Você está na página 1de 4

Contra a neutralidade da

educação jurídica

Em tempos de “Escola sem Partido”, é muito importante a gente


discutir a neutralidade na formação do conhecimento jurídico, pois
há a ideia de que “devemos ir para a sala de aula aprender as leis e
não política” - como se as leis não fossem feitas por políticos e com
interesses políticos.

Eu parto da ideia de que o ensino jurídico jamais será neutro, pois,


como dizia Karl Marx, "quem comanda as ideias são as ideias da
classe que comanda". Então, por evidente, todo ideia jurídica já é
uma ideia contida num programa de ensino ideologicamente
formulado pela classe que tem o dinheiro para fundar universidades,
bancar as pesquisas e influenciar, segundo seus interesses, a
formação acadêmica de toda a nação.

Assim, esta história de um ensino isento e imparcial na busca da


verdade é uma falácia. Para fins de exercício de reflexão passo a
analisar brevemente as reflexões do pensador austríaco Hans
Kelsen, que muito inspira o ensino jurídico no Brasil.

A teoria pura do direito, formulada por Kelsen, é o maior produto


criado pelo positivismo jurídico, onde o autor exclui da análise do
Direito qualquer especulação filosófica ou sociológica e reduz o
estudo jurídico à mera análise da norma jurídica ou do texto da lei,
negando qualquer esforço para compreender por que a norma e a
lei foram criadas e a favor de quem. O projeto de Kelsen era simples:
proporcionar objetividade, autonomia e neutralidade no estudo do
Direito.

Este projeto do Kelsen, no entanto, esbarra na teoria do matemático


Gödel quando este diz que "todos os sistemas fechados dependem
de algo fora do sistema." Isto é: olha o debate sobre a aplicação de
regras ou princípios. Enquanto a regra é fechada – "tudo ou nada” -
, os princípios se valem da interpretação do operador do Direito, a
partir da lógica de que "há algo fora do sistema fechado".

O princípio é mais geral que a regra porque comporta uma série


indeterminada de aplicações. Enquanto Kelsen pretende que diante
de um fato a regra seja aplicada, a moderna hermenêutica, iniciada
com Nietzsche, defende que "não há fatos, apenas interpretações",
logo a aplicação de uma regra nunca deveria ser (assim como de
fato não é) pura, porque as infinitas razões que levaram ao "fato"
julgado são, porque estão fora do sistema fechado da regra/norma,
em demasia complexas.

A teoria proposta por Kelsen erra quando propõe que o direito para
o jurista deveria ser encarado como norma e não como fato social
ou como valor transcendental, e erra grotescamente quando
pretende trazer "uma teoria pura do direito", i. e., purificada de toda
ideologia política e dos elementos de ciência natural (p. 11), isto
porque não existe neutralidade, e por mais que ele se feche na
norma, fora da norma, segundo Gödel, milhões de coisas estão
acontecendo.

A vida é complexa e a complexidade só pode ser entendida por um


sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível — o que
somente o Materialismo Histórico pode dar conta de interpretar. Este
configura uma nova visão de mundo, que aceita e procura
compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar
a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com
elas.

É por esta razão que eu nunca fui simpático à teoria pura de Kelsen,
nunca aceitei o ensino jurídico apenas baseado na letra morta da
norma, privilegiando uma neutralidade que não existe em lugar
nenhum das Ciências Humanas. Não vejo com bons olhos o
positivismo jurídico proposto pelo autor e creio que outras
epistemologias críticas fariam um papel de estímulo à reflexão muito
maior do que os pensamentos do cânone eleito para inspirar o
estudo jurídico no país.
Assim, como exposto, a tentativa de criar um ensino jurídico sem
ideologia não passa de um movimento ideológico conservador,
mantenedor de um status quo acadêmico e elitizado. Querem um
ensino jurídico centrado na letra da lei que é construída sobretudo
por um poder legislativo conservador e que pouco entende do
chamado “Direito achado na rua”, como também de outros dados da
realidade.

Como falar em “neutralidade do ensino jurídico” e, ao mesmo tempo,


vermos leis que tratam da negação do direito ao aborto; a omissão
na tipificação do crime de homofobia; leis que prejudicam o
trabalhador como a Reforma Trabalhista e da Previdência? Se a
construção da lei não é neutra, menos ainda deve ser a discussão
dela.

Assim, compreendo como correta a frase do filósofo István


Mészáros:

"Em parte alguma o mito da neutralidade ideológica


– a autoproclamada Wertfreiheit, ou neutralidade
axiológica, da chamada "ciência social rigorosa – é
mais forte do que no campo da metodologia. (…) Na
verdade, esta abordagem neutra da metodologia
tem um forte viés ideológico conservador. (…) O
milagre metodológico que transcende o conflito é
constantemente proposto, no interesse da ideologia
dominante, como a estrutura reguladora necessária
do "discurso racional" nas humanidades e nas
ciências sociais". (MÉSZÁROS, István. O poder da
Ideologia. Cap 6 – Metodologia e Ideologia: A
ideologia da neutralidade metodológica, p. 301.)

O Direito é construção social, órgão vivo, mutável e flexível. Uma


teoria pura do Direito é tão possível, hoje, quanto a crença de que a
terra é plana. E ensino jurídico sem ideologia já é uma posição
ideológica conservadora para evitar o contraditório na sala de aula -
além de favorecer as principais bancas de concursos públicos e os
autores que vendem os livros que estas bancas indicam, pois, ou
responde como estes autores pensam e estas bancas determinam
ou será reprovado nas provas que se dizem objetivas.

O ensino jurídico neutro, isento de ideologia, se não é uma


impossibilidade é uma aberração.

Você também pode gostar