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ASSIMETRIAS DA ANTROPOLOGIA

SIMÉTRICA DE BRUNO LATOUR*

João Paulo Bachur


Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília - DF. E-mail: joaopbachur@hotmail.com

DOI: 10.17666/319209/2016

Introdução modernidade ocidental. Apoiado no ferramental


da observação etnográfica, Latour emprega a me-
No atual panorama da teoria social, quando ticulosa observação de campo para analisar não o
a teoria crítica de matriz frankfurtiana se conver- “exótico”, o periférico, a exceção, mas, justamen-
te mais e mais em uma teoria normativa tenden- te, o centro da modernidade: a ciência, o direito,
cialmente kantiana e o pós-estruturalismo já não a técnica, a política democrática. Sua antropologia
apresenta o mesmo ímpeto, Bruno Latour oferece dos modernos joga luz não sobre aquilo que não
um dos mais interessantes diagnósticos críticos da vemos por estar longe, mas sobre aquilo que já
não vemos por estar perto demais. Seu estilo argu-
* Este artigo tem por base um paper com o mesmo título mentativo, bem-humorado e retórico, e seu voca-
apresentado no 39º Encontro Anual da Associação Nacio- bulário excêntrico lhe asseguraram proeminência
nal de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS,
em 28 de outubro de 2015, no GT40 – Teoria social incomum, mas também uma recepção de caráter
no limite: novas frentes/fronteiras na teoria social con- binário, por assim dizer. Via de regra, tem-se, de
temporânea. Agradeço a Carlos Eduardo Sell e Emil um lado, a atitude de adesão imediata ao que apre-
A. Sobottka, bem como aos demais participantes pelas
críticas e comentários. Agradeço ainda aos pareceristas
goa Latour, contraposta, de outro lado, à rejeição
anônimos da RBCS pelas valorosas críticas e indicações liminar de sua teoria como um todo. A razão disso
bibliográficas, bem como a Leandro Mahalem de Lima talvez possa ser localizada no postulado elementar
pelas discussões sobre a teoria do ator-rede.
da antropologia dos modernos: a simetria radical
Artigo recebido em 24/11/2015 entre humanos e não humanos (Vandenbergue,
Aprovado em 18/05/2016 2006, p. 341). É claro que esse postulado, em
RBCS Vol. 31 n° 92 outubro/2016: e319209
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essência, não é rigorosamente inédito ou tão polê- sofisticado pragmatismo material e recai em uma
mico como pretende seu defensor1. Mas há, na ini- concepção plana do discurso como texto, suposta-
ciativa de atribuir status social às coisas e aos demais mente capaz de atribuir à rede de atores o status de
artefatos – técnicos e discursivos – com os quais li- entidade. Em seguida, mostra-se como a teoria do
damos diariamente, um ponto que mereceria aten- signo de Latour, apoiada no conceito de black-bo-
ção mais detida por parte da teoria sociológica e da xing, acaba por impor um viés tecnicista à compre-
filosofia (Harman, 2009, p. 151 e ss.). ensão do discurso, mais uma vez comprometendo
O presente artigo pretende abrir uma discus- o potencial da teoria latouriana do discurso como
são crítica da teoria do ator-rede, procurando de- prática material. Em terceiro lugar, argumenta-se
monstrar que o postulado da simetria radical não é que a proposta do pluralismo ontológico dos mo-
levado às últimas consequências. Se, por um lado, dos de existência não supera, em última instância,
as críticas usuais consistem basicamente em refutar a pressuposição de uma teoria da diferenciação
a pretendida simetria entre humanos e não huma- social (ainda que latente), nos moldes clássicos
nos, por outro, este trabalho percorre o caminho da sociologia tradicional: a passagem entre dois
inverso e argumenta que, na verdade, a antro- modos de existência tem de pressupô-los como
pologia simétrica não é radicalmente simétrica entidades ontológicas dadas de antemão, a fim de
como ela se apresenta. O postulado essencial de que tanto o hiato quanto o cruzamento entre eles
Latour está em considerar equanimemente huma- possam ser identificados enquanto tais. Por fim, en-
nos e não humanos, tratando de maneira rigorosa- quanto a técnica, a ciência e o direito são desmisti-
mente simétrica o social, a natureza e o discurso. ficados pela antropologia dos modernos, a política
No entanto, a análise de alguns aspectos do con- preserva um status diferenciado, seguramente ide-
junto teórico de Latour permite levantar dúvidas alizado e distante das práticas políticas cotidianas.
acerca do desenvolvimento consistente desse pos- Esses aspectos oferecem consideráveis obstáculos
tulado de simetria radical. De outra parte, o artigo ao pleno desenvolvimento de uma antropologia
pretende trazer à tona, ainda que apenas inicial- dos modernos rigorosamente simétrica, ao mesmo
mente, as linhas gerais de uma teoria materialista tempo que comprometem a sofisticada teoria do
do discurso que o próprio Latour não cuidou de discurso de Latour. Ao que tudo indica, a tentativa
sistematizar ao longo de seu desenvolvimento teó- de escapar do construcionismo impôs ao autor um
rico. Aí reside o ponto forte de sua teoria social – desafio que, ao fim e ao cabo, é deixado a meio ca-
a compreensão do discurso como prática material minho. É no pragmatismo material, e não em uma
que supera a distinção canônica entre as palavras e ontologia plural ou em uma ecologia política, que
as coisas e da qual parte a filosofia da linguagem. está o grande trunfo teórico de Latour.
O pragmatismo material de Latour fica obscure-
cido pela tentativa (frustrada, como aqui se argu-
menta) de manter o postulado da simetria radical O ponto de partida: a sociologia das ciências
entre o social, a natureza e o discurso. e o postulado da simetria radical
Partindo de uma breve contextualização desse
postulado, o artigo desenvolve quatro aspectos pro- O programa de uma “antropologia dos moder-
blemáticos em que a simetria pretendida por Latour nos”, desde sua formulação em Jamais fomos mo-
é relaxada. Inicialmente, argumenta-se que a rede dernos (Latour, 1991a) até seu ponto mais maduro
de atores (a acteur-réseau ou actor-network) se con- de desenvolvimento no pluralismo ontológico dos
figura, na verdade, como uma ferramenta essencial- diferentes modos de existência (Latour, 2012), tem
mente discursiva, por intermédio da qual o etnó- sido objeto de intenso debate (por exemplo, Gin-
grafo articula atores em uma rede – o seu texto gras, 1995; Vandenbergue, 2006; Heinich, 2007;
etnográfico – de sorte que o papel de humanos e Harman, 2009; Linz, 2009; e Maniglier, 2012).
não humanos é atribuído pelo observador humano. Sua premissa básica é o questionamento radical
Nesse ponto, como veremos, Latour recua de seu da diferença entre natureza e sociedade, suscitada
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  3

a partir do estudo da construção de fatos no labo- de uma série de operações materiais práticas. Para
ratório no contexto dos chamados Science and Te- tanto, o papel da escrita é decisivo.
chnology Studies (Latour e Woolgar, 1979). Esses O antropólogo, uma vez em campo, percebeu
estudos provocaram uma importante reorientação que todas as atividades rotineiramente repetidas
da sociologia do conhecimento (Biagioli, 1999). por todos aqueles que trabalhavam no laboratório
Tradicionalmente, a sociologia das ciências explica- giravam em torno da redação de artigos científi-
va o fracasso de teorias científicas em função de ele- cos. A organização de seminários e conferências, a
mentos contextuais: viés do pesquisador, ausência formulação de projetos de pesquisa, a postulação
das condições ideais de pesquisa e financiamento por financiamento, as reuniões, os telefonemas, os
etc. O chamado “programa forte” dos Science and experimentos; tudo girava em torno da produção
Technology Studies, associado em primeira linha ao de um artigo científico (idem, p. 43 e ss.). A vida
nome de David Bloor, sustentava que métodos de do laboratório se resume a produzir uma inscrição
ciências sociais deveriam ser aplicados não apenas literária: tradução gráfica de atividades práticas,
para explicar o fracasso de teorias e experimentos sintetizadas e representadas em uma superfície bi-
científicos, mas sobretudo seu êxito, exigindo assim dimensional (idem, p. 88, nota 2). A inscrição, esse
que erro e acerto fossem tratados simetricamente. “móvel imutável” (Latour, 1999b, p. 306), permite
Latour assume esse ponto de partida e o radicaliza: a tradução de operações práticas no meio gráfico
o programa forte somente fará jus ao nome se dei- e, com isso, sua transposição para novos contextos,
xar de analisar unicamente o contexto da pesquisa, em que são mobilizadas e recombinadas com ou-
observando também seu conteúdo. tras inscrições. O conhecimento científico depende
Essa perspectiva é testada na análise de um então de sua materialização em uma inscrição (o
laboratório de neuroendocrinologia. Entre 1975 artigo científico), bem como de uma constante cir-
e 1977, Latour e Woolgar realizaram estudo de culação em que ele seja progressivamente tomado
campo no Salk Institute for Biological Studies na como fato, isto é, citado positivamente por outros
Califórnia. A etnografia do laboratório descreve artigos que atestem sua credibilidade e solidez. Há
minuciosamente as rotinas do trabalho científico uma rede de operações práticas que sustentam a
a fim de retratar, muito praticamente, o proces- inscrição. Por essa razão, todo fato é, na verdade,
so pelo qual um enunciado (statement) de caráter construído; e, uma vez “pronta”, toda construção
científico se estabelece como verdade (Latour e aparece como fato (Latour, 2002b; Poovey, 1998).
Woolgar, 1979, p. 40). A tese central do estudo À luz da etnografia do laboratório, sugere-se
é a de que as verdades científicas, analisáveis atra- abandonar a imaginação de uma Ciência objetiva,
vés de enunciados linguísticos,2 resultam não da com maiúscula, capaz de alcançar uma Verdade,
suposta observação direta da natureza, mas são também com maiúscula, última e irrefutável. A
produtos artificiais e contingentes de uma ati- prática científica se revela antes de tudo como um
vidade material prática e rotineira, e que, tanto trabalho rotineiro, repetitivo, burocrático e, aci-
em função do contexto quanto do conteúdo do ma de tudo (esse é o ponto central da polêmica
enunciado, podem se estabilizar como fatos (idem, com sociólogos da ciência e cientistas) essencial-
p. 235). O grande trunfo foi conjugar a análise mente contingente, cujo resultado é, no limite,
sociológica e etnográfica do contexto da atividade ficcional, isto é, constitutivamente dependente
científica com a análise de seu conteúdo, acessível de um experimento que nada mais é do que uma
para o observador por meio da análise do discur- encenação artificial da natureza dentre inúmeras
so. Em uma palavra, a prática científica cuida de outras igualmente possíveis. A força motriz das
transformar enunciados linguísticos em fatos. Isso práticas científicas reais reside, então, não no elã
não significa apresentar o trabalho científico como epistemológico de busca do saber pelo saber, mas
atividade meramente ficcional, como se se tratas- na tarefa, quase comezinha, de redigir um artigo.
se de invenção arbitrária e voluntarista. Para que A imaginação ingênua de que cientistas poderiam
um enunciado se estabilize como fato ele depende observar diretamente a natureza para depois des-
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crevê-la, é refutada pela compreensão da prática verdade, discursivamente construído – desde que se
científica como trabalho rotineiro de compor um entenda, aqui, que o discurso tem uma dimensão
artigo, que envolve muita interpretação de texto, material de constituição do mundo, pois o enun-
negociações e cálculos para realizar experimentos ciado estabilizado como fato só é possível em decor-
aptos a sustentar a hipótese de pesquisa, e mesmo rência da série de operações práticas que sustentam
criatividade literária para apresentar os resultados sua inscrição na sociedade (como artigo científico).
de forma convincente. É claro que, com isso, La- Não é por outra razão que o conhecimento cien-
tour não pretende defender uma posição de tipo tífico, construído artificialmente no laboratório,
anything goes, à la Fayerabend – a prática científica aparece para a sociedade como não construído: “O
é contingente, não aleatória; os fatos são constru- resultado da construção de um fato é que ele apare-
ídos, mas não inventados. Da mesma maneira, ce como não construído por pessoa alguma” (idem,
não se trata aqui de livre textualismo discursivo. p. 240); “Ao contrário, é precisamente porque eles
Com efeito, “interpretação”, “negociação” e “cria- [os objetos científicos] foram artificialmente for-
tividade literária” não devem ser entendidos em mulados que eles ganham autonomia completa face
sentido usual, como atividades autointeressadas a qualquer tipo de produção, construção ou fabri-
de um sujeito racional, mas como práticas social- cação” (Latour 1999b, p. 127, grifo no original).
mente regradas por meio das quais a sociedade Isso é antes uma característica que um problema
atribui sentido a um experimento, ao resultado de decorrente da concepção da sociedade como fluxo
um exame, a um gráfico, a uma tabela etc.; enfim, de práticas. A objetividade do conhecimento não
a uma inscrição que condensa o trabalho realiza- decorre, portanto, do método científico, mas da
do no laboratório (Callon, 1980; Knorr-Cetina e teia de citações em que um enunciado circula como
Amann, 1988, 1989). A própria semiose deixa de verdade, adquirindo, assim, o caráter de fato. Con-
ser a atividade mental do hermeneuta e assume o ta para isso não apenas o conteúdo do enunciado,
caráter de prática socialmente institucionalizada. mas também o contexto em que ele é produzido e
Para que um determinado enunciado expresso reproduzido, ou seja, os fatores não científicos da
em um artigo científico adquira o caráter de fato, atividade científica (diplomacia das citações, credi-
é preciso que ele resista à “luta” contra enunciados bilidade da agência de fomento, reputação dos pes-
concorrentes. Esse é um dos pontos altos do prag- quisadores etc.)3.
matismo material de Latour. Ao analisar o conteú- Daí falarmos de um pragmatismo material em
do dos artigos científicos, Latour e Woolgar obser- Latour: discurso e mundo se confundem porque
varam que as citações da pesquisa preexistente ora estruturados por fluxos de práticas materiais; a per-
refutavam o conhecimento estabelecido, ora o con- formatividade da linguagem e os fatos do mundo
firmavam. Com isso, era possível rastrear a cadeia fundem-se radicalmente4. A etnografia do labora-
textual por meio da qual uma hipótese de pesquisa tório deixou claro que a realidade científica é uma
é apresentada, testada, criticada e, por fim, aceita ordem (possível), retrospectivamente construída
pela comunidade científica, até se tornar uma in- sobre o caos (idem, p. 246), e que a natureza não
formação que pode ser tomada como pressuposto equivale a um mundo natural passivo e inerte, pa-
para novas pesquisas (Latour e Woolgar, 1979, pp. cientemente à espera de um sujeito cognoscente
69-150). Em algum momento, o enunciado adqui- movido pela curiosidade desinteressada, mas é ar-
re valor de verdade (truth-value) e caráter de fato tificialmente construída no laboratório. Essa na-
(fact-like status), estabilizando-se então como objeto tureza já é, ela mesma, social, pois construída na
do conhecimento científico: “a estabilização impli- interface entre o discurso e as práticas materiais
ca que o enunciado rompa todas as referências a seu que o sustentam. E se esse conhecimento depen-
processo de construção. [...] Consequentemente, de constitutivamente de não humanos, isto é, de
tem lugar uma inversão: o objeto se torna a razão artefatos técnicos que não podem ser utilizados ar-
pela qual o enunciado foi originalmente formula- bitrariamente por humanos, então os não humanos
do” (idem, p. 176/177). Por isso, todo fato é, na integram constitutivamente o “sujeito” do conheci-
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  5

mento. É na erosão da fronteira entre sujeito e ob- nos: sempre buscamos purificar a realidade sem nos
jeto, sociedade e natureza, humanos e não huma- dar conta de que há entidades impurificáveis.
nos, que se encaixa o diagnóstico crítico que Latour A compreensão dessas entidades exige, então,
faz da modernidade (1991a). tracejar redes de tradução que operam entre o so-
Não é preciso reconstruir aqui Jamais fomos cial, a natureza e o discurso: “as redes são a um só
modernos em toda sua riqueza argumentativa e tempo reais como a natureza, narradas como o dis-
conceitual. Basta reter que é neste “ensaio de an- curso, coletivas como a sociedade” (Latour, 1991a,
tropologia simétrica”, como indica o subtítulo, que p. 15). A única forma de analisar a totalidade dos
o postulado da simetria é radicalizado de um pon- modernos é empregar o método antropológico
to de vista filosófico, embasando tanto a teoria do como se observássemos uma tribo isolada: sem
ator-rede (Latour, 2005) quanto uma teoria políti- receios de tecer conexões que passem do social ao
ca ecologicamente orientada (Latour, 2004). Ele ra- discurso, do discurso à técnica, da técnica à socie-
dicaliza a simetria entre humanos e não humanos, dade, e assim por diante. Se os híbridos nos forçam
ambos constitutivamente imbricados em coletivos a problematizar a fronteira entre política e ciência,
híbridos por meio dos quais determinados fluxos natureza e sociedade, humanos e não humanos, é
são criados, mantidos e estabilizados por redes as- preciso reconhecer que a democracia liberal é cons-
sociativas. Híbridos são entes que não se resumem titutivamente assimétrica: ela é exclusividade dos
à esfera da natureza, da sociedade ou do discurso, humanos. Com isso, o postulado da simetria atin-
mas que existem em uma articulação que perpassa ge sua formulação mais radical: coletivos híbridos
essas esferas (por exemplo, a questão do buraco de exigem que humanos e não humanos tenham ri-
ozônio – Latour 1991a, pp. 7-9). gorosamente o mesmo peso, inclusive na esfera da
Latour parte do diagnóstico de um duplo fra- representação democrática: é preciso, assim, “esten-
casso dos modernos: o ano de 1989 pôs a nu tanto der a democracia às coisas” – essa, a tarefa política
a falência do projeto político da emancipação hu- que se impõe (idem, p. 194).
mana quanto o projeto técnico de dominação da Partindo desse diagnóstico, Latour dedicou
natureza, deixando bastante claro que um jamais os últimos 25 anos ao desenvolvimento de uma
poderia ocorrer sem o outro. A modernidade sem- antropologia simétrica, isto é, uma antropologia
pre tratou as duas coisas, política e ciência, como que rompesse com o viés humanista herdado da
esferas estanques em função da sua “constituição” versão canônica do Iluminismo. Desse modo,
e da separação de poderes que ela prevê: a política a questão que se coloca é a seguinte: a simetria
é reservada aos humanos entre si; a ciência aos não postulada por Latour é realmente mantida de
humanos, à natureza inerte (idem, p. 23 e ss.). Os forma consistente ao longo de seu desenvolvi-
híbridos revelariam então entidades que não res- mento teórico? Na sequência, veremos como a
peitariam essa lógica. Isso porque, para Latour, a simetria é rompida em quatro ocasiões: na pri-
modernidade designa duas práticas simultâneas e meira, em favor do discurso, na segunda, em fa-
antagônicas entre si: de um lado, o chamado traba- vor da técnica, na terceira, em favor do social e,
lho de purificação, que transmite a tarefa crítica do na quarta, contra o método etnográfico propos-
esclarecimento de segmentar esferas de racionalida- to por Latour. É claro que, a rigor, as fronteiras
de autônomas entre si, tais como o mundo natural entre o discurso, o social e a técnica se dissolvem,
(investigado pela ciência), a sociedade (tarefa da como vimos nesta seção, a exemplo da constru-
sociologia) e o discurso (área dos linguistas); e, ção dos fatos científicos. O problema é que, ao
de outro lado, o trabalho (clandestino) de tradução, longo de sua evolução teórica, Latour volta a pres-
dedicado a identificar entidades que constantemen- supor o discurso como mero enunciado textual,
te passam entre essas searas sem se fixar definitiva- o social como continuum inerte e a técnica como
mente em uma delas.5 A existência dos híbridos, mera maquinaria. É a tentativa de manter a todo
sempre negados pelo discurso oficial do esclareci- custo o postulado da simetria que faz com que La-
mento, explica então porque jamais fomos moder- tour recue de seus próprios avanços teóricos.
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Primeira assimetria: a rede de atores como discurso deixa de existir como contínuo, como substância,
à maneira de um éter que preencheria todos os
A primeira assimetria está vinculada ao status interstícios das relações humanas e exige, ao con-
essencialmente discursivo que, em última instância, trário, constante (re)stabilização pela reiteração de
o conceito de rede acaba por adquirir – “discursi- práticas materiais (Latour, 2005, p. 241). Ela é ca-
vo” não no sentido do pragmatismo material de racterizada não pela perenidade, mas pelo hiato e
Latour abordado na seção anterior, mas em sentido pela contingência, isto é, pela reiteração. A estabi-
tradicional, como mera articulação linguística. Ao lidade não é um dado da realidade, mas um efeito
contrário do que usualmente se imagina, a teoria derivado da constante reprodução de associações. É
do ator-rede não exige a análise de redes compreen- precisamente isso que pretende exprimir o conceito
didas como circuitos tecnológicos, muito embora de rede. Uma rede exige constante mobilização para
essa seja uma tendência comum nos Science and ser mantida, ela nunca está garantida por uma lei
Technology Studies. Na verdade, a rede não é um teleológica de moto-contínuo; redes são essencial-
objeto, mas uma articulação de actantes – donde mente instáveis e contingentes. Sua estabilização
a inovação tecnológica, mas também o Estado e exige a reiteração de práticas materiais e depende de
o capitalismo poderem ser vistos como redes. Há, certo número de actantes, de maior ou menor den-
nesse ponto, importante inovação para a releitura sidade documental, de maior ou menor capacidade
de conceitos centrais da teoria sociológica, sobre a de passar do local para o global, de custos de ma-
qual vale a pena alguma pormenorização. nutenção e da constante necessidade de reativação
Latour opõe a “sociologia do social”, a sociolo- (Latour, 2005, pp. 27-120; Latour, 1991a, p. 144 e
gia tradicional de matriz durkheimiana, à “socio- ss.). A sociedade não é um contínuo, mas pulsação,
logia das associações”, inspirada em Gabriel Tarde por assim dizer.
e expressa na teoria do ator-rede. É claro que essa A sociologia das associações busca, então, mos-
oposição é artificial e certamente exagerada.6 Mas trar como isso que designamos sociedade deriva,
ela permite separar duas questões que sempre an- na verdade, de associações entre humanos e não
daram juntas no desenvolvimento da teoria socio- humanos, constantemente reiteradas pelas práticas
lógica: “como a ordem social é possível?” e “qual materiais da vida cotidiana. Tais associações, por
a origem da sociedade?” (Latour, 2005, p. 196). sua vez, descentram a ação subjetiva intencional,
Ao fundi-las, a sociologia tem de explicar o social sempre privilegiada pelo cânone sociológico. Na
reportando-o a um elemento último (a luta de teoria do ator-rede, tanto humanos quanto não hu-
classes, o consenso, a comunicação etc.). Enquan- manos podem assumir o papel de atores – a rigor:
to a primeira sociologia pressupõe o social como actantes – desde que estejam articulados em uma
matéria existente em si mesma, inata à associação cadeia de relações (idem, p. 63 e ss.). A substituição
humana, tornando assim a questão central da so- do termo ator por actante pretende a um só tempo
ciologia (“como a ordem social é possível?”) tauto- eliminar a pré-compreensão de uma racionalidade
lógica, a segunda vê o social como decorrente de subjetiva que age e destacar que só vale como ac-
relações de outra natureza. Na primeira, o social é tante o mediador ativo que realiza uma tradução.
a origem; na segunda, o resultado. A rigor, a so- Actantes realizam uma transformação de ordem
ciologia tradicional apenas adjetiva seus substan- prática no fluxo de vínculos em que se inserem. A
tivos (ordem “social”, classe “social”, conflito “so- mera intermediação neutra, que transmite algo sem
cial”, ação “social”, relação “social”, sistema “social” alterá-lo, é descartada. A ação, portanto, deixa de
etc.), deixando de explicá-los. Ora, trata-se justa- ser uma prerrogativa exclusiva dos humanos e pas-
mente de explicar os vínculos que mantêm a so- sa a ser identificada também nos artefatos da vida
ciedade, ao invés de tomá-los como dados (Latour, cotidiana – não em si mesmos, pois Latour não de-
2005, p. 8). De saída, portanto, a sociedade não fende qualquer forma de antropomorfismo, mas no
pode mais ser pressuposta como dada (Heinich, bojo de coletivos híbridos compostos de humanos
2007, p. 18; Marchart, 2013, p. 129 e ss.). Ela e não humanos (as redes). Por essa razão, a teoria
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  7

do ator-rede não abre mão do hífen entre seus ter- próprias ontologias. Temo que a direção a ser se-
mos: só existem atores articulados em rede; a rede guida seria a de mais descrição. [...] Eu diria que, se
articula a ação. sua descrição demanda uma explicação, não é uma
Enquanto a teoria sociológica trabalhara tra- boa descrição, isso é tudo” (idem, p. 142 e p. 147).
dicionalmente com macrocategorias, tais como su- É preciso então diferenciar, de um lado, a des-
jeito, estrutura social, ordem moral, Estado, classe crição “positivista” de uma rede física, que pretende
social etc., Latour mostra que, observando associa- justamente não fazer diferença no funcionamento
ções, a teoria sociológica deixa de ter de explicar da rede, pois assume que ela existe por si só, como
todo o social e pode observar, no detalhe, os vín- objeto, da descrição de um fenômeno enquanto
culos que pretende explicar. Com isso, abre-se ca- rede de atores, de outro lado. Só nesse último caso
minho para uma teoria sociológica pós-fundacional se trata da metodologia defendida pela teoria do
que não tem de contar com um elemento último ator-rede. Os artefatos possuem affordances especí-
do social: “Uma organização, um mercado, uma ficas: viabilizam ou bloqueiam determinados cur-
instituição não são objetos supralunares feitos de sos de ação, fundindo aspectos sociais, discursivos
matéria outra que não nossas pobres relações su- e técnicos em sua materialidade. Estudos célebres
blunares. A única diferença decorre do fato de que focam o chaveiro de hotel, a chave dupla de Berlim
os primeiros são compostos de híbridos e precisam ou os quebra-molas para a redução da velocidade
mobilizar, para serem descritos, um grande número dos veículos (Latour, 2007). Descrever um apara-
de objetos. O capitalismo de Fernand Braudel ou de to técnico pode redundar em um manual de ins-
Marx não é o capitalismo total dos marxistas. É um truções, não em um estudo de teoria do ator-rede.
labirinto de redes um pouco longas que encerram Para tanto, é crucial a forma pela qual o fenômeno
(muito mal) um mundo a partir de pontos que se observado é descrito.7
transformam em centros de lucro e cálculo” (Latour, Como citado, Estado e mercado podem ser
1991a, p. 165). Sem entrar no mérito da crítica de descritos de maneira tradicional tanto pela econo-
Latour a Braudel e Marx, o insight de compreen- mia main stream quanto pelo marxismo, mas tam-
der instituições como redes contingentes que exi- bém podem ser analisados com o auxílio da teoria
gem constante estabilização é certamente sugestivo do ator-rede (Knorr-Cetina, 2005). E, ao fim e ao
e permitiria problematizar categorias sociológicas cabo, não se trata apenas de uma diferença de pers-
clássicas a partir de estudos empíricos, o que é um pectiva: o que está em jogo é a força performativa
caminho certamente promissor para a teoria social. do texto. O caráter performativo da linguagem foi
Pois bem. Tais redes seriam, segundo Latour, identificado originalmente por John L. Austin, um
“reais como a natureza, narradas como o discurso, dos fundadores do giro linguístico na filosofia. No
coletivas como a sociedade” (Latour, 1991a, p. 15). clássico How to do things with words (1962), Aus-
Uma investigação mais detida, no entanto, permi- tin diferencia dois tipos de sentenças: a linguagem
te colocar em dúvida essa formulação. Partindo do não apenas descreve um estado de coisas existente
lúdico diálogo hipotético entre um professor e um no mundo (enunciados constatativos); ela também
doutorando acerca das potencialidades da teoria do produz o mundo através de enunciados performati-
ator-rede, Latour afirma não se tratar de um fra- vos: uma vez pronunciados, eles mudam o estado de
mework aplicável à descrição de objetos entendidos coisas vigente.8 A partir daí, a filosofia da linguagem
como redes físicas, tais como sistemas de compu- se ocupou essencialmente dos atos de fala, nunca di-
tadores, infraestruturas tecnológicas etc. (Latour, retamente das inscrições. Foi o foco nas inscrições
2005, pp. 141-156). A teoria do ator-rede é um que assegurou a Latour a construção de uma teoria
método descritivo: “A teoria do ator-rede é um méto- do discurso original, aqui designada (por falta de
do”, “seu princípio central é o de que os atores mes- melhor denominação) como uma espécie de prag-
mos fazem tudo, incluindo seus próprios quadros matismo material. Com efeito, Latour trava um
conceituais, suas próprias teorias, seus próprios constante embate com Austin, nem sempre perce-
contextos, sua própria metafísica, até mesmo suas bido por seus leitores (por exemplo, Latour, 1999b,
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p. 141, p. 161; Latour, 2012, p. 97). Embora não textual, do etnógrafo, isto é, como ato de fala redu-
haja um tratamento sistematizado, a escrita ocupa zido a termo, por assim dizer, em estrita consonân-
um papel central na teoria latouriana do discurso: os cia com as teorias da linguagem que Latour critica.
enunciados científicos e jurídicos não se tornam fa- A mera formulação textual não é suficiente para
tos se não forem materializados em inscrições, assim tornar a rede de atores uma entidade com uma on-
como é o texto etnográfico que articula a rede de tologia própria, como demonstra argutamente Tim
atores. Portanto, para Latour, contrariando as filoso- Ingold (2011, p. 91). A articulação do ator-rede é,
fias da linguagem dominantes, a inscrição faz algu- na verdade, o expediente discursivo por meio do
ma coisa, ela realiza uma transformação, uma tradu- qual o etnógrafo, sozinho, transforma a realida-
ção entre operações práticas; ela intervém no mundo de por ele observada ao acrescentar, em seu relato
e o transforma, marca um antes e um depois.9 textual, algo de novo que não está imediatamente
Esse caráter performativo, válido para as ins- dado àqueles envolvidos nas práticas observadas:
crições em geral, sofre uma torção teórica ao ser
trazido para o texto etnográfico. Nesse ponto, ma- “Eu definiria como um bom relato textual
nifesta-se uma tensão entre a sociologia etnográfica aquele que traça uma rede. Quero designar com
e a teoria sociológica de Latour (Heinich, 2007, p. isso o fluxo de ações em que cada participan-
16). Enquanto a etnografia das práticas (científicas, te é tratado como um mediador pleno. Dito
jurídicas, religiosas etc.) exige que uma inscrição de maneira simples: um bom relato em teoria
seja constantemente reiterada até que seu enuncia- do ator-rede é uma narrativa ou a descrição ou
do se sature socialmente como fato, o texto etno- uma proposição em que todos os atores fazem
gráfico se basta a si mesmo para articular a rede de alguma coisa e não ficam lá parados. [...] Um
atores. Aqui, o relato etnográfico não depende de uma texto, em nossa definição de ciência social, é
cadeia de citações e fica sugerido que basta o olhar então um teste acerca de quantos atores o escri-
aguçado (e algum talento) para articular atores em tor é capaz de tratar como mediadores e quão
rede: longe ele ou ela é capaz de alcançar o social.
Logo, a rede não designa uma coisa lá fora que
Porque esse texto, dependendo da forma como teria aproximadamente a forma de pontos in-
ele venha a ser escrito, irá ou não irá captu- terconectados, mais ou menos como o telefo-
rar o ator-rede que você quer estudar. O texto, ne, a rodovia ou uma estação de tratamento de
em nossa disciplina, não é apenas uma estória, água. Ela [a rede] nada mais é que um indicador
uma estória bacana. Ao contrário, ele é o equi- da qualidade de um texto sobre um determina-
valente funcional do laboratório. É um lugar do tema. [...] Um bom texto produz redes de
para testes, experimentos e simulações. Depen- atores quando ele permite a seu escritor traçar
dendo do que acontece nele, pode haver ou um conjunto de relações definidas como tra-
não haver ator; uma rede poderá ou não pode- duções” (idem, p. 128/129, grifos originais,
rá ser traçada (Latour, 2005, p. 149). sublinhados meus).

A rede, portanto, não é um objeto exterior ao Essa longa citação ilustra muito claramente a
texto, mas justamente a articulação performativa mudança do caráter discursivo na passagem do La-
do texto etnográfico (idem, p. 131; cf. também Kni- tour etnógrafo das práticas sociais ao Latour soció-
pp, 2012). O texto do relato etnográfico (textual logo das associações, bem como a centralidade do
account) é ele mesmo o mediador que dá vida ao observador ao redigir o relato etnográfico. Se, no es-
ator-rede (idem, p. 124). tudo etnográfico do laboratório, a subjetividade (do
A questão é que, com isso, o discurso – ori- cientista) é descentrada e o fato científico é uma obra
ginalmente apoiado em uma série de práticas ma- coletiva (Latour, 2003; p. 104), aqui ela retoma o
teriais e reiterado até o enunciado se tornar fato – pulso na pena do etnógrafo. Essa mudança no sta-
muda de status e aparece como mero ato linguístico, tus do discursivo rompe a assimetria pleiteada por
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  9

Latour: a rede não é “real como a natureza, coletiva Segunda assimetria: signos como coisas
como a sociedade e narrada como o discurso” – a ri-
gor, ela é apenas narrada como o discurso, ora enten- O segundo ponto de ruptura da simetria ocorre
dido em sentido tradicional. Repita-se que o caráter não em prol do discurso, mas da técnica. Também
discursivo da rede não é problemático por si só: ele aqui há uma torção conceitual: a técnica deixa de ser
apenas contraria a definição que Latour oferece de a “sociedade tornada durável” (Latour, 1991b; Van-
seu conceito-chave. Se técnica, natureza e sociedade denbergue, 2006, p. 340), em que se fundem aspec-
somente podem ser tratadas de maneira simétrica se tos coletivos e discursivos, e se torna simplesmente
articuladas em uma rede, mas se essa rede é o tex- uma black box, máquina em funcionamento. Ao
to do etnógrafo, então a simetria entre humanos e analisar a conversão de coisas em signos no célebre
não humanos tem de ser aquela atribuída pelo ob- estudo sobre os “Pedólogos de Boa Vista” (Latour,
servador humano em seu texto. Vige a subjetividade 1999, pp. 24-79), Latour recorre ao conceito de
individual e seu compromisso com o postulado da black-boxing de maneira a perder de vista justamente
simetria. Esse ponto foi identificado também por o caráter distintivo do signo – seu funcionamento
Graham Harman, entusiasta da metafísica relacio- conforme um sistema de diferenças independente de
nal de Latour, ao comentar a análise de Latour sobre uma relação originária com o mundo objetual.
Pasteur: “O problema aqui é que Latour foca no ator Tratava-se de solucionar, em uma expedição de
humano, Pasteur” (Harman, 2009, p. 84, grifos no campo composta por botânicos e pedólogos, o proble-
original). Com efeito, assim se lê no artigo de La- ma da fronteira entre a floresta amazônica e o cerrado
tour sobre Pasteur: “Poderíamos dizer que Pasteur em Roraima, pois não era claro se o cerrado avançava
está construindo um ator em seu laboratório em Lille” sobre a floresta ou se a vegetação amazônica invadia o
(Latour, 1999b, p. 122, grifo no original). A agência cerrado. Latour acompanha a expedição e tem a opor-
está toda no elo humano da associação. A simetria tunidade de desenvolver sua teoria do signo ao rastrear
entre humanos e não humanos é, na verdade, cons- a produção de inscrições a partir de uma sequência de
truída internamente ao texto – e, portanto, produto transformações por meio das quais coisas são converti-
da subjetividade do etnógrafo. das em signos. Com isso, ele identifica o fenômeno da
Ao atribuir ao texto do etnógrafo um status referência circulante, essencial para o desenvolvimento
diferenciado e especial, capaz de articular a rede posterior da teoria dos modos de existência.11 A fim
de atores, notamos uma contradição com o sen- de determinar a dinâmica entre os dois ecossistemas, a
tido pragmático e material do discurso, tal como expedição percorreu a zona de fronteira entre a Ama-
desenvolvido por Latour em suas primeiras obras. zônia e o cerrado e realizou quase uma cartografia
Isso não significa, porém, que Latour recaia defi- manual: com o auxílio de um topofil, instrumento
nitivamente no mero textualismo discursivo.10 A que desenrola um fio enquanto mede a distância per-
realidade continua sendo uma construção prática corrida, os pesquisadores esquadrinharam a zona de
e a sociedade continua sendo um fluxo de pulsa- fronteira entre os dois ecossistemas, de forma a com-
ções que precisa ser constantemente estabilizado por como que um mapa em escala 1:1, dividindo a
(Latour, 2005). Em uma adequada tradução so- área em quadrantes. Paralelamente, recolheram amos-
ciológica da repetição, categoria central da filosofia tras de solo de cada um dos quadrantes, agrupando-
pós-estruturalista (Derrida, 1968; Deleuze, 1969), -as no pedocomparador, uma caixa de madeira com
a estabilidade é o efeito produzido pela repetição tampo de vidro subdividida em várias caixinhas, de
contingente de associações (Marchart, 2013). Isso forma que amostras de solo ali depositadas permane-
extrapola os limites do texto como mero ato lin- çam visíveis. O pedocomparador funciona como uma
guístico. Não obstante, ao considerar o texto et- miniatura da área investigada. Em seguida, as amos-
nográfico como mediador que articula, em si e por tras foram analisadas e compuseram um diagrama –
si mesmo, atores em uma rede, Latour contradiz inscrição que representa o solo da zona de fronteira
o sentido coletivo, pragmático e material de seu entre os dois ecossistemas. O trabalho pode ser mais
próprio conceito de discurso. bem visualizado nas imagens a seguir.12
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Figura 1. Cerrado vs floresta.


Fonte: Latour, 1999d:25

Figura 2. Topofil. Figura 3. Amostras do solo.


Fonte: Latour, 1999b:44 Fonte: Latour, 1999b:45

Figura 4. Coleta. Figura 5. Ordenação das amostras.


Fonte: Latour, 1999b:50 Fonte: Latour, 1999b:52
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  11

Figura 6. Pedocomparador.
Fonte: Latour, 1999b:55

Figura 7. Diagrama da composição do solo


Fonte: Latour, 1999b:57.
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Observando o trabalho da expedição, Latour fato. Segundo Latour, é esse mecanismo que encerra
formula sua teoria do signo: o diagrama simboli- controvérsias científicas: a partir de algum momen-
za o pedocomparador, que, por sua vez, represen- to, um determinado enunciado deixa de ser questio-
ta a fronteira entre os dois ecossistemas; e é na nável: “An expression from the sociology of science
passagem entre essas etapas que ocorre tanto um that refers to the way scientific and technical work is
processo de simbolização quanto um processo de made invisible by its own success. When a machine
black-boxing – aliás, ambos os processos estão re- runs efficiently, when a matter of fact is settled, one
ciprocamente imbricados. A área em questão, uma need focus only on its inputs and outputs and not
coisa, é simbolizada pelas amostras de solo contidas on its internal complexity” (idem, p. 304).
no pedocomparador, que funciona como signo da Essa sugestiva analogia mostra como fatos são
coisa; esse artefato técnico, por sua vez, uma coisa, produzidos discursivamente, mas ela não pode ser
é simbolizado no diagrama, na inscrição que será transposta automaticamente para todos os proces-
incluída no artigo científico.13 Essas passagens são sos simbólicos, como regra geral para a significação.
traduções: a coisa física, o solo, é traduzida em outro Muito embora ela possa valer, em alguma medida,
meio, o pedocomparador, que a simboliza. Esse ar- para a produção científica de capital intensivo das
tefato, por sua vez, é também uma coisa simboliza- hard sciences, a analogia congela o encadeamento
da no diagrama. Que passa a ser uma coisa quando discursivo ao sugerir que controvérsias de outra
impresso no artigo científico. Tradução, conceito ordem – por exemplo, políticas, sociológicas ou fi-
central da teoria do ator-rede, expressa justamen- losóficas – possam vir a ser definitivamente encer-
te isso: na passagem de um meio a outro, de um radas como se fossem um aparato técnico cujo fun-
ponto a outro de uma rede, algo é preservado ao cionamento não se questiona mais. O postulado da
mesmo tempo que algo se altera (Latour, 1999b, p. simetria exigiria tratar a técnica e o discurso segun-
311). Isso que não se altera é o que Latour designa do suas respectivas lógicas próprias. O que parece
referência circulante: algo do mundo é transportado ocorrer, no entanto, é a tecnificização da cadeia dis-
em uma cadeia de operações sem perder sua refe- cursiva. Mas signos não são coisas; não funcionam
rência de origem.14 Isso que permanece constante como coisas (Kohn, 2007, p. 19).
asseguraria o “valor de verdade” (“truth-value”) da O discurso é composto pela sedimentação de
articulação (idem, p. 69). Tradução não é, portanto, camadas de sentido que sempre poderão ser proble-
a transmissão neutra de conteúdo, mas a transfor- matizadas e inquiridas em sua construção interna
mação ativa perpetrada pelos actantes articulados (Derrida, 1968). O pós-estruturalismo mostra jus-
em rede. A cadeia de transformações da expedição tamente como a superposição de camadas de sen-
dos pedólogos ilustra muito bem o processo de pro- tido se adensam em uma textura significativa que,
dução de inscrições como prática material. no entanto, nunca chega a compor um sistema fe-
O problema é pressupor que, nessas passagens, chado em si mesmo. Ademais, a necessidade de que
opera-se um efeito de tipo black-boxing. Na lin- o signo mantenha a correspondência com a coisa
guagem técnica, tem-se uma black box quando um física simbolizada é uma tarefa teórica anacrônica,
sistema opera de maneira intransparente para o ob- superada pelo menos desde a linguística estrutural
servador: ele vê os inputs e os outputs, mas não vê a de Saussure (1916). Signos não representam coisas,
transformação. É o que, na teoria geral de sistemas, mas adquirem seu valor em um sistema de diferen-
se conhece como sistema fechado. Na etnografia do ças que prescinde justamente de tais identidades
laboratório, Latour sustenta ter identificado um pro- últimas: “Um signo não existe imediatamente em
cesso análogo: quando um enunciado se torna fato, si mesmo; ele depende de outros signos para que
ele torna invisíveis todas as inúmeras operações prá- se torne signo” (Kneer, 2008, p. 294). Signo e sig-
ticas que lhe conferiram densidade e que o estabili- nificação são, por isso, fenômenos seriais (Deleuze,
zaram, podendo, então, ser tomado como verdade. 1969) e, enquanto tais, constitutivamente depen-
Nesse contexto, black-boxing significaria não desmon- dentes de reiteração. Um sistema de diferenças in-
tar o adensamento de sentido que se estabilizou como dependente dos sujeitos é precisamente aquilo que
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  13

assegura o caráter supraindividual da linguagem Latour, não existe o ser unitário, concebido à ma-
(Saussure, 1916, p. 29). Sem esse sistema, a opera- neira do éter, que preencheria todos os poros do
ção de converter uma coisa em um signo tem de se mundo social, mas apenas ontologias particulares –
apoiar apenas na subjetividade do cientista. os modos de existência. O ser, inacessível em si
À semelhança do texto do etnógrafo que arti- mesmo e identificável apenas de maneira indireta
cula em si mesmo a rede de atores, é de novo esse nos cruzamentos entre modos de existência, segue
texto que distribui o caráter de coisa ou signo aos o modelo teórico do deus cristão (Maniglier, 2012,
actantes por ele mobilizados. De novo, tudo se pas- p. 928; Heinich, 2007), mas esse modelo não é fi-
sa como se o texto etnográfico possuísse a natureza losoficamente construído da maneira mais convin-
do ato de fala, que, por si só, realiza plenamente cente. Esse passo filosófico, que, como é possível
aquilo que descreve. Com isso, reforça-se a técni- notar, está muito longe de ser trivial (pois exigiria
ca como mera maquinaria ao mesmo tempo que se demarcar fronteiras do ser, segmentando-o em en-
perde aquela noção rica e complexa do discurso em tes irredutíveis uns aos outros), não é desenvolvi-
sentido pragmático-material, abordada no primeiro do por Latour a contento, como se a apresentação
item deste artigo. razoavelmente intuitiva e empiricamente palpável
de âmbitos sociais relativamente autônomos entre
Terceira assimetria: pluralismo ontológico e si fosse suficiente para demonstrar seu argumento
diferenciação social em favor de uma pluralidade ontológica. A intuição
empírica de que o social se permite diferenciar em
A terceira assimetria aparece no mais recente âmbitos mais ou menos autônomos entre si, partin-
trabalho de Latour (2012) a respeito dos modos do de Weber e passando por Luhmann e Bourdieu,
de existência. Inspirado por estudos focados em configura hoje uma trivialidade sociológica.
âmbitos sociais específicos – a ciência, a técnica, Com efeito, os modos de existência contra-
o direito, a religião (Latour, 2003, 2007, 2002a riam, em certa medida, a própria noção de rede de
e 2013) –, Latour opera uma virada ontológica atores, que é definida pela ligação entre humanos
ao argumentar que outras esferas sociais possuem e não humanos independentemente de uma prévia
verdades próprias, a rigor uma existência e uma localização em “esferas”, “sistemas” ou “campos”:
realidade próprias, sendo impossível subsumi-las uma discussão sobre controle da emissão de gases de
a um último elemento, um denominador comum: efeito estufa para redução de buracos na camada
elas configuram esferas ontológicas autônomas en- de ozônio, por exemplo, transita entre a política, a
tre si, mas que não se permitem reconduzir a um ecologia, a ciência, a biologia, a química e o direito.
ser comum, daí o pluralismo ontológico. Nessa A antropologia dos modernos busca conectar aqui-
empreitada, Latour busca claramente escapar tan- lo que o trabalho de purificação sempre insistiu em
to do construtivismo quanto da rigidez de uma segmentar (Latour, 1991a). Contudo, a metafísica
sociologia tendencialmente estruturalista, como, dos modos de existência pressupõe, tem de pressu-
por exemplo, Bourdieu, sem recair em uma mi- por, uma definição prévia e categorial de âmbitos
crossociologia da ação (Boltanski e Thévenaut, sociais – “purificados”, por assim dizer (para reto-
1991). O resultado é uma virada claramente me- marmos a expressão Jamais fomos modernos), quais
tafísica, cujo ponto de partida é, curiosamente, a sejam: direito, ciência, religião, economia etc.; o
etnografia (Maniglier, 2012).15 Com efeito, a rede que curiosamente aproxima os modos de existên-
de atores passa a ser apenas um dentre todos os cia de Latour aos sistemas sociais de Luhmann ou
modos de existência, que são, então, categorizados aos campos de Bourdieu, por exemplo. Em suma,
e teorizados em suas inter-relações. Não obstante, e replicando a inteligente crítica de Ingold (2011,
essa virada não é isenta de problemas. pp. 91 e ss.) a Latour, afirmar a especificidade de
A primeira dificuldade, do ponto de vista fi- âmbitos sociais (uma questão empírica) não os tor-
losófico, está em postular a segmentação do ser na entidades automaticamente dotadas de uma on-
em favor de uma pluralidade de entes: segundo tologia própria (uma questão metafísica).
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A segunda dificuldade está relacionada com a Essas dificuldades explicam a terceira assime-
origem da formulação dos modos de existência: re- tria da antropologia simétrica. A segmentação do
almente, o conceito sucede a formulação anterior ser exige explicar o surgimento de híbridos dentro
de regimes de enunciação (Latour, 2002c; Hennion, do pluralismo ontológico. Por definição, híbridos
2013, p. 590). Os regimes de enunciação (régimes se situam nos cruzamentos entre âmbitos que se
d’énonciation) ou modos de veridição (modes de vé- presumem separados – do contrário, não seriam
ridiction) (Latour, 2012, pp. 65 e ss.) são categorias híbridos. Os híbridos operam a passagem (passe) de
de uma teoria material do discurso, tal como apre- um âmbito a outro e se permitem reconhecer no
sentada na primeira seção deste artigo: evidenciam “cruzamento de dois modos de existência” (croise-
o aspecto performativo, prático, do discurso que ment de deux modes d’existence) (Latour, 2012, pp.
age sobre o mundo, conformando-o. Os regimes de 167-168). Essa é a lógica pela qual Latour constrói
enunciação ou modos de veridição são menos pre- sua Investigação sobre os modos de existência: dois a
tensiosos que os modos de existência e dialogam di- dois, tais modos são analisados em seus cruzamen-
retamente com o caráter performativo da linguagem, tos, destacando-se as passagens entre eles (pois o ser
mas ficariam aquém da virada ontológica pretendida é, ele mesmo, inacessível, a não ser em suas frag-
por Latour. Reportando-se à teoria pragmática mentações). Mas então é preciso pensar como tais
da verdade de William James, um dos fundadores do âmbitos surgem em primeiro lugar, a fim de que a
pragmatismo norte-americano, bem como nova- passagem entre eles se torne logicamente possível.
mente a Austin, Latour identifica, nas redes que Tudo indica que Latour pressupõe uma diferencia-
sustentam a ciência, o direito e os demais âmbitos ção social latente, a fim de viabilizar tais cruzamen-
sociais, um modo específico de construir a verdade tos. E, se na teoria dos modos de existência essa
por meio do discurso, apoiado na reiteração de práti- diferenciação social não aparece, pode-se rastreá-la
cas materiais.16 Essa perspectiva não é apenas convin- até Reagregando o social, pois é lá que o compro-
cente, pois que desenvolvida a partir de profundos misso entre a sociologia das associações e a socio-
estudos etnográficos; ela oferece ainda interessante logia do social é firmado: a sociologia tradicional,
contraponto ao estruturalismo rígido do Foucault de apoiada em uma concepção rígida do social e tão
As palavras e as coisas (1966), mostrando como a pro- duramente criticada por Latour, é readmitida pela
dução da verdade é tarefa prática e incessante, que teoria do ator-rede: ela explica suficientemente bem
não se condensa em uma episteme abstrata para bai- a “parcela estabilizada da sociedade”: “Thus, all
xar das alturas às interações cotidianas. Apoiado no things considered, critiques of sociology of the so-
pragmatismo, a verdade é o efeito decorrente da rei- cial are misdirected if they forget to consider their
teração de práticas materiais e da circulação de enun- extraordinary efficacy in generating on form of at-
ciados, bem como da articulação de uma rede que tachments: the social ones, or at least that part of
os apoia. Toda verdade é por isso contingente, histó- the social that has been stabilized” (Latour, 2005,
rica, precária e, mais ainda, exige um trabalho reite- p. 226). Ora, com isso, a sociologia das associações
rado para ser mantida. Há aí um aporte certamente deixa de ser o modelo para uma nova teoria socio-
inovador. Não obstante, ficaríamos adstritos a uma lógica e passa a ser prioritariamente orientada para
perspectiva rotulada como construtivismo (de base a análise de inovações tecnológicas e controvérsias
etnográfica, bem entendido). Mas Latour busca uma técnico-científicas, muitas vezes desencadeadas na
definição positiva dos modernos, o que o conduz à fronteira do conhecimento (idem, p. 80).
metafísica dos modos de existência. O problema está Esse fetiche da inovação faz com que a sociolo-
justamente em passar dos regimes de enunciação à gia do social tenha de ser pressuposta para a parte
pluralidade ontológica dos modos de existência. A estabilizada da sociedade, cabendo à sociologia das
autonomia discursiva de regimes de veridição não associações observar o novo, o inédito, o híbrido.
permite inferir, sem mais nem menos, uma onto- Aqui, a simetria é rompida não em favor da técnica
logia própria; e, mais ainda, ontologias particulares ou do discurso, mas do social em seu sentido tra-
que bloqueiem a passagem a um ser unitário. dicional. Assim como o discurso deixa momenta-
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  15

neamente de se referir ao pragmatismo material de de seus primeiros estudos de sociologia da técni-


Latour e aparece como fala (primeira assimetria); e ca. Reportando-se à etimologia, Latour ressalta a
assim como a técnica deixa de ser a materialização origem comum dos termos coisa e causa (sub judi-
de convenções sociais e morais para se tornar mera ce): uma coisa é um matter of concern; ela mobiliza
máquina (segunda assimetria), o social deixa de ser em torno de si uma assembleia que tem de tomar
a reiteração de vínculos associativos entre humanos uma decisão coletiva – a coisa é, na verdade, um
e não humanos para voltar a ser mero continuum tema de debate público: “uma coisa emerge antes
inerte, apenas “a parte estabilizada” da sociedade de tudo como um assunto no seio de uma assembleia
(terceira assimetria). Com isso, Latour refaz, de que conduz uma discussão, exigindo um julgamento
maneira ad hoc, as fronteiras entre o discurso, o so- levado em comum” (Latour, 2004, p. 109, grifos no
cial e as coisas; fronteiras essas que ele havia trans- original). A democracia das coisas é a democracia
posto convincentemente ao mobilizar a etnografia dos temas que nos preocupam, que preocupam os
para uma antropologia dos modernos que seguisse humanos. É claro que, à luz do pragmatismo mate-
seus atores independentemente das camisas de for- rial de Latour, apresentado na primeira seção deste
ça impostas pelo trabalho de purificação, versão ofi- artigo, o discurso não se resumiria à fala. Não obs-
cial do iluminismo racionalista. Resta-nos, por fim, tante, a fala é a prática política por excelência para
abordar a última assimetria, agora relativa ao status o Latour de Políticas da natureza (Kohn, 2007).
diferenciado – normativo e moral – que a política Quanto à natureza, Latour afirma que ela fala-
acaba por assumir: a redenção dos modernos passa rá na arena democrática por intermédio dos cien-
por sua reconciliação com a natureza. tistas, seus porta-vozes (idem, pp. 124-125). Ora,
mas, com isso, perde-se, definitivamente, a sime-
Quarta assimetria: as políticas da natureza e a tria pretendida na representação de humanos e não
política dos políticos humanos. Os não humanos serão articulados em
uma proposição (idem, p. 152), por meio da qual
A quarta assimetria é metodológica e diz res- controvérsias científicas ecologicamente orientadas
peito ao status da política diante dos demais mo- deverão inundar e complexificar o debate político.
dos de existência. A teoria política de Latour, for- Assim, permanecemos mais uma vez na esfera do
mulada essencialmente em Políticas da natureza discurso em sentido tradicional. Realmente, o tema
(2004), retoma o fecho de Jamais fomos modernos: da deliberação (e não apenas o procedimento de-
reconhecendo a centralidade dos híbridos, é preciso liberativo, como propõe, por exemplo, Habermas)
repensar formas de representação nas quais política poderia oferecer um aporte material interessante
e ciência, sociedade e natureza estejam presentes, para a revisão da teoria da democracia. O problema
o que redunda no projeto de “estender a democra- é perder de vista esse potencial em nome de uma
cia às coisas” (Latour, 1991a, p. 194). Com efeito, simetria que, a rigor, não ultrapassa os limites da
trata-se de expandir para a política o postulado da metáfora. O “parlamento das coisas” é fórmula re-
simetria radical, representando, também na arena tórica que não altera o significado da democracia,
democrática, humanos e não humanos, revigoran- uma forma de governo caracterizada pela delibera-
do, pela ecologia, a deliberação pública.17 ção pública – de temas escolhidos e discutidos por
Tal como formulada, a ideia de um “parlamen- humanos. A revisão da teoria democrática propos-
to das coisas” (idem, p. 197) ou de uma “república ta por Latour redunda, por conseguinte, no vazio,
das coisas” (Latour, 2004, p. 111) pode induzir a pois não incorpora, de fato, os não humanos.
erro o leitor menos familiarizado com as excentri- Mas há ainda um problema adicional: en-
cidades terminológicas de Latour. É preciso atentar quanto proposição, a articulação de um matter of
para a mudança de sentido que o termo coisa sofre concern exigiria seguir os políticos profissionais,
quando passamos de Jamais fomos modernos para responsáveis por manter a proposição no centro
Políticas da natureza. A coisa de que fala Latour das controvérsias democráticas. Mas não é isso que
não é mais a coisa física, a natureza ou o artefato faz Latour. Na verdade, a assimetria mais grave está
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92

no tratamento metodológico dado à política. Um Em síntese, a democracia das coisas não se es-
dos principais mandamentos da teoria do ator-rede tende de fato às coisas, funcionando apenas como
é: “siga os atores!”. Parta da etnografia, da observa- metáfora. Trata-se muito mais de uma fórmula re-
ção de campo. Extraia de lá uma descrição, pois o tórica do que de uma verdadeira revisão de premis-
olhar do etnógrafo não é superior ao de seus infor- sas da teoria política. Talvez porque, aqui, Latour
mantes. Rege a simetria entre o observador e seus não seguiu seus atores, não fez uma etnografia da
informantes. Esse mandamento vale para a ciência, democracia liberal. Compreensivelmente, talvez.
para o direito etc., mas não para a política. Nessa Mas perde-se com isso, inegavelmente, a simetria
seara, Latour não segue os políticos profissionais pretendida como postulado teórico.
(Latour, 2004, p. 107),18 não faz uma etnogra- Em conclusão, o postulado da simetria radical
fia das instituições políticas reais, mas aposta na é rompido segundo as necessidades argumentativas
transcendência ecológica para obter uma forma de de Latour: (i) uma primeira vez em prol do discur-
representação e uma “diplomacia” em que todos so, entendido em sentido tradicional; (ii) uma se-
tenham voz. Argumenta que, “Do mesmo modo gunda em prol da técnica, entendida como máqui-
como distinguimos a Ciência das ciências, vamos na; (iii) uma terceira em favor do social enquanto
opor à política-poder [...] a política concebida continuum inerte; e (iv) uma quarta vez na defesa
como composição progressiva do mundo comum” de uma política idealizada, distante da observação
(idem, p. 39, grifos no original). empírica da prática política. Nesse percurso, Latour
O problema é que o “mundo comum” é, na deixa de lado um de seus grandes trunfos, uma teo-
verdade, o “bom mundo comum” (p. 381). Nota- ria do discurso como prática material, desenvolvida
-se a clara conotação moral e normativa que Latour a partir da etnografia e com destaque para o pa-
atribui à tarefa política. Conotação essa, aliás, que pel das inscrições. Ao fim e ao cabo, Latour parece
vem se intensificando em suas últimas intervenções ter desenvolvido uma poderosa teoria do discurso,
(Latour, 2015), as quais valorizam uma “diploma- compreendido não como metafísica linguística,
cia” metafórica entre os múltiplos interesses presen- mas como prática material que mantém a sociedade
tes nas controvérsias políticas e ecológicas, como se tal como a vivenciamos, para substituí-la por uma
o capitalismo já houvesse sido superado. Em últi- metafísica dos modos de existência. Essa teoria do
ma instância, Latour não abre mão da Política, em discurso, que, no final de Reassembling the social,
maiúscula, tal como abre mão da Ciência: a políti- fundamenta uma interessantíssima teoria da socia-
ca, “na sua acepção usual, designa a luta e os com- lização (Latour, 2005, p. 221 e ss.), é abandonada
promissos dos interesses e das paixões humanas”, por Latour em prol de uma metafísica social com
mas, “no sentido próprio, designa a composição forte carga moral e normativa. As consequências
progressiva do mundo comum e todas as compe- dessa guinada de perspectiva para a teoria socioló-
tências exercidas pelo coletivo” (idem, p. 383). Em gica ainda estão longe de terem sido esgotadas. Mas
síntese, a Política não é substituída pelas práticas elas ficam obscurecidas pela centralidade atribuída
políticas, preservando o ideal normativo da auto- ao postulado da simetria radical – que, como se
determinação voltada ao bem comum. Latour, que buscou demonstrar até aqui, é, na realidade, um ex-
sempre denunciou as mitologias do racionalismo pediente retórico que fragiliza a articulação interna
ocidental, mostrando, por exemplo, a “verdade” da teoria social de Latour.
científica como o artefato construído no laborató-
rio ou a “justiça” como o encadeamento fortuito
e contingente de imputações em empoeirados pro- Notas
cessos judiciais (Latour, 2002a), preserva para a
política, no entanto, a composição do bom mundo 1 A esse respeito, veja-se o clássico capítulo de O ca-
comum, passando inclusive pela reconciliação do pital acerca do fetichismo da mercadoria, em que a
homem com a natureza, o que soa aqui não muito mercadoria como “coisa física” se interpõe na relação
diferente de Habermas. entre os homens com total autonomia (Marx, 1867,
Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour  17

p. 85 e ss.), ou, ainda, o capítulo “Maquinaria e gran- so em técnica, uma rede. Nessa rede, o chaveiro de
de indústria”, em que os efeitos das máquinas sobre hotel age ao impor a seu portador a preferência em
o comportamento dos trabalhadores são apresentados favor de um curso de ação específico.
(idem, pp. 391 e ss.). A esse respeito, e contra a leitura 8 São exemplos clássicos de Austin: o sim na cerimônia
que Latour faz de Marx, ver White, 2013. de casamento, o batismo, a condenação em um vere-
2 Por exemplo: “o TRH regula a liberação de TSH pela dito jurisdicional, o testamento etc.
hipófise” (Latour e Woolgar, 1979, p. 110). Tratava- 9 A relação entre as inscrições de Latour, centro de sua
-se na ocasião de investigar a relação entre o sistema teoria do discurso, e diversas abordagens da filosofia
nervoso central e o sistema endocrinológico. da linguagem, do estruturalismo, do pós-estruturalis-
3 A apresentação do trabalho e do conhecimento cientí- mo e da linguística é por demais complexa para ser
fico como construtos sociais constitutivamente apoiados aqui apresentada (ver Bachur, 2016).
em fatores não científicos desencadeou intensa polêmi- 10 Ver, a esse respeito, a defesa de uma realidade diferen-
ca no âmbito dos Science Studies (cf. Latour e Woolgar, te da res extensa (“o mundo lá fora”), verdadeiro obje-
1986, pp. 273-290; Collins e Yearley, 1992a; Woolgar, to dos Science and Technology Studies (Latour 1999b,
1992; Callon e Latour, 1992; Collins e Yearley, 1992b; pp. 1-23), ou a releitura que Latour faz da Umwelt
Bloor, 1999a; Latour, 1999a; e Bloor, 1999b). Embora de Jakob von Uexküll, como crítica à compreensão
essas polêmicas ultrapassem os limites deste artigo, é da realidade como continuum inerte (Latour, 2010a),
preciso registrar que Latour refreou o ímpeto inicial que culmina no pluralismo ontológico dos modos de
com que conduziu sua crítica de base etnográfica à existência (Latour, 2012).
sociologia das ciências. Com efeito, ao longo de seu
11 Ver: “como condensamos o mundo em palavras? [...]
percurso, ele optou por destacar o caráter objetivo do
Quero mostrar que não há correspondência nem hia-
conhecimento científico sobre o caráter contingente e
to, nem mesmo dois domínios ontológicos distintos,
artificial das práticas científicas, tal como desenvolvido
mas um fenômeno inteiramente diferente: referência
em seus primeiros escritos (Latour, 2002a, pp.207 e
circulante” (Latour, 1999b, p. 24). Ver igualmente
ss.; Latour, 2012, pp. 182, 231, 242 e 256).
Latour, 2012, pp. 87-88, 97, 135 e ss.
4 A (con)fusão entre linguagem e mundo em Latour é,
12 Não se reproduzem aqui todas as fotos do estudo,
portanto, mais complexa do que aquela da qual parte
apenas aquelas que têm relação com o trabalho de
Austin ao diferenciar enunciados constativos e perfor-
simbolização.
mativos (1962) e significativamente mais bem traba-
lhada do que aquela que se verifica, por exemplo, na 13 A propósito, o diagrama elucida a hipótese de traba-
recente ontologia linguística de Searle (1995; 2010). lho da expedição: o húmus (faixa progressivamente
escura na figura) indicaria a alteração na composição
5 O artefato paradigmático para tanto é a bomba de ar
do solo, umidificando o solo do cerrado ou tornando
de Boyle: não é uma mera ferramenta; é técnica que
mais arenoso o solo da floresta, influenciando assim a
coloca em xeque a disputa entre plenistas e vacuístas,
vegetação na região.
bem como influi no debate sobre o papel da autori-
dade política na solução de controvérsias científicas 14 Latour, 1999b, p. 58 e p. 148, respectivamente: “pare-
(Latour, 1991a, pp. 23 e ss.). ce que referência não é simplesmente o ato de apontar
para alguma coisa ou de manter, no exterior, alguma
6 A “sociologia do social” evoca a imagem da socieda-
garantia material para a verdade de uma sentença lin-
de como organismo; a “sociologia das associações”, a
guística; trata-se ao contrário de manter algo constante
alusão a fluxos. Naturalmente, essa oposição binária é
através de uma série de transformações”, “a palavra
criticável, pois caricaturiza traços da tradição socioló-
referência se aplica à estabilidade de um movimento
gica. Não obstante, ela não integra o objeto de discus-
através de muitos e diversos instrumentos e media-
são deste artigo e pode ser aqui relevada.
ções” (grifos no original).
7 O chaveiro de hotel, por exemplo, funciona como
15 Harman (2009) argumenta inclusive ser a metafísica
peso sem outra função, que não a de “lembrar” aos
dos objetos e das associações o ponto alto da teoria de
hóspedes de ser deixado na recepção. O enunciado
Latour, especialmente em comparação com o realismo
“favor devolver as chaves na recepção” é traduzido tec-
especulativo, hoje muito em voga na filosofia francesa.
nicamente em um objeto físico e condiciona assim o
comportamento. Há, na tradução de regras sociais em 16 Ver, por exemplo, o prefácio de Fábrica do direito à tra-
um enunciado discursivo, e na tradução desse discur- dução norte-americana: “O livro que vocês estão prestes
18  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92

a ler é o Vida de laboratório não para a construção dos Chicago/Londres, University of Chicago Press,
fatos, mas para a construção de argumentos legais. […] pp. 343-368.
Meu ponto de vista geral, meu argumento geral é o de COLLINS, H. M. & Yearley, Steven. (1992a), “Epis-
que não podemos apresentar uma antropologia positi- temological chicken”, in A. Pickering (org.),
va dos modernos (que, eu os rememoro, nunca foram
Science as practice and culture, Chicago/Londres,
modernos – mas isso é só uma definição negativa: o que
eles têm sido até então?) enquanto não dispusermos de
University of Chicago Press, pp. 301-326.
um estudo comparativo claro acerca dos vários modos ______. (1992B), “Journey into space”, in A. Pi-
por meio dos quais as instituições centrais de nossas ckering (org.), Science as practice and culture.
culturas produzem a verdade” (Latour, 2010b, p. ix). Chicago/Londres, University of Chicago Press,
17 Kohn (2007) mostra que, de saída, já há um viés hu- pp. 369-389.
manista na tarefa de representar, por intermédio de DELEUZE, Gilles. (1969), La logique du sens. Pa-
um porta-voz, os não humanos, pois toma-se a fala ris, Les Éditions de Minuit.
como paradigma para processos simbólicos. DERRIDA, Jacques. (1968), Marges de la philoso-
18 Vale considerar que, mesmo no que se refere a seguir phie. Paris, Les Éditions de Minuit.
engenheiros e cientistas, há críticas à etnografia de La- FOUCAULT, Michel. (1966), Les mots et les choses.
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  21

ASSIMETRIAS DA ASYMMETRIES OF BRUNO ASYMÉTRIES DE


ANTROPOLOGIA SIMÉTRICA DE LATOUR’S SYMMETRIC L’ANTHROPOLOGIE
BRUNO LATOUR ANTHROPOLOGY SYMÉTRIQUE DE BRUNO DE
LATOUR

João Paulo Bachur João Paulo Bachur João Paulo Bachur

Palavras-chave: Bruno Latour; Teoria Keywords: Bruno Latour; Actor-net- Mots-clés: Bruno Latour; Théorie de
do ator-rede; Antropologia simétrica work theory; Symmetric anthropology; l’acteur-réseau; Anthropologie symé-
Teoria do discurso Discourse theory trique; Théorie du discours

Bruno Latour oferece uma das mais in- Bruno Latour provides one of the most Bruno Latour offre l’une des critiques les
teressantes críticas à modernidade oci- interesting critical accounts of moder- plus intéressantes de la modernité occi-
dental. Seu postulado básico é considerar nity. His basic assumption consists in dentale. Son postulat de base est de consi-
equanimemente humanos e não huma- equally regarding humans and non-hu- dérer les humains et les non-humains de
nos, tratando de maneira rigorosamente mans, dealing with society, nature, and façon impartiale, en considérant de façon
simétrica o social, a natureza e o discurso. discourse in a radically symmetric way. rigoureusement symétrique la société, la
O artigo avalia em que medida a simetria This paper evaluates if symmetry can nature et le discours. Ce travail évalue
é preservada à luz de quatro pontos crí- be preserved in the light of four critical dans quelle mesure la symétrie est pré-
ticos: a rede de atores é na verdade uma issues: the actor-network is actually a servée face aux quatre aspects critiques.
ferramenta discursiva, na qual o peso de discursive device, in which the observer En premier lieu, le réseau d’acteurs est,
humanos e não humanos é atribuído distributes, in his narrative, the role of en fait, un outil discursif, dans lequel le
pelo observador em sua narrativa; ao li- humans and non-humans; the dynamics rôle des humains et des non-humains
dar com a relação entre signos e coisas, between signs and things is technologi- est attribué par l’observateur dans son
o conceito de black-boxing acaba por cally biased by the concept of black-box- récit. Ensuite, en absorbant la relation
impor um viés tecnicista na compreen- ing; the ontological pluralism of different entre les signes et les choses, le concept
são do discurso; o pluralismo ontológico modes of existence does not prevent the de black-boxing finit par imposer un
dos modos de existência não supera, em survival of a latent social differentiation, biais technique à la compréhension du
última instância, a pressuposição de uma in terms of traditional sociology; and, discours. Troisièmement, le pluralisme
teoria da diferenciação social latente, nos finally, while technique, science and law ontologique des modes d’existence ne dé-
moldes clássicos da sociologia; e, por fim, are demystified by the anthropology of passe pas, en dernier ressort, l’hypothèse
enquanto a técnica, a ciência e o direito the moderns, politics remains idealized d’une théorie de la différentiation sociale
são desmistificados pela antropologia dos and distant from the political practices latente suivant le modèle classique de la
modernos, a política preserva um status of everyday. sociologie traditionnelle. Finalement,
idealizado, distante das práticas políticas tandis que la technique, la science et le
reais e rotineiras. droit sont démystifiés par l’anthropolo-
gie des modernes, la politique conserve
un statu idéalisée, éloigné des pratiques
politiques réelles et routinières.

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