amamentou a rainha Nefertiti, recebendo o epíteto de «a que
amamentou a deusa, o ornamento real Tié»192. À ama-de-
-leite de Tutankhamon, Maia, «aquela que alimentou o corpo
do deus», o faraó mandou construir em Sakara um túmulo
privado193. Também é conhecido o caso de Amenemipet,
mãe de Kenamon, comandante das tropas de Amen-hotep II Ama amamentando um
e responsável por todos os países estrangeiros do norte. Ela príncipe, possivelmente Maia e
Tutankhamon. Parede do túmulo
foi ama-de-leite de príncipe Amen-hotep, tendo sido porta- de Akhenaton (TA 26), no 73
dora do selo e aia ainda de Amen-hotep I, e a sua posição funeral da princesa Maketaton
foi certamente influente não só na carreira de Kenamon, que (reconstituição de Marc Gabolde,
acumulou cerca de 150 epítetos, mas de toda a família, pois em tese de doutoramento de
Paulo Carreira).
outro dos seus filhos foi terceiro sacerdote de Amon e ou-
tro, ainda, foi governador provincial de Tinis, e todos eram
irmãos-de-leite de Amen-hotep II194. Também na IV dinastia surgiram nomes de cidades que
homenageavam as amas-de-leite de faraós, como menat Kkufu niut (mnat xwfw niwt), «a cidade

189 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, p. 245; http://www.ucl.ac.uk/museum s-


-static/digitalegypt/thebes/tombs/TTd18.html (consultado em 25-03-2017)
190 - Cf. M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 268-269.
191 - A. DODSON e D. HILTON, The Complete Royal Families of Ancient Egypt, p. 140; E. STROUHAL, Life of
the Ancient Egyptians, p. 24.
192 - P. J. CARREIRA, Iconotextualidade dos túmulos de funcionários régios durante o período amarniano, tese de
doutoramento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 13-03-2017, p. 42; A. DODSON e
D. HILTON, The Complete Royal Families of Ancient Egypt, p. 157.
193 - N. REEVES, Ancient Egypt. The great discoveries. A year-by-year chronicle, Londres: Thames and Hudson,
2001, p. 223.
194 - C. VANDERSLEYEN, L’Egypte et la vallé du Nill. Tomo II. De la fin de l’Ancien Empire à la fin du Nouvel
Empire, Paris: Presses Universitaires de France, 1992, p. 339; E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 24.
da ama-de-leite de Khufu», mas, de facto, o apogeu das amas-de-leite foi na XVIII dinastia195.
A saúde das crianças nos primeiros anos de vida também mereceu da parte dos mé-
dicos uma atenção especial que ficou registada nos papiros da especialidade. Três exem-
plos apenas:

«Ebers 262 (48, 22-49,2)


Outro (remédio), para fazer com que uma criança verta uma grande quantida-
de de urina que está no interior do seu corpo: papiro usado. (Ele) será fervido
em óleo e o seu corpo será revestido até que a descarga normalize.»196

«Ebers 273 (49, 21-50, 2)


O que deve ser preparado para uma criança que sofre de incontinência de uri-
na: verniz tjhenet fervido (e posto) na forma de uma bola. Se é uma criança
já grande, ele engoli-la-á de uma só vez. Se ele usar (ainda) panos, isso ser-
-lhe-á misturado no leite por quem o alimentar, e ele bebê-lo-á quatro dias
seguidos.»197

«Ebers 782 (93, 3-4)


Remédio para suprimir os gritos repetidos (achau, aSw): pedaços chepennu da
planta chepen; excrementos de mosca que estão na parede. (Isto) será transfor-
74 mado numa massa homogénea, filtrado, depois absorvido quatro dias seguidos.
(Isto) cessará prontamente. Quanto à palavra achau, ela refere-se a uma crian-
ça que grita (continuamente).»198

É um ponto inquestionável que o leite humano era o alimento por excelência dos bebés
de mama, mas não era a sua única fonte de subsistência. É um domínio ainda pouco conhe-
cido, mesmo fazendo fé nas fontes textuais que nos dizem que o leite humano não era o
único alimento a ser dado aos bebés. Em relação aos jovens a iconografia não deixa dúvidas:
aparentemente os jovens alimentavam-se de leite de vaca. Mas só aparentemente, pois esta
iconografia, na sua maioria, é sobretudo simbólica porque normalmente são deusas que ali-
mentam outros deuses ou membros da realeza. Mas alimentar-se-iam os bebés de mama de
outro tipo de leite? Não se sabe em que medida um bebé podia ser alimentado com leite de
burra, o que se aproxima mais em sabor do leite humano, contudo o burro era conotado com

195 - M. JUANEDA-MAGDALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 247-272.


196 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 291.
197 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 293. Traduzimos «glaçure» por «verniz»,
mas o significado completo é «verniz que se dá na loiça para a tornar vidrada», DOMINGOS DE AZEVEDO, Gran-
de Dicionário Francês-Português, Venda Nova: Bertrand Editora, 1989, p. 752.
198 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, pp. 360-361. Em relação à planta chepen,
Juaneda-Magdalena diz ser a papoila (Papaver somniferum), que já referimos noutro artigo, M. JUANEDA-MAG-
DALENA, La Lactancia en el Antiguo Egipto, pp. 247-272; T. F. CANHÃO, «A alimentação no antigo Egipto», p. 60.
Set; com o de ovelha ou com o de cabra, que é o que tem um sabor mais intenso, ou com o
de vaca, que era um meio termo em sabor mas que, sabemos hoje, é desequilibrado para os
bebés porque tem quantidades inadequadas de minerais, proteína, gorduras, vitaminas e ou-
tros componentes199. Em todo o caso, dois documentos do período da ocupação romana, dos
médicos gregos Sorano e Galeno, falam de técnicas e práticas de amamentação e alimentação
das crianças. Ambos referem que as alterações ao leite humano devem ser graduais e só de-
pois dos seis meses, embora as crianças possam continuar a mamar até cerca dos três anos de
idade. Sorano, entre uma série de valores e normas, aconselhava a que o primeiro alimento
suplementar tivesse mel cozido acompanhado de leite de cabra200. Algumas fontes textuais
afirmavam «que crianças com idades entre 2 e 3 anos podiam receber, em complemento do
leite humano, uma alimentação mais sólida», havendo agora provas paleocropológicas que
confirmam terem sido encontrados «vestígios de ervas finamente moídas que foram ingeridas
como papas por crianças «(semi)-desmamadas»201. Contudo, fica por saber quantos lactantes
podem ter morrido por não se terem conseguido adaptar a uma nova alimentação. Daí que
quem amamentava soubessem que deveriam ser feitos todos os esforços para alimentar os
lactantes até aos três anos de idade.
Embora Eugen Strouhal afirme que certas vasilhas cerâmicas, determinados pequenos
recipientes semi-esféricos com um bico e um tipo de chifres ocos terminados numa forma de
colher pudessem funcionar como biberões, Amandine Marshall contra-argumenta e diz que
a maioria desses objectos são difíceis de identificar como tal, embora não ponha totalmente
de lado a hipótese202. Mas se foram, também não sabemos que tipo de líquido contiveram! 75
Outras vezes, a mãe que amamentava, ou a ama-de-leite, podia recorrer a tratamentos para
estimular a produção do seu leite, em jogos mais ao jeito de algumas fórmulas mágicas da
medicina egípcia do que propriamente de uma receita médica, propondo aplicar uma espinha
sobre a «espinha»:

«Ebers 796 (94, 8-10)


Trazer de volta o leite a uma ama que amamenta um bebé: espinha dorsal de
um peixe-combatente. (Isto) será cozido em gordura/óleo. Untar com (isto) as
suas (= da ama) costas.»203

Eugen Strouhal informa que uma equipa checoslovaca que liderou, e que investigou a
mortalidade infantil em Abusir, descobriu maior mortalidade em crianças entre os 3 e os 4

199 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 182-184.


200 - Os resultados deste tipo de alimentação foi confirmado recentemente em análises isotópicas em cadáveres in-
fantis da época, A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 212-213.
201 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 180-181.
202 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 24; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte
ancienne, pp. 184-189.
203 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 450.
anos de idade do que entre os mais novos, que ainda mamavam. Isto permitiu concluir que a
mudança para outro tipo de alimentação era propícia a mais infecções intestinais, aumentan-
do a taxa de mortalidade204. Os resultados de idêntica investigação que fez em Sakara alarga-
ram para entre 2 a 5 anos as idades, mas a
conclusão foi a mesma205. Ainda que possa
não ter sido a única razão da mortalidade
infantil, são dados a ter em conta.
Com tudo o que sabiam do leite mater-
no, passaram a considerá-lo também um
poderoso medicamento. A par de vários
tipos de cerveja e de vinho, o leite era um
dos líquidos mais usados nas receitas do
antigo Egipto, e não só para crianças, sen-
do particularmente «qualificado» o leite de
uma mulher que tivesse sido recentemente
mãe de um filho do sexo masculino. Apa-
recem referências a leite e a pele de leite,
isto é, natas, leite de vaca, leite de burra e
leite humano, como nos casos que se se-
guem de um unguento para caçar os uhau
76 (?) e um tratamento para os olhos:

«Ebers 109 (25, 20-26, 2)


Outro unguento: massa de pão de
cevada cozida; erva iar, cozida; es-
pelta mimi, calcinada; mineral iner-
Jarro em terracota vidrada para leite materno.
-sepdu; leite de uma mulher que
XVIII dinastia. Museu do Louvre, Paris.
tenha posto no mundo uma criança
macho; óleo de moringa fresco;
gordura/óleo. (Isto) será cozido. Untar com (isto) sete dias seguidos.»206

«Ebers 414 (62, 17-18)


Outro (remédio) para abrir a vista: pele de leite; leite de uma mulher que
tenha posto no mundo uma criança macho. (Isto) será misturado numa massa
homogénea e vertido nos olhos.»207

204 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 23; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte
ancienne, p. 180.
205 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 180.
206 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 265.
207 - T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, p. 312.
Os únicos recipientes para leite que não levantam quaisquer dúvidas são uns frascos ce-
râmicos antropomórficos, normalmente com mulheres a amamentar bebés, mas que, segundo
nos diz Christiane Desroches-Noblecourt, eram de uso farmacêutico para recolha do leite
de mulheres que tivessem «posto no mundo uma criança macho» para aplicar em determi-
nadas receitas médicas208. As crianças eram amamentadas calmamente ao colo das mães ou
das amas-de-leite como se vê em muitos relevos e estatuetas, com a lactante de cócoras ou
ajoelhada no chão. Noutros casos, provavelmente nos estratos mais altos da sociedade, as
lactantes podiam sentar-se em cadeiras ou
em tronos, como mostram imagens de Ísis
a amamentar Hórus, podendo até preen-
cher pequenos altares caseiros, protegendo
os que aí residiam.
Observemos de seguida algumas ca-
racterísticas da infância no antigo Egipto.
Duas dessas características eram a nudez
e o corte de cabelo. O clima quente e seco
permitia que as crianças de ambos os se-
xos pudessem andar nuas até perto da pu-
berdade, como é possível ver em relevos
ou pinturas das princesas de Amarna, dos 77
filhos na escultura familiar do anão Seneb
ou em pinturas de túmulos, como no de Filhos do anão Seneb. Calcário policromo do Império
Antigo, Guiza. Museu Egípcio do Cairo.
Inherkha, em Deir el-Medina, e noutras
desde o Império Antigo. A própria ar-
queologia não elucida a este respeito, pois em alguns casos de descoberta de tecidos em
túmulos de crianças, não é possível saber se era roupa ou se foram carinhosamente envoltos
em tecidos ao serem sepultados. Mas se a iconografia e a arqueologia respondem negati-
vamente a esta questão, há uma indicação textual que mostra que, por vezes, as crianças
poderiam andar vestidas. No Papiro de Berlim 3027 foi escrito:

«Berlim 3027
Todo o leite que tu mamas, cada braço em que tu és colocado, cada regaço em
que tu te espreguiças, as roupas com que és vestido...»209

No levantamento que Amandine Marshall fez a este respeito, de um total de 1307 repre-
sentações contabilizadas, de ambos os sexos, 1220 (93,5 %) apresentavam as crianças nuas

208 - C. DESROCHES-NOBLECOURT, La Femme au temps des Pharaons, p. 220.


209 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, p. 193.
e apenas 87 (6,5 %) as apresentavam vestidas210. Além de, pelo menos por vezes, poderem
andar vestidos, podiam também andar calçados. Em relação a crianças de pouca idade, a ar-
queologia descobriu em túmulos de adultos de diversas necrópoles do Egipto, ou em contexto
habitacional, catorze exemplares de sandálias correspondentes a dez pares com comprimen-
tos entre 8 e 13,5 cm. São exemplares de três estilos diferentes: sandálias de fibras vegetais
abertas, tipo havaianas, sandálias de fibras vegetais semi-fechadas e sandálias fechadas de
pele curtida211.
Embora seja muito difícil ter um momento ou uma idade padrão de mudança, pois essa
mudança varia de indivíduo para indivíduo, podemos aceitar os 10 anos como a idade em que
no antigo Egipto terminava a infância e começava a adolescência, isto é, em que a criança
passava a jovem. Esta aceitação tem por base quatro fontes, duas do Império Novo e outras
duas mais tardias que as confirmam. Na biografia de Nefersekheru (TT 296) podemos ler:
«Eu passei [a minha juventude] de 10 anos como criança nos braços do meu pai»; e no Papiro
moral de Leiden: «De modo que ele passe 10 anos sendo pequeno (miserável) por nascimen-
to, sem que lhe demos a conhecer a morte e
a vida». Do período macedónico (332-304
a. C.), um registo dos arquivos dos embal-
samadores de Tebas diz que os filhos dos
coachitas podiam tornar-se membros da
corporação a partir dos 10 anos, e com 16
78 anos eram obrigados a integrar a associa-
ção de coachitas, caso contrário seriam ex-
pulsos da comunidade; e o Papiro Insiger,
do Período romano, diz: «Ele (o Egípcio)
passa dez (anos) na pequena infância sem
ter consciência da morte e da vida.»212
Até ao início da adolescência, que co-
meça com a puberdade, era comum rapa-
zes e raparigas usarem, até cerca dos 12 a
14 anos, uma madeixa de cabelo ou uma
Família de Inherkha. Pintura mural no TT 359, em
trança pendente de um dos lados da cabe-
Deir el-Medina, XX dinastia.
ça, normalmente o direito, ou atrás, pelas
costas abaixo, enquanto o resto do cabelo da cabeça era rapado, mantido muito curto ou
longo, ou apresentando três faixas de cabelo encaracolado alternadas com faixas de cabeça
rapada, sobretudo no Império Novo e no Sul, na região de Tebas, como se vê nos filhos de
Inherkha. São, certamente, influências de costumes da África negra subsariana. Contudo, o
cabelo totalmente rapado dos bebés de mama ou o cabelo muito curto sem mecha ou tran-

210 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 73.


211 - A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en Égypte ancienne, pp. 193-194 e p. 38 de imagens.
212 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 25-26, 247-248 nt. 4 e nt. 5.
ça, mesmo em crianças ou jovens com um
pouco mais de idade, também aparecem na
iconografia. Na mastaba de Mereruka, em
Sakara, início da VI dinastia, numa cena
que representa a «dança de Hathor», as ra-
parigas apresentam também longas tranças
que lhes caem sobre as costas213. Segundo
as épocas e os suportes iconográficos, a
posição da mecha de cabelo ou da trança
variou mas, grosso modo, favorecendo o
lado direito da cabeça, lado associado à
vida, por oposição ao esquerdo que era o
lado associado à morte. O facto de até os
adolescentes a apresentarem, implica que a
designação somente de «madeixa de crian-
ça» parece não ser a mais correcta, fazendo
mais sentido designá-la por «madeixa de
infância e juventude». Podem ter existido
motivos religiosos para o uso das mechas
Ramsés II com trança e o dedo sobre a boca. Relevo
de cabelo, como forma de protecção e de de uma estela em calcário da XIX dinastia. Museu do
preparação ritual para a entrada no mundo Louvre, Paris. 79
dos adultos, quando as cortavam214.
Na maior parte das vezes é difícil perceber porque é que os antigos Egípcios tinham várias
palavras para se referirem à mesma coisa. Com o exemplo das palavras que designam dife-
rentes mechas de cabelo, talvez seja possível afirmar que cada uma delas pudesse representar
uma maneira diferente dessa coisa se manifestar. Para designar uma mecha de cabelos havia
cinco palavras diferentes e cada uma delas para um tipo diferente de penteado: debenet (

dbnt) refere-se a uma mecha de cabelos soltos; heneseket (

Hnskt) indica uma mecha de cabelo em trança; uperet ( wprt) reporta-se a uma
mecha de cabelo lateral «tal como a trazem frequentemente as crianças egípcias», isto é, em

trança como na imagem desta página, muitas vezes em forma de S; sut ( swt) res-

peita a uma mecha de cabelo adornada com contas; e samut ( sAmwt) alude
a uma mecha de cabelo de um defunto ressuscitado no Além215.
A estas duas características junta-se uma terceira que, aliás, é apresentada também pe-

213 - Cf. E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 25-26; A. MARSHALL, Maternité et petite enfance en
Égypte ancienne, pp. 195-198.
214 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 37-38.
215 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 39-41.
los filhos do anão Seneb: as crianças de tenra idade podiam
ser representadas com o dedo indicador aparentemente na
boca, como se o chupassem, como fazem todos os bebés
e crianças pequenas. A respeito do que possa significar
este gesto, Amandine Marshall chama a atenção para que
não é certo que o dedo esteja «na boca», como normal-
mente traduzimos hoje, ou «sobre a boca», como Varrão,
Ovídio ou Plutarco traduziram, podendo o seu significado

ser bastante diferente. Isto porque a preposição m ( ),


frequentemente traduzida por «em», também pode signi-
ficar «sobre», «na/no», «fora de» ou até «à frente de», e
ainda é preciso investigar a iconografia a este respeito e
determinar a sua origem216. Além do mais, existe na escrita

hieroglífica um signo A2 ( ) em que o homem tem a mão


na boca, ou sobre a boca, e se utiliza como determinativo
em palavras cujo significado se reporta ao que entra ou sai
da boca, como «comer», «fome», «beber», «relatar», «ser

silencioso», «inventar» ou «amor». Se A17 ( ), cuja mão


ou dedo sobre ou na boca foi a única característica de criança
80
incluída na escrita hieroglífica, é usado como determinativo
Criança egípcia com o dedo de palavras como «ser jovem», «criança» e «órfão», parece
sobre o lábio inferior, marfim
ser, de facto, um sinal de juventude, mas pode não querer
de hipopótamo. Império Antigo,
Museu do Louvre, Paris. dizer exactamente que seja uma criança porque «chucha no

dedo». Tal como há A1 ( ) também há A17A ( )!


Um deus tornou-se particularmente conhecido por apresentar estas três características,
Horpakhered ou «Hórus menino/criança», um deus-menino representado nu, de trança lateral
e, aparentemente, chupando o dedo indicador que introduz na boca e que desde tempos muito
antigos certifica a idade infantil dos deuses. Por exemplo, na fórmula 378 dos «Textos das
Pirâmides», cuja tradução consultada pende para «na boca»:

«Ó serpente no céu! Ó centopeia na terra! A sandália de Hórus é o que pisa


a serpente n xi sob os pés, a serpente n xi de Hórus a criança com o dedo na
boca, e eu sou Hórus, a criança com o dedo na boca. (...)»217

216 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 33-34. Mas não é tão popular como se crê. Num
conjunto de 1261 representações de crianças, só 326 apresentam esta característica, «entrando em declínio flagrante
depois do Império Médio». O que o torna verdadeiramente emblemático e que caracteriza a figuração da Criança no
antigo Egipto, é que surgem exemplos dele em todos os períodos da sua história, A. MARSHALL, Être un enfant
en Égypte ancienne, p. 30.
217 - R. O. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 125.
Umas vezes surgia sozinho, outras ao
colo de sua mãe Ísis, ou Hathor, que o
amamentava218. Se no segundo caso era
sobretudo Ísis/Hathor que era adorada no
seu papel de mãe e alimentadora, no pri-
meiro caso foi inicialmente associado ao
deus-Sol, renascendo todas as manhãs nas
águas celestiais brotando de uma flor de
lótus e, na Época Baixa e Época Greco-ro-
mana, como amuleto de protecção contra
mordeduras e picadas dos répteis e, sobre-
tudo, dos animais venenosos, como o es-
corpião219 que, como se vê nesta fórmula, Mãe com filho no quadril. Escultura de ébano da Época
já é uma associação muito antiga. Pré-dinástica. Ägyptisches Museum, Berlim.

Foram também descobertos em alguns


túmulos, e são visíveis na iconografia, adornos de sete tipos usados por crianças: colares, brace-
letes comuns, braceletes próprias para serem usadas no tornozelo, brincos e anéis, e só usados
pelas raparigas cintos e ornamentos para o cabelo. O valor económico destes adornos varia,
pois a maioria é de diferentes tipos de pedras, indo das que não têm grande valor, como o
calcário ou a ardósia, às de grande valor como o lápis-lazúli, a cornalina ou a ametista. Foram 81
também empregues matérias primas de grande valor como o ouro, a prata, o cobre, o bronze
ou o electro. Usavam ainda diversos tipos de conchas e marfim220. A função decorativa destes
adornos tinha menor valor do que a de protecção e/ou de cura nos momentos em que a criança
adoecia, reconhecendo-a como o futuro e a continuidade da família, e sendo a infância uma das
etapas mais difíceis da vida. Representação, cores, materiais e, até, o próprio adorno, tinham
certos simbolismos, e a sua força mágica acrescentava-lhe valor profiláctico221.
Nos primeiros anos de vida as crianças ficavam a cargo das mães. As mães transportavam
os bebés ao peito, nas costas ou na anca esquerda, normalmente com a ajuda de um porta-bebés,
uma simples peça de pano enrolada à sua volta e contendo a criança, ficando com uma mão
livre para trabalhar. À medida que iam crescendo e começavam a andar, aliviavam as mães que
deixavam de ter que as carregar ao colo. Até aos cinco anos de idade comportavam-se como
todas as crianças em qualquer lugar e época: apenas brincavam despreocupadamente. Tinham
os seus jogos e brinquedos, uns feitos pelos adultos outros por eles próprios; uns eram para
rapazes outros para raparigas; outros, ainda, eram mistos222. Depois dos cinco anos de idade o

218 - Cf. E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 25-26.


219 - Cf. J. C. SALES, As Divindades Egípcias, pp. 168-170.
220 - Cf. A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 96-110.
221 - Cf. A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 208-225.
222 - Brevemente, num outro artigo, trataremos de «Brinquedos, jogos e desportos no antigo Egipto».
Mulher a trabalhar com a mão direita, segurando uma criança com a esquerda, envolta numa larga manta de linho.
Ambas parecem estar descontraídas e confortáveis: a criança brinca com o cabelo da mulher e a mulher está de
pernas cruzadas. Túmulo de Menna (TT 69), XXV dinastia, Brooklyn Museum of Art, Nova Iorque.

82 pai encarregava-se da sua educação, sobretudo da dos filhos, e, rapazes e raparigas, começavam
a preparar-se para a vida adulta. Se a elite e
os funcionários mandava à escola os seus
filhos entre os 5 e os 10 anos para aprende-
rem a ler, a escrever e a contar, para além de
aprenderem formas e regras de comporta-
mento223, algumas meninas podem-na tam-
bém ter frequentado, sobretudo as de sangue
real, embora, de uma maneira geral, as das
famílias da elite pouco mais recebessem do
que aulas de música e dança, mas este é um
assunto ainda em aberto224. A esmagadora
maioria da população egípcia ocupava os
seus filhos com uma série de passatempos
que os preparava para os trabalhos da vida
Duas raparigas lutando por uma espiga. Pintura da XVIII adulta. É o que podemos chamar de educa-
dinastia, túmulo de Menna (TT 69), Cheikh Abd el-Gurna.
ção familiar, como percebemos na Instru-

223 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 36.


224 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 35; A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte an-
cienne, p. 117.
ção de Ani: «Ensina-o [ao teu filho] a tornar-se adulto»225. A aprendizagem do trabalho manual
agrícola e artesanal226 surge em diversas representações em túmulos de nobres na necrópole de
Cheikh Abd el-Gurna. Longe de serem os únicos exemplos, no túmulo de Menna (TT 69) há a
célebre cena de duas meninas desavindas que disputam uma espiga durante a respiga do trigo;
no de Userhat (TT 51) diversas crianças recolhem e ensacam espigas; e no de Khaemhat (TT
57) uma criança espalha sementes ao lado do lavrador, provavelmente o pai. Outros ajudam a
encher silos, levam comida aos trabalhadores rurais ou fazem outras tarefas227.
A escolaridade estava, então, reservada aos estratos mais elevados da sociedade, como

se pode depreender do já referido signo B6 ( ), que representa uma mulher sentada numa
cadeira com uma criança pequena ao colo e que, para além de poder ser determinativo de pa-
lavras como «ama» ou «alimentar (uma criança)», pode surgir também como determinativo
de palavras como «educação». A vida escolar desenrolava-se nos «locais de ensinamento»

e nas Casas de Vida. As Casas de Vida, no singular uma per-ankh ( pr anx), eram co-
nhecidas desde Pepi II, o último rei da VI dinastia e do Império Antigo (c. 2300-2180 a. C).
Sediadas nos templos mais importantes podem ser consideradas instituições de transmissão

de sabedoria já a um nível superior228. O «local de ensinamento», at seba ( at sbA),


é provável que também funcionasse nos templos, mas sabe-se muito pouco desta instituição
conhecida desde o Primeiro Período Intermediário e não havendo certezas sobre ela, mas que
podia ser uma primeira etapa de aprendizagem que antecedia as peru-ankh, «quando estes
83
dois estabelecimentos estavam situados numa área geográfica próxima»229. A vida escolar
não era fácil. A obediência e a assiduidade eram os dois principais pilares da escolaridade no
antigo Egipto. Os métodos de aprendizagem eram severos, senão mesmo brutais, comportan-
do bofetadas, bastonadas, açoites e, até, grilhões.
O fim da «infância despreocupada», da passagem à puberdade e início da adolescência,
que podia não ser totalmente coincidente com a passagem à maioridade e introdução na
vida adulta, pode ter sido assinalada por um ou mais ritos de passagem, como o abandono
da nudez ou o corte da mecha de cabelo, como alguns pensam, mas, de facto, não há provas
concretas disso no antigo Egipto230. Outra hipótese é a circuncisão, em relação à qual não
só se sabe que existia como havia uma cerimónia em que se enquadrava, designada por sab
(sab) ou kebat (qbAt)231, embora pareça não ter sido um rito sistemático232. O que é certo é que

225 - P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte pharaonique, Paris: Imprimerie Nationale Éditions, 2001, p. 243.
226 - Amandine Marshall fala também do recrutamento de crianças para o exército, mas isso já está para além da
educação familiar, A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 142-146.
227 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 28.
228 - Ver nota 126 da página 54.
229 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 208-225.
230 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, pp. 184-187.
231 - Á. SÁNCHES RODRÍGUEZ, Diccionario de Jeroglíficos Egipcios, pp. 355 e 435.
232 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 187.
nas duas representações que existem de circuncisões (na referida mastaba de Ankhmahor e
no templo de Khonsupakhered, em Karnak), os rapazes que estão a ser circuncidados já não
apresentam o corte de cabelo infantil. Nas provas textuais há quatro palavras para referir os
candidatos à circuncisão: nekhen (nxn), que designa a criança do nascimento à adolescência;
idi (idy), que tanto pode significar uma «criança de pouca idade» como um «jovem»; sedjeti
(sDti), que tanto se traduz por «criança» como por «aluno»; e nedjés (nDs) adjectivo que tanto
significa «pequeno» como «jovem»233.
A circuncisão existe há mais de cinco mil anos no antigo Egipto, estando documentada
desde o Período Pré-dinástico através da observação de múmias234. Heródoto apresenta-nos o
caso assim: «[...] os Colquidianos, os Egípcios e os Etíopes praticaram a circuncisão desde a
sua origem. Os Fenícios e os Sírios da Palestina reconhecem que aprenderam esse hábito com
os Egípcios; os Sírios que vivem na região do rio Termodon e do Parténios, e os Macrons,
que são seus vizinhos, dizem tê-la aprendido recentemente com os Colquidianos. São os
únicos homens que praticam a circuncisão, e podemos constatar que eles a fazem da mesma
maneira que os Egípcios. Entre Egípcios e Etíopes, eu não saberia dizer qual dos dois apren-
deu primeiro esta prática, pois para eles é uma coisa muito antiga.»235

Relevo na parede do templo de Khonsupakhered no recinto de Mut em Karnak. XVIII dinastia.

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233 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 188.


234 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 190.
235 - HÉRODOTE, L’Égypte. Histórias, II, (104), Paris: Les Belles Lettres, 1997, p. 131.
Aparentemente só os rapazes eram circuncidados, pois em relação à clitorectomia, a cir-
cuncisão das raparigas, não há qualquer informação sobre ela no antigo Egipto. Actualmente,
embora aumente cada vez mais a sua proibição, sabe-se que ainda é praticada no Egipto e que
«é um preceito islâmico adoptado na maioria das nações da África, do Médio Oriente e em al-
gumas regiões da Ásia». Sabe-se também que teve origem na Antiguidade, «na África Central
espalhando-se para o norte e chegando até o Egipto. No século VII, os exércitos muçulmanos
conquistaram o Egipto e, desta forma, a prática da infibulação espalhou-se pelo mundo islâmico
de forma sistemática e agressiva até aos nossos dias.»236 Como ainda hoje é realizada estrita-
mente por mulheres e em absoluto segredo, a ter existido no antigo Egipto, ela aparentemente
não deixou quaisquer provas. Não quer dizer que não fosse conhecida e praticada, pois existem
referências textuais a «virgens não circuncidadas» que o provam237. Mas tal como a circunci-
são em múmias masculinas é conhecida desde o Período Pré-dinástico, é possível que novos e
focados exames a múmias femininas possam trazer, ou não, novos resultados.
Aétios d’Amida (502-575), médico grego, descreve a clitorectomia tal como ela era prati-
cada no Egipto no século VI «e explica a necessidade desta mutilação pelo facto de a fricção
do clítoris nas roupas excitar as raparigas.»238 Contudo, sem que tivesse qualquer compara-
ção com a circuncisão masculina, ela está atestada no Egipto a partir do período grego. Um
dos mais antigos testemunho é do século II, um papiro de 163 a. C., que diz que a filha de
um homem chamado Néphoris chegou à idade de casar e devia ser excisada239. Estrabão, que
viveu na passagem do século I a. C. para o século I d. C. e visitou o Egipto, registou que no
seu tempo era um costume bastante praticado: 85

«Um outro costume especial dos Egípcios, e um daqueles com que eles mais
se importam, consiste em educar escrupulosamente todas as crianças que lhes
nasçam e a praticar a circuncisão nos rapazes e a excisão nas raparigas.»240

A circuncisão masculina era uma operação realizada por sacerdotes e não por cirurgiões,
pelo que não é mencionada nos papiros médicos, embora a possamos considerar uma inter-
venção cirúrgica. Era sempre feita com um tipo de faca curva de sílex, o mesmo tipo de faca
usada na preparação das múmias, utilizada até depois de disporem de instrumentos metálicos
mais cortantes, tudo apontando para um ritual religioso. Outro facto que remete para o ca-
rácter ritualista era ser um acto que podia ser praticado num grande números de rapazes em
simultâneo, pois há uma estela do Primeiro Período Intermediário que relata a circuncisão de
120 rapazes de uma só vez. Era uma prova de iniciação de passagem à vida adulta tipicamen-

236 - http://jesusensinamento.blogspot.pt/2012/09/infibulacao-em-uma-unica-semana-cerca.html# e https://saude-


globaldotorg1.files.wordpress.com/2014/06/presentation1-1.pptx (consultados em 17/02/2017).
237 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 29.
238 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 191.
239 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 190.
240 - A. MARSHALL, Être un enfant en Égypte ancienne, p. 190.
Cena de circuncisão. Relevo da mastaba de Ankhmahor, Império Antigo, Sakara.
86
te africana, provando a virilidade de cada um através da sua capacidade de suportar a dor.
Não há dados precisos sobre a idade em que a circuncisão era realizada, mas os que existem
indicam-nos que era na segunda década de vida. A múmia de um príncipe com dez anos ainda
apresentava o penteado de criança e não era circuncidado; e o governador provincial de Beni
Hassan na XII dinastia, Khnumhotep, achou importante referir na longa autobiografia que
deixou no seu túmulo (BH 3), que começou o seu reinado «antes de ser circuncidado»241.
Eugen Strouhall informa que uma investigação que Edward Wente fez em relação à idade
provável com que rapazes e raparigas do antigo Egipto atingiam a puberdade, concluiu que
as raparigas a atingiam com cerca de 12-13 anos e os rapazes com cerca de 14 anos. Assim
sendo, é provável que os rapazes fossem circuncidados cerca dos 14 anos242. Por outro lado,
recordamos que antes dissemos que os arquivos dos embalsamadores tebanos referem os 16
anos como a idade em que um jovem obrigatoriamente teria que se inscrever na associação
dos coachitas, sendo isso interpretado como a idade de passagem à condição de adulto.
Devia ser uma intervenção realizada em condições sépticas, sem recurso a desinfectan-
tes, podendo ocasionar uma série de complicações, nomeadamente supurações, pois os antigos

241 - HqA n.f niwt.f m sDty n fxt.f m TAm (184-185),


«Ele governou a sua cidade quando (ainda) era uma criança antes da sua circuncisão», lit. «antes de libertar o seu
prepúcio», A. DE BUCK, Egyptian Readingbook, Chicago (Illinois): Ares Publishers Inc, 1982, p. 71.
242 - E. STROUHAL, Life of the Ancient Egyptians, p. 29.
Egípcios não tinham grandes conhecimentos de higiene. Contudo, também sabiam controlar
infecções. Na referida imagem da mastaba de Ankhmahor, com duas cenas de uma circun-
cisão, interpretamo-las da esquerda para a direita. À esquerda o rapaz está em pé agarrado
firmemente pelas costas por um assistente que lhe segura os braços ao nível do rosto, enquanto
um sacerdote lhe agarra o pénis com a mão esquerda e corta o prepúcio com a mão direita. Na
cena da direita aparentemente a maior dor já passou, tendo o rapaz a mão direita sobre a coxa
e a esquerda sobre a cabeça do sacerdote que o circuncisa. Para uns, o sacerdote aplica-lhe um
unguento pós-operatório para aliviar a dor, para outros que consideram primeiro esta cena, é
um «estágio preliminar no qual se aplica limão para reduzir a sensibilidade pela formação do
ácido carbónico (sic)»243. Além de não haver qualquer sinal escrito ou representado respeitante
a limão na imagem, acresce-se que sendo uma mastaba da VI dinastia deve-se ter em conside-
ração um outro pormenor que se depreende do que já escrevi sobre outro assunto: «E se isto é
assim em relação aos vegetais, no que respeita aos frutos a diferença é muito maior: no Egipto
faraónico não havia limões, laranjas ou toranjas, pois os citrinos foram introduzidos no vale do
Nilo no período romano. Também as peras, os pêssegos, as ameixas, os damascos, as cerejas,
as mangas e as goiabas eram desconhecidas, tendo sido introduzidas no Egipto pelos Árabes,
ou levadas para lá depois, aproveitando o estreitamento de contactos com regiões mais a orien-
te. De facto, no Egipto havia uma variedade muito limitada de frutos nas primeiras dinastias,
reduzindo-se praticamente às tâmaras, aos figos e às uvas.»244

87
243 - Julgamos que há aqui uma troca do ácido ascórbico (vitamina C) que, de facto, favorece a cicatrização de cor-
tes e feridas, por ácido carbónico, responsável pelo gás das bebidas gaseificadas e inexistente no limão, E. STROU-
HAL, Life of the Ancient Egyptians, pp. 28-29.
244 - T. F. CANHÃO, «A alimentação no antigo Egipto», Hapi 3 (2015), 54.

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