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2016 || 1
Ana FRAZÃO*
*
Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-Conselheira do
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-Diretora da Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em Direito pela Universidade de Brasília – UnB,
Especialista em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito
e Estado pela Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUCSP.
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1. Introdução
As discussões sobre a força maior e o caso fortuito, que sempre foram centrais para o
sistema de responsabilidade civil subjetiva, foram ampliadas com a chamada
responsabilidade objetiva, cujo advento exigiu novas reflexões sobre o nexo causal e o
risco. Nesse sentido, fez-se imperioso encontrar um critério delimitador entre o
chamado fortuito interno, inerente ao risco, e o fortuito externo, alheio ao risco e,
consequentemente, suscetível de afastar a responsabilidade.
Não é sem razão que o artigo 393 do Código Civil brasileiro, mantendo a redação do
Código de 1916, prevê que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso
fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”,
acrescentando o parágrafo único que o caso fortuito ou de força maior “verifica-se no
fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
1 Omitiu-se o requisito da imprevisibilidade em razão das controvérsias a seu respeito. Como explicam
Geneviève Viney e Patrice Jourdain (VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Les conditions de la
responsabilité. Paris: L.G.D.J., 2006. pp. 278-280), a jurisprudência francesa é muito rigorosa em relação
ao requisito da irresistibilidade, mas é bastante flexível em relação ao requisito da imprevisibilidade, ora
entendendo que até as piores catástrofes seriam previsíveis, ora entendendo que seria suficiente um fato
razoavelmente imprevisível.
2 É o que ensina Moreira Alves (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 6.ed. 2.v. Rio de Janeiro:
que resulta de força estranha (force étrangère), enquanto o caso fortuito consiste em obstáculo interno,
proveniente das condições do próprio agente, como seria o caso dos acidentes de trabalho (em que há culpa
da vítima). Todavia, os autores admitem que não há grande interesse em distinguir os dois conceitos, à
medida que ambos têm por objetivo exonerar da responsabilidade. (COLIN, Ambroise; CAPITANT, Henri.
Cours élémentaire de droit civil français. 7.ed. Paris: Dalloz, 1932. v. 2, p. 73). Para Théophile Huc, tanto
caso fortuito como força maior são causes étrangères, isto é, externas ao agente afetado, sendo caso
fortuito o acidente produzido por uma força física irracional em condições imprevisíveis (c’est l’accident
produit par une force physique inintelligente, dans des conditions qui ne pouvaient être prévues par les
parties); ao passo que a força maior é um fato de terceiro que cria obstáculo para a execução da obrigação
que a boa vontade do devedor não pode superar (c’est le fait d’um tiers, vis major, qui a créé à l’éxecution
de l’obrigation um obstacle que la bonne volonté du débiteur n’a pu surmonter). Huc, da mesma forma
que Colin e Capitant, acaba admitindo que as duas expressões são, de qualquer forma, empregadas uma
em lugar da outra (HUC, Théophile. commentaire théorique & pratique du code civil. Paris: Cotillon, 1894.
v. 7, p. 201). A compreensão de Huc sem dúvida inspirou a de Washington de Barros Monteiro, para quem
a força maior resulta “de eventos físicos ou naturais, de índole ininteligente”, enquanto o caso fortuito
decorreria de “fato alheio, gerador de obstáculo que a boa vontade do devedor não consegue superar, a
exemplo da greve, do motim e da guerra” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil:
direito das obrigações. 32.ed. Sâo Paulo: Saraiva, 2003. v. 4, p. 318). Não é outra a opinião de Demolombe,
para quem ambas as expressões, embora muitas vezes empregadas, separadamente ou cumulativamente,
uma em lugar da outra, ou mesmo como sinônimas, procuram igualmente expressar a ideia de causa
estranha que não pode ser imputada ao devedor (cause étrangère, qui ne peut être imputée au débiteur).
(DEMOLOMBE, Charles. Traité des contrats ou des obligations conventionelles em général. Paris:
Imprimerie Génerale, 1877. v.1, p. 549).
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sendo ambas hipóteses associadas a fatos cujos efeitos são necessários e inevitáveis.4 A
generalidade da previsão possibilita que a regra incida sobre todas as hipóteses de
responsabilidade: contratual ou extracontratual, subjetiva ou objetiva.
Em qualquer que seja a seara, a grande controvérsia em torno dos dois conceitos diz
respeito aos seus pressupostos caracterizadores, para o fim de se saber quando
afastarão a responsabilidade. É por esse motivo que o Código Civil francês, em seu art.
1.147, adota a noção de causa exterior – cause étrangère – como pressuposto da
exclusão da responsabilidade.
Sendo assim, o direito francês põe em destaque a questão principal em torno do tema:
saber em que medida a força maior ou o caso fortuito podem ser considerados alheios
ao dano. Somente assim serão excludentes de responsabilidade, raciocínio que é
igualmente aplicável ao fato de terceiro ou da vítima.5 Nas demais ocasiões, poderiam
funcionar, no máximo, como redutores da indenização.
No Brasil, da mesma maneira, a discussão tem como foco principal saber quando a
força maior ou o caso fortuito podem afastar a responsabilidade. Daí se recorrer à
noção de fortuito externo, que, a exemplo da cause étrangère, é aquele suscetível de
afastar a responsabilidade, em contraposição à noção de fortuito interno, que não se
mostra como excludente de responsabilidade.
4 A circunstância de as duas expressões serem usadas como sinônimas é ressaltada por Agostinho Alvim
(ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1955. p.
335) e Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 10.ed. Rio de
Janeiro: GZ Editora, 2012. p. 397-398), dentre outros.
5 Geneviéve Viney e Patrice Jourdain (Les conditions, cit, pp. 252-254) explicam que os tribunais elaboram
uma distinção entre a cause étrangère e os conceitos de força maior e caso fortuito, pois somente na
primeira hipótese poderia haver uma total exoneração de responsabilidadade. Assim, podem ser causas
exteriores a força maior, o caso fortuito, o fato da vítima ou o fato de terceiro, mas não necessariamente o
serão.
6 Não obstante a existência de diferentes tipos de responsabilidade objetiva, o foco do presente artigo será
Alvim (Da inexecução, cit., p. 336) e Anderson Schreiber (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da
responsabilidade civil: da erosão dos filtros à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 64), dentre
outros.
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A discussão sobre o que é interno ou externo ao risco da empresa não pode ser
enfrentada sem uma prévia reflexão em torno do nexo causal, considerado um
pressuposto fundamental de todas as formas de responsabilidade civil, seja para
determinar a autoria do dano, seja para determinar a extensão deste.
Verdade seja dita que muitas das controvérsias sobre o assunto vêm sendo atualmente
superadas pela ideia de que a causalidade é um juízo de imputação jurídica.9
Exatamente por isso, trata-se de questão essencialmente valorativa,10 que diz respeito à
identificação dos danos que podem ser imputáveis a alguém, de acordo com diversos
padrões jurídicos, tais como os de justiça e equidade.11
8 Ver, por todos, Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade civil, cit., p. 106 e 356).
9 Conforme Caitlin Mulholland (MULHOLLAND, Caitlin. A responsabilidade civil por presunção de
causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009. p. 95-97), é preciso diferenciar a causalidade material,
fática, da causalidade jurídica, caracterizada por um juízo de imputação. A busca pelo liame causal, na
verdade, consistiria na verificação da reprovabilidade da conduta pelo ordenamento jurídico, ou seja, se
existem justificativas para que haja obrigação de indenizar.
10 É o que sustenta Christian von Bar (BAR, Christian von. The common European Law of Torts. 2.v. Nova
Iorque: Oxford University Press, 2005. p. 438), segundo o qual a causalidade não é propriamente um
problema científico, mas sim uma questão a ser respondida por valoração. Em sentido próximo, adverte
Galgano (GALGANO, Francesco. Diritto Commerciale. Le società. Bologna: Zanichelli, 2004, pp. 371-372)
que o nexo causal não tem uma conotação apenas naturalística, mas principalmente jurídica, no sentido de
que o evento danoso deve aparecer, segundo a experiência comum, como consequência imediata e direta
do ato ilícito.
11 Segundo Zweigert e Kötz (KOTZ, Hein; ZWEIGERT, Konrad. Introduction to comparative law. Oxford:
Clarendon Press, 1995. pp. 301-302; 316), isso ocorre claramente no direito norte-americano, no qual a
análise do chamado nexo causal envolve critérios como oportunidade, equidade, certeza do direito e justiça
social, motivo pelo qual o ponto crucial da responsabilidade por ato ilícito consiste em definir, dentre os
inúmeros eventos danosos, quais devem ser transferidos do ofendido para o autor do dano, conforme às
ideias de justiça e de equidade dominantes na sociedade. No direito europeu continental, Carbonnier
(CARBONNIER, Jean. Droit Civil. Volume II (Les Biens. Les Obligations). Paris: Presses Uni Volume II
(Les Biens. Les Obligations). Paris: Presses Universitaires de France, 2004. pp. 2282-2283) mostra que a
causalidade não é uma simples coincidência temporal ou espacial, nem de aplicação de meros critérios
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As novas reflexões sobre a causalidade vêm sendo tão intensas que hoje se questiona
até mesmo a sua importância como critério definidor da responsabilidade.12 Por outro
lado, como se verá no capítulo seguinte, a própria construção da teoria do risco foi feita
intencionalmente para superar o referido critério.
De toda sorte, a convivência entre causalidade e risco não é simples. Afinal, no âmbito
da responsabilidade objetiva pelo risco, o juízo a ser feito é o de analisar se
determinado dano encontra-se ou não na esfera do risco de determinada atividade, pois
somente quando for alheio ao risco é que se poderá afastar a responsabilidade.
Sob essa ótica, até mesmo as excludentes de causalidade – como a força maior ou o
fortuito externo – passam a ser vistas não propriamente como fatos que rompem uma
causalidade naturalística, mas sim como fatos que, do ponto de vista valorativo, não
podem ser considerados como inerentes ao risco.
O que precisa ser destacado é que o raciocínio a ser utilizado no diagnóstico ora
proposto não é se existe relação causal entre a conduta do empresário e o dano, mas
sim se há pertinência entre o dano e o risco daquela atividade. Na melhor das
hipóteses, poder-se-ia cogitar de causalidade entre o risco e o dano, mas, mesmo assim,
tal relação teria que ser avaliada por parâmetros distintos daqueles utilizados nas
lógicos, mas problema resolvido pela jurisprudência empiricamente, por meio de uma noção de
causalidade mais moral do que material.
12 Geneviève Viney e Patrice Jourdain (Les conditions, cit., pp. 184-187) dedicam parte de sua obra à
notadamente na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos, propõem substituir a noção de causalidade
pela de equidade, embora tal postura seja extremamente criticada. Em revanche, especialmente na França,
a teoria do risco ganhou grande esplendor e é às vezes apresentada como substituta da noção de
causalidade.
14 As três causas – força maior ou caso fortuito, fato da vítima e fato de terceiro – são elencadas pela
doutrina nacional como excludentes de responsabilidade, sendo exemplos as opiniões de Aguiar Dias
(AGUIAR DIAS, José. Da responsabilidade civil. 2 v. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1944., v.1, p. 249-
270), Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade civil, cit., p. 391-302), Serpa Lopes (SERPA LOPES,
Miguel Maria. Curso de Direito Civil. 6.v. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, v.2, pp. 456-466) e
Anderson Schreiber (Novos paradigmas, cit., p. 64).
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No entanto, a substituição da força humana pela tecnologia das máquinas impôs uma
nova compreensão do problema. A partir do momento em que os acidentes de trabalho
passaram a ser inerentes às novas formas de exploração empresarial, tornou-se
insustentável imputar incondicionalmente aos empregados a responsabilidade pelos
danos daí decorrentes.16
Não foi por mera coincidência que a gênese das teorias do risco teve como preocupação
central a hipótese dos acidentes de trabalho, sendo obras precursoras nesse sentido as
de Raymond Saleilles e de Louis Josserand. Os dois autores assumiram o desafio de,
por meio de grande esforço interpretativo do Code civil francês, fundamentar a
responsabilidade por acidentes de trabalho no risco e não mais na culpa.
máquinas acentuavam o número e a gravidade de danos. Não é sem razão que André Tunc (TUNC, André.
La responsabilité civile. 2.ed. Paris: Economica, 1989. p. 59-61) descreve esse período não somente como a
“era das máquinas”, mas também como a “era dos acidentes”. Os acidentes, portanto, podem ser
diretamente associados a elementos técnicos e intelectuais que não dependiam da culpa, mas de um risco.
Daí a insustentabilidade da premissa de que o trabalhador seria capaz de supervisionar suas máquinas por
inúmeras horas por dia sem nenhum momento de desatenção.
17 SALEILLES, Raymond. Les accidents de travail et la responsabilité civile: essai d’une théorie objective
Por essa razão, a teoria do risco de Saleilles18 tem como foco a responsabilidade dos
patrões e empresários, procurando romper com a causalidade em prol de uma relação
subjetiva de imputação, sob o fundamento de que a assunção voluntária dos negócios e
dos seus proveitos tem como consequência necessária a responsabilidade pelos riscos
correspondentes. É por essa razão que a sua opinião passou a ser conhecida como
“teoria do risco proveito” (risque profit).19
As vantagens da teoria do risco criado sobre a teoria do risco proveito23 justificaram sua
grande aceitação, tal como ocorreu com o Código Civil brasileiro.24 Vale ressaltar que
outras variantes de risco propostas pela doutrina não se afastam substancialmente das
noções de Josserand e Saleilles.25
O que há de significativo nas discussões sobre o risco é que, além de afastarem a culpa
como pressuposto da responsabilidade, elas subvertem a noção de causalidade, na
medida em que se apoiam em noções de equidade e justiça, bem como no papel da
da culpa, mas sim de declarar sua insuficiência, admitindo a coexistência entre os dois modelos.
23 Para Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade civil, cit., p. 372-379), a teoria do risco proveito
deveria ser eliminada, diante das dificuldades de sua aplicação, já que o exame do proveito envolveria um
fator subjetivo. Já a teoria do risco criado seria mais ampla do que a primeira e, exatamente por isso, mais
equitativa para a vítima.
24 A doutrina do risco criado, como indica Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade civil, cit., p. 362-
363), foi acolhida pelo Código Civil de 2002 em seu art. 927, parágrafo único.
25 O desenvolvimento da teoria do risco levou, como aponta Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade
civil, cit., p. 371), à formação de subespécies que, por muitas vezes, são intituladas como se fossem teorias
autônomas, tais como o risco integral, o risco profissional, o risco proveito e o risco criado.
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Daí a importância da prévia reflexão sobre o risco, o que se buscará fazer nos próximos
capítulos, primeiramente a partir de uma abordagem jurídica, que valoriza a equidade e
a dignidade da pessoa humana, e depois sob uma abordagem econômica, que analisa o
risco como fator propulsivo da empresa.
26 Segundo Alvino Lima (LIMA, Alvino. Culpa e Risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, pp. 343-
347), a teoria do risco criado procura restabelecer a solidariedade e o equilíbrio dos patrimônios,
mitigando a insegurança material da vítima e a desigualdade manifesta entre os criadores de riscos e
aqueles que suportam os efeitos nocivos dos perigos criados. Em sentido semelhante, Wilson Melo da Silva
(SILVA, Wilson Mello. Responsabilidade sem culpa. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 203) ensina que a
responsabilidade objetiva seria antes de tudo um instrumento de coletivização dos riscos e de socialização
da responsabilidade em prol da ideia de justiça social. Christian von Bar (The common European Law of
Torts, cit., p. 359-363) também ressalta a relação entre a responsabilidade pelo “controle, direção e uso” e
a proteção dos membros mais fracos da sociedade.
27 Nesse sentido, ver: VENTURI, Thaís Gouveira Pascoalato. Responsabilidade civil preventiva: a proteção
contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014. ZANITELI,
Leandro Martins. Direito de danos e prioritarismo. Revista de estudos jurídicos UNESP. v. 18, n. 27, 2014.
p. 2.
28
ALPA, Guido; BESSONE, Mario. La responsabilità civile. Milano: Giuffrè Editore, 2001. pp. 10-22.
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29 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 164.
30 Dispõe o art. 1382, do Código Civil francês, que todo e qualquer fato do homem que cause dano a outrem
obriga aquele, por culpa do que aconteceu, a repará-lo.
31 Para Trimarchi (TRIMARCHI, Pietro. Rischio e Responsabilità Oggettiva. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1961,
p. 37-38), a responsabilidade objetiva tem por função econômica a redução do risco socialmente
injustificado ao distribuir os encargos e benefícios de maneira a assegurar o bem estar social. Em sentido
semelhante, encontra-se a lição de Cees van Dam (European Tort Law, cit., p. 257), no sentido de que um
dos fundamentos da responsabilidade objetiva é a igualdade diante dos ônus sociais, já que os custos de
atividades socialmente importantes, mas perigosas, não podem ser atribuídos apenas ao pouco afortunado
indivíduo que arbitrariamente está sofrendo o dano, mas devem ser suportados pela sociedade ou pelo
grupo específico envolvido na atividade. Othon de Azevedo Lopes (LOPES, Othon de Azevedo.
Responsabilidade Jurídica. Horizontes, teoria e linguagem. Sao Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 284)
conclui, em face de todas essas discussões, que “o cerne da chamada responsabilidade objetiva está,
portanto, na equidade”.
32 Geneviève Viney (Les conditions, cit., pp. 94-95) leciona que a cessação do ilícito é geralmente
apresentada pela doutrina francesa como uma variante da reparação in natura. Renan Lotufo (LOTUFO,
Renan. Código Civil Comentado. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2004. v.1, p. 508) menciona igualmente o
chamado “efeito paralisante” da responsabilidade civil.
33 Merece destaque o ensinamento de Guido Alpa (ALPA, Guido. Manuale di Diritto Privato. Pádua:
Cedam, 2005 p. 872) no sentido de considerar dano injusto a lesão de qualquer interesse diretamente
tutelado pela Constituição (direito à saúde, direito de propriedade), qualquer interesse expressamente
tutelado pela lei e, ainda, qualquer interesse que, comparado com aquele do causador do dano, resulta
mais merecedor de tutela. Tal orientação é visível nas hipóteses de violação à pessoa humana, motivo pelo
qual sustenta Perlingieri (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, pp. 678-679) que, diante do “processo de erosão do direito subjetivo como critério
de seleção dos danos ressarcíveis em razão de um fato ilícito”, a ressarcibilidade dos danos deve estar
associada ao valor da pessoa humana e dos interesses a ela relacionados.
34 De acordo com Christian von Bar (The common European Law of Torts, cit., p. 223; 244) a questão da
responsabilidade civil ultimamente depende dos fatos do caso individual e de se saber se a atribuição do
dano é equitativa, justa e razoável, o que faz com que até a culpa seja analisada no contexto dos interesses
conflitantes. Em sentido semelhante, destaca Van Dam (European Tort Law, cit., p. 125-126 e 181) que a
responsabilidade civil diz respeito ao balanceamento de interesses de indivíduos, motivo pelo qual as
cortes, ao decidirem casos, não estão apenas tratando dos requisitos formais de responsabilidade, mas
também estão sendo dirigidas por seu senso de justiça, já que a responsabilidade civil é um ramo especial
da arte do balanceamento.
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instrumento para a satisfação do lesado, tendo a sua ação tratada como mero fato,35
sem a apreciação dos aspectos voluntarísticos e morais da sua conduta.
Daí as inúmeras reservas ao chamado risco integral, que trata a conduta humana como
um fato, não admitindo excludentes de responsabilidade nem avaliando quaisquer
aspectos voluntários inerentes ao risco criado. Por essa razão, trata-se de uma
concepção extremada da responsabilidade objetiva, que deve ser afastada no direito
privado, pois, como ensina Caio Mário da Silva Pereira,37 enseja a responsabilidade
mesmo no campo do incontrolável e do aleatório.
Além dos aspectos já mencionados, há uma outra dimensão do risco que precisa ser
analisada com cuidado: a econômica, segundo a qual o risco é o elemento objetivo que
dá sentido à empresa e justifica a remuneração do empresário.38
35 Por essa razão, vários autores de peso recusaram-se a aceitar os fundamentos da responsabilidade
objetiva, como é o caso de Georges Ripert (La règle morale, cit., pp. 218-223) e dos irmãos Henri e Léon
Mazeaud (MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile
délictuelle et contractuelle. 4.ed. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1947. pp. 364-370).
36 Othon de Azevedo Lopes (Responsabilidade jurídica, cit., p. 320) aponta que somente a concepção
conforme à lição clássica de Asquini (ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro. v. 35, n. 104, p. 109-126, out./dez. 1996, p. 110).
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Por mais que as fronteiras entre o risco e a incerteza nem sempre sejam claras, é
inequívoco que, quanto mais um dano for previsível, suscetível de cálculo e controle
pelo empresário (alocação, transferência, gerenciamento), mais fácil é sustentar que se
39 Bernstein (BERNSTEIN, Peter L. Against the Gods: The remarkable story of risk. Nova Iorque, Wiley,
1998. p. 8) mostra que a palavra risco, da origem italiana risicare (ousar), começa a ser usada somente no
século XIII, para o fim de refletir uma mudança de mentalidade segundo a qual o futuro deixava de ser
visto apenas como destino ou predeterminação divina e passava a ser uma escolha a ser feita de acordo
com suas consequências possíveis.
40 KNIGHT, Frank. Risk, uncertainty and profit. Boston: Houghton Mifflin Company, 1921. pp. 231-232.
41 PERRY, Stephen R. Risk, Harm and Responsibility. In: OWEN, David. Philosophical foundations of Tort
compreensão do risco: (i) a objetiva, baseada no cálculo de probabilidades e (ii) a epistêmica, que procura
modular o risco objetivo com base em evidências que levem a um cálculo de razoabilidade. Entretanto, a
sua conclusão é que o único fundamento que poderia justificar a responsabilidade pelo risco é a
identificação de uma conduta considerada arriscada sob os dois critérios.
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trata de algo inerente à empresa. De forma contrária, quanto menos o dano for
previsível ou suscetível de cálculo ou gerenciamento, mais fácil é sustentar que ele não
corresponde ao risco da empresa, podendo ser atribuído a um fortuito externo.43
Nesse sentido, o European Group on Tort Law44 ressalta que apenas pode ensejar a
responsabilidade o dano característico do risco apresentado pela atividade e dela
resultante, propondo que a avaliação do risco seja feita não apenas pela gravidade do
dano, mas também pela sua frequência, o que pode ser determinado pela teoria das
probabilidades.
Tal compreensão, portanto, não apenas se liga à questão da equidade – que é conectada
com a assunção voluntária dos riscos –, como também à ideia de que a regulação
jurídica da atividade empresarial precisa encontrar mecanismos para que a
responsabilidade do empresário seja compatível com o risco criado e assumido, não
sendo exagerada a ponto de possibilitar uma responsabilidade descolada do risco, com
o efeito indesejável de retração da atividade empresarial.
43 Para a delimitação do risco da empresa, a adoção de seguros é um importante critério considerado pela
jurisprudência do common law, conforme aponta Fleming (FLEMING JR, James. Accident liability
reconsidered: The impact of liability insurance. Yale Law Journal. v. 57, n. 4, p. 549-570, fev. 1948, p. 552;
559), além de contribuírem em larga medida para a prevenção de acidentes em razão da ação incisiva das
seguradoras para garantir a segurança, os custos das indenizações não recairão sobre os indivíduos que
incorreram em atos ilícitos, mas serão distribuídos pelo grupo de entidades segurado contra esse tipo de
risco.
44 EUROPEAN GROUP ON TORT LAW. Principles of European Tort Law. Wien: Springer Verlag, 2005,
pp. 105-106.
45 Como explica Christian von Bar (The common European Law of Torts, cit., p. 4), o direito delitual
somente pode operar como um sistema de compensação efetivo, sensível e justo se a responsabilidade
excessiva for evitada. É importante que ele não se torne um fator disruptivo no sentido econômico.
46 Este temor não é apenas uma conjectura, já que o regime de responsabilidade tem repercussão direta na
Um dos critérios que têm sido propostos para se encontrar essa "justa medida" é a
possibilidade de prevenção do dano47 e os custos respectivos. Aliás, desde a publicação
da obra seminal de Calabresi48 – Costo degli incidenti e responsabilità civile –, é
necessário ver a responsabilidade civil igualmente sob a ótica dos custos dos danos e
dos custos para preveni-los. Daí a proposta do autor49 de que os custos dos acidentes
devem ser imputados àqueles que podem evitá-los da forma mais barata,
incorporando-os ao preço final dos produtos e serviços.50
47 Nesse sentido, é importante ressaltar alguns dos critérios da jurisprudência norte-americana para avaliar
o risco, como apontados por Keating (KEATING, Gregory C. The Theory of Enterprise Liability and
Common Law Strict Liability. Vanderbilt Law Review. v. 54, p. 1285-1335, 2001, pp. 1323-1325), a partir
do caso Ira S. Bushey & Sons v. United States, em que se entendeu que o empregador deve ser responsável
pelos danos característicos de suas atividades, uma vez que tem condições de adotar medidas para
prevenção e mitigação dos riscos, além de poder assumir e repassar os custos decorrentes dessas medidas.
48 CALABRESI, Guido. Costo degli incidenti e responsabilità civile: analisi econômico-giuridica. Milão:
de um “sistema misto”, que seria mais satisfatório do que o sistema da responsabilidade pela culpa, pois
busca a redução dos custos dos acidentes e ao mesmo a satisfação do nosso senso de justiça. Como o autor
trabalha também com diferentes tipos de custo, a premissa da sua teoria é a de que deveria ser responsável
aquele que tem condições de evitar os acidentes de forma mais econômica e que é suficientemente grande
para fracionar os custos na medida suficiente para evitar o que chama de "custos secundários", que são os
custos que a sociedade deve pagar em decorrência dos acidentes em si. Alpa e Bessone (La responsabilità
civile, cit., p. 558) resumem a teoria de Calabresi como sendo aquela que parte da premissa de que a
distribuição ótima dos custos dos acidentes deve ser organizada de modo que a responsabilidade e o risco
recaiam sobre aquele que tem melhores condições de realizar aquele escopo e incorporar tal custo no preço
do produto.
51 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. Tradução: Luis Marcos Sander e Francisco
avoider arque com a responsabilidade, sendo consideradas variáveis como o grau de infomação acerca dos
riscos – o que em larga medida está relacionado ao tamanho da empresa – também para a definição do
avoider. Mesmo em situação de riscos concorrentes, o avoider será aquele que mais facilmente poderia
evitar os riscos, consoante as lições de Stephen Gilles (GILLES, Stephen G. Negligence, Strict Liability, and
the Cheapest Cost-Avoider. Virginia Law Review. v.78, n. 6, p. 1291-1375, sep. 1992. pp. 1292-1295) e
Satish Jain (JAIN, Satish Kumar. Economic Analysis of Liability Rules. Nova Déli: Springer, 2015, p. 37).
53 Cooter e Ulen (Direito & Economia, cit., pp. 334-348) mostram que a responsabilidade subjetiva, em
princípio, é mais adequada para proporcionar incentivos para que autor e vítima tomem precauções
eficientes, já que, na responsabilidade objetiva, apenas o autor do dano tem incentivos para a prevenção.
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Ora, impor responsabilidades ao empresário por danos que não fazem parte do risco
voluntariamente assumido e ainda são insuscetíveis de previsão, cálculo ou
gerenciamento tem um efeito econômico devastador para a atividade empresarial,
ainda mais no contexto atual, em que os estímulos para o investimento financeiro são
muitas vezes mais atrativos do que para o investimento produtivo.
Daí defenderem que o modelo objetivo é preferível quando somente o autor do dano pode tomar
precauções contra acidentes. Ao induzir os autores de dano a colocar em seu nível eficiente cada variável
que afete a probabilidade de um acidente, o modelo objetivo tanto induz a prevenção eficiente como um
nível de atividade igualmente eficiente.
54 De fato, como aponta Teresa Ancona Lopes (LOPES, Teresa Ancona. Responsabilidade Civil na
Sociedade de Risco. In: LOPES, Teresa Ancona; LEMOS, Patrícia Faga Iglesias; RODRIGUES JR., Otavio
Luiz. Sociedade de risco e direito privado: desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo:
Atlas, 2013. p. 6), enquanto a prevenção diz respeito ao perigo conhecido, a precaução já indica o “risco do
risco”, do qual podem surgir danos graves e irreversíveis. É o caso dos chamados riscos de
desenvolvimento, cuja descoberta não era possível pelo estado dos conhecimento técnico à época da
introdução de determinado produto ou serviço no mercado. De acordo com Marcelo Junqueira Calixto
(CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento. Revista
Trimestral de Direito Civil. v. 21, p. 53-93, jan./mar. 2005. p. 85), existem, aqui, dois requisitos para a
configuração de um risco de desenvolvimento: (i) um requisito temporal, referente ao momento que deve
ser considerado para a análise do estado da técnica; e (ii) um requisito técnico, referente ao critério de
avaliação do estado da técnica.
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Christian von Bar,56 por exemplo, é um dos que defende que a diferença entre os dois
tipos de responsabilidade projeta-se menos no aspecto qualitativo e mais no aspecto
quantitativo, motivo pelo qual ambos agem essencialmente da mesma maneira, com a
Por fim, ainda merece menção a opinião de Richard Epstein,60 ao também concluir que
a responsabilidade subjetiva que envolve um alto standard de cuidado tende a
convergir, em seus resultados, com a responsabilidade objetiva, ainda que possam
divergir na maneira da apresentação e na prova.
risco. Por mais que possam e devam ser vistos sob um viés mais rigoroso do que aquele
existente na responsabilidade subjetiva, até porque se projetam sobre um dever de
cuidado igualmente mais exigente, não podem ser simplesmente ignorados, como se
buscará examinar no capítulo seguinte, que tratará da delimitação das excludentes de
responsabilidade a partir dos critérios já expostos, bem como de algumas de suas
aplicações práticas.
8. Excludentes de responsabilidade
O capítulo anterior procurou demonstrar que, em face dos elementos necessários para
a avaliação do risco empresarial, não são estranhas as situações em que as fronteiras da
responsabilidade pelo risco se entrecruzam com as da responsabilidade subjetiva,
especialmente quando o dever de cuidado for alto.
Por outro lado, as conclusões até aqui expostas mostram como uma série de aspectos
subjetivos precisa ser considerada para se saber o que pode ou não ser visto como
inerente ao risco de determinada atividade. É o juízo de pertinência ou não ao risco que
uniformiza as excludentes de responsabilidade, permitindo que a força maior ou o
fortuito externo, o fato da vítima e o fato de terceiro sejam tratados de forma
homogênea.62
62 Viney e Jourdain (Les conditions, cit., p. 281) propõem a discussão sobre se o fato de terceiro ou da
vítima precisa ser ilícito, caso em que poderíamos falar em culpa do terceiro ou da vítima, advertindo que a
resposta da jurisprudência não é clara, apesar de haver importantes decisões da Corte de Cassação na
década de 60 entendendo que basta o fato e não a culpa. Até por essa razão, o presente artigo continuará se
referindo ao fato da vítima e do terceiro, por entender que a culpa deles pode ser irrelevante.
63 VINEY; JOURDAIN, Les conditions, cit., p. 275.
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É necessário também fazer uma distinção entre as pessoas naturais e as jurídicas, pois
as últimas contam com uma organização própria e diversos mecanismos legais – como
separação patrimonial perfeita, gestão profissional, dentre outros – que possibilitam
um gerenciamento do risco muito mais amplo e sofisticado do que o realizado pelas
primeiras. Dessa maneira, o critério da irrestibilidade deverá ser analisado em
conformidade com as perspectivas de administração do risco que decorrem da própria
personalização.
Vale ressaltar que a controlabilidade do risco não diz respeito apenas à possibilidade de
evitar o dano, mas também à possibilidade de gerenciá-lo adequadamente. Daí por que
são questionáveis as decisões jurisprudenciais de que assaltos à mão armada em
coletivos, apesar de previsíveis e habituais, seriam fortuitos externos à atividade da
transportadora, por serem inevitáveis.66 Afinal, o critério isolado da inevitabilidade do
dano pode funcionar bem como excludente de responsabilidade subjetiva, mas não
necessariamente como excludente de responsabilidade pelo risco.
823.101/RJ Rel. Min. Ari Pargendler, Data de Julgamento: 28.03.2006, Data de Publicação: DJ
18.04.2006), em que passageiro acabou sendo atingido por tiro em virtude de assalto a mão armada em
coletivo. O Tribunal afastou a responsabilidade da transportadora por entender que disparo de arma de
fogo é um fortuito externo, pois, apesar de ser previsível, diante da habitualidade da sua ocorrência em
determinadas linhas, seria inevitável.
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cautelas que lhes seriam exigíveis para evitar o dano. Por essa mesma razão, é correta a
jurisprudência trabalhista quando entende que os danos sofridos por motoristas de
ônibus em razão de acidentes de trânsito causados por terceiros são fortuitos internos,
já que se trata de risco inerente à atividade, tanto sob a ótica da previsibilidade, como
da controlabilidade.67 Da mesma forma, é acertada a posição adotada pela Súmula nº
479 do STJ, segundo a qual “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos
danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros
no âmbito de operações bancárias”.
acolheram o princípio segundo o qual a aceitação dos riscos pela vítima é, por si e de forma geral, um
motivo de exclusão de responsabilidade, motivo pelo qual vêm reconhecendo a responsabilização mesmo
quando a vítima está ciente dos riscos.
69 A culpa exclusiva da vítima consiste em ato ou fato exclusivo da vítima pelo qual fica eliminada a
Forrester, 1808) afigurava-se de forma radical: tendo a vítima do dano agido em padrão abaixo exigido por
seu dever de cuidado, contribuindo em alguma medida para a concretização do resultado danoso que
sofreu, isso seria uma defesa total para o réu (no caso, o causador direto do dano), como explanou Peter
Swisher (SWISHER, Peter Nash. Virginia Should Abolish the Archaic Tort Defense of Contributory
Negligence and Adopt a Comparative Negligence Defense in Its Place. University of Richmond Law
Review. v. 46, n. 1, p. 359-372, 2011. p. 360).
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Diferente raciocínio foi utilizado no “caso pingente”, em que o lesado projetou o corpo
para fora do vagão, hipótese em que o Superior Tribunal de Justiça afastou a culpa
71 Ver Swisher (Virginia should abolish, cit., p. 360) e Abraham (ABRAHAM, Kenneth S. The forms and
functions of Tort Law. Nova Iorque: Foundation Express, 2007, p. 144; 151), que mostram claramente que,
especialmente nas últimas quatro décadas, a contributory negligence defense foi substituída pela
comparative negligence, a fim de reduzir a pretensão da vítima conforme a proporção da negligencia que
lhe é atribuída.
72 Por essa razão, da mesma forma que na comparative negligence – note-se, não na contributory – a
objetivo do júri não é o de comparar culpas, como ocorreria na responsabilidade subjetiva, mas sim o de
buscar uma solução justa para o caso.
74 BAR, The common European Law of Torts, cit., pp. 550-551.
75 Esclarece Abraham (The forms and functions, cit., pp. 161-164) que a expressão assumption of risk pode
No que diz respeito aos acidentes de trabalho, a questão da culpa da vítima precisa ser
vista com atenção redobrada, tendo em vista que a própria responsabilidade pelo risco
foi criada para resolver o problema dos acidentes causados por descuidos dos
empregados, sob o fundamento de que tais situações estariam contidas no risco da
empresa. Por essa razão, não faz sentido afastar a responsabilidade quando o acidente
decorreu de mera culpa do empregado,78 já que isso faz parte, como regra, do risco da
empresa. Apenas em casos de dolo ou culpa grave do empregado, de forma a se criar
uma situação que não pudesse ser compreendida no risco, é que se poderia cogitar de
alguma excludente de responsabilidade.
Não é sem razão que o primeiro diploma normativo do ordenamento brasileiro a tratar
da responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho, o Decreto nº 3.724 de 1919, já
estabelecia, em seu art. 2º, que o acidente ocorrido em razão ou durante o trabalho
obrigava o patrão a pagamento de indenização “exceptuados apenas os casos de força
maior ou dolo da propria victima ou de estranhos”. Assim, não havia possibilidade de
que a mera culpa da vítima afastasse a responsabilidade empresarial.
Por outro lado, é importante refletir sobre as hipóteses em que o fato da vítima, seja em
casos de acidente de trabalho ou não, ainda que inerente ao risco da empresa, possa ser
considerado como fator de redução da indenização sempre que tiver agravado, de
forma desnecessária e injustificável, o risco. Em casos assim, é acertada a posição
77Foi o caso do REsp 259.261/SP (STJ, REsp nº 259.261/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Data
de Julgamento: 13.09.2000, 4ª Turma, Data de Publicação: DJ 16.10.2000), no qual o relator afirma que
“não há falar, portanto, em culpa concorrente, seja porque apenas a culpa exclusiva da vítima eximiria a
ferrovia da responsabilidade, seja porque a culpa contratual da empresa transportadora exclui a culpa
concorrente[...]”.
78 No AIRR 1299-26.2010.5.02.0472 (TST, AIRR nº 1299-26.2010.5.02.0472, Rel. Des. Convocado
Arnaldo Boson Paes, Data de Julgamento: 15.10.2014, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 31.10.2014)
admitiu-se que o descuido do empregado, mesmo diante de condições inseguras de trabalho constatadas
por perito judicial, seria suficiente para caracterizar culpa exclusiva da vítima.
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defendida por Flávio Tartuce,79 que, por meio do que chama de teoria do risco
concorrente, propõe a redução equitativa da indenização, proporcionalmente à
participação do agente no dano perpetrado.
Dessa maneira, fica claro que as excludentes de responsabilidade apenas poderão ser
consideradas como tal, para o fim de afastar a imputação, quando forem consideradas
estranhas ao risco, a partir dos critérios anteriormente propostos. No caso específico de
fato da vítima, caso este seja inerente ao risco, a responsabilidade não poderá ser
afastada aprioristicamente, embora possa ser reduzida de acordo com o grau de
agravamento do risco pela vítima.
9. Conclusões
O presente artigo procurou demonstrar que, para efeitos da diferenciação entre o caso
fortuito interno e o externo, há de se buscar parâmetros mais adequados do que o nexo
de causalidade. Há de se ampliar a reflexão para entender adequadamente o que é
risco, qual é sua importância no cenário econômico e social e quais os fundamentos e
propósitos da responsabilidade objetiva em razão dele.
79 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco: a teoria do risco concorrente. São Paulo:
Método, 2011. p. 264.
80 STJ, REsp nº 1034302/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 12.04.2011, 3ª Turma, Data
REsp nº 1259799/SP, Rel. Min. Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 05.08.2014, Data de Publicação: DJe
15.08.2014). Tal compreensão é diferente de julgados mais antigos, que, a partir da ideia de risco,
imputavam à companhia a responsabilidade total ou afastavam a responsabilidade.
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São esses os critérios que deverão ser usados ao se enfrentar aquele que é o grande
desafio responsabilidade pelo risco: encontrar o equilíbrio entre a necessidade de
ressarcimento da vítima com a valorização do empresário e a possibilidade de controle
do risco, sem o que é impossível haver um cenário minimanente compatível para o
investimento empresarial e para a assunção de riscos.
Daí a preocupação do artigo com a indicação de critérios que, por mais que precisem
ser ajustados às peculiaridades do caso concreto, são um ponto de partida para a
identificação do que pode ser considerado risco da empresa, reforçando o necessário
compromisso do empresário com a indenização dos danos inerentes ao risco que ele
cria, controla e gerencia.
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civilistica.com
Recebido em: 02.06.2016
Aprovado em:
03.06.2016 (1º parecer)
13.06.2016 (2º parecer)
Como citar: FRAZÃO, Ana. Risco da empresa e caso fortuito externo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a.
5, n. 1, 2016. Disponível em: <http://civilistica.com/risco-da-empresa-e-caso-fortuito-externo/>. Data de
acesso.